quarta-feira, 11 de julho de 2007

O EU E A EXPERIÊNCIA MEDIADA num mundo global

O EU E A EXPERIÊNCIA MEDIADA
Notas para uma pesquisa
(Conferência apresentada no Clube Literário do Porto/Fundação Luís Araújo, no dia 17 de Maio de 2006)


Com este estudo pretendemos analisar detalhadamente a natureza do self e a sua experiência num mundo mediado e cada vez mais global.
A posição da teoria crítica a este respeito foi enunciada, de forma lapidar, por Max Horkheimer (1973) no seu célebre estudo «Arte Nova e Cultura de Massas» (1941):

«Com a progressiva dissolução da família, com a transformação da vida privada em tempo livre e do tempo livre em ocupações triviais, controladas até ao último detalhe pelas diversões do campo desportivo e do cinema, dos «beste-seller» e do rádio, desaparece também a vida interior» (p.121). Esta perspectiva é reforçada no estudo «Razão e Autoconservação» (1942): «A desintegração da razão e a do indivíduo são uma só e mesma coisa» (p.159).
Contrariamente a esta perspectiva considerada pessimista, as teorias hermenêuticas da comunicação social, nomeadamente a de John Thompson (1998), defendem a tese de que

«com o desenvolvimento das sociedades modernas, o processo de formação do self torna-se mais reflexivo e aberto, no sentido de que os indivíduos dependem cada vez mais dos próprios recursos para construir uma identidade coerente para si mesmos, [e, ao mesmo tempo, o processo de formação do self] é cada vez mais alimentado por materiais simbólicos mediados, que se expandem num leque de opções disponíveis aos indivíduos e enfraquecem — sem destruir — a conexão entre a formação do self e o local compartilhado» (p.181).

Convém assinalar a ambiguidade do enunciado: os materiais simbólicos mediados enfraquecem, sem no entanto destruir, a formação do self. Enfraquecem, na medida em que os indivíduos têm acesso a formas de informação e de comunicação originárias de fontes distantes que os alcançam através de redes de comunicação mediada e globalizada, em crescente expansão. Recorrendo a um conceito elaborado por Clifford Geertz (1999), Thompson afirma mesmo que os indivíduos têm acesso a «um conhecimento não local», isto é, a um conhecimento global por oposição ao conhecimento local. No entanto, a conexão entre a formação do self e o local compartilhado não é destruída, porquanto o conhecimento não local é sempre apropriado por indivíduos situados em locais específicos. Além disso, a importância prática desse conhecimento — o que significa e como é usado pelos indivíduos — depende sempre dos interesses dos receptores e dos recursos disponíveis no momento da apropriação (p.181).
Nesta perspectiva centrada no contexto de recepção das formas simbólicas, a comunicação mediada enriquece e transforma o processo de formação do self. Além disso, o desenvolvimento dos mass media «produz um novo tipo de intimidade que não existia antes e que se diferencia, em certos aspectos fundamentais, das formas de intimidade características das interacções face a face» (p.181). Deste modo, fica definida a tese defendida pelas teorias interpretativas da comunicação social.

1. O SELF COMO UM PROJECTO SIMBÓLICO. A hermenêutica acusa a tradição estruturalista, fortemente influenciada por determinadas noções da linguística estruturalista (Lepschy, 1975), de ter legado uma «concepção empobrecida do self», segundo a qual «o self é visto principalmente como um produto ou [uma] idealização de sistemas simbólicos que o precedem» (p.183). Assim, por exemplo, a interpelação de Althusser (1974) ou as tecnologias pessoais de Foucault (1996) são conceitos que visam explicar como os indivíduos se tornam sujeitos que pensam e agem de acordo com as possibilidades que lhes são adiantadas pela sociedade. Thompson esquece que esta concepção do sujeito é um desenvolvimento teórico anterior ao advento da linguística, estando já presente nos denominados «mestres da suspeita»: Marx, Nietzsche e Freud (Ricoeur), alinhados na problemática do anti-humanismo teórico. A linguística traz-lhe apenas novos conceitos, em particular o conceito de que a linguagem é anterior à «constituição do indivíduo». A este propósito, Saussure (1986) é peremptório: A língua, por oposição à fala,

«é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, e este, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela só existe em virtude de um contrato firmado entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para lhe conhecer as regras; a criança só pouco a pouco a assimila (…)» (p.42). «(…) a língua (…) é social na sua essência e independente do indivíduo» (p.48). Dado ser «uma herança duma geração precedente», a língua já está constituída quando o indivíduo acede à fase de adquirir a palavra (p.130).
Detectam-se nestas palavras a forte presença de Émile Durkheim (1980), embora esta concepção social tenha sido sistematicamente elaborada por L.S. Vygotsky (1988), Mikhail Bakhtin (1992) e George H. Mead (1972). O estruturalismo de Claude Lévi-Strauss (1976, p.282), de Michel Foucault (19—), de Jacques Lacan ou de Louis Althusser nada mais faz do que radicalizar a crítica da problemática do humanismo teórico, principalmente a sua noção do Sujeito como Origem e Fim último da «história». A análise não parte de uma suposta natureza ou essência humana: o homem é visto como o portador de determinadas determinações, sejam elas sociais, simbólicas ou biológicas. A ideia de consciência constituinte é posta em questão; contudo, quando a linguagem, a sociedade ou mesmo a imaginação (Castoriadis, 1975) é colocada no seu lugar, não se abandona a teoria da constituição.
A concepção do self proposta por Thompson diverge da abordagem estruturalista e baseia-se principalmente na tradição hermenêutica e, parcialmente, no interaccionismo simbólico. Nesta perspectiva, «o self não é visto nem como produto de um sistema simbólico externo, nem como uma entidade fixa que o indivíduo pode imediata e directamente captar; muito mais do que isso, o self é um projecto simbólico que o indivíduo constrói activamente. É um projecto que o indivíduo constrói com os materiais simbólicos que lhe são disponíveis, materiais com que ele vai tecendo uma narrativa coerente da própria identidade» (p.183).
Deste modo, o self é concebido como um projecto simbólico que o indivíduo constrói activamente, recorrendo aos materiais simbólicos que tem ao seu dispor, para tecer ao longo do seu trajecto de vida uma narrativa coerente da própria identidade. Esta auto-narrativa modifica-se com o decorrer do tempo, à medida que novos materiais e novas experiências entram em cena e redefinem gradualmente a sua identidade. Como escreve Thompson:

«Dizer a nós mesmos e aos outros o que somos é contar as narrativas — que são continuamente modificadas neste processo — de como chegámos até onde estamos e para onde estamos a ir daqui para a frente. Somos todos biógrafos não oficiais de nós mesmos, pois é somente construindo uma história, por mais vagamente que seja, que seremos capazes de dar sentido ao que somos e ao futuro que queremos» (p.183-84).

Ora, esta noção de self como projecto foi elaborada e desenvolvida por Jean-Paul Sartre na sua obra «Crítica da Razão Dialéctica», onde afirma que «a praxis individual, sempre inseparável do meio que constitui, que a condiciona e que a aliena, é, ao mesmo tempo, a Razão constituinte de si-mesma no seio da História percebida como Razão constituída» (p.178-79). É precisamente esta noção de praxis individual que foi criticada tanto por Lévi-Strauss quanto por Althusser.
Thompson parece ter consciência disso, já que afirma que destacar «o carácter activo e criativo do self não é o mesmo que sugerir que ele seja socialmente incondicionado» (p.184). Apresenta dois argumentos para mostrar que o self é socialmente condicionado: 1) O primeiro argumento diz que os materiais simbólicos que formam os elementos das identidades que construímos são, eles próprios, distribuídos de maneira desigual: os recursos simbólicos não estão disponíveis do mesmo modo para todos e o acesso a eles pode exigir habilidades que somente poucos indivíduos possuam; 2) além disso, as maneiras como os indivíduos utilizam os recursos simbólicos na construção do próprio sentido do self dependem, até certo ponto, das suas condições materiais de vida.
Daqui parece resultar, em termos gerais, uma distinção entre dois tipos de self: o self enriquecido dos indivíduos cujas condições materiais de vida possibilitam a disponibilidade e o acesso aos recursos simbólicos, e o self empobrecido dos indivíduos que carecem desses recursos simbólicos. Este é um condicionamento social pouco democrático do self: o self é aquilo que os seus recursos sociais possibilitam ser. Parafraseando Michel Foucault (1973), é como se a individualização fosse máxima do lado em que as condições materiais de vida permitem uma concentração máxima de recursos simbólicos, de habilidades e de acesso facilitado (p.171). Neste sentido, a individualização seria socialmente «ascendente», como no ancien regime. Ora, uma tal concepção social do self escamoteia concepções mais elaboradas como as de Mead, Bakhtin, Vygotsky e Henri Bergson (1978), em particular o problema da adesão do indivíduo à sociedade e a distinção intrínseca entre o eu individual e o eu social, a qual permite avaliar o carácter sobresocializado ou subsocializado do indivíduo. Sem estes conceitos torna-se difícil avaliar o impacto dos mass media sobre o processo de formação do self.
Seja como for, o desenvolvimento dos meios de comunicação teve um profundo efeito sobre o processo de autoformação do self. Este liberta-se dos contextos de interacção face a face e do «conhecimento local» que os impregna e torna-se cada vez mais dependente do acesso às formas mediadas de comunicação, tanto impressas como electronicamente veiculadas.

«O conhecimento local é suplementado e, cada vez mais, substituído por novas formas de conhecimento não locais que são fixadas num substracto material, reproduzidas tecnicamente e transmitidas pelos mass media.
«O conhecimento técnico é gradualmente separado das relações de poder estabelecidas pela interacção face a face, à medida que os indivíduos vão sendo capazes de ter acesso a novas formas de conhecimento», aquelas que já não são transmitidas face a face, de geração em geração através da troca oral e adaptadas às necessidades práticas da vida.
Deste modo, «os horizontes de compreensão dos indivíduos alargam-se». Dado terem deixado de ser estreitados pelos padrões da interacção face a face, esses horizontes «são modelados pela expansão das redes de comunicação mediada. Os mass media tornam-se, nos termos de Lerner, «um multiplicador da mobilidade», uma forma vicária de viajar que permite ao indivíduo distanciar-se dos locais imediatos da sua vida diária» (p.184-85).
A abertura a novas formas de conhecimento não local e a outros tipos de material simbólico mediado operada pelo desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação «enriqueceu e acentuou a organização reflexiva do self» (p.185).
O enriquecimento da organização reflexiva do self é perspectivada em dois sentidos:

A. Dado terem acesso às formas mediadas de comunicação, os indivíduos tornam-se capazes de usar um leque de recursos simbólicos para construir o self. Deste modo, o self torna-se cada vez mais organizado como um projecto reflexivo através do qual incorpora materiais mediados a um coerente e continuamente revisada narrativa biográfica.
B. Graças à expansão dos recursos simbólicos disponíveis no processo de formação do self, os indivíduos são continuamente confrontados com novas possibilidades. Os seus horizontes alargam-se continuamente e os seus quadros simbólicos de referência estão continuamente a mudar. Deste modo, torna-se cada vez mais difícil recorrer a estruturas de compreensão relativamente estáveis que tomam corpo nas tradições orais e se ligam a locais particulares. Esta organização reflexiva do self é uma característica da vida social contemporânea.
Através destes dois efeitos positivos, o desenvolvimento dos meios de comunicação tem efeitos inquietantes, tanto para os indivíduos como para as comunidades de que fazem parte. John Thompson refere quatro efeitos negativos dos mass media sobre a formação do self: a intrusão mediada de mensagens ideológicas, a dupla dependência mediada, o efeito desorientador da sobrecarga simbólica e a absorção do self na interacção quase mediada. Convém salientar que, apesar das suas potencialidades de abertura, quase nunca realizadas, as possibilidades abertas pelos novos meios de comunicação têm efeitos negativos na formação e consolidação do self, sobretudo nos grupos etários mais novos, do nascimento até à adolescência.

1. A INTRUSÃO MEDIADA DA IDEOLOGIA. Em «Ideologia e Cultura Moderna», Thompson (1995) defendeu uma concepção dinâmica e pragmática de ideologia: a ideologia designa as «maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação», isto é, relações de poder. Assim, as formas simbólicas específicas não são ideológicas per si: as formas simbólicas são ideológicas quando servem, em determinadas circunstâncias, para estabelecer e sustentar sistematicamente relações assimétricas de poder.
Ora, o desenvolvimentos dos meios de comunicação criou as condições necessárias para a intrusão mediada de mensagens ideológicas nos contextos práticos da vida diária, através de extensas faixas de espaço e de tempo. Não só a difusão da ideologia é facilitada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, como também a sua audiência tende a universalizar-se, transcendendo os contextos locais da interacção face a face. Contudo, dado o carácter contextual da ideologia, o carácter ideológico das mensagens mediadas depende do modo como são recebidas pelos indivíduos e incorporadas reflexivamente nas suas vidas e também nos seus corpos. Em determinados contextos, a apropriação das mensagens mediadas serve para estabilizar e reforçar as relações de poder e, quando são incorporadas reflexivamente aos projectos de formação do self, podem assumir um papel ideológico poderoso, como sucede nas concepções sociais e culturais de masculinidade e de feminilidade ou de identidade étnica.
A sua interiorização exprime-se mais no modo como o indivíduo se comporta no mundo, como se relaciona consigo mesmo e com os outros e como entende os contornos e os limites de si mesmo do que em crenças e opiniões explícitas.

2. A DUPLA DEPENDÊNCIA MEDIADA. A disponibilidade das mensagens mediadas não somente enriquece e acentua a organização reflexiva do self (efeito positivo), mas também — e paradoxalmente — torna o self extremamente dependente de sistemas sobre os quais não tem praticamente controle. A dupla dependência mediada resulta assim de um processo paradoxal: quanto mais o processo de formação do self se enriquece com as formas simbólicas mediadas, mais ele se torna dependente do sistema da indústria cultura que escapa ao seu controle.
Ora, a dupla dependência mediada é uma das características das sociedades da modernidade reflexiva. Com o seu desenvolvimento, os indivíduos são obrigados a recorrer a si próprios para construir — com os recursos materiais e simbólicos disponíveis — um projecto coerente de vida. Por um lado, o self torna-se cada vez mais organizado como um projecto reflexivo, mediante o qual constrói — na forma de autobiografia narrativa — a sua própria identidade pessoal; mas, por outro lado, os indivíduos estão cada vez mais dependentes de um vasto conjunto de instituições e sistemas sociais que lhes proporcionam os meios — materiais e simbólicos —, para a construção dos seus projectos de vida. Este é o paradoxo com que nos defrontamos actualmente: a organização reflexiva do self desenrola-se sob condições que o tornam mais dependente das instituições e dos sistemas sociais que escapam ao seu controle. Nada parece ser transparente.
O paradoxo da reflexibilidade/dependência ou, para utilizar a terminologia de Ulrich Beck, da individualização/institucionalização é evidente na dominação dos media: A crescente disponibilidade de formas simbólicas mediadas fornece os meios simbólicos que possibilitam aos indivíduos distanciarem-se dos contextos da vida diária e construírem projectos de vida que incorporam reflexivamente as imagens e as ideias mediadas recebidas, interpretadas e apropriadas, ao mesmo tempo que fomenta a sua dependência — no que diz respeito à formação do self e da vida da imaginação — dos sistemas complexos responsáveis pela produção e transmissão das formas simbólicas mediadas.

3. O EFEITO DESORIENTADOR DA SOBRECARGA SIMBÓLICA. Tudo se passa como se na virtude da crescente disponibilidade de formas simbólicas mediadas residisse também as seus mais graves pecados ou defeitos. Além de enriquecer a formação do self, esta disponibilidade pode também ter um efeito desorientador. Com efeito, Georg Simmel já tinha constatado que, no âmbito da grande metrópole, a enorme diversidade e multiplicidade de estímulos, mais precisamente de mensagens mediadas disponíveis provoca uma espécie de sobrecarga nervosa, que hoje sabemos estar associada ao stress e ao antro comportamental.
Nas sociedades pós-tradicionais, os indivíduos confrontam-se não só com uma outra narrativa autobiográfica que lhes permite reflectir criticamente sobre as suas próprias vidas ou com uma outra visão do mundo que contrasta com os seus supostos pontos de vista, mas fundamentalmente com inúmeras narrativas autobiográficas, inúmeras cosmovisões e inúmeras formas de informação e comunicação que dificilmente podem ser coerente e efectivamente assimiladas. A diversidade cria necessariamente uma insegurança ontológico-existencial essencial nos indivíduos: a fragmentação e a fragilização ameaçam o self.
Enfrentar este fluxo sempre crescente de materiais simbólicos mediados constitui o grande problema das nossas vidas. Dado a personalidade múltipla não ser um processo viável para resolver este problema, mencionaremos três maneiras mais saudáveis de solucionar este problema, de resto muito frequentes:

1. Os indivíduos podem seleccionar o material que assimilam: a selecção do material simbólico disponível.

2. Os indivíduos podem elaborar sistemas de conhecimento que lhes permitem seguir um determinado caminho através da densa floresta das formas simbólicas mediadas. Quando estes sistemas fazem parte das redes da comunicação social, os indivíduos são levados a confiar nas opiniões dos chamados críticos do cinema ou da TV, para fazer as suas próprias escolhas. Situações deste tipo estão excluídas daquilo a que chamamos imunocognição, a qual exige o desenvolvimento de competências cognitivas e de capacidade crítica, assentes na auto-determinação.

3. Os indivíduos podem depender regularmente de outros, com quem interagem todos os dias — os «outros significativos» de G. Mead, cujas opiniões aprendem a respeitar como fonte de conselho experiente sobre o modo como tais materiais devem ser interpretados ou devem ser assimilados ou rejeitados. O estudo de Janice Radway sobre os leitores de ficção romântica mostrou como eles recorriam às opiniões de determinada pessoa, não só para seleccionar os livros que iriam ler, mas também para construir sistemas práticos de conhecimento que os ajudavam a enfrentar o crescente fluxo de formas simbólicas mediadas.

O desenvolvimento do sistema de conhecimentos práticos é igualmente uma característica da dinâmica das sociedades modernas: o efeito recíproco da complexidade e da experiência prática. À medida que a sociedade se complexifica, os indivíduos constróem sistemas práticos de conhecimentos que lhes permitem tornar inteligível essa complexidade.

4. A ABSORÇÃO DO SELF NA INTERACÇÃO QUASE-MEDIADA. O desenvolvimento dos media cria um novo tipo de situação interactiva: a interacção quase-mediada. Muitos indivíduos, além de participarem na interacção quase-mediada — onde vão buscar materiais simbólicos mediados como fonte de recursos ricos e variados para o processo de formação do self —, participam igualmente em interacções face a face. Deste modo, a interacção quase-mediada é apenas um dos aspectos das suas actividades sociais diárias. No entanto, existem indivíduos que confiam muito mais nos materiais simbólicos mediados do que nos outros significativos. Nestes casos, os materiais simbólicos mediados transformam-se num objecto de identificação, ao qual se vinculam e se apegam emocionalmente. O carácter reflexivo do self, pelo qual eles são capazes de incorporar materiais simbólicos num processo relativamente autónomo de formação contínua do self, desaparece e, em seu lugar, o self é absorvido por uma forma de interacção quase-mediada. A absorção do self não implica necessariamente uma suspensão da reflexividade: A absorção do self na interaxcção quase-mediada é apenas uma versão da organização reflexiva do self, na qual os materiais simbólicos mediados são não apenas ou simplesmente um recurso para a autoformação do self, mas a sua preocupação central. Ao se tornarem fins em si mesmos, os ideais simbólicos convertem-se em «coisas» em torno das quais o indivíduo organiza a sua vida e lhe dá sentido. Trata-se daquilo a que a teoria crítica chama consciência reificada.

2. A INTIMIDADE NÃO RECÍPROCA À DISTÂNCIA. A. Giddens analisou exaustivamente — e de um ponto de vista sociológico — As Transformações da Intimidade ocorridas nas sociedades modernas tardias, dando especial atenção às mudanças na sexualidade, no amor e no erotismo. Se tivéssemos de resumir a sua hipótese de trabalho e a sua extensa argumentação, diríamos apenas que as concepções tradicionais da sexualidade, do amor e do erotismo cederam o seu lugar à «sexualidade plástica», que é uma sexualidade descentrada, liberta das necessidades de reprodução (o erotismo) e a um mundo de negociação sexual, do qual resultam novas terminologias de «compromisso» — a «relação pura» e de intimidade, intrinsecamente ligadas ao self e à sua organização reflexiva. Falta saber se esta «democratização das relações interpessoais» conduz a um novo tipo de civilização ou a uma «clausura emocional».
Ora, este novo conceito de intimidade resultou, em grande medida, da acção do sistema da indústria cultural. A interacção quase-mediada teve dois efeitos sobre a natureza das relações interpessoais através dos media: Por um lado, como se dilata através do tempo e do espaço, a interacção quase-mediada possibilita uma forma de intimidade com outros que não partilham connosco o mesmo ambiente espaço-temporal. Por outro lado, como não é dialógica, a forma de intimidade possibilitada pela interacção quase-mediada não tem um carácter recíproco, como sucede na interacção face a face. Da associação destes dois aspectos resulta o conceito de interacção não recíproca à distância. Este novo tipo de intimidade tem vantagens e custos. As vantagens desta nova forma de intimidade residem no facto dela permitir aos indivíduos (1) desfrutar alguns benefícios da companhia, sem as exigências típicas das relações face a face, (2) explorar relações interpessoais de forma vicária, sem compromissos recíprocos, e (3) obter diversão e informação, sem exigências recíprocas.
Deste modo, os actores sociais são livres para definir os termos do compromisso e da intimidade que desejam ter com outros distantes e «estranhos». Actores, estrelas e outras celebridades da media tornam-se figuras familiares e íntimas e assunto de conversa rotineira na vida quotidiana de muitas pessoas. Muitas vezes, estas figuras mediáticas tornam-se aspectos de tal modo importantes na vida de uma pessoa que chegam a eclipsar outros aspectos, redefinindo outras formas de interacção diária, por vezes com resultados dolorosos e confusos. Outras pessoas adoptam uma vida-dupla: ao mesmo tempo de constituem com o seu parceiro(a) uma relação íntima numa interacção face a face, imaginam-se com o seu «ídolo» numa relação de intimidade à distância. Estas pessoas que estabelecem facilmente uma relação não recíproca de intimidade com outros distantes são geralmente chamadas fãs. A palavra fã é uma abreviatura de «fanático» e o seu uso descritivo na teoria social não perdeu a conotação de fervor religioso, de delírio e de possessão demoníaca transmitida pela sua origem etimológica.
A tietagem ou clonagem, de resto um aspecto ordinário e rotineiro da vida quotidiana, é o conceito usado para designar o processo mediante o qual os chamados fãs organizam a sua vida em função de certas actividades como espectadores e do cultivo de certas relações com determinados produtos ou géneros de media. A tietagem torna-se a preocupação central do self e serve para organizar uma parte significativa da sua própria actividade e das interacções que estabelece com os outros. Ser fã é, assim, uma maneira de se organizar reflexivamente e de se comportar no dia a dia, de acordo com certas actividades, produtos ou géneros de media.
Além disso, é cada vez maior o número de fãs que procuram cultivar relações não recíprocas de intimidade com outros distantes, nomeadamente com certas estrelas ou celebridades mediáticas, chegando mesmo a associarem-se com outros fãs que partilham o mesmo «interesse», formando a comunidade de fãs ou o mundo dos fãs, um grupo social com as suas próprias regras, convenções e práticas. Tornar-se fã é, para muitas pessoas, uma estratégia do self — uma maneira de desenvolver o autoprojecto mediante a incorporação reflexiva de formas simbólicas associadas à tietagem.
Contudo, para muitas pessoas, as atracções da comunidade de fãs podem tornar-se opressivas. A experiência de ser fã converte-se, frequentemente, numa dependência compulsiva, da qual o fã não consegue libertar-se e o seu self acaba por ser gradualmente absorvido pelo mundo dos fãs. O self reduzido a fã já não consegue perceber a distinção entre os mundos dos fãs e o mundo prático da vida quotidiana: ambos os mundos estão de tal modo misturados que o projecto do self se torna inseparável da experiência de ser fã e passa a ser moldado unicamente por esta experiência reificadora e endurecida.
Esta fusão do self com o outro e do mundo do fã com o mundo da vida quotidiana acarreta necessariamente a perda de controle da sua própria vida, o que mostra claramente que a apropriação dos materiais simbólicos mediados pode gerar preocupações compulsivas, sobre as quais o self não pode exercer qualquer tipo de controle. Esta perda de controle significa a própria ruína do self — desse self que, ao querer tornar próprio o estranho, se tornou, ele próprio, estranho a si mesmo.

3. DESSEQUESTRAÇÃO E MEDIAÇÃO DA EXPERIÊNCIA. Os mass media disponibilizam um vasto conjunto de experiências que as pessoas normalmente não adquirem nos contextos práticos da vida quotidiana. Além da formação de relações de intimidade não recíproca à distância, existem outros tipos de experiência mediada.
O desenvolvimento das sociedades modernas implicou um reordenamento complexo das esferas da experiência. A emergência de sistemas especializados de conhecimento — a medicina e a psiquiatria — e de instituições especializadas, tais como os hospitais, os asilos, os hospícios e as prisões, implicou a remoção de determinadas formas de experiência dos locais da vida diária e concentrou-as em espaços institucionais particulares. Assim, os hospitais e as prisões constituem exemplos dramáticos desta sequestração da experiência, de resto bem analisados por Michel Foucault e Erving Goffman.
Sequestração da experiência ou, como prefere Giddens, isolamento da experiência significa privar as pessoas de viverem certas experiências nos lugares da sua vida diária. Estas experiências são retiradas dos contextos práticos da vida quotidiana e reconstituídas em instituições especializadas, cujo acesso pode ser muito restrito ou, de alguma forma, controlado. Uma referência aqui à noção de instituição total de Goffman.
Contudo, esta sequestração institucional da experiência foi acompanhada por outro desenvolvimento que, de certo modo, a neutraliza: a expansão das formas mediadas de experiência. Aquilo que é ou era sequestrado pelas instituições volta a ser reinserido nos contextos práticos da vida diária através dos media: quer dizer que os media operam a dessequestração da experiência de acontecimentos geralmente envolvendo assuntos existenciais.
Além disso, os media tornam disponível novas formas de experiência, independentemente de terem sido gradualmente separadas ou não do fluxo normal da vida quotidiana, ao mesmo tempo que produzem um contínuo entrelaçamento de diferentes formas de experiência.
Para compreendermos estes desenvolvimentos, é necessário distinguir entre dois tipos de experiência: a experiência vivida e a experiência mediada. O conceito de experiência vivida deriva da hermenêutica e da fenomenologia. Dilthey utilizou este termo para se referir à experiência adquirida pelo indivíduo no decurso normal da sua vida diária. A experiência vivida é a experiência que adquirimos durante o fluxo temporal das nossas vidas. Esta experiência é imediata, contínua e, até certo ponto, pré-reflexiva, no sentido de preceder geralmente qualquer acto de reflexão explícita. Além disso, é uma experiência situada, dado ser adquirida em contextos práticos da vida quotidiana. O seu conteúdo deriva basicamente das actividades práticas diárias de rotina e do encontro dos indivíduos com outros em contextos de interacção face a face.
A experiência mediada refere-se ao tipo de experiência que adquirimos através da interacção ou interacção quase-mediada. A experiência adquirida através da interacção quase-mediada diferencia-se da experiência vivida em quatro aspectos:

1. A experiência mediada possibilita experienciar eventos ou acontecimentos que, na sua maior parte, estão distantes espacial ou mesmo temporalmente dos contextos práticos da vida diária. Dado não serem presenciados directamente no fluxo das actividades normais da vida diária, estes eventos têm um carácter refractário: Os indivíduos que os vêem através dos media não podem afectá-los ou controlá-los. Por outro lado, esses eventos não afectam directamente as vidas dos receptores. Contudo, não se pode negar as conexões causais entre os eventos mediados e os contextos práticos da vida, como atesta o fenómeno da violência.

2. A experiência mediada acontece num contexto diferente daquele onde o evento ocorre efectivamente. A experiência mediada é sempre experiência recontextualizada, através da recepção e apropriação dos produtos dos media nos contextos práticos da vida diária. O carácter recontextualizado da experiência mediada é a fonte tanto do seu encanto como da sua capacidade de chocar e desconcertar. O encanto da experiência mediada reside no facto dos media possibilitarem ás pessoas deslocarem-se e viajarem para novos e diferentes espaços de experiência, sem ser necessário alterar os contextos espaço-temporais das suas vidas diárias. Torna-se assim possível viajar sem sair do mesmo lugar. A capacidade de chocar e desconcertar da experiência mediada reside no facto dos media contrastarem contextos e mundos divergentes que subitamente se unem numa experiência mediada chocante e desconcertante, do tipo, por exemplo, do mundo pacífico do receptor ser confrontado com cenários de guerra e de morte.

3. A experiência mediada relaciona-se com a relevância estrutural. O self é, como vimos, um projecto simbólico que o indivíduo modela e remodela no decurso da sua vida. Ora, este projecto implica um conjunto de prioridades continuamente modificáveis que determinam a relevância ou não de experiências reais ou possíveis. Isto significa que não damos a todas as experiências o mesmo peso ou importância; pelo contrário, orientamo-nos para aquelas experiências que fazem parte das prioridades do projecto que queremos ser. É, por isso, que as experiências actuais ou potenciais são estruturadas em função da relevância que têm para a construção do self. A relevância aplica-se tanto à experiência vivida como à experiência mediada, com a diferença desta última não ser um fluxo contínuo mas uma sequência descontínua de experiências, cujos graus de relevância variam em função das prioridades do self.

4. A experiência mediada implica, finalmente, a não espacialização comunal. Ao contrário do que sucede com a experiência vivida, o que há de comum na experiência mediada não é a proximidade espacial dos indivíduos — a partilha de um mesmo local comum, mas o seu acesso comum às formas mediadas da comunicação social.

Como é viver num mundo mediado? O que acontece ao self num mundo cada vez mais mediado e global? Na sua obra «O Ecstasy da Comunicação», Jean Baudrillard afirma que entramos numa nova fase da história do sujeito, que descreve como uma nova forma de esquizofrenia: «Apesar de si mesmo, o esquizofrénico é aberto a tudo e vive na mais extrema confusão (...). Passando de uma cena para outra, sem o menor obstáculo, incapaz de produzir os limites do próprio, não consegue mais reflectir no espelho a própria imagem. Transformou-se numa tela de projecção, uma pura absorção numa superfície de reabsorção para as influentes redes de comunicação» (p.27). Esta perspectiva é parcialmente partilhada por Frederic Jameson: a profusão de mensagens e de imagens mediadas dissolve efectivamente o self como uma entidade coerente e forte, ou seja, o self é absorvido pela desarticulada exibição de símbolos mediados. À medida que o indivíduo se torna cada vez mais aberto às mensagens mediadas, o self torna-se, na mesma proporção, cada vez mais disperso e descentrado, perdendo assim qualquer unidade ou coerência que pudesse ter tido. Como as imagens reflectidas num espelho, o self torna-se um jogo sem fim de símbolos que mudam a cada momento que passa. Nada é estável, nada é fixo e não há entidade separada da qual estas imagens são o reflexo. Na idade da saturação dos media, as múltiplas e mutáveis imagens são o self, ou, parafraseando Goffman, por detrás das imagens ou das máscaras não se esconde nenhum si-mesmo.

Embora não se possa negar a pertinência destas observações, convém afirmar que o self não foi dissolvido pela profusão de mensagens mediadas, mas transformado, juntamente com as condições da sua formação. A crescente disponibilidade de materiais simbólicos mediados permite ao self desembaraçar-se dos locais e dos contextos da vida quotidiana. Esta libertação pode ser vista como um enriquecimento do self, dado abrir a sua natureza para influências provenientes de locais distantes. Viver num mundo mediado implica assim um contínuo entrelaçamento de formas diferentes de experiência, das quais os indivíduos dependem cada vez mais para informar e remodelar a seu projecto. Graças à disponibilidade e seu acesso, as experiências mediadas criam novas oportunidades, novas opções e novas arenas para a experimentação de si-mesmos. A libertação dos locais da vida normal lança o indivíduo para dentro de um mundo extremamente complexo, onde ele é chamado a formar uma opinião, a tomar uma decisão ou, até mesmo, a assumir novos tipos de responsabilidade por questões ou eventos que acontecem em lugares distantes num mundo cada vez mais global.
J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

Bruna Albuquerque disse...

Gostei muito do seu blog, vai me ajudar e muito na hora de estudar.

Estou seguindo seu blog.