domingo, 22 de julho de 2007

GRITO NO SILÊNCIO

E. Münch & CyberEstética

Uma árvore é derrubada pelo vento, mas, como não havia nenhum ser vivo dotado de um sistema auditivo por perto, ninguém ouviu o ruído causado pelo seu impacto sobre o solo. Sem sistemas específicos de audição não se pode ouvir nada: a audição cria o som percebido. Sem ela o universo é silencioso.
Alguém grita de angústia: as ondas emitidas pelo seu aparelho fonador alargam-se no espaço e vão ao encontro dos ouvidos de outros seres que permanecem de rosto silencioso. Eles não escutaram e, por isso, as ondas recuam novamente para o lugar donde tinham sido emitidas. O grito não escutado pelos outros regressa ao rosto daquele que o emitiu. Ouvir o seu próprio grito é, por definição, o horror — a angústia levada ao seu extremo: a solidão perdida no silêncio de si mesmo e dos outros. Se, de facto, há aqui crueldade, ela não é a da existência do que grita, mas do outro que não escuta por ser surdo, que não fala por ser mudo, que não vê por ser cego, que não sente por ser pedra, que não pensa por ser inumano… O silêncio do outro é vizinho do diabo.
Esta é a chave de leitura que propomos para a pintura de E. Münch.

1. PERPLEXIDADE. O homem recorre a Deus para encontrar paz, mas a paz que encontra deixa-o perplexo diante de palavras que se multiplicam ambiguamente e sem fim. A palavra de Deus desassossega. Deus escapa-nos como a água que tentamos agarrar com a mão por entre os dedos. No entanto, há uma diferença significativa: sentimos a água mas não sentimos Deus. O Deus que se procura não se encontra, como se tivéssemos condenados a não o encontrar. Deus é silêncio.

2. CLAUSURA E EXCLUSÃO. O desenvolvimento de uma subjectividade rebelde dotada de uma consciência crítica que não faça concessões conduz necessariamente à clausura e à exclusão. À clausura porque a consciência se fecha em si mesma num diálogo perpétuo consigo mesma, no qual o eu fala com o mim, de resto o representante da sociedade que o primeiro deseja ver mudada para melhor. À exclusão na medida em que pensar é uma actividade que se desenrola fora do mundo fenoménico. Pensar consigo mesmo é excluir-se do mundo e mergulhar em si mesmo, sem que os outros possam partilhar essa experiência única e privada que se esconde ao olhar perscrutador dos outros.

3. TEORIA CRÍTICA. A sua ambição foi contribuir para a mudança qualitativa e radical do mundo — transformar-se a luta contra a ordem estabelecida em práxis revolucionária e esclarecida. No entanto, essa sua ambição foi a sua desgraça: não só a realidade não se submeteu à teoria como também a classe que a deveria realizar integrou-se na sociedade. Frustrada nas suas intenções práticas, isto é, políticas, a teoria crítica vira-se contra si mesma, na tentativa derradeira de ela própria não vir a ser sufragada pela sociedade estabelecida. Para salvaguardar a sua independência, a teoria crítica abandona-se ao pensamento abstracto e, nesta viragem, a filosofia que é transforma-se em pensamento sem concessões.
A mediação adorniana mantém ainda a porta aberta a uma eventual possibilidade, ainda que remota, de reconciliação com a prática, quanto mais não seja como prática pedagógica. Pensar sem mediações é clausura: o pensamento isola-se em si mesmo e nega-se a ser partilhado. Pensar é recusar pactuar com uma sociedade que veda a todos uma vida sem angústia. Pensar contra a sociedade é mostrar que a realidade que pretende ser única não o é: o pensamento é uma realidade que rejeita aparecer no mundo das aparências e, quando se exterioriza em coisas de pensamento, procura evitar a claridade.

4. COLONIZAR. O sistema global do capitalismo tardio coloniza tudo à sua volta, incluindo as consciências, mostrando nesse acto a sua vocação totalitária.

5. FILOSOFIA DA HISTÓRIA. Se a história mais não é que uma secularização da cidade de Deus, então, face aos seus desmentidos reais, torna-se necessário abdicar de qualquer sentido atribuído ao devir. Dar forma a uma forma de vida futura é colonizar o passado. A teoria crítica abdica da história na certeza, porém, que a melhor forma de libertar o futuro é salvar o passado e mudar o presente.

6. UTOPIA. A utopia converteu-se numa espécie de alienação: assim o diz o sistema global. Utópico é aquele indivíduo que não se conformando com as coisas tais como são ainda deseja ver a sociedade mudada. Como se parte do pressuposto de que a sociedade não pode ser mudada, pois vivemos numa sociedade dita aberta, a utopia é vista necessariamente como um devaneio daqueles que ainda não encontraram os seus caminhos certos num mundo aberto à possibilidade. De conceito crítico a utopia converteu-se em conceito apologético: a integração é valorizada em detrimento da possibilidade de realização do ainda-não. Desejar a utopia nesta hora de ofuscamento total é tomado como sintoma de irrealismo ou mesmo de fracasso: diz a sociedade satisfeita consigo mesma. Já não se pode ser mais utópico!

7. MODELO MÉDICO. O modelo médico nunca foi incólume à ideologia dominante: Sempre houve a tendência para tratar os refractários como doentes. Deste modo, a medicina tem funcionado como um dos aparelhos ideológicos de Estado que mais tem contribuído para a reprodução de uma sociedade que não suporta a diferença. Em muitíssimos casos, a doença nada mais é do que um mecanismo de exclusão social. Só que uma tal medicina esquece que os doentes só são doentes quando a própria sociedade é ela própria doente.

8. MEDICINA DA DOR. Criou-se ultimamente uma medicina da dor e do sofrimento que tem por finalidade anestesiar os que sofrem para que deixam de sofrer. Abolir a dor sem curar o mal que a provoca! Uma tal medicina mais não é que a invenção das indústrias farmacêuticas que vêem na venda de analgésicos uma choruda fonte de receitas. Pior que uma medicina que salvaguarda a manutenção de uma determinada ordem social autoritária é este recente avanço da medicina da dor. A comercialização da medicina converteu-a num sector altamente lucrativo do mercado.

9. SERENIDADE. Serenidade é aquilo que não encontramos numa sociedade que usa os seus indivíduos como se fossem fantoches.

10. SOCIEDADE DE CONSUMO. A sociedade de consumo produziu o maior monstro: o pensamento gordo. Como povo altamente domesticado, o português tende para a gordura tanto física como mental. Portugal é obesidade viscosa.

11. LUSOMANIA. O pensamento que se diz português alimenta a sua mediocridade intrínseca com uma tremenda ilusão: a chegada do Quinto Império. O português deseja ser visceralmente mais daquilo que pode ser — um génio. Mas a realidade efectiva do chamado pensamento português não tem nada de genial. Até mesmo o Quinto Império converteu-se nas cabeças portuguesas numa ideia demasiado medíocre para que possa ser levada a sério. A alma lusitana é incapaz de grandes ideias, não porque a língua portuguesa não o permita, mas porque o português é, na sua essência, um ser incapaz de pensar livremente. Quem queira produzir grandes obras em língua portuguesa deve afastar-se de Portugal, porque, neste país, não há futuro e o futuro prometido pela chegada do Quinto Império é regresso a uma realidade que nunca existiu, a não ser na cabeça dos paranóicos.

12. RETOMADA DO PENSAMENTO PORTUGUÊS. É surpreendente a quantidade de teses que se realizam sobre autores portugueses. Este súbito interesse pelo chamado pensamento português por um povo que de patriota nada tem é um claro sintoma da degenerescência da alma lusitana. Estudar mal e porcamente os autores portugueses atesta precisamente a incapacidade dos portugueses se defrontarem com pensamentos profundos. Mas o mais estranho é teimar em falar da possibilidade de uma filosofia portuguesa, como se houvesse uma filosofia nacional. Institucionalmente, a chamada filosofia portuguesa é um assalto aos postos do ensino superior por pessoas medíocres e ávidas de status e de poder. A universidade portuguesa tornou-se o antro da mediocridade nacional.

13. TEIMOSIA EM VIVER. Num tal pais de trapaceiros é extremamente difícil ter acesso à universidade, já que a mediocridade, apesar das suas intrigas internas, se une contra qualquer tentativa de libertar o pensamento do hábito da montagem feita de cola e de tesoura.

14. FADO. O Fado como música nacional é o destino de um povo condenado a não ser nada. A tristeza que o parece caracterizar intrinsecamente é resignação perante uma realidade que não se pode mudar: Portugal chora no fado, não as suas vítimas, mas os seus fracassos. Portugal sempre igual a si mesmo é o inferno, onde tudo se repete mas nada muda. O fado é a ideologia dos vencidos da vida e dos fracos unidos contra os vencedores e os fortes. Enfim, uma moral de escravos satisfeitos com a sua miséria mascarada de corrupção, de apadrinhamento e de enriquecimento repentino.

15. IMUNIDADE. Os grandes ladrões em Portugal não são presos: Depois de terem roubado exibem a sua riqueza publicamente através dos mass media. A imunidade que é conferida aos grandes ladrões não é reconhecida aos pequenos ladrões. A verdade é que os grandes ladrões formam uma corporação na qual todos têm os rabos entalados. A justiça portuguesa tem duas faces: protege os grandes ladrões e condena os que não roubam.

16. GUERRA JUNQUEIRO. Se há um português que dignifica Portugal, esse português é sem dúvida Guerra Junqueiro: ele não teve medo em chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes.

17. FILOSOFIA DO CORPO. A filosofia contemporânea procura repensar em termos positivos o corpo e, neste esforço, vai ao encontro da preocupação fundamental de Maurice Merleau-Ponty ou mesmo de Sartre. Contudo, pensar o corpo é pensar todos os constrangimentos que sufocam o pensamento racional. Se a separação corpo-alma é uma fantasia, a relevância do corpo pode conduzir a uma concepção positiva da dor. Ora, uma tal concepção corre o risco de fazer a apologia daquilo que é. Ao considerar o corpo como uma prisão, Platão reconheceu que a alma não pode ser livre enquanto estiver embutida num corpo que requer cuidados e atenção quase constantes. A sua dialéctica era uma tentativa desesperada de libertar a alma do corpo, de modo a encontrar sossegadamente e despreocupadamente a sua essência. Daí que tenha dito que filosofar é, de certo modo, aprender a morrer. A filosofia enquanto morte antecipada é silêncio, mas um silêncio que denuncia o mundo tal como este é. A negação do corpo é uma teoria que procura mudar o próprio corpo, mais precisamente um convite ao exercício do pensamento liberto de constrangimentos. Afirmar o corpo pode ser um modo de negar o pensamento.
Um dos modos de afirmar o corpo é afirmar a sexualidade. O corpo como ser sexuado é uma máquina terrível de devorar a subjectividade. Com efeito, na sexualidade o eu perde-se… Apesar dos seus inúmeros disparates, Freud tinha razão quando dizia que por detrás de qualquer perturbação havia sempre problemas associados à sexualidade. De todos os constrangimentos corporais, a sexualidade é o mais genético e, simultaneamente, o mais social e cultural, a ponto de ser a força mais capaz de neutralizar o pensamento. Um pensamento sexualmente colorido já não é verdadeiramente um pensamento.
As relações entre cérebro e mente são demasiado reais para que possam ser abstraídas, mas negar a mente a favor de uma mente-corpo é negar o pensamento como possibilidade e força capaz de lutar pela sua reconciliação. A afirmação do corpo é, no fundo, um pensamento decadente.

18. FILOSOFIA E INDIVIDUALIDADE. Só há filosofia aí onde há individualidade. É, por isso, que o homem comum não pensa.

19. O PÉNIS ARROGANTE. Há um tipo bastante generalizado de homem que se auto-avalia e se relaciona com os outros em função do tamanho e da potência das suas erecções. O seu «eu» identifica-se com o seu pénis: julga-se irresistível! O eu-pénis não tem nada a dar para além de sessões de sexo vazio. O eu-pénis é um pénis sem eu: copula mas não pensa. Corpo sem alma que se afunda num pénis maldoso. O silêncio mortificador é o preço que paga quem tenha caído na mentira do pénis do diabo.

20. PROFECIA. Até mesmo a imaginação profética foi colonizada pelo sistema que se iguala a si mesmo: profecia e loucura são actualmente sinónimos. Contudo, há um sentido da profecia que ainda não foi aniquilado: a profecia como ponto de vista exterior ao sistema. O tom da crítica que teima em rejeitar o sistema em bloco é necessariamente profético. Criticar o sistema em termos proféticos é pensar sem a tentação da fundamentação. A profecia é crítica viva.

21. O HOMEM. Afinal, quem é o homem? Um louco…

22. A LÍNGUA PORTUGUESA. Dadas as suas origens, a língua portuguesa é estruturalmente uma língua filosófica. O problema nacional não é a língua mas a ausência de pensamento e de coragem de ser (Kant).
J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA

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