quarta-feira, 20 de maio de 2009

Génese e Estrutura da Ciência Moderna (2)

Terceira Secção. «Os leitores de novelas sherlockianas sabem como as pistas falsas perturbam a história e atrasam a solução. O método de raciocinar ditado pela intuição era uma pista errada que levou a ideias falsas sobre o movimento, as quais perduraram por séculos. A grande autoridade de Aristóteles foi talvez a causa principal da longa fé no intuito. Na Mecânica, que há dois mil anos é atribuída a esse filósofo, lemos o seguinte: O corpo em movimento estaciona quando a força que o impele cessa de agir». (Albert Einstein)

3. Desenvolvimento da Física Clássica. De acordo com A. Koyré, podemos distinguir, na história do pensamento científico da Idade Média e do Renascimento, três épocas de desenvolvimento científico que correspondem a três tipos diferentes de pensamento científico: a física aristotélica, a física do impetus, extraída do pensamento grego e elaborada no decurso do século XIV pelos nominalistas parisienses, e, finalmente, a física moderna, a de Arquimedes e de Galileu. Estas etapas encontram-se no próprio desenvolvimento do pensamento científico de Galileu, a quem se deve uma exposição deveras interessante da teoria do impetus. A passagem da física aristotélica e da física do impetus à física matemática de Galileu deve-se fundamentalmente à recepção e à compreensão gradual da obra de Arquimedes e do seu mestre Platão. As duas primeiras teorias pensam em termos de experiência quotidiana, enquanto a teoria de Galileu pensa em termos estritamente matemáticos: o seu livro da natureza está escrito em linguagem matemática.

3.1. A Física de Aristóteles. A física aristotélica é uma ciência teoricamente elaborada que, partindo naturalmente dos dados do senso comum, os submete a uma tratamento teórico extremamente coerente e sistemático. Para Aristóteles (384-322 a.C.), o fundamento da verdadeira ciência do mundo físico reside na percepção e não na especulação matemática, na experiência e não no raciocínio geométrico a priori. A sua ciência que foi a ciência medieval articula intimamente uma metafísica finalista e a experiência normal do senso comum, dois traços que serão rejeitados por Galileu, Descartes e Newton. Quando atribuiu à autoridade de Aristóteles o atraso da "solução" do problema do movimento, Einstein esquece, talvez por ignorância e por preconceito positivista, que a física aristotélica, além de ser uma ciência coerente e corroborada pelos dados da experiência comum, exibe semelhanças com a sua teoria geral da relatividade: o movimento circular dos astros aristotélicos parece estar particularmente difundido no mundo, tanto ao nível macroscópico (galáxias e nebulosas) como ao nível microscópico (átomos e electrões). Einstein mostrou que uma curvatura local do espaço pode produzir movimentos deste género, e o seu universo, tal como o cosmos de Aristóteles, não é infinito, mas finito, embora tenha limites (noção estranha a Aristóteles). Não existe rigorosamente nada fora do universo einsteiniano, pela simples razão de todo o espaço estar dentro e não fora do universo: o tempo e o espaço estão no universo e, não como pensava Newton, o universo contido neles. Sem os recursos da geometria riemaniana, Aristóteles já sabia que fora do mundo não existe nada, nem pleno, nem vácuo (princípio da plenitude do universo ou horror vacui), e que todos os lugares estão no interior do mundo. A diferença substancial entre Aristóteles e Einstein reside no facto da concepção do primeiro ser metafísica e da concepção do segundo ser matemática: o mundo finito de Aristóteles não é geometricamente curvado, como o de Einstein, mas é metafisicamente curvado. (Observação: A relatividade especial mostrou que as distâncias e os intervalos de tempo dependem da velocidade e que a massa é equivalente à energia, enquanto a relatividade geral mostra que a massa determina a geometria do espaço circundante: Einstein rejeita, portanto, a tese de Leibniz de que o espaço é fisicamente vazio; o espaço é um campo físico, embora não seja o campo euclidiano indicado por Newton na sua experiência do balde.)

Para Aristóteles, a ciência começa quando se procura explicar as coisas que parecem naturais, tais como "um corpo pesado cair para baixo" ou "a chama de um fósforo dirigir-se para cima". O seu objectivo é traduzir ou exprimir na sua linguagem elaborada estes dados do senso comum, ao mesmo tempo que os «transfigura». A distinção aristotélica entre movimentos naturais e movimentos violentos enquadra-se numa concepção de conjunto da realidade física, cujos traços principais são: a crença na existência de naturezas qualitativamente definidas (1), e a crença na existência de um Cosmos (2), mais precisamente a crença na existência de princípios de ordem em virtude dos quais o conjunto dos seres reais constitui um todo hierarquicamente ordenado e harmónico. Este último conceito implica que, no universo, as coisas estão distribuídas e dispostas numa determinada ordem, e que a sua localização não é indiferente, nem para elas, nem para o universo. Pelo contrário, cada coisa tem, segundo a sua própria natureza, um lugar determinado no universo, ou melhor, o seu lugar próprio. O conceito de lugar natural exprime, na física aristotélica, uma exigência teórica: um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar.

O conceito de lugar natural baseia-se numa concepção puramente estática da ordem, na medida em que, se cada coisa estivesse em ordem, estaria no seu lugar natural e aqui permaneceria para sempre. Isto significa que cada coisa resiste naturalmente a todo o esforço para a afastar do seu lugar natural. Para a expulsar desse lugar, é preciso «imprimir-lhe» algum tipo de violência, capaz de colocar um corpo fora do seu lugar, mas, após ter sido afastado do seu lugar, o corpo procura voltar a ele. O movimento implica alguma espécie de desordem cósmica, uma perturbação no equilíbrio do universo, porque é ou o efeito directo da violência ou, pelo contrário, o efeito do esforço do ser no sentido de compensar essa violência, para recuperar a ordem e o equilíbrio perturbados, isto é, para recolocar as coisas nos seus lugares naturais, onde devem ficar e permanecer. O movimento natural mais não é do que o retorno à ordem. Perturbar o equilíbrio, voltar à ordem: eis uma concepção estática e ordenada do cosmos que dispensa uma explicação do estado de repouso. A própria natureza ontológica do cosmos explica o facto da Terra estar em repouso no centro do mundo.

O conceito de uma ordem estática implica a ideia de que o movimento é necessariamente um estado transitório: um movimento natural cessa naturalmente quando o corpo atinge o seu objectivo. Porém, afirmar que o movimento cessa quando o corpo alcança o seu objectivo é o mesmo que dizer que o movimento não pode ser definido como estado, até mesmo como estado transitório, porque todos os corpos do universo tendem para a ordem cósmica. Para Aristóteles, o movimento é um processo de mudança, em oposição ao repouso, o qual, sendo o objectivo e o fim do movimento, deve ser considerado como um estado. Todo o movimento é mudança (actualização ou corrupção) e, por conseguinte, um corpo em movimento não só muda em relação a outros corpos (1), como também, ao mesmo tempo, está ele próprio submetido a um processo de mudança. O movimento afecta sempre o corpo que se move e, se o corpo for dotado de dois ou mais movimentos, estes perturbam-se mutuamente, entravam-se uns aos outros e, por vezes, podem ser incompatíveis. Considerado como um processo de mudança, um vir-a-ser, o movimento não pode prolongar-se espontânea e automaticamente. Para persistir, o movimento exige a acção contínua de um motor ou de uma causa e, quando esta causa cessa de exercer o seu efeito, o movimento do corpo também cessa. Cessante causa cessat effectus. O tipo de movimento postulado pelo princípio de inércia é totalmente inadmissível na física aristotélica. Aristóteles não admite a acção à distância: cada transmissão de movimento implica um contacto. Só existem dois tipos de transmissão: a pressão e a tracção. Para fazer com que um corpo se mova, é preciso empurrá-lo ou puxá-lo. Não existem outros meios para pôr um corpo em movimento. Quando uma destas acções cessa, o corpo regressa ao seu lugar natural e permanece em repouso.

A dinâmica aristotélica nega o vazio e o movimento no vazio, porque, na sua perspectiva, o vazio não só não favorece o movimento como também o torna impossível. Esta dupla-rejeição reflecte a antiga concepção grega da plenitude do universo, geralmente referida como horror vacui ou aversão da natureza pelo vácuo: a natureza age sempre de maneira a evitar a formação do vácuo. A teoria aristotélica do movimento está ligada intimamente ao conceito de um espaço finito e completamente ocupado: o seu cosmos é auto-suficiente e autocontido, não deixando nada fora dele. Como vimos, quando um corpo é deslocado do seu lugar por uma força externa, ele tende a regressar ao seu lugar natural e este movimento efectua-se pelo caminho mais curto e mais rápido, portanto, em linha recta. Se o meio no qual o corpo se move não opusesse qualquer resistência ao seu movimento, tal como se passaria no vácuo, então o corpo dirigir-se-ia para o seu lugar com uma velocidade infinita. Ora, segundo Aristóteles, este movimento instantâneo no vazio é absolutamente impossível. E, no caso do lançamento, o movimento no vazio equivale a um movimento sem motor e, como o vazio não é um meio, não pode receber, isto é, transmitir e conservar o movimento, mais outra impossibilidade.

Um universo infinito não pode coexistir com o universo finito de Aristóteles, por duas ordens de razões fundamentais. Em primeiro lugar, um espaço infinito não tem centro: cada ponto está a igual distância de todos os outros pontos da periferia. Ora, se não existir centro, não só não há um lugar escolhido no qual o elemento pesado terra possa ser agregado, como também não há o intrínseco "para cima" e "para baixo" a fim de determinar o movimento natural de um elemento (terra, água, ar e fogo) ao regressar ao seu lugar próprio. Isto equivale a dizer que, num universo infinito, não existem lugares naturais, porque cada lugar é igual a qualquer outro. Aristóteles liga os conceitos de espaço finito e completamente ocupado, de modo a mostrar que a noção de vazio é incompatível com a ideia de uma ordem cósmica. As interacções da matéria e do espaço determinam o movimento e o repouso dos corpos. Com efeito, no vácuo não há lugares naturais ou mesmo quaisquer lugares: o vazio não é nada e situar qualquer coisa nesse nada é absurdo. Em segundo lugar, a noção de espaço infinito não só elimina a noção de centro, como também retira o homem e a Terra do centro do universo: ela é incompatível com o «facto» de toda a terra, água, ar e fogo estarem agregados num único ponto, nos seus respectivos lugares naturais. (O éter, um sólido cristalino, era, para Aristóteles, o elemento celeste.) No vácuo, não há lugares nem direcções privilegiadas, portanto, no vazio um corpo não teria razão para se mover numa direcção de preferência a uma outra, ou melhor, não teria razão para se mover. Descartes rejeita o vazio de modo mais radical do que Aristóteles: a sua identificação entre a extensão e a matéria leva-o a considerar o vazio como um nada existente, donde resulta a ideia de que o espaço não é uma entidade distinta da matéria que o "enche", bem como a ideia de um mundo indefinido. (Para Descartes, só Deus é infinito.)

3.2. A Física do Impetus. O maior defeito da física aristotélica reside no facto de ser desmentida pela prática quotidiana do lançamento ou arremesso. Porém, Aristóteles não se rende e procura explicar o lançamento pela reacção do meio, o ar ou a água. A solução de Aristóteles é engenhosa e genial: o movimento, aparentemente sem motor, do projéctil é explicado por um processo turbilhonante no meio envolvente do corpo, neste caso no ar, que age sobre este último arrastando-o e impelindo-o. De certo modo, Aristóteles inventa um meio particularmente apto a mover-se, portanto, um "meio elástico": o ar.

Os nominalistas parisienses, nomeadamente Buridan e Nicolau Oresme, retomam os argumentos de Filão, o fundador grego da teoria do impetus. Filão aponta dois grupos de argumentos contra a dinâmica aristotélica: os argumentos de ordem material sublinham o quanto é improvável a suposição segundo a qual um corpo grande e pesado, por exemplo, a bala de um canhão, a mó que gira ou a flecha que voa contra o vento, possa ser movido pela reacção do ar, enquanto os argumentos de ordem formal assinalam o carácter contraditório da atribuição ao ar de um duplo-papel, o de resistência e o de motor, assim como o carácter ilusório de toda a teoria aristotélica. Filão acusa Aristóteles de ter deslocado o problema do corpo para o ar, sendo obrigado a atribuir ao ar o que recusa aos outros corpos, nomeadamente a capacidade de manter e conservar o movimento de um corpo separado da sua causa externa. Estes argumentos foram retomados, desenvolvidos e aperfeiçoados por Hiparco, João Filopono, Buridan, Nicolau Oresme, Alberto da Saxónia, Leonardo da Vinci e Benedetti, bem como pelo jovem-Galileu e pelo seu mestre Bonamico. A concepção do movimento que sustenta e apoia a teoria do impetus é completamente diferente da concepção de movimento terrestre da teoria aristotélica. O movimento não é mais interpretado como um processo de actualização. Contudo, continua a ser visto como mudança e, como tal, exige a sua explicação pela acção de uma força ou de uma causa determinada. O impetus é precisamente essa causa imanente que produz o movimento, o qual é, converso modo, o efeito produzido por ela. Assim, o impetus impressus produz o movimento, isto é, move o corpo, ao mesmo tempo que desempenha outro papel muito importante: domina a resistência que o meio opõe ao movimento. Contudo, apesar das excelentes clarificações realizadas por Benedetti, a teoria do impetus (força motriz) foi incapaz de elaborar um conceito novo e original do movimento. O jovem-Galileu mostrou que, embora fosse compatível com o movimento no vacuum, a física do impetus era incompatível com o princípio de inércia e, portanto, incompatível com o método matemático. O contributo original de Galileu será, como veremos, abandonar esta concepção e edificar uma física matemática na perspectiva da estática de Arquimedes, mediante a elaboração de um conceito novo de movimento. (Publicado aqui.)

Quarta Secção.
«(Na mecânica ondulatória,) as leis da natureza não têm um carácter tão exacto como na física clássica; não há já um determinismo rigoroso dos fenómenos, mas somente leis de probabilidade (= leis estatísticas). É o que exprime de modo preciso o célebre "princípio de incerteza" enunciado por Werner Heisenberg. As próprias noções de causalidade e de individualidade tiveram que ser submetidas a um novo exame, e desta considerável crise de princípios directores das nossas concepções físicas sairão, sem dúvida, consequências filosóficas ainda hoje não bem compreendidas». (Werner Heisenberg)

Se lermos com muita atenção a obra de W. Heisenberg, ficamos com a impressão de que a revolução científica do século XX pode ser vista como uma espécie de revolução anti-copernicana, a qual exige uma nova filosofia. Quando formula em termos matemáticos as leis da natureza, a mecânica quântica "pressupõe sempre o homem e não devemos esquecer, como diz Niels Bohr, que, no espectáculo da vida, nunca somos apenas espectadores, mas também, constantemente, actores" (Heisenberg). O reconhecimento do homem como "actor" leva Heisenberg a apostar na cultura humanística que deriva inexoravelmente do pensamento grego e a identificar essa aposta com a "opção pelo Ocidente". Nesta perspectiva, não há "teorias mortas", como afirmam muitos burrecos nacionais que pretendem filosofar e criticar sem previamente terem adquirido conteúdos objectivos de conhecimento, como se a crítica fosse anterior ao conhecimento e à própria entrega ao objecto. A perspectiva destes luso-burrecos é a da tagarelice ou, como diz Heidegger, a da vida inautêntica e fácil de homens alienados do seu poder-ser. Darwin, Marx e Freud foram lidos como tendo levado a revolução copernicana até à intimidade do homem, embora Marx nunca tenha usado essa expressão para caracterizar a sua imensa revolução teórica. A mecânica quântica imprime outro rumo, recolocando o homem na natureza e atribuindo-lhe um papel activo no conhecimento da natureza. A imagem científica da natureza deixa de ser supostamente uma imagem da natureza "em si mesma" ou tal como Deus a concebeu na criação e passa a ser a imagem da relação do homem com a natureza. A noção de limite readquire um novo estatuto epistemológico e metafísico, questionando e comprometendo a própria noção de progresso. Deste modo, Heisenberg estabeleceu uma conexão essencial entre a "cosmologia" e a antropologia, conexão que foi pensada pelos físicos posteriores e, aparentemente, desprezada pelos filósofos absorvidos na tarefa de destronar ou destruir o homem. O positivismo teve este efeito perverso na cultura ocidental: "separar" as duas culturas (S.P. Snow), como se elas fossem irreconciliáveis, dando prioridade à cultura científica sobre a cultura filosófica. Contudo, tanto a revolução científica do século XVII como a revolução científica em andamento desmentem cabalmente o positivismo e a sua pobre visão do mundo. Nos seus últimos desenvolvimentos teóricos, a própria física "regressa" à filosofia ou, como diz Heisenberg, "é filosofia", e, curiosamente, quando Stephen Hawking fala do "fim da física", retoma um velho conceito hegeliano. Uma tal teoria unificada e, portanto, completa do cosmos, visa reconciliar os dois pilares da física contemporânea, a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, que permite compreender o universo em grandes escalas (estrelas, galáxias e a imensidão do universo), e a mecânica quântica, que permite compreender o universo nas mais pequenas escalas (átomos, moléculas, electrões e quarks). A teoria das supercordas pretende casar as leis que regem o grande e o pequeno, superando os seus conflitos e mostrando que as duas teorias precisam uma da outra: toda a matéria e todas as forças (electromagnética, fraca, forte e gravítica) são unificadas sob o mesmo conceito de oscilações de cordas.

3.3. A Física de Galileu. Durante o seu período de Pisa, o jovem-Galileu tenta, aliás na peugada de Benedetti, matematizar a física do impetus, mas, como não consegue superar o seu impasse, será levado a edificar uma nova física, cujo modelo lhe é fornecido por Arquimedes. O jovem-Galileu desenvolve a dinâmica do impetus, de modo a mostrar que o movimento do móvel é um efeito da força que o anima: a força motriz imprimida ao móvel explica o fenómeno do arremesso, sem ser necessário recorrer à reacção do meio, como fez Aristóteles. A noção de força motriz permitiria a formulação do princípio de inércia, desde que concebesse a continuação indefinida do movimento, mas, para Galileu e Benedetti, o movimento eterno era um absurdo, porque a força que produz um movimento não pode permanecer a mesma em dois momentos consecutivos e, por isso, o movimento produzido desacelera até se extinguir. Deste modo, a física do impetus não só é incompatível com o princípio de inércia, como também nega a aceleração do movimento de queda. Para o jovem-Galileu, a velocidade ou a lentidão do movimento de queda depende do maior ou menor peso do corpo que cai. A velocidade não é função da resistência do meio, como em Aristóteles, mas é algo inerente e intrínseco ao próprio movimento: a velocidade da queda de um corpo é proporcional ao seu peso e o seu valor é constante para cada corpo dado. É certo que um corpo que cai, cai cada vez mais depressa, mas esta aceleração só se dá no início do movimento da queda até ao momento em que o corpo em queda atinge a sua velocidade própria, proporcional ao seu peso. Nesse momento, a velocidade permanece constante e o movimento acelerado transforma-se em movimento uniforme. A velocidade própria de um corpo em queda é função do seu peso, não do seu peso absoluto, mas do seu peso específico ou relativo. Com a introdução da noção de peso relativo, Galileu faz rebentar a física do impetus. O caso de um corpo pesado lançado ao ar verticalmente permite-lhe compreender que a leveza e o peso são definidos a partir dos efeitos que produzem: a leveza faz com que o corpo suba e o peso faz com que o corpo desça. Leveza e peso não são qualidades absolutas, mas sim propriedades relativas ou meras relações. Um corpo leve eleva-se e um corpo pesado desce em função do meio em que está colocado: a força com que sobe ou desce é medida pela diferença entre o seu peso específico e o peso de um volume igual do meio em que se encontra. O facto de um corpo possuir um peso absoluto leva Galileu a reconhecer que o único movimento natural é o movimento dos corpos pesados para baixo, ou seja, para o centro do mundo. A distinção entre peso absoluto e peso relativo, conjugada com a ideia de que a velocidade da queda de um corpo é função do seu peso relativo no meio dado, conduzem Galileu a reconhecer que é no vazio e apenas no vazio que os corpos pesam os seus pesos absolutos e caem com uma velocidade que é a sua velocidade própria. Com esta última noção, Galileu é levado a definir o movimento como estado. A ruptura com Aristóteles e a física do impetus consuma-se: Galileu já pode elevar-se ao nível de uma física matemática, embora tenha retido a noção de centro do mundo onde se situam os corpos pesados e ao seu redor, em camadas concêntricas, os corpos mais leves.

O que é o movimento para Galileu? O movimento é algo estranho que não afecta o corpo que dele é dotado, como pensavam os aristotélicos ou mesmo Leibniz: estar em movimento ou estar em repouso não afecta, isto é, não altera o corpo em movimento ou em repouso. O corpo é totalmente indiferente ao movimento e ao repouso. Assim, não podemos atribuir o movimento a um determinado corpo em si mesmo, porque um corpo só está em movimento em relação a outro corpo que supomos estar em repouso. Todo o movimento é relativo e, por isso, pode ser atribuído ad libitum a um ou a outro dos dois corpos. Porém, embora seja relação, o movimento é um estado, tal como o repouso. Ambos são estados persistentes. De acordo com a famosa lei da inércia, a primeira lei do movimento de Newton, que não foi formulada por Galileu, como lhe foi atribuído pelos seus seguidores, Cavalieri, Torricelli e Gassendi, mas por Descartes, um corpo abandonado a si mesmo persiste eternamente no seu estado de movimento ou de repouso, a não ser que sofra a acção de uma força externa que transforme um estado de movimento em estado de repouso e vice-versa. A eternidade não é inerente a todo o tipo de movimento, mas apenas ao movimento uniforme em linha recta. Uma vez posto em movimento, um corpo conserva eternamente a sua direcção e a sua velocidade, desde que não sofra a acção de uma força externa. Embora conhecesse o movimento circular e eterno das esferas celestes, o aristotélico Simplício, no caso do diálogo galilaico, retorquía que nunca tinha encontrado um movimento rectilíneo permanente e com razão, porque um tal movimento, conforme mostrou Salviati, só pode ser produzido no vácuo. Isto significa que os corpos que se movem num espaço vazio e infinito não são corpos reais que se deslocam num espaço real, mas corpos matemáticos que se deslocam num espaço matemático homogéneo e infinito. A conclusão de Salviati de que todos os corpos caem com a mesma velocidade, independentemente do peso (massa), exige, evidentemente, o auxílio da segunda lei do movimento e da lei da gravitação de Newton. A lei da aceleração afirma que, se um corpo sofrer uma acção de uma força externa, ele acelerá no sentido dessa força, e a aceleração será proporcional à força e inversamente proporcional à massa do corpo (F= ma). A lei da gravitação universal de Newton afirma que todo o corpo, partícula ou quantidade de massa no universo atrai todos os demais corpos do universo, com uma força proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Estas leis do movimento, incluindo a lei da acção e reacção, e a lei da gravitação universal foram formuladas por Newton no seu livro "Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" (1687).

Antecipada filosoficamente por Giordano Bruno, a noção de universo infinito é consumada pela física de Newton. Embora acredite no éter que enche o espaço do nosso sistema solar, Newton concebe esse éter como uma substância de tal modo ténue e elástica que não chega a encher completamente o espaço físico. O movimento dos cometas mostra que existe espaço vazio, porque, caso contrário, não se moveriam com liberdade em todas as direcções, conservando o seu movimento, mesmo quando se movem na rota contrária à dos planetas. E, dado a matéria sem vis inertia (resistência) ser impensável, os espaços celestes são destituídos de matéria: a estrutura do éter é descontínua, isto é, compõe-se de partículas extremamente pequenas, entre as quais existe vácuo. Esta estrutura elástica do éter implica necessariamente o vácuo, ideia que Newton opõe à concepção cartesiana de um mundo constituído por matéria uniforme e que, portanto, se estende de modo contínuo, impedindo a elasticidade e o próprio movimento. Portanto, Newton considera inadmissível a existência de um espaço completamente ocupado ou de um plenum que oporia uma resistência extraordinária ao movimento, tornando-o impossível e obrigando-o a cessar, ao mesmo tempo que advoga que os espaços celestes são constituídos por um éter extremamente rarefeito, fino e ténue, dotado de uma estrutura granular, que possibilita a existência do vácuo e a recusa de um meio contínuo. Além disso, ao estipular a existência de um espaço absoluto e de um tempo absoluto, distintos do espaço e do tempo relativos, Newton pode conceber um tempo matemático que flui uniformemente, sem relação com nada exterior, e um espaço que permanece sempre semelhante e imóvel, de modo a garantir um movimento absoluto, uniforme, rectilíneo e inercial, distinções que serão abandonadas pela teoria geral da relatividade de Einstein. A libertação do espaço de tudo o que o enche identifica-o com o espaço euclidiano, aquele que toma a forma de um continente.

A revolução galilaica consiste em explicar o ser real pelo ser matemático ou, como declara o próprio Galileu, o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos ou geométricos. O verdadeiro assunto do "Diálogo dos Grandes Sistemas" não é tanto a oposição entre dois sistemas astronómicos, mas fundamentalmente a defesa da explicação matemática da natureza em oposição à explicação não-matemática do senso comum e da física aristotélica. Dirigido ao "grande público", o livro de Galileu visa a destruição da concepção aristotélica do mundo e da ciência e a sua substituição pela concepção copernicana do mundo, embora sem o fazer directa e explicitamente. Trata-se, portanto, de uma obra de filosofia da natureza escrita na forma de diálogo, cujos intervenientes são Salviati, o próprio Galileu, Sagredo, o leigo inteligente, e Simplício, o sage aristotélico. Em vez de "imaginar" o movimento em termos de esforço (impetus) e de deslocamento, como fazia a ciência medieval, Galileu "pensa"-o em termos de velocidade e de direcção. Contra a ciência aristotélica, baseada na experiência e na percepção dos sentidos, Galileu reclama o poder do pensamento e, por conseguinte, a herança do matematismo platónico: o pensamento puro e sem mistura, e não a experiência sensorial, é que está na base da "nova ciência matemática da natureza". Isto é dito claramente aquando da discussão do famoso exemplo da bala que cai do alto do mastro de um navio em movimento. Galileu explica longamente o princípio da relatividade física do movimento, a diferença entre o movimento do corpo em relação à Terra e o seu movimento em relação ao navio, e, a seguir, sem fazer qualquer referência à experiência, conclui que o movimento da bala em relação ao navio não muda com o movimento deste último. Quando Simplício lhe faz a pergunta, "Fizeste uma experiência?", Galileu responde: "Não, e não preciso fazê-la, e posso afirmar, sem qualquer experiência, que é assim, porque não pode ser de outra forma". A física galilaica desenvolvida em Pádua é uma ciência feita a priori. A teoria precede a experiência: eis o sentido do vector epistemológico estabelecido por Galileu. A experiência é inútil, porque, antes de toda a experiência, já possuímos o conhecimento que procuramos. Ao contrário da teoria do conhecimento elaborada mais tarde por Newton, fundada sobre o lema hypotheses non fingo (não imagino hipóteses), os conceitos galilaicos não são arrancados da experiência: eles são pressupostos e, como tal, são conceitos "fictícios". É certo que a realidade da experiência pode não estar completamente de acordo com a dedução, mas são estes conceitos prévios que nos permitem compreender e explicar a natureza e fazer "experiências", isto é, fazer perguntas e interpretar as respostas. As leis fundamentais do movimento, leis que determinam o comportamento espacial e temporal dos corpos materiais, são leis de natureza matemática, portanto, leis dotadas da mesma natureza que as leis que governam as relações das figuras e dos números. Estas leis não se encontram na natureza, mas no nosso espírito e na nossa memória, como ensinou Platão: conhecer é recordar. É por isso que somos capazes de dar provas puramente matemáticas das proposições que descrevem os sinais do movimento e de desenvolver a linguagem da ciência natural, de questionar a natureza através de experiências construídas de maneira matemática e de ler o grande livro da natureza que está escrito em linguagem matemática. A física galilaica é, pois, uma geometria do movimento, do mesmo modo que a física do divus Archimedes era uma física do repouso (hidroestática).

A passagem de um mundo fechado para um universo aberto, para utilizar a bela expressão de Koyré, é determinada, em última instância, pelo abandono de um estado natural predominante na Idade Média em que cada coisa estava no seu lugar próprio e a Terra em repouso permanecia no centro do universo (geocentrismo) e pela adopção de um estado natural no qual o trabalho é muitíssimo valorizado e o mundo, tal como a Terra girando em torno do Sol (heliocentrismo), se põe em movimento. Desta perspectiva, a dinâmica afigura-se como uma correspondência da economia de mercado aberta em vias de nascimento acelerado. O primado do movimento sobre o repouso significa que emergia, no novo mundo social, dominado pela burguesia mercantil, um mercado cada vez mais aberto e extenso, completamente em rota de colisão interna com o anterior mercado fechado, onde o trabalho e a actividade mercantil eram subestimadas pelos estratos sociais superiores da sociedade feudal.

No Renascimento, a linha divisória entre os seguidores de Aristóteles e os de Platão era clara: os platónicos eram aqueles que reivindicavam para as matemáticas uma posição superior, atribuindo-lhes um real valor e uma posição decisiva na física, enquanto os aristotélicos eram aqueles que viam a matemática como uma ciência abstracta e de menor valor do que a física e a metafísica, embora não duvidassem da certeza das proposições ou demonstrações geométricas e não negassem o direito de medir o que é mensurável e de contar o que é numerável. O que os distinguia realmente era a concepção que tinham da estrutura do ser e da estrutura da ciência. Neste campo de luta teórica, Galileu colocava-se na posição dos platónicos e era como platónico que os seus contemporâneos o viam: a sua filosofia matemática da natureza constituía um retorno a Platão e a sua ciência, uma vitória empírica de Platão sobre Aristóteles. Galileu mostrou que a ciência matemática da natureza era possível, sem no entanto ter refutado as objecções aristotélicas à matematização da natureza. Aristóteles alegava contra Platão que as qualidades sensíveis e as essências não podem ser matematizadas. Galileu (e a sua física dos graves), Descartes (e a sua física dos choques) e Newton (e a sua física das forças) conseguiram matematizar a física à custa de rejeitar as propriedades qualitativas e de renunciar ao mundo da percepção sensível e da experiência comum, substituindo-o pelo mundo abstracto e incolor de Arquimedes. O movimento é o movimento dos corpos arquimedianos no espaço homogéneo e infinito da nova ciência: o único movimento que é governado pelos números, isto é, pelas leges et rationes numerorum. (Publicado aqui. FIM da série "Génese e Estrutura da Ciência Moderna".)

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Génese e Estrutura da Ciência Moderna (1)

«A filosofia está escrita nesse livro imenso que está sempre aberto diante dos nossos olhos, quero dizer, o Universo, mas só podemos compreendê-lo se nos dedicarmos primeiro a compreender a sua língua e a conhecer os caracteres com que está escrito. Está escrito na linguagem matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem o recurso aos quais é humanamente impossível compreender uma palavra. Sem eles, é uma divagação vã num labirinto obscuro». (Galileu Galilei)
«As matemáticas escrevem-se para os matemáticos». (Copérnico)
«Se não puderes medir, o teu conhecimento é deficiente e insatisfatório». (Lord Kelvin)

Primeira Secção. A Física pode ser definida como a "ciência da medida", isto é, como a ciência que exprime em números tudo aquilo que estuda. A definição de uma grandeza física deve prover um conjunto de regras para a calcular em termos de outras grandezas que possam ser medidas. Assim, por exemplo, quando o momento linear é definido como o produto da massa pela velocidade, a regra para o calcular está contida na definição, sendo apenas necessário saber como medir a massa e a velocidade. Ora, esta aliança entre a física e a matemática está na base da física matemática moderna e, como tal, constitui uma invenção relativamente recente: a filosofia matemática da natureza data dos séculos XVI e XVII e deve-se a Copérnico (1473-1543) e a Galileu Galilei (1564-1642), cujo precursor foi o seu mestre Arquimedes (287-212 a.C.), o philosophus platonicus segundo a tradição doxográfica, fundador da estática enquanto ciência do equilíbrio. Copérnico e Galileu foram influenciados pelo neoplatonismo florentino que defendia o estilo matemático do pensamento (magia matemática), o culto do Sol, ideia subjacente à noção copernicana de um sistema construído sobre o Sol central (heliocentrismo), e a perfeição de um mundo infinito. Ambos abraçaram a epistemologia platónica, rompendo não só com a epistemologia aristotélica mas também com a física e a metafísica de Aristóteles.

A Física abrange diversos ramos e disciplinas, entre os quais destacamos o mais famoso, a mecânica, que estuda as relações entre força, matéria e movimento. A mecânica compreende a dinâmica, que estuda o movimento e as forças que o causam, a estática, que trata de casos especiais em que a aceleração é nula, e a cinemática, que lida unicamente como o movimento, matematicamente falando. A dinâmica moderna cobre quase toda a mecânica e o seu fundador foi, num primeiro momento, Galileu Galilei. É esta fundação, mais precisamente a revolução científica, bem como o conceito de ciência nela implicada, que iremos estudar. A revolução científica dos séculos XVI e XVII, à qual estão ligados os nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Kepler e Newton, entre tantos outros, implicou uma mutação intelectual radical, da qual a ciência física moderna e a filosofia moderna são, ao mesmo tempo, os frutos e as expressões. O princípio de continuidade defendido por P. Duhem é cabalmente desmentido pelos estudos histórico-filosóficos de A. Koyré, T.S. Kuhn e H. Butterfield.

1. Teorias da Revolução Científica. A revolução científica dos séculos XVI e XVII constitui talvez a maior revolução intelectual consumada, embora ainda não tenhamos uma teoria cabal desta grande mutação intelectual que se inicia durante o Renascimento e que se prolonga até ao século XVIII, pelo menos até Kant. Geralmente, os seus estudiosos têm dado mais atenção à revolução copernicana e ao renovar da astronomia: a substituição da astronomia de Ptolomeu (século II d.C.) pela astronomia copernicana, substituição consumada por Kepler (1571-1630) graças às observações cuidadosas e fidedignas acumuladas por Tycho Brahe (1546-1601). Mas esta é uma mutação radical que se reflecte em diversos níveis do conhecimento e da vida cultural e social. Foram propostas, pelo menos, três teorias fundamentais para explicar esta mutação intelectual.

1.1. A primeira teoria explica esta revolução pela transformação completa e radical de toda a atitude fundamental do espírito humano: o seu traço fundamental reside na substituição de uma vita contemplativa (theoria) por uma vita activa. Geralmente, os defensores desta teoria tendem a destacar o papel de Bacon (1561-1626). Para Bacon, conhecer é poder. Isto significa que o conhecimento da natureza é virtualmente o domínio da natureza. A moderna ciência da natureza dirige-se não a um conhecimento teórico, mas a uma acção: ciência e técnica estão intimamente ligadas. A tendência mecanicista da física clássica é explicada por este desejo de dominar e de agir do homem moderno. A física de Galileu, de Descartes ou de Hobbes é uma sciencia activa que visa tornar o homem "senhor e dono da natureza" (Descartes). Leroy e Borkenau explicaram o nascimento da ciência e da filosofia cartesianas pelo aparecimento de uma nova forma de empresa económica: a manufactura. Esta perspectiva não implica que a ciência clássica seja obra de artesãos, técnicos ou engenheiros: ela foi desenvolvida efectivamente por teóricos e filósofos. Apesar disso, Hannah Arendt ou mesmo Bergson têm razão quando a consideram como uma aplicação à natureza das categorias do pensamento do Homo faber: "Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem, o telescópio, que realmente mudou a concepção física do mundo", isto é, o que levou os fundadores, em especial Galileu e Descartes, ao novo conhecimento "não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a entrada em cena do homo faber, da actividade de fazer e de fabricar" (H. Arendt).

1.2. A segunda teoria insiste sobretudo na luta de Galileu contra a autoridade e contra a tradição de Aristóteles e da Igreja, destacando o papel da observação e da experiência na elaboração da nova ciência da natureza. Esta teoria não é incompatível com a primeira, mas convém, neste momento, distinguir entre a "filosofia espontânea dos cientistas" (Althusser), tal como se revela depois do positivismo, uma degenerescência do impulso da revolução científica, e a filosofia da ciência: o discurso da experiência no sentido da "pergunta colocada à natureza" (Galileu) não é "real". As experiências relatadas por Galileu ou por Pascal não foram efectivamente realizadas e, se tivessem sido realizadas, os resultados desmentiriam as novas teorias. A teoria matemática precede a experiência e as experiências referidas pelos fundadores foram experiências de pensamento. Como observou H. Arendt, a moderna reductio scientiae ad mathematicam anulou o testemunho da observação da natureza a curta distância pelos sentidos e esta anulação está claramente presente na obra de Giordano Bruno (1548-1600), que, acompanhando Nicolau de Cusa, defendeu os conceitos de universo infinito e de infinidade de mundos, povoados por outros seres inteligentes. De facto, esta perspectiva teórica da revolução científica pode ser esclarecida pela distinção que Kuhn estabelece entre "ciências clássicas" e "ciências baconianas": as primeiras protagonizaram a revolução científica, pelo menos nos seus primeiros momentos heróicos. A. Koyré e H. Butterfield têm razão quando afirmam que a filosofia de Bacon foi, em termos da nova ciência, uma espécie de "embuste". As descobertas experimentais desempenharam um papel pouco relevante na revolução científica.

Em 1610, a Igreja Católica entrou oficialmente na luta contra o copernicianismo e os copernicanos deixaram de ser rotulados de infiéis e ateus e passaram a ser formalmente acusados de heréticos. Em Roma, Giordano Bruno foi queimado vivo na fogueira da Inquisição. Em 1616, o obra de Copérnico e todas as obras que afirmassem o movimento da Terra em torno do Sol foram colocadas no Índex, os copernicanos católicos foram expulsos e as suas opiniões condenadas e, em 1633, Galileu foi preso e obrigado a retractar-se. De facto, a Igreja tinha "razão" ao proceder deste modo, porque o copernicanismo era potencialmente destrutivo de toda uma forma ou estilo de pensamento, mas a sua reacção contra a nova ciência realizou-se durante a Contra-Reforma, portanto, mais como uma reacção contra a Reforma protestante do que pelo conhecimento pleno das implicações revolucionárias do copernicanismo. Muito antes da Igreja Católica ter tomado esta decisão oficial, a doutrina de Copérnico já era atacada por Lutero e por Calvino, mediante a alegação de que desmentia a Sagrada Escritura. Com a teoria de Copérnico, o mundo fechado cedia o seu lugar a um universo aberto: não somente um universo cognitivo mas também um novo universo social, onde o homem perdeu o seu lugar e a sua posição privilegiada na "criação": a sua alienação do mundo coincide com o subjectivismo da filosofia moderna e a racionalidade instrumental (Horkheimer & Adorno).

1.3. Nenhuma das teorias anteriores é completamente verdadeira ou completamente falsa: cada uma delas acentua traços importantes da nova ciência da natureza, embora não sejam necessariamente os traços mais marcantes. A. Koyré elaborou uma terceira teoria que afirma que a atitude intelectual da ciência clássica se caracteriza por dois traços que se completam um ao outro, a saber: a destruição do cosmos e, consequentemente, o desaparecimento na ciência de todas as considerações baseadas nessa noção de um mundo finito, nomeadamente o princípio aristotélico da teleologia (1), e a geometrização do espaço, isto é, a substituição da concepção de um espaço cósmico qualitativamente diferenciado e concreto, o espaço da física pré-galilaica, pelo espaço homogéneo e abstracto da geometria euclidiana (2). Isto significa que a ciência clássica fundada por Galileu e Newton pode ser caracterizada por duas características: a matematização (geometrização) da natureza e, por conseguinte, a matematização (geometrização) da ciência. Esta última característica deve-se mais a Descartes do que a Galileu ou mesmo a Newton.

Ora, o Renascimento trouxe consigo a ascensão da burguesia e, portanto, a ascensão de uma economia de mercado, na qual o valor qualitativo dos produtos do trabalho humano se evapora cada vez mais no valor quantitativo de troca desses produtos no mercado. A mercantilização de todos os homens e de todas as coisas transforma as qualidades do trabalho e dos seus objectos em magnitudes abstractas, expressáveis em números. Este interesse mercantil acentua-se com o desenvolvimento da manufactura. Aqui reside o interesse pelo cálculo e pelo domínio contável da realidade. Esta base económica da formação do cálculo matemático contribuiu decisivamente para o prestígio dos números, que na Idade Média foram considerados somente de um modo mágico, como mística aritmética. Podemos dizer que não há uma matemática medieval, embora os árabes tenham introduzido a álgebra e o número zero já fosse conhecido. A Península Ibérica que iniciou o movimento das descobertas geográficas auto-excluiu-se do processo capitalista: os seus livros de contabilidade limitavam-se a anotar as dívidas. A época do florescimento matemático desenvolveu-se em França, onde a relação entre a matemática e a economia burguesa foi particularmente estreita e evidente. A captação dos objectos da natureza numa ordem matemática está associada ao surgimento de uma economia de mercado. Este "factor extra-lógico" ajuda a compreender os traços destacados por Koyré da revolução intelectual do século XVII, levando em conta os traços acentuados pelos outras duas teorias expostas. A relação entre a matemática e a economia de mercado não é uma relação simples, mas uma relação complexa e mediatizada, sem a compreensão da qual não podemos explicar integralmente a revolução científica e as reacções cépticas e/ou adversas que produziu até aos nossos dias. A filosofia da matemática, pelo menos na sua versão logicista, é incapaz de explicar a relação entre a matemática e a realidade, talvez por ser demasiado platónica e por desprezar a sua associação com a economia de mercado, de resto revelada pela teoria de Marx. (Publicado aqui.)

Segunda Secção. «Vejo estes espaços medonhos do universo que me envolvem e encontro-me preso a um canto desta imensa vastidão, sem que eu saiba porque estou colocado neste lugar, e não noutro, nem por que razão este pouco tempo que me é dado para viver me é atribuído neste momento, e não noutro de toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que há-de vir depois de mim. Apenas vejo infinidades de todos os lados, que me envolvem como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante e nunca mais volta. Tudo quanto sei é que em breve devo morrer, mas o que mais ignoro é esta morte que não poderei evitar.
«Posso muito bem conceber um homem sem mãos, sem pés, sem cabeça. Mas não posso conceber o homem sem pensamento: seria uma pedra ou um bruto. O pensamento faz a grandeza do homem. O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante». (Blaise Pascal)

O que os fundadores da ciência moderna, entre os quais Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes e Newton, fizeram foi destruir um mundo e substitui-lo por outro. Ora, uma tal destruição implica necessariamente uma "reforma da nossa própria inteligência", para usar esta bela expressão de Espinoza, e a elaboração de um novo conceito de ciência, com o objectivo de substituir o ponto de vista natural e normalizado, geralmente identificado com o senso comum, por um outro ponto de vista, neste caso particular, pelo ponto de vista arquimediano, o da ciência universal: os neoplatónicos do Renascimento, em especial Ficino, Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, muito antes de Copérnico ou de Galileu, foram os primeiros a abolir a dicotomia entre a Terra e o Céu que a cobria, promovendo o Sol à categoria de estrela nobre e dando-lhe um lugar nobre num universo eterno e infinito.

2. A Destruição do Cosmos. A dissolução do Cosmos significa a destruição da ideia de um mundo de estrutura finita, hierarquicamente ordenado e qualitativamente diferenciado do ponto de vista ontológico, e a sua substituição pelo conceito de um Universo aberto, indefinido e até infinito, unificado e governado pelas mesmas leis universais. Neste novo universo, todas as coisas, sejam celestes ou terrestres, pertencem ao mesmo nível do ser, contrariamente à concepção aristotélica tradicional que distinguia e opunha os dois mundos, o do Céu e o da Terra. Com a fusão das leis do Céu e da Terra, a astronomia e a física tornaram-se interdependentes, unificaram-se e uniram-se. Esta grande unificação implicou o desaparecimento da perspectiva científica de todas as considerações baseadas no valor, na perfeição, na harmonia, na significação e no desígnio. Tais considerações desapareceram no espaço infinito do novo universo, onde uma geometria se fez realidade e no qual as leis da física clássica encontraram valor e aplicação.

A destruição do Cosmos é fundamentalmente a perda do centro pela Terra e, como se tornou evidente no decorrer da revolução científica, a perda do privilégio do Homem, ou seja, a perda do lugar privilegiado do homem no cosmos. Blaise Pascal resume a última implicação da destruição do Cosmos nesta frase enfática: "O silêncio eterno destes espaços infinitos apavora-me". Ou, por outras palavras, a perda pela Terra da sua posição central e singular no mundo implicou a perda pelo homem da sua posição privilegiada no drama teocósmico da Criação. Doravante, o homem deixa de ser a figura central desse drama e é obrigado a sair da cena. A astronomia de Copérnico inicia esta destruição, embora permaneça prisioneira da concepção de um universo finito e ordenado: Copérnico deu o primeiro passo, detendo o movimento da esfera das estrelas fixas, mas hesitou em dar o segundo passo que seria dissolver essa esfera estelar num espaço ilimitado. O seu universo continua a ser um mundo ordenado e finito, cujo limite está fixado pela esfera das estrelas fixas. Thomas Digges levou a astronomia copernicana mais longe, substituindo o mundo fechado e finito pelo universo aberto, substituindo o diagrama copernicano do mundo por outro diagrama, no qual as estrelas se encontram distribuídas por toda a página, tanto acima como abaixo da linha com a qual Copérnico representou a última sphera mundi. Até mesmo Johannes Kepler que fez a astronomia de Copérnico funcionar negou a infinidade do novo universo, por aceitar uma epistemologia empirista, sujeita às leis da óptica: os limites da astronomia são ditados pela visão e, por isso, não pode conceber coisas que desmintam as leis da óptica. (Kepler desconhecia o telescópio, posteriormente utilizado por Galileu.) Para Kepler, o mundo é uma expressão de Deus, simbolizando a Trindade e materializando na sua estrutura uma ordem e uma harmonia matemáticas. Embora aceite a nova astronomia, Kepler retém a metafísica aristotélica, alegando que não "é bom para o viajante perder-se naquele infinito". Deste modo, Kepler é levado a rejeitar e a refutar a concepção infinitista do universo, isto é, a hipótese da distribuição uniforme das estrelas no espaço, afirmando que o princípio da razão suficiente impede Deus de escolher uma estrutura adequada, portanto, geométrica, para um mundo infinito.

Porém, como já vimos, Giordano Bruno, um dos alvos da crítica de Kepler, tinha desenvolvido a teoria do universo descentralizado, infinito e infinitamente povoado por outros seres inteligentes: em nome da movimento da Terra em torno do Sol, Bruno defende que "o mundo é infinito e, por conseguinte, não existe nele nenhum corpo ao qual coubesse simpliciter estar no centro, sobre o centro, na periferia ou entre esses dois extremos do mundo". Tal como Nicolau de Cusa ou mesmo Lucrécio, Bruno regozija-se com a infinidade do mundo. O deslocamento da Terra do centro do mundo não é visto como uma degradação, mas como uma perfeição da obra criada por Deus. Com efeito, na filosofia de Bruno, o princípio da razão suficiente, posteriormente tematizado por Leibniz, reforça e suplementa o princípio da plenitude: a obra de Deus deve conter tudo o que é possível, isto é, inumeráveis seres individuais, inumeráveis Terras, inumeráveis astros e sóis, afim de ser perfeita e digna do Criador. Isto significa que Deus precisa de um espaço infinito para nele colocar o mundo infinito, isto é, o universo com dimensões infinitas e os seus inumeráveis mundos, um universo que não pode ser objecto dos sentidos, mas apenas do pensamento. A possibilidade implica a realidade. Esta concepção de Bruno contrasta fortemente com aquela que foi definida mais tarde por Pascal, a de um universo mudo e aterrorizante, ou mesmo com a da filosofia científica moderna, a de um mundo desprovido de sentido, do qual resultam o niilismo e o desespero. A sua concepção do espaço infinito foi adoptada e aperfeiçoada por Henry More e Isaac Newton (1643-1727).

Ora, uma tal revolução intelectual, pensada através do conceito de ruptura epistemológica de Gaston Bachelard, não tem nem pode ter "precursores". A sua novidade é radical e Galileu foi um dos seus principais protagonistas, na medida em que se colocou, sem qualquer ambiguidade, ao nível do ponto de vista arquimediano. Caverni e Duhem julgaram poder encontrar os precursores de Galileu em Buridano, Oresme ou mesmo no seu mestre Filão, os chamados "precursores parisienses de Galileu", mas este princípio de continuidade é cabalmente desmentido pelos estudos de E. Cassirer, A. Koyré e de T.S. Kuhn. Se há algum precursor, este só pode ser Arquimedes e o seu mestre Platão. (Publicado aqui. CONTINUA com o título "Génese e Estrutura da Ciência Moderna 2".)

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Trilogia Poética de Guerra Junqueiro

«O nosso grande poeta Guerra Junqueiro, atingindo a maturidade da razão adulta, revelou-se uma mui rara intuição filosófica, tornando incisivo o pensamento metafísico, que nele é sempre profundo, mercê da nítida flagrância duma imaginação igualmente opulenta na concepção e na expressão». (Sampaio Bruno, A Ideia de Deus)
Numa nota final datada de 1885 e anexada pelos editores à sua obra A Velhice do Padre Eterno, Guerra Junqueiro (1850-1923) apresenta em andamento a sua trilogia poética: a Morte de D. João, A Velhice do Padre Eterno e, finalmente, o Prometeu Libertado. Os dois primeiros poemas foram publicados, embora o segundo livro d' A Velhice do Padre Eterno, cujo título primitivo era A Morte de Jeová, não tenha sido editado com o título previsto d' A Morte do Padre Eterno, e do último restam alguns fragmentos. Mas sabemos que, "depois de morto D. João e morto Jeová", Guerra Junqueiro pretendia "ressuscitar Jesus e desagrilhoar Prometeu": "Este último poema, o Prometeu Libertado, será o fecho da trilogia, o complemento da minha obra", cujo plano estava concebido há muito tempo na mente de Guerra Junqueiro. O que prova a unidade substancial do pensamento de Guerra Junqueiro que, como qualquer outro grande criador e pensador, manifesta indecisões ou oscilações que, em vez de romper a linha condutora do pensamento em andamento, lhe emprestam rasgos de génio.
A cristologia de Guerra Junqueiro, elaborada no seu texto O «Sacré-Coeur» (1888), onde apresenta a doutrina do "cristianismo integral", sempre foi e continua a ser anti-católica ou, pelo menos, anti-eclesial e anticlerical, e, se o poeta-filósofo parece romper com A Velhice do Padre Eterno, quando chama "loucura monstruosa" à negação de Deus, proclamada por Nietzsche, o evangelista de "Satanás", fá-lo levado pela crítica hipócrita e difamatória que lhe foi dirigida pelos "homens entendidos", a "escória do público, a multidão instintiva e ordinária", porque o seu suposto período místico em que vive recolhido em si mesmo e coagido pela sua doença não significa uma adesão ao catolicismo e muito menos à Igreja Católica, cuja "opulência" constitui o seu maior "crime", sem escutar e seguir o voto de pobreza de S. Francisco de Assis: o seu misticismo inspirado nos místicos cristãos é contra a mediação de qualquer Igreja e, como tal, constitui uma força política revolucionária colocada ao serviço da revolução espiritual da humanidade: "O mundo caminha para um cristianismo integral, puro e perfeito, que absolutamente harmonize coração e razão, ciência e fé, natureza e Deus", termos que estiveram afastados uns dos outros durante séculos devido à própria "tragédia divina" que se repercute nos "dramas da alma humana e dos povos". A realização da justiça absoluta pertence ao futuro eterno reconciliado e redimido, donde Deus chama a sua criação à reconciliação santa e fraterna, que, apesar desse aspecto puramente escatológico, pode ser realizada pelo homem no seu exílio na Terra e na cidade dos homens, através da santificação e da espiritualização crescentes das obras dos "grandes homens" que antecipam aqui e agora o infinito. Este processo de ascensão é pensado a partir de uma dialéctica do desejo, a qual nos reconduz à fenomenologia da consciência antecipante de Ernst Bloch, até mesmo quando este filósofo apresenta a fome como a tendência fundamental que move o «desejo» humano de justiça plena: "D. João resume em si tudo quanto há de doentio na sociedade moderna: o idealismo, o tédio, as nevroses, a indiferença, a dúvida, os paradoxos, a falta de carácter. D. João anda nos cafés, nos boulevards, nos teatros, na literatura, nas igrejas e nas consciências. Simboliza perfeitamente uma parte da sociedade moderna, pelo lado exterior dos costumes. É necessário matá-lo; moralmente, já se vê". E Guerra Junqueiro mata-o moralmente: "D. João, na sua qualidade de parasita, morre como deve morrer: de fome. Quem não trabalha não tem direito à vida".
A "ideia simples e bela" que preside à concepção deste fecho da trilogia poética foi apresentada por Guerra Junqueiro assim: "A primeira parte é a epopeia do Trabalho, a glorificação de Prometeu pela humanidade e pela natureza. Na segunda parte, Jesus Cristo, levantando-se do seu túmulo, vem fulminar o abutre e desacorrentar Prometeu. O herói é libertado pelo santo. A crença e a ciência, a razão e a fé, depois dum combate de milhares de séculos, reúnem-se finalmente numa paz luminosa, numa comunhão indestrutível. A liberdade de Prometeu significa o desaparecimento de todas as tiranias, e a ressurreição de Jesus, a morte de todos os dogmas. Um é a justiça humana, e o outro a aspiração imortal para uma justiça absoluta. O Cáucaso e o Gólgota ficam sendo para a humanidade os dois grandes altares da religião eterna do Futuro". Na nota d' A Morte de D. João, Guerra Junqueiro lembra que "toda a questão tem dois lados, toda a medalha tem duas faces" e, por isso, depois da negação do "verme", a "face de Judas" personificada nas figuras de D. João e do Padre Eterno, levada a cabo nos dois poemas já publicados, respectivamente, é necessário "afirmar (no Prometeu Libertado) a justiça encarnada em duas figuras sublimes (do espírito humano), Cristo e Prometeu". Com efeito, "quando estes dois termos do espírito humano, há tantos séculos afastados, se identificarem numa harmonia completa, (em última análise, escatológica) o homem desde esse momento será justo, será bom, será feliz". Sem abdicar da noção de progresso, Guerra Junqueiro submete-a a uma crítica imanente que visa reconciliar num horizonte escatológico os dois grandes "altares da religião eterna do Futuro", Cristo e Prometeu. A santidade é "o termo e o destino da evolução do Ser" e "o universo não existe, nem se move senão para chegar a esse supremo resultado" que, no último poema, é apresentado nestes termos: "cada homem será (potencial e virtualmente) um deus" no advento da criação reconciliada no futuro eterno de Deus. Das ruínas da história (passada) governada pelo "Deus-Milhão" emergem, quais fagulhas incandescentes e despertas, as forças adormecidas do futuro: a reconciliação do homem com a natureza e a realização dos ideais da justiça, da república e da democracia. Segundo Sampaio Bruno, o primeiro filósofo português do Porto, aquele que teve a ousadia de enunciar que "Deus é omnisciente actualmente, mas não é omnipotente", antecipando o mito relatado recentemente por Hans Jonas para «justificar» o Holocausto, a novidade de Guerra Junqueiro reside no facto de ter esboçado, anulando a moral religiosa, a moral filosófica e a moral ascética, uma "moral cósmica", cujo princípio foi estabelecido por Novalis: "O fim do Homem é ajudar a evolução da Natureza". Para Bruno, "o homem tem de dar contas do supremo dever que lhe incumbe, o dever para com a natureza inteira. Libertando-se a si, libertando os seus irmãos de espécie, ele contribuirá já para a libertação universal".
O Esboço do Poema publicado e prefaciado por Luís de Magalhães compreende cinco cantos. No Canto I, Prometeu no Cáucaso e Cristo no Calvário dialogam entre si: "Cristo quer levar o mundo para Deus" e "Prometeu quer destruir os deuses e fazer um deus de cada homem". O Canto II trata do Sermão de S. Paulo em prole da cristianização de um mundo devastado e corrupto, onde impera o "niilismo da alma" e, por conseguinte, a "luxúria" da carne, "o pecado escandaloso", já denunciada num poema anterior, A Morte de D. João. O Canto III é dedicado à "ressurreição pagã" e, portanto, à Renascença: Prometeu desagrilhoado escala o céu e mata os deuses. O Olimpo é transferido para a Terra, onde Prometeu revela, domina e entrega aos homens "as forças prodigiosas da natureza", de modo a libertar a humanidade e a tornar "cada homem um deus". Contudo, o Canto IV mostra que o "Deus-Milhão", o ídolo do homem fera, serve-se das "revelações e descobertas de Prometeu" para concentrar o seu poder "omnipotente" e escravizar a humanidade. Prometeu fica indignado ao ver que da sua obra "resultou o despotismo, a tirania, a miséria, o crime, a devassidão" e, sem desanimar, "prega a revolta aos escravos", convicto de que "os homens serão livres, serão iguais, serão fraternos". Porém, os escravos libertos tornam-se, por sua vez, tiranos, o que significa a "hecatombe da revolução" (francesa de 1789), portanto, o "triunfo do Deus-Milhão" e do "niilismo". O Canto V relata a "desilusão de Prometeu" que "supunha que os homens eram bons naturalmente e que, entregando-lhes as forças maravilhosas da natureza, se libertariam para sempre de todas as misérias terrestres". Prometeu medita: "E ainda que os homens se libertassem da miséria e da desigualdade das riquezas pela minha obra, os homens seriam absolutamente felizes, isto é, seriam perfeitos?" A resposta é um rotundo "não", porque "só a perfeição moral é perfeitamente verdadeira" e "a perfeição completa das almas exige necessariamente a imortalidade". Prometeu continua a meditar: "De que serviria converter o globo (terrestre) num paraíso, se o globo há-de morrer e voltar ao caos? De que serviria o triunfo da minha obra, se a morte ao cabo a aniquilava". E, como em sonho, Prometeu imaginou-se um Hamlet, precisamente o de William Shakespeare, que, no "cemitério do infinito", erguia da "vala comum eterna" as "caveiras pútridas dos mundos" (históricos anteriores), para as interrogar, quase à boa maneira socrática. Porém, este "inquérito arqueológico" dos mundos passados foi infrutífero, a arqueologia é muda, porque as caveiras "perderam a voz" e nada lhe disseram, e, por isso, "Prometeu acorda do sonho com um grito de angústia pavoroso": "A sua obra falira, e, em vez de libertado, sente-se mais escravo do que nunca. Agora as cadeias, que o agrilhoam, são muito mais duras do que o bronze, e nem todas as forças da Terra, juntando-se, as poderiam despedaçar. O abutre do Cáucaso roía-lhe o fígado, agora rói-lhe a alma. É o abutre da desilusão e do desespero, o abutre satânico, o abutre invencível. E então Prometeu, chorando, tem saudades das suas cadeias de escravo nas penedias do Cáucaso". Na Cena final, Guerra Junqueiro parece ansiar pelo reencantamento do mundo. "Cristo aparece-lhe e converte-o" e Prometeu "cristianizado" exclama: «Só agora sou livre. Foi Jesus Cristo que me libertou»". Este sumário do esboço do poema, escassamente preenchido pelos versos do poeta, representa o maior esboço de uma História Universal realizado por um pensador português, que, apesar de implicar Camões, o supera pela sua absoluta universalidade, deixando a «filosofia da história nacional», a mitologia do Quinto Império, de Fernando Pessoa reduzida à sua insignificância obscurantista glorificada, mais recentemente, por dois luso-filósofos imbuídos de espírito metabolicamente gordo chamados Agostinho da Silva e António Quadros. A postura de Guerra Junqueiro não é a de quem aguarda a chegada de um Messias que faça por todos aquilo que cada um deve fazer, mas a postura de um homem de acção: "Rezar e chorar, mas heroicamente, na acção e na luta, no mundo e para o mundo". E tal como Ernst Bloch, Guerra Junqueiro é um optimista militante, cuja concepção de história é habitada pela ideia de Revolução, pela qual se hão-de realizar o direito, a justiça e o resgate de todas as sociedades, porque, como diz o poeta, "A ideia é uma torrente e a História é uma montanha./ É a torrente de luz, torrente de verdades,/ que arrasa quando passa impérios e cidades,/ tronos, religiões, crenças e monumentos./ Desce co'a rapidez eléctrica dos ventos./ O fantasma da noite em vão lhe grita: Pára!"
Em termos de periodização da História Universal, Guerra Junqueiro parece aceitar a periodização da historiografia «normal»: Antiguidade Clássica, Idade Média e Tempos Modernos, períodos a que correspondem, na linguagem marxista, o modo de produção esclavagista, o modo de produção feudal e o modo de produção capitalista, respectivamente. Porém, os seus «critérios» não são puramente materiais mas espirituais, ou melhor, culturais, à luz dos quais encara e avalia o progresso da humanidade de um modo «paradoxal». Sem negar o progresso material da humanidade, Guerra Junqueiro destaca preferencialmente o seu lado negro e regressivo: Prometeu ajudou os escravos a libertarem-se das cadeias, mas estes, uma vez libertos, converteram-se em tiranos que servem unicamente o Deus-Milhão. O resultado da epopeia do Trabalho é sempre em qualquer período o niilismo da alma, aquilo a que podemos chamar a regressão cultural, que Guerra Junqueiro permite pensar em termos de pensamento gordo, isto é, da ditadura do engorda. S. Paulo evangelizou o mundo antigo, mas o resultado foi a emergência de um Igreja sedenta de poder e de riqueza, profundamente corrompida pelo poder estabelecido, o contrário da mensagem de S. Francisco de Assis. A revolução francesa foi levada a cabo em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, e o resultado foi uma nova tirania e o niilismo da alma, talvez mais suavizada pelo facto de ter libertado a humanidade do jugo das Igrejas, mediante a secularização. No prefácio à segunda edição do primeiro poema, A Velhice do Padre Eterno, na secção da "defesa" contra a "acusação", Guerra Junqueiro ainda responsabiliza o Deus-Ídolo, aquele que habita os tronos dos imperadores, dos reis, dos governantes ou dos dirigentes corruptos, por esta fatalidade da história da humanidade: "O Criador selvagem, o Átila furibundo, castrado e piolhoso, (...) civilizou-se. Ao deitar-se, era ainda um bárbaro; quando se levantou, era já um corrupto," que habitava "no luxo resplandecente da Grécia de Alexandre e da Roma dos Césares". Nesta crítica do Deus-Milhão, Guerra Junqueiro salvaguarda "o Rabi Jesus Cristo" que foi morto pelo Pai que o temia por causa dele ameaçar o seu "trono", deixando-o "depois, a um canto, na penumbra, (como) Deus aposentado, Deus honorário, sem influência, sem autoridade, mascando as suas cóleras, gemendo os seus reumatismos, com umas migalhas apenas da lista civil, que vergonha, que opróbrio! Jamais!" Porém, neste esboço do poema, Prometeu Libertado, Guerra Junqueiro parece inclinar-se mais para a maldade radical (Kant) inerente à condição humana e, contrariando Rousseau, põe o seu Prometeu a pensar que, afinal, os homens não são naturalmente bons, porque, após lhes ter entregue as forças maravilhosas da natureza, eles não se libertaram para sempre de todas as misérias terrestres; pelo contrário, reproduziram-nas sempre de modo quase idêntico, o eterno retorno do mesmo, servindo o Deus-Milhão e aprofundando a "niilite" que domina o homem fera dilatada. Ao desvelar a dupla-face do progresso, uma visível e fenoménica, a da corrupção e das ruínas, a outra "encoberta" e essencial, a do espírito humano, Guerra Junqueiro vislumbra o «motor imóvel» que dinamiza e coloca em movimento perpétuo o ciclo infernal do eterno retorno que caracteriza a civilização: a mortalidade do mundo, dos seus habitantes e das coisas que o povoam. De certo modo, como pensa Prometeu, a mortalidade do homem justifica essa gula que o move ao longo da sua história vista enfaticamente como "inferno social", a catástrofe de Baudelaire e de Walter Benjamin. Só a esperança de imortalidade ou o Ideal enfrentando e aperfeiçoando o Real, pode contrabalançar a niilite, a doença crónica do processo civilizacional, e despertar a história para uma nova tarefa revolucionária: o reencantamento do mundo. Por isso, Guerra Junqueiro procede à ressuscitação poética de Jesus Cristo, o maior passo do Homem para o Divino, que, no mesmo texto, diz ao seu Pai:
"«Salvei o género humano. Purifiquei-o. Dum rebanho de corpos, fiz um exército de almas. De milhões de vermes, fiz milhões de astros. Como? Dizendo ao corpo: és nada!, e dizendo ao espírito: és tudo! Corpo, vai para o sepulcro. Espírito, vai para a glória eterna./ «Eliminando a carne, eliminei o pecado. O globo, que eu vi povoado de crimes, deixei-o estrelado de consciências. Converti a Terra e pus-lhe por cima um outro Céu. De hoje em diante, o Olimpo inteiro pertence-te. Os deuses gregos e romanos, deuses de prata, de oiro, de bronze, de alabastro, deuses de cinza, morreram para sempre./ Trago-te o império do universo. Aí o tens, meu Pai!»"
A saúde precária de Guerra Junqueiro, agravada pela recepção odiosa da sua obra, personificada na sua força maléfica e invejosa pela crítica positivista e estúpida de António Sérgio ou de Vieira de Almeida e até mesmo pela incompreensão de Leonardo Coimbra ou pela ambiguidade reconciliatória de Amorim de Carvalho, não lhe permitiram concluir a sua trilogia poética, que, de certo modo, antecipa uma reconciliação entre a razão e a fé, entre a ciência e a crença, entre Prometeu e Jesus Cristo, enfim entre a Grécia e a Religião Judaico-Cristã, as duas colunas essenciais da Civilização Ocidental. O Cristo de Guerra Junqueiro é um Cristo helenizado, mais precisamente platónico: O Sofrimento, a Dor ou a Luta espiritualizam a vida e o mundo e é nesta espiritualização que se conquista a Imortalidade. Num estudo anterior, intitulado
Guerra Junqueiro: Poesia e Filosofia (2003), apresentei uma nova chave de leitura da Filosofia da História de Guerra Junqueiro, onde tento alinhavar as linhas gerais da obra filosófica que o poeta-filósofo pretendia escrever com o título A Unidade do Ser, sem ter levado em conta este projecto da trilogia poética que não foi concluído. A leitura crítica deste projecto da trilogia revela agora a robustez hermenêutica e redentora dessa chave de leitura, que, apesar de poder ser aperfeiçoada, ajuda a recuperar Guerra Junqueiro para o pensamento essencial, libertando-o desse exílio do esquecimento que se chama História da Literatura Portuguesa e sem abdicar da unidade essencial do seu pensamento. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Teoria da Internet Sexual

A Internet oferece aos seus utentes três possibilidades: embelezamento das circunstâncias do mundo real, criação de um cenário de pura fantasia e computer sex, onde cada parte descreve online o que gostaria que a outra parte fizesse consigo até alcançarem em conjunto o orgasmo. Os factores que tornam os contactos online potencialmente sedutores e, frequentemente, aditivos, incluem a desinibição e a natureza anónima da Internet. Os utentes online são mais desinibidos, confiam mais nos outros e revelam facilmente aspectos íntimos e secretos das suas vidas. A percepção de confiança, intimidade e aceitação tem o efeito potencial de encorajar os utentes online a usar estas relações virtuais como uma fonte primária de companhia, de conforto ou mesmo de gratificação erótica.
1. Internet Sexual. Segundo Cooper (1998), existem três factores primários que facilitam o incremento da sexualidade online: accessibility, affordability e anonymity. O seu modelo é denominado o Triple A Engine:
1). Accessibility: existem milhares de sites disponíveis 24 horas por dia e 7 dias por semana.
2). Affordability: a competição na Web mantém os preços/custos baixos e existem muitas maneiras de aceder de graça ao sexo.
3). Anonymity: as pessoas julgam ou percebem as suas comunicações como sendo anónimas, o que parece incrementar um sentido de controlo sobre as situações.
Young (1999) elaborou uma variante do Triple A Engine, o ACE model: anonymity, convenience e escape. Nenhum destes modelos explica cabalmente o processo de desenvolvimento de relações online, embora forneçam os factores envolvidos na aquisição, desenvolvimento e manutenção das relações emocionais e/ou sexuais na Internet. Os meios virtuais parecem ter a capacidade de fornecer conforto, excitação e/ou distracção a curto prazo.
As pessoas utilizam a Internet com diversas finalidades, tais como trabalho, aprendizagem e recriação, devotando grande quantidade de tempo a esta ciberdimensão. Porém, o tópico número um, aquele que é mais procurado na Internet, é o sexo (Cooper, 1998; Freeman-Longo & Blanchard, 1998). Os sites com material sexual explícito são os mais procurados e as pessoas usam determinados serviços on-line para satisfazer os seus interesses sexuais e estabelecer contacto com outras, em função de diversas agendas sexuais. Isto significa que a Internet providencia um novo nicho social para as mais diversas expressões sexuais. A Internet sexual inclui não só a pornografia convencional, mas também as pornographic picture libraries (commercial and free-acccess), vídeos e vídeo clips, sex shops, live strip-shows, live sex shows e voyeuristic Web-Cam sites (Griffiths, 2000). Porém, a Internet sexual é muito mais do que uma rede de sites ou de páginas sexuais criados por determinados produtores para consumo de uma vasta audiência mundial: os utentes da Internet usam os programas e as novas tecnologias para fins sexuais, criando espontaneamente uma vasta rede de conexões sexuais. A globalização da comunicação é assim acompanhada pela globalização sexual: a comunicação mediada por computador cria uma arena mundial para contactos sexuais. Com a Internet emerge uma nova forma de sexualidade: a telesexualidade (sexo à distância), sexualidade virtual ou cibersexualidade.
1.1. Cyberaffair. A utilização sexual da comunicação mediada por computador é, portanto, muito mais extensa do que o número de web-sites sexuais on-line. Uma troca de email ou uma conversa num chat room podem conduzir a um cyberaffair intenso e apaixonado e, eventualmente, promover encontros sexuais reais. Um cyberaffair pode ser definido como uma relação sexual e/ou romântica que é iniciada via contacto online e mantida predominantemente através de conversações electrónicas que ocorrem através do e-mail e em comunidades virtuais, tais como chat rooms, interactive games, newsgroups e, sobretudo, Windows Live Messenger (Young et al., 2000). Estas relações online convertem-se frequentemente em diálogos eróticos mútuos, o cibersexo, que, com a utilização da web-cam, possibilita a visualização das actividades sexuais. Quando visam marcar um encontro real, as pessoas trocam os números de telefone ou de telemóvel e iniciam primeiramente uma interacção por telefone antes do encontro face a face, embora possam começar por um encontro real num lugar previamente combinado.
1.2. Cibersexo. O cibersexo envolve utentes online que trocam entre si textos baseados em fantasias sexuais, frequentemente acompanhados por masturbação e outras actividades sexuais. O conceito de cibersexo tem sido definido de diversas maneiras. Blair (1998) usa-o para designar as interacções eróticas através de ciberdiscursos e aponta as suas limitações sensoriais. O discurso sexual da Internet pode ser combinado com auto-estimulação ou converter-se numa relação física offline. As offline physical coupling são, em muitos casos, antecedidas por trocas online e trocas de números de telefone e muitos casais ou pares conheceram-se e assumiram relações em real-time como resultado de relações românticas online. Porém, com a utilização da web-cam, a Internet já não é apenas um sistema de signos: o cibersexo não se reduz a uma actividade em que o signo substitui a coisa (Lacan).
2. Sites Web-Cam. A minha pesquisa recente está debruçada sobre os sites Web-Cam. O que os seus frequentadores procuram não é tanto amigos/as com quem possam «conversar» e socializar, mas fundamentalmente parceiros sexuais de jogo com os quais trocam e-mails e, em privado, entregam-se à prática de cibersexo via web-cam. Nalguns casos, podem surgir oportunidades para encontros sexuais off-line marcados a breve ou a longo prazo. As distâncias podem ser superadas, desde que haja acordo entre as partes envolvidas: a relação virtual pode converter-se facilmente em relação real. O uso da Web-cam facilita primordialmente o sexo virtual, mas, mesmo assim, não é de descartar a possibilidade de um encontro sexual face a face. Esta necessidade de marcar encontros sexuais reais e virtuais mostra que estes utentes já possuíam uma adição ou compulsão sexual anterior à utilização sexual do computador: a Internet é utilizada para aumentar o pool de potenciais parceiros sexuais reais e/ou virtuais (Ross et al., 2007; Elford et al., 2004; Elford et al., 2001; Hospers et al., 2005). A compulsividade sexual é caracterizada pela solidão, baixa auto-estima e falta de auto-controle, e, de facto, estes traços estão presentes nestes utentes, sendo consistentes com os dos retratos de pessoas com adições sexuais (Cooper et al., 1999; Griffiths, 2004). Isto significa que o meio virtual pode influenciar o comportamento, mas não o determina. O modelo "monkey see, monkey do" dos efeitos dos mass media deve ser rejeitado, porque o "monkey has a brain": a perspectiva da sequência do comportamento sexual considera que os contactos com a cibersexualidade podem ser vistos como actividades auto-reguladas que se desenrolam em função de disposições individuais erotofílicas ou erotofóbicas para responder ao conteúdo sexual com afectos e avaliações positivas ou negativas (Fisher & Barak, 2000).
Ora, de acordo com a minha hipótese de trabalho, os sites web-cam não são apenas sites voyeurs, como supõe Griffiths (2000), mas também sites exibicionistas. Ou seja, a minha hipótese é a de que os actores/residentes desses sites são tendencialmente exibicionistas, enquanto a maior parte dos seus convidados e frequentadores são voyeurs, alguns dos quais podem tornar-se residentes. Esta hipótese assenta na tese de que o cibersexo deve ser visto como um tipo de expressão sexual que varia num continuum desde a mera curiosidade até ao envolvimento obsessivo (Leiblum, 1997). Para as pessoas que precisam de ajuda clínica, as perseguições sexuais on-line fazem parte integrante de uma constelação de traços associados ao isolamento social e a uma vida frustrante. Leiblum (1997) distingue três tipos de perfis clínicos de pessoas que recorrem ao cibersexo: o grupo dos loners, que compreende as pessoas para quem o cibersexo representa uma acomodação a situações de vida problemáticas ou empobrecidas, cada uma das quais a curto ou longo prazo; o grupo dos partners, formado por pessoas envolvidas numa relação off-line, cujo envolvimento com o cibersexo causa dificuldades sexuais e relacionais com o outro membro da relação; e o grupo dos paraphilics, constituído por pessoas que dependem do cibersexo para lhes fornecer uma fonte de estimulação e de satisfação das suas preferências e comportamentos sexuais. Embora estes perfis possam ser identificados isoladamente, os meus dados mostram que, no que diz respeito aos agentes/residentes inscritos nos sites web-cam, o perfil parafílico sobrepõe-se a um dos outros perfis, de modo a constituir perfis compostos parafílico/partner e parafílico/loner. Isto significa que os agentes/residentes manifestam invariavelmente um envolvimento obsessivo com o cibersexo, e que, entre os frequentadores dos sites web-cam, podemos encontrar diversos tipos de envolvimento, desde a mera curiosidade até ao envolvimento obsessivo.
2.1. Oásis Eróticos Virtuais. Os sites web-cam podem ser vistos como oásis eróticos virtuais. O conceito de oásis erórico foi forjado por Delph (1978) para designar um lugar considerado física e socialmente seguro de ameaças exteriores, de acordo com os padrões definidos pela subcultura gay, onde os seus frequentadores se reúnem para estabelecer interacções sexuais mutuamente desejadas. Ou seja, o oásis erótico é um lugar subculturalmente atribuído para a prática do sexo, portanto, um lugar que encoraja abertamente o sexo. A extensão deste conceito ao ciberespaço possibilita examinar certos sites sexuais como cloacas comportamentais virtuais acessíveis a qualquer utente, bastando para o efeito clicar, consultar o website e interagir com os outros. Como já vimos, a Internet sexual democratiza o acesso a todos os tipos de materiais sexuais explícitos, uns legais e outros ilegais (assédio sexual online, cyberstalking, pedophilic "grooming" of children, consensual erotic cannibalism), permite a exteriorização e a partilha de fantasias sexuais, e facilita a procura de parceiros sexuais sem sair de casa. Os sites web-cam são oásis eróticos virtuais muito populares e, como tal, encorajam abertamente a exteriorização "pública" das fantasias sexuais e as interacções sexuais entre os seus utentes de géneros, nacionalidades, etnias, status sócio-económico, idades, orientações e preferências sexuais diferentes. Ao contrário dos clássicos websites sexuais, em especial dos pornográficos, os sites web-cam permitem visualizar em tempo real actividades sexuais diversas realizadas por casais ou indivíduos "reais" online e estabelecer contactos com esses residentes, tendo em vista um encontro sexual virtual, de preferência recíproco e em privado via MSN. Os sites web-cam facilitam encontros sexuais que, ao contrário da masturbação individual, são dotados de uma qualidade partilhada, no sentido de que as fantasias são exteriorizadas e mutuamente construídas em tempo real com uma outra pessoa "real" online. Neste sentido, o cibersexo posiciona-se entre a excitação sexual resultante da visualização de material pornográfico e o contacto sexual real. Uns utentes ficam satisfeitos com estes contactos sexuais virtuais, outros desejam estabelecer contactos sexuais reais: o sexo virtual é, neste último caso, o primeiro passo que lhes permite acumular dados, avaliar as compatibilidades e, mais tarde, marcar um encontro real.
2.2. Cruzamento das Sexualidades. A Internet permite uma melhor expressão da identidade, sobretudo daqueles utentes que são socialmente marginalizados e excluídos (McKenna, Green & Smith, 2001), como sucede com os homens e as mulheres homossexuais e bissexuais e com os homens heterossexuais sexualmente compulsivos ou com alguma preferência parafílica. Após terem revelado a sua identidade sexual genuína, a online selfdisclosure, estas pessoas tendem a tornar efectiva essa identidade assumida no meio virtual. Aliás, qualquer pessoa sente e sabe que o seu «verdadeiro self» (Karl Rogers) é melhor expresso online do que offline, devido ao Triple A Engine. Os homens homossexuais passam a maior parte do seu tempo escondidos e a ser interpelados como se fossem heterossexuais. Além de serem clandestinos numa sociedade heterosexista, os homens gay têm de lidar com as investidas eróticas e amorosas femininas que amordaçam a seu eu mais verdadeiro. Ora, a Internet possibilita a desmarginalização do self gay ou parafílico/exótico, que, pelo menos no meio virtual, quando assediado, pode simplesmente banir ou bloquear o endereço do abusador. A Internet quebra muros, elimina barreiras associadas com a geografia, a idade, o status sócio-económico, a etnicidade ou a nacionalidade, e ajuda a destruir preconceitos sexuais (Hillier, Kurdas & Horsley, 2001). Embora possam ser insultados verbalmente online ou via telefone por homens heterossexuais, sobretudo quanto tentam sexphone, os homens gay podem interagir de modo mais genuíno e próximo com eles, sem temer consequências negativas. Alguns homens heterossexuais trocam e-mails com homens homossexuais, com o objectivo de criar amizades online, e outros revelam interesse em explorar novos prazeres, podendo envolver-se em cibersexo homossexual. De facto, nas interacções online, os homens heterossexuais são muito menos preconceituosos e, por isso, mais abertos a outras possibilidades sexuais. Alguns fazem cibersexo com homossexuais, não porque estes tenham simulado uma personagem feminina online (gender-bending), o que acontece regularmente, mas porque, eles próprios durante as interacções online, mostraram interesse em experimentar novas formas de prazer sexual (Brown, Maycock & Burns, 2005).
2.3. Padrões Gerais. Os sites web-cam são completamente dominados pelos homens: os seus residentes e frequentadores são predominantemente homens (1), muitos dos quais usam um perfil (ou inscrição) feminino para ter acesso privilegiado e privado às "cenas íntimas" dos machos heterossexuais, tais como "cum" ou "shoot your milk", e a imagem predominante é a do falo (2). Estas observações confirmam resultados de estudos anteriores. Os utentes da Internet não constituem um grupo homogéneo; pelo contrário, existem diversos subgrupos que podem ser distinguidos pelo género e pela idade. O género constitui a variável que permite distinguir os utentes de websites sexuais: os homens (2/3) utilizam muito mais estes sites do que as mulheres e também gastam mais tempo a visualizá-los (Morahan-Martin, 1998; Nua, 1998; Atwood, 1996). Isto significa que a cultura on-line é masculina: as atitudes positivas dos homens em relação à tecnologia são transferidas para o uso da Internet.
O facto de predominar a exibição fálica nos sites web-cam decorre da temática das diferenças sexuais e de género, em especial da diferença fundamental que diz respeito a todos os padrões que mostram que o sex drive masculino é maior do que o sex drive feminino (Baumeister, Catanese & Vohs, 2001; De Sousa, 2006). Um desses padrões são as atitudes favoráveis em relação ao sexo, incluindo a pornografia e a prostituição. Conforme mostraram Reinholtz & Muehlenhart (1995), os homens têm opiniões mais favoráveis em relação aos seus próprios órgãos sexuais (isto é, os seus pénis) do que as mulheres em relação aos seus (isto é, as suas vaginas). Além disso, os homens avaliam as "vaginas das suas namoradas" mais favoravelmente do que as mulheres avaliam os "pénis dos seus namorados". Contudo, esta última descoberta não desmente a ideia de que o pénis é inerentemente mais admirado e "louvado" do que a vagina. O objectivo dos homens é obter sexo e, por isso, as suas discussões sobre sexo são muito detalhadas e envolventes. Nestas discussões, os genitais masculinos são mais abertamente (e menos eufemisticamente) abordados do que os genitais femininos (Braun & Kitzinger, 2001). Estes dados mostram que as mulheres heterossexuais não parecem muito interessadas nos órgãos genitais dos seus potenciais parceiros ou namorados. Encontramos aqui provavelmente a razão da inexistência de lugares onde os homens heterossexuais façam exibições fálicas para atrair as suas parceiras sexuais: a natureza física do falo, nomeadamente o seu tamanho, parece deixar as mulheres indiferentes. No entanto, nos sites web-cam, os homens heterossexuais realizam prolongadas exibições fálicas, com a ajuda de viagra, poppers e boosters, e, como seria de esperar, a sua audiência é predominantemente masculina, constituída por homens homo e bissexuais, bem como por transexuais macho-para-fêmea, como se estas exibições fossem efectuadas para atrair esta gama de homens.
3. Exibicionismo. Ora, as exibições fálicas fazem parte integrante da corte homossexual. Em determinados lugares, muitos homens gay exibem o seu falo com o objectivo de atrair parceiros sexuais. Tal como os homens heterossexuais, os homens homossexuais masculinizados referem-se mais aos seus próprios órgãos sexuais e aos dos parceiros potenciais ou reais do que os homossexuais efeminados. Estes últimos não se referem aos seus pénis, mas, ao contrário das mulheres, têm elevado sex drive e admiram os pénis dos seus parceiros, de preferência pénis de grandes dimensões. A etologia interpreta as exibições fálicas como sinais de protecção, domínio e ameaça (Eibl-Eibesfeldt, 1970), mas, neste contexto virtual, elas são simplesmente sinais sexuais emitidos com o objectivo de atrair o maior número possível de pessoas ou de potenciais parceiros sexuais. Porém, onde existem imagens ou visualizações "reais" de pénis erectos, também existem muitos homens gay. Isto significa que as exibições fálicas dos homens heterossexuais atraem maior número de homens do que de mulheres. O site web-cam tende a converter-se num "concurso público" onde os homens exibem os seus falos: os vencedores, os que ocupam o topo das respectivas listas, são aqueles que atraem o maior número de convidados e de utentes. De certo modo, os vencedores que podem ser premiados com dinheiro são aqueles que, devido às grandes dimensões dos seus pénis, "cobrem" o maior número de utentes por dia, semana e mês. O acto de cobrir é claramente uma atitude de domínio e de ameaça. Neste acto virtual reside o núcleo do exibicionismo online: os actores/residentes exibicionistas não sofrem, de modo algum, perturbações no seu comportamento sexual e não são sexualmente inibidos; pelo contrário, são sexualmente desinibidos, sobretudo no meio virtual livre dos constrangimentos sócio-culturais. O exibicionismo é geralmente caracterizado por fantasias sexualmente excitantes ou por comportamentos que envolvem a exposição dos órgãos genitais a outras pessoas que percebem este comportamento como inapropriado (DSM-IV-R/CID-10). Contudo, os exibicionistas online são diferentes dos exibicionistas da literatura psiquiátrica clássica: eles pretendem assustar os seus rivais e, deste modo, atrair a atenção dos utentes, com alguns dos quais querem fazer sexo virtual e/ou real. Como é evidente, os alvos das exibições fálicas não as encaram como comportamentos inapropriados, porque, nos sites web-cam, as parafilias tendem a confluir de modo complementar e "pacífico". E, como os homens são mais propensos a adquirir uma parafilia do que as mulheres, encontra-se aqui mais uma razão que justifica o carácter masculino da cultura sexual online. No fundo, todos eles reagem sexualmente a um pequeno número de estímulos eróticos e este traço pode estar associado a diversos tipos de psicopatias e a inteligência reduzida (Firestone et al., 2006; Rabinowitz-Greenberg et al., 2002; Cantor et al., 2005; Quinsey, 2003; Rahman & Symeonides, 2008).
Estes dados confirmam uma das predições do meu modelo: os homens heterossexuais que apresentam atributos hipermasculinos, em especial pénis de grandes dimensões e elevado grau de promiscuidade sexual, tendem a ser muito pouco discriminativos na selecção dos seus parceiros sexuais: são buscadores compulsivos de novas sensações e de novas experiências sexuais e, geralmente, já fizeram sexo com outros homens (Hamer). Com a Internet emerge uma nova figura de homem: homens que fazem sexo virtual com outros homens, uns na sua condição verdadeira de homens, outros na condição fictícia de mulheres. Ora, um número significativo de homens heterossexuais que exibem os seus pénis erectos nos site web-cam não parecem ficar muito incomodados pelo facto dos seus visitantes ou convidados serem outros homens que lhes fazem propostas sexuais e elogiam os seus pénis, embora outros digam claramente que não desejam a presença de homens gay. Os frequentadores homossexuais desafiam-nos, dizendo-lhes que eles gostam ser admirados por outros homens e, em conversas privadas, costumam defender a tese de que a maior parte deles são homossexuais que usam o rótulo heterossexual por ainda não terem assumido a sua verdadeira preferência sexual. Contudo, esta visão gay é exagerada, porque sempre que entro em diálogo com eles usando um perfil feminino costumo receber geralmente uma mensagem privada, onde me pedem para trocar e-mails, tendo em vista a realização de cibersexo privado, ou, quando detectam que estou on-line, enviam um convite para assistir a uma sessão privada. Isto significa que nem todos os auto-intitulados heterossexuais são falsos heterossexuais ou atravessam um período crítico de desconforto com essa sua orientação sexual. Porém, no caso dos homens ditos bissexuais, a situação é muito diferente: a presença do meu perfil feminino deixa alguns muito incomodados e já foi banido algumas vezes. Com excepção de um homossexual português e de um ou outro homossexual hiperefeminado ou transexual, os homens gay tendem a não me responder, ignoram a minha presença e não desejam a minha presença, embora não me tenham banido do chat. Apenas um bissexual português me fez uma proposta de "casamento de conveniência", alegando que nunca iria ficar "privada de sexo", apesar de preferir fazer sexo com outros homens. Quanto ao meu perfil masculino, pouco há a dizer: tem sido bem acolhido pelas mulheres heterossexuais e pelos homens gay. Os casais heterossexuais são receptivos ao meu perfil feminino e os casais gay, ao meu perfil masculino. As mulheres lésbicas já me contactaram e adicionaram-me às suas "listas de amigas". Quer use um ou outro perfil, tenho tido um grande acolhimento entre os membros da cultura de submissão sexual ou de sadomasoquismo, desempenhado o papel de master ou de dominador(a).
4. Sexual Bondage.
Tradicionalmente, o comportamento sexual tem sido estudado em termos de características individuais e de fases precoces de desenvolvimento e os indivíduos que praticam B & D (Bondage and Discipline), D & S (Dominance and Submission) e S & M (Sadomasochism) foram classificados como parafílicos. Contudo, nas últimas três décadas, o sadomasoquismo foi analisado como um fenómeno social no âmbito de um contexto subcultural: o bem-estar dos indivíduos sadomasoquistas depende do seu nível de integração nas subculturas sadomasoquistas. Weinberg et al. (1984) criticaram severamente os modelos que ignoravam as subculturas sadomasoquistas, as quais fornecem aos seus membros os padrões necessários à definição e à elaboração das suas actividades sexuais. De facto, os clubes sadomasoquistas desempenham um importante papel no desenvolvimento de atitudes de apoio ao sadomasoquismo (Weinberg, 1978). Estas atitudes permitem aos indivíduos integrados na subcultura sadomasoquista justificar os seus desejos sexuais e construir socialmente o seu repertório sexual. Kamel (1983) e Spengler (1977) mostraram que os homens gay estão mais integrados na subcultura sadomasoquista do que os homens heterossexuais: os homens gay afirmam estar satisfeitos com as suas vidas sexuais. A subcultura sadomasoquista gay oferece uma gama diversificada de modelos de papéis e de possibilidades de envolvimento no comportamento sexual (Kamel, 1983) e, ao contrário do que se pensa (Morrison, 1995), os homens gay adoptam frequentemente o papel sádico (Sandnabba et al., 1999), além de exibirem a faceta da hipermasculinidade (Alison et al., 2001). O desenvolvimento do comportamento sexual sadomasoquista inicia-se após a experiência de actividades sexuais "convencionais" e o estabelecimento de uma orientação sexual. As reacções emocionais depois da primeira experiência sadomasoquista foram avaliadas de modo positivo. Apenas os participantes masoquistas reagiram com culpa, talvez devido ao conflito entre a regressão masoquista e as expectativas do papel de género masculino. Muitos indivíduos disseram ficar completamente satisfeitos com o sexo sadomasoquista (Coleman, 1982; Kontula & Haavio-Mannila, 1993; Suppe, 1985). A actividade sadomasoquista não parece estar associada ao abuso extensivo de substâncias antes ou durante a prática de sexo sadomasoquista, embora os homens gay tendam a usar poppers e álcool (Smith et al., 1997), o chamado sexo químico (Chem Sex). (A minha pesquisa dos sites web-cam não confirma estes resultados: os homens nórdicos e anglosaxónicos, independentemente da orientação sexual, abusam do álcool e de poppers ou viagra.) Kamel (1983) defendeu a ideia de que o sadomasoquismo pode ser visto na subcultura gay como uma reacção à insatisfação com o estilo de vida gay predominante.
Toda a relação sexual é, de certo modo, uma relação hierárquica desigual e, como mostraram Stoller e Kernberg, a cópula pode ser vista como um acto de violação, ou melhor, de invasão sexual. Em termos de papéis sexuais, a maioria das mulheres heterossexuais prefere o papel submisso, ao passo que a maioria dos homens heterossexuais prefere o papel dominador (Jozifkova & Flegr, 2006). Esta compatibilidade entre os sexos reflecte a diferenciação sexual do cérebro e do comportamento. Quanto aos homens gay, alguns estudos mostraram que preferem o papel submisso, embora estudos mais recentes tenham evidenciado que um número significativo de homens gay prefere desempenhar o papel dominante, exibindo comportamentos e actividades sexuais hipermasculinas (Alison et al., 2001). A humilhação está significativamente associada com as mulheres e com a orientação heterossexual nos homens, enquanto a hipermasculinidade se associa fortemente com os homens e com a orientação homossexual nos homens.
A Internet sexual possibilita uma aproximação entre as subculturas sadomasoquistas gay e heterossexual: as duas subculturas confluem nos sites web-cam e esta confluência facilita a descoberta de parceiros sexuais adequados. Geralmente, os homens heterossexuais submissos têm muita dificuldade em descobrir parceiras dominantes, sem recurso ao sexo comercial. Os sites web-cam permitem superar esta dificuldade, facilitando a descoberta de parceiros sexuais virtuais adequados, ao mesmo tempo que permitem aos homens casados satisfazer os seus desejos e fantasias sexuais sem envolver as suas mulheres. O que se verifica nos sites web-cam é a emergência de homens que fazem sexo com outros homens: nos sites web-cam as sexualidades de género masculino aproximam-se, assimilando elementos umas das outras. Os estudos revelam que existem mais indivíduos masoquistas do que sádicos: o masoquismo surge primeiro e só mais tarde alguns assumem o perfil sádico (Baumeister, 1988; Moser & Levitt, 1987; Spengler, 1977). Contudo, a hipótese de Baumeister (1988) foi desmentida por diversos estudos (Sandnabba et al., 1999; De Sousa, 2006): a maior parte dos indivíduos sadomasoquistas não muda as suas preferências. Entre os homens gay, os indivíduos "passivos" tendem a assumir a posição submissa, e os "activos", a posição dominadora, nas actividades sadomasoquistas. Nos sites web-cam, os homens heterossexuais, bissexuais e gay que preferem o papel submisso realizam as mesmas práticas sexuais, e o mesmo sucede com os homens heterossexuais, bissexuais e gay que preferem o papel dominador. As afinidades intragrupais afirmam-se em detrimento das diferenças. A homosociabilidade parece conduzir à homossexualidade, isto é, à afirmação de masculinidades intramasculinas autónomas: as sessões sadomasoquistas reais confirmam esta direcção das interacções online masculinas. Surge um novo erotismo masculino orientado de modo narcisista e até mesmo os homens que praticam musculação acariciam o seu "peito", chupam os dedos e o seu próprio pénis, exibem as nádegas, fazem movimentos sensuais com a língua, dançam de modo erótico, simulando os movimentos de penetração, saboreiam o seu próprio sémen e exibem-se para outros homens. A hipermasculinização caricatural é praticamente sinónimo de homossexualidade masculina. O narcisismo subjacente pode encobrir algum tipo de hostilidade em relação às mulheres. A Internet é o lugar onde está a acontecer uma nova revolução sexual, cujos contornos e configurações ainda são desconhecidos.
A Internet é, inegavelmente, um parceiro activo na criação de novos nichos e subculturas sexuais online e, como vimos, os sites web-cam podem ser vistos como oásis eróticos virtuais. Os frequentadores habituais dos sites web-cam revelam grande dificuldade em distinguir os três conceitos relacionados com a sexual bondage, Bondage & Discipline, Dominance & Submission e S & M (sadomasochism), tendendo a classificá-los como variações da sujeição sexual. Porém, através da visualização dos "shows", do som e da interacção mediada por computador, verifica-se que muitas das actividades sexuais praticadas implicam a administração e recepção da dor, uma faceta claramente sadomasoquista. Isto significa que a Dominação e Submissão constitui o quadro de referência que inclui a Bondage e Disciplina e o Sadomasoquismo. As interacções online entre os residentes e os convidados/frequentadores assentam em papéis fantasiados, tais como senhor/escravo, professor/aluno, guarda-prisional/prisioneiro ou oficial/criado: uns ordenam, outros obedecem. As ordens impõem obediência, servidão ou escravidão, umas vezes sem induzir dor física (B & D), outras vezes induzindo dor física (S & M), mediante o uso de dispositivos ou materiais fisicamente restritivos e tratamentos psicologicamente repressivos e humilhantes. Geralmente, um "show sadomasoquista" contém os seguintes elementos: uma relação de dominação/submissão, administração de dor física (clothspins, spanking, caning, weights, hot wax, electricity e skinbranding) que é experienciada como gratificante por ambos os parceiros, humilhação deliberada do parceiro submisso (flagelação, humilhação verbal, gag, faceslapping e knives), elementos fetichistas e uma ou mais actividades ritualizadas (Townsend, 1983). As experiências sadomasoquistas e de
sexual bondage caminham juntas nos sites web-cam e podem ser agrupadas em seis categorias:
4.1. Jogo. Os indivíduos sexualmente "convencionais" podem alargar a sua experiência sexual mediante a sexual bondage e o número de comportamentos sexuais desejados, ou seja, usar a sexual bondage para alargar e diversificar o seu repertório de comportamentos e de fantasias sexuais desejados, incluindo os comportamentos parafílicos.
Nos sites web-cam, os homens casados heterossexualmente que apreciam a prática de sexual bondage apresentam-se geralmente como "bissexuais": a bissexualidade indica, nestes casos, que estes homens procuram "parceiros de jogo", masculinos ou femininos. Como existem online muitos homens gay dominadores, eles encontram facilmente parceiros dominantes a quem obedecem como "escravos". Heterossexuais na vida real, muitas vezes comprometidos numa relação estável, estes homens fazem sexo virtual com outros homens e, pelo menos em Portugal, muitos deles assumem esta nova identidade virtual na vida real, frequentando regularmente sessões de sadomasoquismo ou de sexual bondage. Um aspecto curioso é o facto dos homens heterossexuais que praticam auto-felação sentirem uma necessidade de a praticar noutros homens. Assim, por exemplo, um homem italiano praticante de auto-felação contou-me, em conversa privada, que já tinha sugado o pénis de outro homem numa estação de metro em Roma e que gostou tanto da experiência que a voltou a repetir muitas outras vezes e, nalguns casos, com diversos homens ao mesmo tempo. Nos sites web-cam, os homens gay submissos raramente obedecem às ordens das mulheres. Como é evidente, os sadomasoquistas parafílicos têm dificuldade em manter uma relação off-line estável ou permanente, a menos que tenham um parceiro ou parceira geneticamente concordantes e, neste caso, tendem a colaborar um com o outro, de modo a diversificar o seu repertório sexual. Mas, como nem todos os casais são concordantes, um dos membros pode realizar estas actividades às escondidas do outro, cometendo infidelidade online ou adultério virtual (Young et al., 2000). E, no caso de serem descobertos, a vida do casal começa a degradar-se.
4.2. Prazer Sexual Intensificado. Numa experiência de submissão sexual, o indivíduo submisso/receptor é libertado da tarefa de estimular o seu parceiro sexual e, por conseguinte, pode concentrar a sua atenção sobre a experiência sexual propriamente dita. O indivíduo dominador/activo concentra-se sobre o seu desempenho sexual, sem levar em conta os movimentos físicos do parceiro. Deste modo, as experiências sexuais dos dois participantes são intensificadas. Aliás, eles percebem estas experiências de sexual bondage como "prazer sexual intensificado" e consideram-nas mais gratificantes do que os comportamentos sexuais convencionais, isto é, aquilo a que chamam "vanilla sex". Os indivíduos parafílicos tendem a ser sexualmente excitados por poucos estímulos eróticos, mas dotados de elevada potência estimulante. Por isso, durante a prática de sexual bondage, experienciam prazer sexual intensificado.
4.3. Troca de Poder. O indivíduo dominador/activo pode ser sexualmente excitado pela experiência de poder sexual, controle e responsabilidade, e alguns parecem ser particularmente excitados quando o seu parceiro submisso/receptor revela prazer com a experiência de submissão sexual. Este indicador contraria a concepção comum de que os indivíduos dominadores são cruéis, egoístas e abusadores. Os desejos e as fantasias sexuais dos parceiros complementam-se e, por vezes, terminam a sessão com um beijo na boca. É certo que o sadomasoquismo pode estar presente num só indivíduo, como já tinha sido observado por Freud, mas nestes casos o "show" tende a ser exibido sem que o protagonista interaja com o seu público: ele limita-se a fazer aquilo que planeou fazer, o seu "show", reduzindo os outros a meros espectadores que não podem interferir ou interagir. Os "cus alargados", designação dada por Aristófanes aos "invertidos" e aos travestis gregos, e os "masturbadores exibicionistas", incluem-se nesse grupo de homens que interagem muito pouco com os seus visitantes.
4.4. Estimulação Táctil e Sensações Corporais. Cordas, correntes, palmadas e bofetadas exercem pressão sobre os terminais nervosos que produz diferentes sensações corporais agradáveis. Estas sensações aumentam a excitação sexual dos indivíduos submissos/receptores que descrevem a intensidade da excitação como verdadeiramente elevada e a experiência, como verdadeiramente agradável. Alguns conseguem atingir o orgasmo sem estimulação física adicional.
Contudo, nos sites web-cam, observa-se claramente que, durante a prática de cockbinding, acompanhada pela queda de cera quente sobre o pénis e os testículos, a erecção peniana enfraquece substancialmente e talvez não desapareça completamente devido aos aparelhos usados para comprimir o pénis. Nestas situações, os homens que desempenham o papel de submissos precisam voltar a manipular manualmente o pénis para obter erecção e obedecer a uma nova ordem ou comando dada por um dos frequentadores: o orgasmo é geralmente obtido após a sessão e, nalguns casos, não se chega a essa fase. Apesar do aspecto chocante de muitos destes comportamentos, os seus executores afirmam que eles são extremamente gratificantes, porque intensificam o seu prazer sexual.
4.5. Engrandecimento do Gozo Visual do Parceiro. O indivíduo dominador/activo pode colocar e manter o seu parceiro submisso numa posição que seja sexualmente muito excitante. Nos sites web-cam, muitos dos residentes resolvem o problema da visibilidade de modo muito profissional, focando as zonas corporais que querem exibir publicamente ou, o que é muito erótico, usando espelhos. Pénis erectos, testículos, nádegas, ânus, mamas, vaginas ou movimentos corporais musculares são as estruturas corporais mais exibidas. Quando os pares de residentes exibem uma actividade sexual conjunta, o parceiro activo coloca o seu parceiro submisso numa posição que possibilita evidenciar o acto que está a ser praticado, bem como as zonas corporais íntimas envolvidas: masturbação, felação, coito vaginal, coito anal e, de modo ainda mais evidente, auto-felação praticada por homens heterossexuais ou gay, fistfucking, "chuva dourada" (watersports), rimming, cockbinding, clister, scatologia, catheter ou uso de dildos exuberantes. A pessoa que desempenha o papel submisso é usada, exposta e humilhada publicamente pelo seu parceiro dominador: os seus orifícios corporais são literalmente invadidos e "agressivamente" manipulados e os seus corpos são submetidos a diversos tipos de restrição física (handcuffs, chains, wrestle, slings, ice, straitjacket, hypoxyphilia e mummifying). Geralmente, o parceiro dominante interrompe o "show" para exibir o seu pénis erecto e interagir com os convidados/frequentadores: procura "popularidade" e as ordens dadas pelos últimos podem ser levadas a cabo. Os voyeurs que assistem a estes "shows" pedem frequentemente aos participantes para mostrarem mais de perto os seus órgãos genitais e as actividades sexuais realizadas. Predomina claramente o fetichismo falocrático: os utilizadores destes serviços tendem a ser "admiradores de falos", para os quais a diversidade multiracial de pénis exibida é deveras erótica. As palavras de ordem são as seguintes: "Show your big cock (or hot dick)", seguida de "CUM" ou "Shoot your milk". As mulheres assistem silenciosamente a estes "shows" e, quanto utilizo um perfil feminino, alguma mais corajosa deixa-me este comentário: "He's gay".
4.6. Confiança e Cuidados. As experiências erotizadas do indivíduo submisso/receptor aliviam-no de todas as responsabilidades pelo controle da experiência sexual: ele abandona-se confiantemente nas mãos do indivíduo dominador/activo, ou seja, a responsabilidade é confiada ao indivíduo dominador. Neste aspecto, o masoquismo parece ser uma estratégia usada pelos indivíduos com o objectivo de se libertarem da responsabilidade e do próprio self.
A confiança é fundamental numa relação de dominação/submissão: o parceiro submisso atado ou amarrado fica completamente nas mãos do seu parceiro dominador. Este precisa ser muito experiente para não ferir com gravidade o seu parceiro. É evidente que numa interacção online alguns dominadores exageram nas ordens dadas, ordenando a prática consecutiva de actos deveras dolorosos, mas sempre surgem "masters" mais cuidadosos a contra-ordenar e a desautorizar essas ordens. Isto significa que, entre indivíduos verdadeiros que praticam a sexual bondage ou mesmo o sadomasoquismo, existem acordos tácitos que visam garantir a segurança dos participantes. São práticas consentidas em que cada parceiro sabe aquilo que deve fazer sem pôr em risco a vida do outro. Embora pareçam e sejam efectivamente práticas "agressivas", elas são vistas como gratificantes pelos dois ou mais parceiros envolvidos: o poder que detém sobre o outro satisfaz o dominador e a obediência é gratificante para o parceiro submisso. (Publicado em dois posts em Cybercultura e Democracia Online.)
J Francisco Saraiva de Sousa