segunda-feira, 14 de julho de 2008

Bachelard e Filosofia do Habitar

«A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o homem é colocado no berço da casa.» (Gaston Bachelard)
Segundo Bachelard, a função primordial da casa é abrigar e proteger: a casa tem "valor de protecção". Na vida do homem, a casa constitui um "centro de abrigo", que cria em si uma esfera ordenada, um cosmos, do qual é eliminado o caos e a desordem do mundo exterior: "Na vida do homem, a casa afasta contingências". Goethe referiu-se, no seu "Fausto", ao fugitivo, ao "sem-abrigo", ao "sem lar", ao homem desnaturalizado "sem meta nem repouso": este homem sem-abrigo é uma criatura desnaturalizada, porque errou a autêntica natureza do homem que, segundo Heidegger, reside no habitar resguardando a quadratura: os sem-abrigo que vagueiam pelas nossas cidades foram destituídos do estatuto de humanidade e, por isso, já não são "homens", os quais na linguagem capitalista significam "contribuintes" nomeados nas suas inúmeras estatísticas metabolicamente gordas e inumanas, completamente reificadas. Isto significa que o homem só pode ser verdadeiramente homem quando tem um lar, uma casa. O fugitivo leva, qual vagabundo, uma vida errante e intranquila, condenada ao desenraizamento ou, como Bachelard prefere dizer, à fragmentação: o fugitivo ou, como lhe chama Bachelard, a "alma apátrida" dispersa-se e perde-se no anonimato, na desordem, nos vícios e nas compulsões da grande cidade. A sua vida torna-se fragmentada, "fragmentadora fora de nós e em nós". A casa possibilita ao homem um enraizamento mais profundo na vida e constitui um elemento de estabilidade: "Multiplica os seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso". A casa é capaz de recolher o disperso e conduzir o homem ao recolhimento. Bachelard considera-a "uma das maiores forças de integração" na vida do homem. Deste modo, a casa garante um apoio para resistir aos ataques do mundo exterior, mantendo o homem erguido "através das tempestades do céu e das tempestades da vida", ao mesmo tempo que lhe permite entregar-se aos sonhos de fantasia, aos devaneios, os sonhos diurnos de Ernst Bloch, o que constitui o seu "encanto mais valioso": "A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz".
Com estes devaneios do sonhador, nasce "a casa do sonho", a "casa onírica", aquele "templo da casa natal", no qual se condensam todas as lembranças das diversas moradas habitadas e vividas pelo homem, bem como as primeiras experiências de habitar no lar paterno, que ajudam a formar a "imagem primitiva da casa": "A nossa casa, captada no seu poder onírico, é um ninho no mundo". Para Bachelard, a consciência de bem-estar da vida que a casa proporciona ao homem é o sentimento feliz de abrigo e de refúgio. Bachelard vai mais longe quando escreve: "Não existe bem-estar sem devaneio. Nem devaneio sem bem-estar. Assim, pelo devaneio, descobrimos que o ser é um bem. Um filósofo dirá: o ser é um valor." O homem sonhador não está lançado e jogado no mundo, porque para ele o mundo é acolhimento e ele próprio é princípio de acolhimento: "O homem do devaneio banha-se na felicidade de sonhar o mundo, banha-se no bem-estar de um mundo feliz. O sonhador é dupla consciência do seu bem-estar e do mundo feliz. O seu cogito não se divide na dialéctica do sujeito e do objecto", porque, quando ele sonha o mundo, o mundo passa a existir tal como ele o sonha. Habitando verdadeiramente todo o volume do seu espaço, o sonhador está em todas as partes no seu mundo, "num dentro que não tem fora". O mundo já não está diante do eu e o eu já não se opõe ao mundo: "tudo é acolhimento".
Se o homem se sentir bem e confortável no calor do seu "ninho", ele será invadido pela "felicidade do habitar", acompanhada pelo sentimento completamente elementar de se sentir semelhante ao animal. Como escreveu o pintor Vlaminck: «O bem-estar que sinto diante do fogo, quando o mau tempo se desencadeia, é totalmente animal. O rato no seu buraco, o coelho na toca, a vaca no estábulo, devem ser felizes como eu». A casa como abrigo permite apreender a cálida "maternidade da casa": o onirismo da casa exige uma "pequena casa" dentro da "grande casa" para que o homem possa recuperar as seguranças primárias da "vida sem problemas". Todos os lugares de repouso são lugares maternais e a casa onírica é, em termos de intimidade e de repouso, mais profunda do que a casa natal, na medida em que sem a "casa de sonho" todas as "casas reais" são "casas mutiladas". O homem da cidade é, de certo modo, um ser mutilado, privado de actividade onírica e reduzido ao "conforto do esófago".
A filosofia fenomenológica do habitar diverge do existencialismo de Jean-Paul Sartre: Bachelard defende que a casa e não o "ser lançado no mundo hostil" constitui a "experiência primitiva do homem". Isto significa que a ameaça e a hostilidade do mundo externo são algo derivado e posterior: "A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa. (...) A experiência da hostilidade do mundo e, consequentemente, os nossos sonhos de defesa e de agressividade, são posteriores. No seu germe, toda a vida é bem-estar. O ser começa pelo bem-estar" e, na perspectiva do habitar, "o mundo é o ninho do homem". A ideia de Inverno com a neve e o gelo intensifica especialmente o "valor de intimidade da casa": o "lugar" onde o homem medita o seu ser no ser tranquilo do mundo. Baudelaire já se tinha interrogado: "O Inverno não aumenta a poesia da habitação?" O sonhador "pede anualmente ao céu tanta neve, granizo e geada quanto seja possível. É preciso que haja um inverno canadense, um inverno russo. O seu ninho será mais quente, mais doce, mais amado." Henri Bosco esclarece: "Quando o abrigo é seguro, a tempestade é boa".
Porém, Bachelard previne que, na dialéctica da casa e do universo, não podemos ignorar o momento de luta que se manifesta na resistência contra as forças da natureza. E, recorrendo ao testemunho poético de Henri Bosco, relativo à coragem da casa de Malicroix diante de uma tempestade, chamada La Redouse e construída numa ilha da Camarga, escreve: "A casa lutava com bravura. Ao princípio queixava-se; as piores rajadas atacaram-na de todos os lados ao mesmo tempo, com um ódio nítido e tais urros de raiva que, durante alguns momentos, eu tremi de medo. Mas ela resistiu. Quando começou a tempestade, ventos mal-humorados dedicaram-se a atacar o telhado. Tentaram arrancá-lo, partir-lhe os rins, fazê-lo em pedaços, aspirá-lo. Mas ele curvou o dorso e agarrou-se ao velho vigamento. Então outros ventos vieram e, arremessando-se rente ao solo, arremeteram contra as muralhas. Tudo se vergou sob o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo-se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela prendia-se ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis e, por isso, as suas finas paredes de pau-a-pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava o meu corpo não cedeu nada à tempestade. A casa apertou-se contra mim, como uma loba, e, por momentos, senti o seu cheiro descer maternalmente até ao meu coração. Naquela noite ela foi realmente a minha mãe".
É nestes momentos de luta contra as forças destrutivas da natureza que se constitui a "comunidade dinâmica entre o homem e a casa": Erguida contra a tempestade, "a casa torna-se o verdadeiro ser de uma humanidade pura, o ser que se defende sem jamais ter a responsabilidade de atacar. La Redousse é a Resistência do homem. É valor humano, grandeza do Homem». A casa é não somente protecção externa, "concha", mas também símbolo da vida humana: «Toda a forma guarda uma vida. O fóssil já não é simplesmente um ser que viveu; é um ser que ainda vive, adormecido na sua forma". Quando se contrai e se torna mais protector e exteriormente mais forte, o refúgio transforma-se em reduto, isto é, em "fortaleza da coragem para o solitário que nela deve aprender a vencer o medo. Tal morada é educativa". A casa é educativa, a casa educa, a casa paterna é o berço da educação. Isto significa que a casa, além de dispensar interiormente calor, comodidade, repouso, tranquilidade, afecto, serenidade e acolhimento, dá ao homem na sua relação com o mundo exterior firmeza de carácter e força para prevalecer contra o mundo: A casa "é um instrumento para afrontar o cosmos. (...) A casa ajuda-nos a dizer: serei um habitante do mundo, a despeito do mundo".
Se as filosofias da existência encaravam o homem como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência do homem é totalmente determinada a partir do habitar. Segundo Bachelard, o homem habita a sua casa antes de habitar o mundo: "Todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa" e "a casa é o nosso canto do mundo", "o nosso primeiro universo", porque, antes de ser lançado no mundo, "o homem é colocado no berço". Depois de ter começado a vida bem "agasalhada no regaço da casa", o homem é "expulso" e "posto fora de casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo". A expulsão do abrigo natal é, de certo modo, preparada pela exploração do espaço livre que circunda a casa: o quintal com o seu jardim, as suas dependências e os seus animais de estimação, um imenso espaço de acção, desprezado por Bachelard, no qual irrompe em segredo o contacto com o mundo exterior. O começo da vida humana ocorre numa conexão essencial com a casa: o estado de abrigado em casa tem objectivamente primazia sobre o estado de "ser lançado no mundo", o qual é experimentado posteriormente. O "encontrar-se" no espaço abrigado da casa opõe-se ao estado de lançado no mundo. Habitar não significa estar abandonado em qualquer lugar de um mundo hostil; mas significa estar abrigado graças ao "amparo da casa".
Minkowski elaborou o conceito de "ressonância no espaço" para qualificar um carácter geral do "espaço vivido", para além da sua significação meramente acústica: o homem pode sentir-se amparado no espaço total como se estivesse num espaço fechado. O espaço pode cumprir esta missão, porque o homem não se encontra originariamente nele como um "estranho" lançado num elemento que lhe é alheio, mas se sente ligado ao espaço, amalgamado com o espaço e sustentado pelo espaço. Daqui resulta que todo o ser vivo pode viver em simpatia, em harmonia e de acordo com o seu meio: a ressonância designa um estado primacial muito mais "primitivo que a antítese do eu e do mundo". Anulada a cisão entre sujeito e objecto, o espaço originário não pode ser objectivado. Embora tenha com o espaço uma relação oscilante, precisamente no ponto central entre o ter e o ser, o homem pode identificar-se com o espaço e, neste caso, ser o espaço onde está. Bachelard cita o verso de Noël Arnaud: "Sou o espaço onde estou". Assim, podemos alargar o conceito de habitar ao modo de ser do homem no espaço e afirmar que o homem mora no espaço, tal como habita na casa. Ora, o habitar na casa só pode dar amparo quando o homem morar de modo mais dilatado no espaço. Retomando o conceito de "encarnação", podemos afirmar que o "homem está encarnado no espaço". Esta expressão significa que o homem não só se encontra num meio e pode mover-se nele, mas que ele próprio é parte integrante desse meio, separado por um limite do meio circundante e, apesar disso, unido e sustentado pelo meio.
Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes" como "espaços de posse": espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" da natureza e da economia capitalista que reduz a casa à sua mera funcionalidade e à "satisfação do instinto de proprietário", negando-lhe a sua dimensão onírica impulsionada pelos "sonhos que querem enraizar-se". A geografia e a etnografia descrevem os mais diversos tipos de habitação, enquanto a fenomenologia procura revelar a "função original do habitar" e compreender o germe da "felicidade central, segura, imediata": "Encontrar a concha inicial em toda a moradia, no próprio castelo, eis a tarefa básica do fenomenólogo": "A imagem poética (da casa) está sob o signo de um novo ser" e "esse novo ser é o homem feliz". A fenomenologia da casa é, pois, uma "topofilia", que visa determinar o "valor humano" dos "espaços amados", sem levar em conta os "espaços de hostilidade" e os "espaços de ódio e de combate" associados a "imagens apocalípticas" e a matérias ardentes, tais como o fogo, os incêndios, os vulcões ou as guerras.
A explicitação da essência total da casa exige não só um desenvolvimento horizontal, mas também um desenvolvimento vertical. Isto significa que as moradas devem prolongar-se para a altura e a profundidade, ou seja, devem ter um sótão e um porão: "A verticalidade (da casa) é proporcionada pela polaridade do porão e do sótão". Como arquitecto da casa onírica, Bachelard hesita entre a casa de três e a casa de quatro andares, embora se incline para a casa de três andares: "A casa de três andares, a mais simples com referência à altura essencial, tem um porão, um pavimento térreo e um sótão". O interior da casa repete a significação simbólica do de cima e do de baixo. Entre os andares existem as escadas: "A escada que conduz ao porão tem um carácter diferente da escada que leva ao sótão". Descemos as escadas que conduzem ao porão e subimos as escadas abruptas que levam ao sótão: as restantes escadas nós as subimos e as descemos. Descer ao porão, onde a casa mergulha as suas raízes na terra negra e húmida, significa mergulhar na noite e no frio que moram debaixo da casa e, em princípio, só os homens vão à adega buscar o vinho. Subir ao sótão é ascender para a mais tranquila solidão. O sótão é o lugar onde ocorreram as birras de infância, a contemplação, as leituras intermináveis, o disfarce com as roupas dos nossos avós e a descoberta de imensas velharias que se ligam para sempre à alma da criança: os devaneios do sótão tornam vivos o passado familiar e a juventude dos nossos ancestrais. Para Bachelard, o sótão é o que faz a casa estar enraizada no solo profundo, de resto inquietante e terrível, da terra e das rochas. E, seguindo Henri Bosco, sonha com uma "casa com raízes cósmicas", que se eleva das mais terrestres e aquáticas profundezas até à morada de uma alma que habita no céu: "A casa converte-se num ser da natureza. É solidária com a montanha e com as águas que trabalham a terra". Esta casa evocada por Bosco ilustra a "verticalidade do humano" e é oniricamente completa. A casa é um "arquétipo sintético" que evoluiu: no seu porão está a caverna e no seu sótão está o ninho. O porão é a sua raiz e representa o inconsciente, enquanto o seu telhado é o ninho e representa as funções conscientes: "A casa oniricamente completa é um dos esquemas verticais da psicologia humana".
A vida moderna afrouxa o vigor das imagens oníricas da casa com sótão e porão e a sua "topologia onírica", aceitando a casa como um lugar de tranquilidade, embora de uma "tranquilidade abstracta", e esquecendo o aspecto fundamental: o "aspecto cósmico". As casas de Paris já não são autênticas casas: "Em Paris, não existem casas. Os habitantes da grande cidade vivem em caixas sobrepostas". Na cidade, "a casa não tem raízes" e "os arranha-céus não têm porão". Falta às casas da cidade a raiz e um vínculo cósmico mais profundo: os andares ou apartamentos são, como diz Paul Claudel, "buracos convencionais", destituídos de verticalidade em si mesma e sem espaço ao seu redor. A altura dos edifícios da cidade é apenas exterior, os seus elevadores destroem os "heroísmos da escada", o andar é uma simples horizontalidade e, por isso, "já não há mérito em morar perto do céu". As casas da grande cidade perderam os valores íntimos da verticalidade e a cosmicidade que permitia compreender a "situação da casa no mundo": as casas já não estão na natureza, não conhecem os "dramas do universo", as suas relações com o espaço tornaram-se "artificiais" e as ruas são meros tubos onde os homens são aspirados (Max Picard). Como diz Bachelard: "Viver num andar é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem porão é uma morada sem arquétipos". Os seus habitantes são seres desenraizados e apátridas, sem história, sem memória, sem imaginação. Perderam a verticalidade humana e a compreensão da sua situação no mundo: são seres alheados do mundo. Se for "impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa", então a casa da grande cidade perdeu a riqueza dos arquétipos do seu inconsciente e os seus habitantes tornaram-se seres mutilados e seres exilados na terra, portanto, apátridas. A casa da grande cidade é dominada pela "ideia do superego": tem escadas de serviço onde circulam "rios de provisões de boca" (Michel Leiris) e os elevadores levam rapidamente à sala de estar, onde se "conversa" enquanto se aguarda a refeição.
O Porto edificou-se e cresceu, ao longo da sua gloriosa história de cidade invicta, como Cidade do Sonho, "a própria imagem do futuro sonhado" (M. Torga), que, nas últimas décadas, foi abandonada ao esquecimento, devido à concentração de poderes numa capital necrófila e a erros atávicos urbanos e arquitectónicos. No Porto, existem centenas e centenas de casas cuja topologia se organiza em altura: um porão enterrado, o piso térreo da vida comum, o andar de cima onde se dorme e o sótão onde se sonha. Porém, muitas dessas casas evocadas por Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Miguel Torga e Agustina Bessa-Luís, e cantadas por Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, António Nobre, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, foram e são demolidas para dar lugar a edifícios residenciais e a condomínios fechados, e outras permanecem abandonadas, à mercê da especulação imobiliária irracional, carente de visão do passado glorioso e do futuro aberto ao novo. Estas casas burguesas, ou até mesmo as casas pobres, são sonhos realizados e concretizados na pedra granítica e, na sua topologia onírica, memória e imaginação não se deixam dissociar, trabalhando para o seu aprofundamento mútuo: "Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem". O Porto é a cidade da "bela arquitectura" diversa e plural, cujos quarteirões abrigam no seu interior espaços de sonho, e até mesmo os mais "pobres", as "ilhas", são labirintos que projectam horizontalmente os sonhos diurnos dos seus habitantes, em contraste com as casas burguesas que se elevam na verticalidade, procurando contacto com a "morada celestial" e dando um ar fálico à cidade. No Porto, os edifícios são real e virtualmente corpos de imagens que dão aos seus habitantes, os portuenses ou os homens portugueses "mais livres, mais progressivos, mais responsáveis e mais capazes" (M. Torga), razões ou ilusões de estabilidade e de segurança: as casas portuenses são seres verticais que se elevam e se diferenciam no sentido da sua verticalidade, fazendo apelo à nossa consciência de verticalidade, e são seres concentrados, levando-nos à consciência de centralidade. Segundo Miguel Torga, "os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos". O Porto é imaginariamente uma enorme cidade-abrigo, uma cidade-fortaleza, uma cidade-invicta. Contudo, esta cidade de sonho precisa de cuidados redobrados: conservar os seus valores de intimidade e de cosmicidade, abrindo-se ao futuro e à modernização e ampliando a sua rica confluência de estilos arquitectónicos, em harmonia com a natureza e no resguardo da quadratura (Heidegger).
Porém, as casas autênticas, na estrutura vertical das suas funções como moradas, são mais do que aquilo que está contido nas ideias espaciais geométricas. Assim, Bachelard estabelece uma distinção forte entre a casa como espaço vivido concreto e o conceito de espaço matemático abstracto: "A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico". Esta transcendência torna-se evidente na rivalidade dinâmica entre a casa e o universo, na espessura da qual "a casa remodela o homem", adquirindo qualidades e valores humanos. O ser abrigado vive a casa na sua realidade e na sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos diurnos. A casa não é vivida na sua positividade e no momento presente em que reconhecemos os seus benefícios. A casa tem um passado que vem viver, pelo sonho, numa nova casa: "A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas da nossa vida interpenetram-se e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de protecção".
Na nossa sociedade urbana tardia, o homem distancia-se velozmente do abrigo da sua casa: "Por que nos saciámos tão depressa da felicidade de habitar a morada?", eis a questão colocada por Bachelard. Poderíamos procurar uma resposta na dialéctica da casa e do universo ou mesmo na dialéctica do exterior e do interior: o homem "escolhe" um aspecto em detrimento do outro, quando ambos os aspectos são realmente complementares. Porém, Bachelard alude a algo mais profundo, na medida em que não se refere a um distanciamento temporal da casa para voltar novamente ao lar, exemplificado com os casos da viagem ou da ida para o emprego ou para o serviço militar, mas a uma insuficiência definitiva de todas as casas: "Alguma coisa mais do que a realidade faltou à realidade. Na casa não sonhámos o tempo suficiente". A casa perfeita sonhada não pode ser alcançada em nenhuma morada real: "Na minha casa real, sinto exaurida a minha liberdade de habitar: há sempre que deixar aberta a possibilidade de que exista outro lugar". Isto aponta para a conexão da casa e da distância, aquela nostalgia última que arrasta o homem sonhador para a distância. "Alojado em todas as partes, mas em nenhuma parte encerrado", eis como Bachelard formulou o "lema do sonhador do habitar". Isto significa que o homem só pode alcançar a sua última pátria com as criações da fantasia, desencadeada pela nostalgia e pelo sonhar "com aquilo que (na casa natal) deveria ter sido, com o que teria estabilizado para sempre os nossos devaneios íntimos". A nostalgia é vizinha da morte: o sonhador do lar aguarda a chegada da morte (Florbela Espanca) e a sua última morada terrestre (Guerra Junqueiro): o túmulo, o cadáver fechado num caixão e enterrado no interior da terra fria e húmida. A cidade dos vivos nasceu da cidade dos mortos e a ela regressa.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 8 de julho de 2008

Cálculo do Sentido e Política da Autenticidade

As forças políticas de Direita estão sempre já dotadas de uma política espontânea do sentido, aquela que é protagonizada pelas Igrejas, enquanto as forças políticas de Esquerda tendem a negligenciar terrivelmente o «cálculo do sentido», talvez porque tenham sido muito marcadas pela falsa noção de «colectivismo» que, para todos os efeitos, não é de Marx. Porém, num mundo sem metafísica, torna-se necessário elaborar uma política do sentido no âmbito do Estado Laico e da sociedade democrática e pluralista, sem violar os princípios da liberdade e da justiça. Nessa política do sentido, a Esquerda poderá descobrir tudo aquilo que a distingue da Direita. A Esquerda encarna sempre o princípio da mudança qualitativa, enquanto a Direita se limita a defender o princípio de conservação da ordem de sentido instituída, mesmo que desfasada das novas realidades sociais e culturais do mundo global.
A reflexão de Peter L. Berger, levada a cabo na sua obra «Pyramids of Sacrifice: Political Ethics and Social Change», bem como as obras de Alfred Schutz, H. Kellner, Thomas Luckmann, M. Heidegger, Charles Taylor ou Arnold Gehlen, parte deste pressuposto: «Os seres humanos têm direito a viver num mundo que tenha sentido para eles. O respeito deste direito é um imperativo moral para toda a política», seja ela de Direita ou de Esquerda.
Este pressuposto fenomenológico baseia-se na constituição do homem: todos os grupos humanos são fundamentalmente empresas de doação de sentido, isto é, dotam de sentido o universo, porque o sentido é o fenómeno central da vida social e nenhum aspecto desta pode ser compreendido sem uma investigação do problema do que significa para aqueles que participam nela.
A necessidade de sentido tem, ao mesmo tempo, dimensões cognitivas e normativas: toda a sociedade proporciona aos seus membros um mapa cognitivo da realidade e, simultaneamente, uma moralidade aplicável à mesma. O primeiro permite-nos saber onde estamos e o segundo orienta-nos no que deve ser feito nessa localização concreta. Ora, nenhuma sociedade pode manter-se unida se os seus membros não partilharem um sistema global de sentidos. Como demonstrou Durkheim, o direito ao sentido é a protecção da anomia, entendida como caos, ausência de ordem, portanto de sentido.
Ora, a modernização introduziu alterações significativas neste domínio do sentido: nas sociedades pré-modernas, o direito ao sentido implica o direito do indivíduo a orientar-se pela tradição; enquanto nas sociedades modernas, implica o direito do indivíduo a escolher os seus próprios sentidos. Isto significa que a modernização consiste, ao nível do sentido, em passar da aceitação do já dado (a tradição) à escolha. A modernização implica, portanto, a troca de uma existência determinada pelo destino por uma série longa de possibilidades de decisão, a chamada compulsão de escolha. As duas grandes instituições da sociedade moderna que promovem a passagem do destino para a compulsão da escolha são a economia de mercado e a democracia, ambas baseadas na escolha agregada de muitos indivíduos e estimuladoras da escolha constante.
Todo o mundo de sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio contra a anomia, um lugar seguro. A modernização coloca a grave ameaça da falta de lar, fazendo dos indivíduos seres apátridas e, num sentido mais profundo, sem-abrigo (Rilke). A globalização acentua ainda mais esses efeitos da modernização e pode mesmo desorientar os indivíduos, agravando ou dificultando a formação da identidade pessoal e de um mínimo de identidade na interpretação da realidade, o que prejudica necessariamente a estabilização do sentido.
Dado que nenhum processo social pode ser bem sucedido se não for dotado de um sentido que o ilumine de dentro e dado que os indivíduos correm o sério risco de se perderem num mercado de sentido plural e sempre mutável, torna-se necessário, hoje mais do que nunca, uma abordagem «humanista» (no sentido clássico ocidental das humanidades) da política de desenvolvimento. Caso contrário, se os políticos recusarem resolver este problema do sentido, serão confrontados com duas reacções: a atitude fundamentalista, que pretende reconquistar toda a sociedade para os valores e tradições antigos, e a atitude relativista, que desiste de afirmar quaisquer valores e reservas de sentido comum. Os fundamentalistas partem para a acção e os relativistas ficam no discurso.
Ora, o socialismo ou social-democracia deve defender as suas próprias políticas de sentido, olhando para a frente, portanto para o futuro, mas sem esquecer as promessas não realizadas do passado. Este último aspecto é fundamental para lidar com os fundamentalismos. Por isso, é necessário uma nova política da educação, que não sobrevalorizasse as ciências e as tecnologias em detrimento das humanidades. O reforço das humanidades é fundamental para o futuro da democracia e da civilização Ocidental, não das humanidades que se ensinam actualmente, de resto degradadas e reduzidas a uma interminável «conversa de café», mas das humanidades dotadas de programas profundos, criativos e abertos ao futuro e ensinadas por professores competentes, de resto a principal "causa" da actual degradação do seu ensino. Sem esta dimensão humanística, o plano tecnológico carece de alma: pode produzir muitas coisas, menos cidadãos saudáveis, participativos e capazes de lutar pelo aprofundamento de uma sociedade cada vez mais livre, responsável, solidária e justa. Embora possa ser uma peça fundamental num mundo plural, multi-étnico e multicultural, a tolerância defendida por John Locke não é o único princípio capaz de fomentar o respeito pelas diferenças. (Retomado daqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

Heidegger e Filosofia do Habitar

«Habitar é o traço essencial do ser de acordo com o qual os mortais são. Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já é um enorme ganho se habitar e construir se tornarem dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar». (Martin Heidegger)
O estudo da dinâmica fundamental da vida humana, do partir e do voltar, deve analisar duas regiões do espaço que estrutura: o mundo lá fora, em toda a sua vastidão, com os seus pontos e regiões cardinais, com os seus caminhos e as suas estradas, e o mundo no qual a vida permanece ligada a um centro, a um ponto de referência fixo, ao qual se vinculam todos os seus caminhos, os que partem e os que regressam. O homem precisa de um tal centro, através do qual possa permanecer objectivamente enraizado no espaço e ao qual são referidas todas as suas circunstâncias espaciais. Sem este último mundo do lar o homem não pode viver: a terra natal ou lar é o "lugar" onde o homem habita no seu "mundo", onde se encontra em casa e para o qual sempre regressa depois de ter partido. Isto significa que a casa se encontra no centro do mundo dos mortais.
Ernst Cassirer mostrou que o homem primitivo está fortemente enraizado nesse centro objectivo fixo do espaço e, por isso, o habitar não constitui um problema para ele, como se verifica pelos estudos de Marcel Mauss sobre as sociedades esquimó, de Bronislaw Malinowski sobre os nativos das Ilhas Trobriand ou de Evans-Pritchard sobre os Nuer. Porém, o mesmo já não pode ser dito em relação ao homem moderno. O capitalismo tardio e as suas práticas económicas globais neoliberais estão a destruir este centro objectivo, fomentando o desenraizamento e criando um "mundo sem lar" (Peter Berger): o mundo do sonho e do
sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio e um lugar seguro contra a anomia e a alienação. Não satisfeito com a destruição da natureza, o capitalismo tardio usa e explora o homem, roubando-lhe o lar e entregando-o ao abandono completo. O homem moderno está a transformar-se num apátrida sobre a Terra, porque já não está vinculado a qualquer lugar. Converte-se num eterno fugitivo de um mundo cada vez mais ameaçador e em risco.
Mas, onde começa o perigo que ameaça o homem moderno, deve nascer a sua missão política. Ou, como diz Heidegger, «o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar». Para viver sem angústia, o homem precisa encontrar um centro no seu espaço, visto que a sua essência está ligada à existência de um tal centro. Se já não o encontra como algo dado, devido à apropriação capitalista da terra, o homem tem de o criar, sacá-lo ao capitalismo ladrão, apropriar-se dele e defendê-lo contra todas as agressões e ameaças exteriores. Neste mundo sem lar, cuja economia capitalista lança o homem para a rua e o desespero, qual ser sem-abrigo, a missão decisiva do homem é criar este centro e lutar violentamente contra as forças económicas e políticas que o ameaçam. Esta missão exige um luta contínua contra os poderes instituídos e os seus cleptocratas, e a coragem para a cumprir: pensar, construir, edificar e habitar a sua casa. A posse externa de uma "habitação digna" não é suficiente para cumprir esta missão de sustentação e de sentido: o importante é a relação interna com a habitação, aquilo que Heidegger referiu quando disse que «os mortais devem primeiro aprender a habitar», e que Merleau-Ponty viu como a palavra-chave que reflecte plenamente a conexão do homem com o mundo. Para Merleau-Ponty, o homem habita no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo, assim como o sentido habita na palavra e no signo e o anímico expresso, na expressão. Em todos estes "casos", fundados originariamente no "habitar o ser", o habitar designa a intimidade singular da relação mediante a qual algo anímico ou espiritual está misturado e envolvido com algo espacial. Quando escreve que «a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las», Merleau-Ponty mais não faz do que acentuar a diferença existente entre a objectividade científica no seu confronto com o objecto e a intimidade do habitar.
Saint-Exupéry foi um dos primeiros pensadores a descobrir que «os homens habitam e que o sentido das coisas varia para eles em função do sentido das suas casas». Habitar não é mais uma actividade humana entre tantas outras actividades, mas constitui a característica essencial do homem que determina a sua relação com o mundo na sua totalidade: habitar é, pois, o modo como o homem vive na sua casa, e é no habitar que o homem pode alcançar a plenitude do seu verdadeiro ser. A concepção de Saint-Exupéry coincide com a de Heidegger: «Ser homem significa: ser como um mortal sobre esta terra. Significa: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. (...) (A actual crise habitacional reside no) facto de não se fazer mais a experiência de que habitar constitui o ser do homem e de não se pensar mais que habitar é, em sentido pleno, o traço fundamental do ser-homem. (...) Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os homens, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo das quatro faces da quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura no seu vigor de essência».
Ao contrário do existencialismo que encarava o mortal como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência total do homem é determinada a partir do habitar. O homem habita a sua casa antes de habitar o mundo. Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes", os "espaços louvados", como "espaços de posse", porque são espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" de uma economia capitalista que mata o planeta azul. Se não quiser continuar a ser um estranho lançado na terra, o homem deve aprender a habitar poeticamente esta terra, porque, como diz Heidegger, «a poesia é a capacidade fundamental do modo humano de habitar». (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 5 de julho de 2008

Sartre e Dialéctica da Sociedade

«Toda a aventura humana, pelo menos até aqui, é uma luta obstinada contra a escassez.» (Jean-Paul Sartre)
Infelizmente, não posso expor neste post toda a filosofia de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e mostrá-la em toda a sua riqueza conceptual, sobretudo quando Sartre, como sucede na Crítica da Razão Dialéctica (1960), tenta a "fusão" entre o marxismo e o existencialismo, de resto já bem visível no seu ensaio introdutório Questões de Método, publicado originalmente numa revista polaca em 1957. Por isso, vamos restringir o nosso tema a uma breve análise da sua teoria dialéctica da origem da sociedade.
Para explicar o antagonismo mútuo, um conceito presente desde "O Ser e o Nada", Sartre introduz o "princípio da escassez", originalmente elaborado por Locke mas sobretudo por David Hume e retomado por Malthus: «tal substância ou tal produto manufacturado existe, em determinado campo social, em número insuficiente, levando em consideração o número dos membros dos grupos ou dos habitantes da região: não existe o suficiente para todos» (Sartre).
Toda a história humana é uma história da escassez e da luta obstinada contra a escassez. O mundo não dispõe do suficiente para distribuir por todos os homens. A escassez tanto une como divide os homens. Une-os, porque somente unindo os seus esforços podem os homens lutar com êxito contra a escassez. Divide-os, porque cada homem sabe que o obstáculo à abundância individual reside na existência dos outros. Segundo Sartre, a escassez é o «motor passivo da história». Como os homens não podem eliminar completamente a escassez, são «forçados» a colaborar uns com os outros para minimizar os seus efeitos.
Contudo, esta colaboração é paradoxal. Cada homem sabe que a escassez se deve exclusivamente à existência dos outros. Isto significa que os homens são rivais uns dos outros e, sempre que colaboram ou trabalham juntos para minimizar a escassez, estão a alimentar os seus rivais. A escassez molda não somente a nossa atitude em relação ao mundo natural, mas também a nossa atitude em relação aos vizinhos: os outros homens. A escassez faz dos homens rivais, obrigando-os ao mesmo tempo a colaborar uns com os outros. Sozinho o homem é impotente: a luta contra a escassez só pode ser travada com a divisão do trabalho e outros empreendimentos colectivos.
A natureza é "inerte" e indiferente ao bem-estar humano. O mundo que habitamos é composto pelo mundo da natureza e pelo mundo construído pelos nossos antepassados no decorrer da sua longa história de luta contra a escassez. Sartre chama-lhe o "prático-inerte": campo que compreende o mundo da praxis, na medida em que é o resultado do trabalho e dos projectos dos seus habitantes passados e presentes, e o mundo natural que foi transformado mediante o seu trabalho sobre a materialidade passiva ou inerte. Ora, neste universo hostil definido pela escassez, o homem torna-se o inimigo do homem ou, como diz Sartre, converte-se em "anti-homem".
Esta é a explicação económica que Sartre dá dos antagonismos ou conflitos entre os homens. Considerado dialecticamente, o antagonismo é a reciprocidade negativa, negada na e pela colaboração dos homens imposta pela necessidade de superar a escassez. A partir daqui Sartre elabora a sua teoria dialéctica da origem da sociedade.
Sartre distingue duas formas significativamente diferentes de estrutura social: as séries e os grupos. Uma "série" é um ajuntamento de pessoas unidas somente pela proximidade exterior e, por isso, não existe como um todo «dentro» de nenhum dos seus membros. Sartre ilustra a série com a fila de pessoas numa paragem de autocarro: todas as pessoas que observamos numa fila têm a mesma finalidade, embora não partilhem um objectivo comum ou colectivo. Devido à escassez de lugares no autocarro, cada elemento da fila é um rival dos demais membros e vice-versa: os outros também desejariam que ele não estivesse ao lado. Por isso, como cada um é "um a mais", todos acordam entrar ordenadamente na fila, formando assim uma série para evitar uma luta pelo acesso de entrada no autocarro. Esta série ordenada é uma relação recíproca negativa que constitui a negação do antagonismo, portanto, a negação de si mesma!
Além das séries que são «pluralidades de solidões», existe outro tipo de reuniões na sociedade, a que Sartre chama "grupo". Um grupo é um conjunto de pessoas que, ao contrário daquelas que formam uma série, têm um objectivo ou uma finalidade comuns. Sartre dá como exemplo uma equipa de Futebol. O que distingue o grupo da série é o facto de cada membro ter-se comprometido (ou ter jurado) a agir como um membro desse grupo. O grupo é reunido e constituído pelo juramento (le serment): cada membro converteu a sua própria praxis individual numa praxis comum ou social. Isto significa que a origem do grupo se deve ao facto de termos de trabalhar juntos ou morrer a lutar uns contra os outros. Ao contrário da série, o grupo não é impotente e, por isso, pode realizar e fazer coisas.
A força motriz continua a ser a escassez, porque é ela que obriga os homens a trabalhar juntos, tendo em vista um fim comum. Sartre introduz três noções que ajudam a compreender a origem das sociedades humanas a partir da escassez: o "juramento", a "violência" e o "Terror". Com efeito, o grupo começa a existir quando cada indivíduo assume o compromisso de se tornar um membro do grupo e de não o trair ou desertar dele. A sociedade como grupo é, portanto, um conjunto ajuramentado. Mas, para que o juramento seja cumprido e os membros do grupo tenham a certeza de que será cumprido, são necessárias a violência e o Terror, porque, segundo Sartre, é o medo que impele os homens a formar grupos e que os mantém unidos nos seus grupos.
Ora, o medo que os vincula ao grupo é o Terror. O juramento em si é, como diz Sartre, um pedido de violência a ser usada contra alguém que não cumpra a sua palavra, e a existência do Terror é uma garantia de que essa violência será usada contra qualquer membro que não cumpra a sua palavra. Os grupos correm o risco de se dissolverem em séries e cada indivíduo está consciente da ameaça de dispersão em si próprio e nos outros. O terror é, segundo Sartre, «a garantia estatutária, livremente assumida (jurada), de que ninguém recairá na série». Ou, por outras palavras, o Terror é a "solicitude mortal", graças à qual um homem se torna um ser social, criado por si próprio e pelos outros. O Terror é, portanto, a violência que nega a violência e, com tal, é a "fraternidade", porque é a garantia de que o meu vizinho permanecerá o meu irmão. O Terror vincula-o a mim pela ameaça da violência que poderá ser utilizada caso ouse tornar-se "não-fraterno".
Sartre analisa o Estado como um grupo que «se reconstitui incessantemente e que modifica a sua composição por uma renovação (descontínua ou contínua) dos seus membros». O "grupo em fusão" cria lideres e, mais tarde, perpetua-se fundando instituições. Esta é a base da soberania. A autoridade está ligada ao Terror, porque o soberano é o homem autorizado a exercer o Terror. Enquanto numa sociedade serial o homem obedece porque tem de obedecer, num Estado o homem obedece a si próprio, porque foi ele que, pelo seu compromisso juramentado, se incorporou ao grupo e autorizou o soberano a comandar. Cada homem desse grupo não fez o juramento pessoalmente, mas por "procuração": um compromisso não deixa de ser um compromisso. O Terror não é somente fraternidade, mas também é liberdade. O homem incorporou livremente o seu projecto individual no projecto comum quando se comprometeu ou foi comprometido por procuração com o Estado. Assim, quando o soberano comanda em nome do Estado está a devolver-lhe a sua liberdade. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa