quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Guerra Junqueiro e a Filosofia

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo a Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas...
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,
Para toda a nudez um pano do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pai!... [...]
A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
Mas da sua piedade o fulgor diamantino
Ficou sempre abençoando a minha vida inteira,
Como junto dum leão um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo d’oliveira!
Guerra Junqueiro[1]


À memória da minha mãe cuja admiração pela poesia lírica de Guerra Junqueiro me levou, na hora da «saudade imensa», a pensar, ou melhor, a repensar a «filosofia» deste magnífico autor transmontano, de modo a libertá-lo dessa prisão do esquecimento a que se chama «História da Literatura portuguesa».
As relações entre poesia e filosofia sempre foram problemáticas, pelo menos desde que Platão acusou a poesia de corromper a alma, cujo elemento essencial era, é e será possivelmente para sempre o conceito
[2]: «O conceito é o organon do pensamento e, ao mesmo tempo, o muro que o separa daquilo que pensa; por isso, nega essa aspiração [de reconciliação]. A filosofia não pode nem evadir tal negação nem dobrar-se perante ela. Só a filosofia pode e deve empreender o esforço de superar o conceito por meio do conceito»[3]. No entanto, com Herder e o Romantismo alemão, começou a reinar entre a filosofia e a poesia uma proximidade enigmática que, no momento presente de ofuscamento pós-moderno, se transformou na tentativa de anular a filosofia num género literário semelhante à crítica literária. De acordo com Richard Rorty, «filósofos pós-nietzschianos, tais como Wittgenstein e Heidegger, escreveram filosofia para mostrar a universalidade e a necessidade do individual e do contingente. Ambos […] acabaram por se envolver na querela entre a filosofia e a poesia que Platão iniciou e ambos acabaram tentando desenvolver condições honrosas para permitir à filosofia capitular perante a poesia». Antes deles, o jovem Hegel já tinha ajudado «a tornar a filosofia não cognitiva e não metafísica. Ajudou a torná-la um género literário»[4].

Guerra Junqueiro toma uma posição deveras sui generis em relação à querela entre filosofia e poesia iniciada por Platão: aquilo que é comum a ambas é, sem dúvida, a linguagem, mas a linguagem que as mantém na proximidade da santidade. O texto que nos servirá de guia nesta tarefa hermenêutica intitula-se Os Grandes Homens: o Herói, o Artista, o Filósofo (1913). O título geral promete uma teoria dos grandes homens, enquanto o subtítulo esquematiza desde logo uma tipologia de três tipos fundamentais de grandes homens, ordenada hierarquicamente: primeiro o herói, segundo o artista (onde se inclui evidentemente o poeta) e, por último, o filósofo. Embora o inclua na categoria dos Grandes Homens, Guerra Junqueiro parece, pelo menos aparentemente, não simpatizar muito com os filósofos — sobretudo com alguns filósofos alemães[5] —, na medida em que os coloca «em último lugar». A nossa interpretação da posição de Guerra Junqueiro gira em torno deste conceito — «em último lugar».

Tudo parece indicar tratar-se de uma relação entre tipos ou classes de grandes homens e assim é efectivamente, mas na base de uma tal relação está subrepticiamente uma outra relação entre Acção, Arte e Teoria. E, no fundamento disso tudo, está, como veremos, Deus. A perspectiva de Guerra Junqueiro é essencialmente religiosa: a religião religa/relê o que aparece ou parece afastado. A religião é evidentemente o Cristianismo Integral, tal como o concebe o Poeta Filósofo[6].
1. A TEORIA DOS GRANDES HOMENS. Antes de tudo, devemos colocar a seguinte pergunta: O que entende Guerra Junqueiro por grandes homens? A pertinência desta pergunta justifica-se pelo facto de haver uma ideologia política por detrás da expressão «grandes homens», retomada pelo romantismo e elaborada sistematicamente por Thomas Carlyle e por Gobineau
[7], de resto muito favorável a um modo de pensar, de sentir e de agir identitário, para não dizer totalitário. Provavelmente sob a influência da concepção de história de Oliveira Martins[8], o Poeta começa por dizer: «Os grandes homens sobre-humanizam o homem»[9]. Que quer isto dizer: «Os grandes homens sobre-humanizam o homem»? Quer dizer que existem dois tipos de homens: os grandes homens e os simplesmente homens que, destituídos de «humanidade», precisam recebê-la dos grandes homens! O restante da frase parece indicar nesse sentido, atribuindo qualidades aos grandes homens das quais os simplesmente homens parecem estar afastados: «Os grandes homens sobre-humanizam o homem, exaltam a existência, criam espírito, desvendam mistério, tocam no âmago do Ser»[10].

Estas qualidades dos grandes homens parecem ser divinas ou, pelo menos, sobre-humanas, como se os grandes homens estivessem mais próximos de Deus que dos simplesmente homens e dos seus assuntos intramundanos. Como se a sua «sobre-humanidade» fosse algo essencialmente próximo de Deus. O Poeta não nega esta via, já que afirma: «Augustos e luminosos, caminham à frente da evolução, na marcha do mundo para Deus»[11].

Para Guerra Junqueiro, o mundo é um processo evolutivo, cujo telos é Deus. Dada a sua proximidade essencial a Deus, os grandes homens são, no fundo, mediadores de Deus que conduzem os simplesmente homens até Ele. Os grandes homens são «lideres» religiosos que conduzem o seu rebanho a Deus. Mas, afinal, pergunta o Poeta: «Quem é Deus?» E responde: «Ideal perfeito realizado, vida infinita, infinito amor»[12]. A resposta não é suficientemente clara: Deus é definido como sendo tudo aquilo que o homem deseja ser realizado plenamente num Outro Ser — Deus. Se Deus é o ideal perfeito que o homem deseja ser, então Deus é tudo aquilo que o homem — mero ser mortal e carente — ainda não é, mas que poderá vir a ser: amor infinito e eterno. Os grandes homens, enquanto lideres religiosos, procuram conduzir o seu rebanho à vida eterna e ao amor pleno. Nesta missão, como diz o Poeta:

«Os grandes homens avançam para Deus, não isolando-se e afastando os olhos das misérias da Terra, mas levando piedosamente no coração todos os gemidos da humanidade e todas as angústias da natureza. Os seus passos de luz, sulcando a noite, conduzem como um rebanho, na viagem eterna, a caravana infinda. Os grandes homens são descobridores e redentores. Quando sobem, ajudam, progridem, dando a mão, libertam-se, libertando»[13].

Como mediadores entre o Céu e a Terra, os grandes homens estão próximos tanto de Deus como dos simplesmente homens e da própria natureza. Esta dupla proximidade reflecte a sua essência dual: homens da Terra voltados para o Céu. A Terra está mergulhada na noite — nas suas misérias, nos gemidos da humanidade, enfim nas angústias da natureza. Enquanto seres-na-Terra, os grandes homens estão unidos solidariamente entre si na sua missão — a redenção da humanidade e da natureza, pois os seus olhos captam todas as misérias e os seus corações guardam todo o sofrimento. A sua presença na Terra mergulhada na noite, mais precisamente no crime, é percebida como um sinal de luz, que ilumina a face oculta de Deus, indicando assim o caminho que os simplesmente homens têm de seguir se quiserem libertar-se da noite mediante a solidariedade e a justiça. Enquanto seres-próximos-de-Deus, os grandes homens são solidários com os simplesmente homens, nos seus gemidos de dor, e com a natureza, nas suas angústias resultantes dos maus tratos que lhe infligem os homens. Com obras de luz sulcam a noite para iluminar o caminho que o rebanho deverá seguir na sua viagem que o conduz finalmente à Luz Plena. Esta viagem da Noite para a Luz, da Terra para o Céu, é uma viagem de libertação da dor e do sofrimento e de conquista plena do amor infinito de Deus. De certo modo, na sua passagem pela Terra, os grandes homens são a presença viva da «ausência»: a luz que irradia das suas obras e das suas almas é uma imagem fugaz mas firme da Luz que prometem para toda a eternidade.

Mas, afinal, a quem Guerra Junqueiro chama grandes homens? «Eu chamo grandes homens aos grandes heróis, aos grandes artistas, aos grandes filósofos»[14]. Isto quer dizer literalmente que os heróis, os artistas e os filósofos são grandes homens se e somente se forem, antes de tudo, grandes heróis, grandes artistas e grandes filósofos. Se até aqui a essência dos grandes homens parecia coincidir com a sua sobre-humanidade, simultaneamente próxima de Deus, dos simplesmente homens e da natureza, capaz de salvar toda a humanidade e toda a natureza, agora o Poeta parece dizer — e di-lo efectivamente — que os grandes homens não são grandes por serem homens, mas são grandes por serem grandes heróis, grandes artistas e grandes filósofos. A sobre-humanidade dos grandes homens não reside numa abstracta «grandeza humana». A grandeza dos grandes homens desloca-se da suposta sobre-humanidade da sua «natureza humana» para se instalar essencialmente na sobre-humanidade das suas obras. Afinal, o que é um grande herói? Aquele que realiza grandes acções. E um grande artista? Aquele que cria grandes obras-de-arte. E, finalmente, um grande filósofo? Aquele que desenvolve grandes pensamentos. É, portanto, a grandeza da obra que faz do seu autor um grande homem. O autor não é grande por ser homem, mas pela sua obra. Com efeito, existem pseudo-heróis, pseudo-artistas e pseudo-filósofos que não são grandes homens porque as suas obras não partilham da grandeza das grandes obras. A essência dos grandes homens situa-se fora de si mesmos, nas suas obras, cuja grandeza intrínseca é avaliada em função da «revelação de Deus». A grande obra é sempre e, por definição, revelação de Deus e o homem só é grande quando, na sua obra, revela algum ou todos os «aspectos magníficos» de Deus. A obra é, pois, símbolo de Deus.

Seguidamente, iremos debruçar-nos sobre as grandes obras produzidas por cada uma dessas três classes de grandes homens. Diremos, desde já e muito sumariamente, que o herói pratica o Bem em acções e o santo reza, o artista cria Beleza e o filósofo pensa conceptualmente a Verdade do mundo. Bem, Beleza e Verdade: eis as três qualidades manifestadas respectivamente nas obras do herói, do artista e do filósofo. Cada uma delas revela uma face de Deus e todas juntas revelam a totalidade de Deus — como Ser Bom, Belo e Verdadeiro. Os grandes homens são aqueles que colaboram solidariamente entre si e com os outros homens para revelar Deus na sua plenitude inteiramente e infinitamente Outra.
1.1. O HERÓI. Quem é especificamente o herói? Diz Guerra Junqueiro: «O sacrifício ao Bem, na acção e pela acção, eis a norma do herói»
[15]. A norma do herói é o sacrifício ao Bem realizado na e pela acção. Trata-se aqui de um duplo sacrifício: o sacrifício da alma e o sacrifício do corpo, como esclarece logo a seguir Guerra Junqueiro: «Sacrifício da alma, recolhendo com ardor contínuo as dores alheias, e sacrifício do corpo, imolando-lhes, para as consolar, a própria vida»[16]. O herói sacrifica a sua alma ao recolher em si as dores alheias — daqueles que sofrem, e sacrifica o seu corpo dando a sua própria vida para as consolar. Ele pratica este duplo sacrifício, porque, como diz Guerra Junqueiro: «Os soluços sem termo da miséria do mundo ecoam-lhe no coração como ais de filhos»[17].

A humanidade inteira forma uma imensa família[18], da qual os heróis são como que uma espécie de pais que devem zelar pelo Bem dos seus próximos, dos seus filhos espirituais, nem que para isso tenham de sacrificar a sua alma e o seu corpo. É, por isso, que o herói: «Dá a vida pela vida dos outros...»[19] Mas, neste acto de dar a sua própria vida para salvar a vida dos outros, o herói ganha a vida verdadeira — a vida espiritual. Guerra Junqueiro continua: «...mas a morte da carne em holocausto ao Bem acresce-lhe a vida verdadeira, aumenta-lhe a vida espiritual»[20]. Dar a própria vida pela vida do outro é morrer ao serviço do Bem. A morte da carne acrescenta, como diria Gadamer num outro contexto, uma valência ontológica[21] à vida do herói mártir. Morrer, em vez do outro, é conquistar a vida espiritual. Ao sacrificar a sua carne, o herói salva a vida do outro e, ao mesmo tempo, conquista um acréscimo ontológico de vida espiritual.

Se, como diz Guerra Junqueiro: «O grau de amor é o grau de heroísmo. [Então] O herói máximo é o santo, e S. Francisco de Assis é o super-homem»[22]. Dar a vida pelos outros é um acto extremo de altruísmo, de amor; nesse acto de amor pelo próximo, o herói sacrifica voluntariamente a sua vida para conquistar a vida espiritual através da salvação dos outros. Morrer no lugar dos outros (ou pelos outros) é um acto de máximo amor, por meio do qual o herói se afirma como santo. O Santo é aquele homem que morre na vez do outro e, nesse acto de máximo heroísmo, afirma a sua santidade doada ao Bem dos outros. É, por isso, que S. Francisco de Assis é o super-homem, não no sentido nietzschiano do termo, mas no sentido de estar pronto a dar a sua vida quando a vida do outro corre perigo de morte. A essência da santidade reside na entrega completa e incondicional ao Outro.

Ao grande herói, cuja figura máxima é o santo, corresponde uma determinada obra: a acção mediante a qual se procura o Bem do outro, mesmo que para alcançar essa finalidade seja necessário sacrificar a sua própria vida. Contudo, este sacrifício nunca é em vão: além de salvar a vida do outro, a morte do herói possibilita o acesso à vida espiritual. O homem que pratica o Bem é sempre recompensado pelas suas acções altruístas, quer por ter poupado uma vida, quer por ter conquistado uma vida verdadeira acrescida e enriquecida ontologicamente.
1.2. O ARTISTA. Quem é o grande artista? Guerra Junqueiro começa por estabelecer uma diferença entre o herói e o artista. Entre eles há uma diferença de grau hierárquico. Como diz o Poeta: «O grande artista não iguala o santo, mas aproxima-se dele»
[23]. O grande artista não iguala o santo: Isto significa que se encontram a níveis diferentes em relação a algo de que o santo está mais próximo. Trata-se evidentemente de Deus no seu amor pleno. O artista aproxima-se do santo, na medida em que: «O artista, criando Beleza, cria amor, porque a beleza é a expressão rítmica do Bem, é o amor a cantar, na forma e no som, no verbo e na luz»[24].

As obras criadas pelo artista são belas, na medida em que são a expressão do Bem. Neste ponto, Guerra Junqueiro, apesar de ser um poeta, parece rejeitar a concepção da autonomia da obra-de-arte. A estética da Beleza perfilhada pelo Poeta não é autónoma em relação à Moral. Se a Beleza é expressão do Bem, a obra-de-arte não pode ser avaliada em função de critérios intrínsecos, mas em função de critérios extrínsecos que a transcendem na sua pura imanência. A arte é essencialmente «o amor a cantar, na forma e no som, no verbo e na luz». Como escreve Guerra Junqueiro: «A arte idealiza; portanto gera amor. O herói também»[25]. Embora a arte gere amor, o amor por ela gerado não é igualável ao amor gerado pelo herói, porque o amor gerado pelo herói, além de ser mais espiritual, se traduz directamente em acções que visam o Bem dos outros. «Mas o herói dá-nos o amor em acções, converte-o em pão espiritual, que vai dividindo pela Terra»[26].

O amor do herói manifesta-se imediatamente em acções altruístas que visam dividir «o pão espiritual pela Terra» inteira, de modo a que todos os homens possam alimentar a sua alma com o amor que lhes é oferecido pelo herói. A sua única recompensa é o Bem da humanidade que, sob a sua condução espiritual, caminha rumo a uma vida espiritual, a única verdadeira. Guerra Junqueiro continua: «O artista faz dele [do amor] um diamante quimérico de luz e de som, que é o amor a vibrar, amor em sinfonia, amor no estado de beleza»[27].

Guerra Junqueiro refere-se aqui às diversas manifestações artísticas da Beleza; mas, de todas elas, prefere a música, de resto a arte mais sublime de acordo com Schopenhauer[28]:

«Mas, se o universo é amor infinito, a arte suprema, que o abrange, é a arte cósmica e religiosa. E então a arte ideal define-se deste modo: a natureza traduzida em cântico, Deus, que se ouve e que se vê, revelado em música»[29].

Ao definir a natureza e Deus a partir de um só atributo — o amor infinito, Guerra Junqueiro professa alguma forma de panteísmo: Deus e a Natureza são a «única realidade» verdadeira — o amor infinito. Do panteísmo junqueiriano resulta a concepção da arte suprema como arte cósmica e religiosa, ou simplesmente como arte teo-cósmica. A arte ideal enquanto amor realizado na unidade primordial — Deus-Cosmos, é a revelação dessa unidade infinita na música. «A música e a metafísica, na acepção radical deste último termo, a música e o sentimento religioso foram virtualmente inseparáveis. É na e através da música que acedemos mais imediatamente à presença dessa energia do ser, lógica e verbalmente inexprimível, mas plenamente sensível, que comunica aos nossos sentidos e ao nosso pensamento o pouco que somos capazes de apreender da maravilha nua da vida. A música, segundo creio, é o que nomeia aquilo que nomeia a vida. Trata-se, para além de qualquer concretização litúrgica ou teológica, de um movimento sacramental. Ou, como diz Leibniz: «a música é uma aritmética secreta da alma que conta sem o saber»»[30]. Muito antes de G. Steiner escrever estas palavras, Guerra Junqueiro já pensava a música como Presença Real de Deus e a estética como «um dar forma a uma epifania»[31].

«Mergulhemos em Deus, amando a Terra, adoremos Deus, exaltando a vida. Olhemos a vida como beleza real, transfigurando-a e sublimando-a em beleza ideal e criadora. A Arte é o culto mágico de Deus. A revelação é Poesia, a teologia é Estética»[32].
1.3. O FILÓSOFO. O conceito de Filosofia apresentado pelo Poeta parece, à primeira vista, desconcertante, como se o Poeta não respeitasse a status teórico da filosofia no quadro do saber, sobretudo aquilo que especificamente a demarca das outras disciplinas: «A filosofia é a sociologia do Universo, a história ordenada dos encadeamentos da existência, da evolução do amor»
[33].

Como compreender este conceito de Filosofia? Aqui, a Filosofia é definida ora como «a sociologia do Universo», ora como «a história da evolução do amor». Neste texto, o Poeta não nos dá mais nenhuma indicação que nos possibilite apreender o sentido de cada uma das expressões usadas. Indica-nos, isso sim, que os filósofos conhecem menos a vida que os santos e os poetas, porque estão mais afastados de Deus:

«E, como a vida da natureza só chega à síntese na ideia de Deus, é claro que o santo ou o grande poeta conhecem melhor a vida do que o filósofo, pois que eles mesmos são a vida espontânea e criadora, na escala mais alta e no estado nascente»[34].

Se, n’A República de Platão, os filósofos constituíam a casta eleita para governar a Cidade Ideal, precisamente por conhecerem melhor que ninguém o Bem — universal[35], na escala dos grandes homens de Guerra Junqueiro eles estão situados na base, isto é, «no último lugar». A justificação deste «último lugar» atribuído aos grandes filósofos relembra-nos, inversamente, a crítica que Nietzsche tinha dirigido à filosofia platónica e, muito particularmente, ao cristianismo: ambos eram acusados de desconhecer a vida, hipertrofiando as ideias que, no fundo, nada mais são que os ideais de que se servem os escravos para dominar os homens mais nobres[36].

«A vida da natureza só chega à síntese na ideia de Deus»: Desta ideia semi-obscura infere o Poeta que o santo e o grande poeta conhecem a vida melhor que o filósofo, precisamente porque são eles que criam espontaneamente a vida que o filósofo, mais tarde, irá tentar captar conceptualmente. Contudo, a vida espontânea é multiplicidade, enquanto a filosofia tenta subsumir essa espontaneidade multíplice criada pelos santos e pelos artistas à unidade do conceito, cujo protótipo é a própria ideia de Deus. Daqui parece resultar uma outra concepção das relações do filósofo com Deus: embora o filósofo não crie directamente através da sua acção, trabalho ou luta, a realidade, é ele, no entanto, que lhe decifra a unidade que, de resto, é, em última análise, a unidade de Deus. O sentido do afastamento explicita-se assim como uma proximidade essencial. Guerra Junqueiro continua:

«A vida vertiginosa, tumultuosa, entrelaçada, contínua, patética, infinitiforme — correspondente à vida quotidiana? —, a vida latejante de seiva, incubada de sonho, fulva de luz, cega de espantos, ébria de beijos, trémula de morte e grávida de amor — correspondente à vida espiritual? —, a vida eterna, divina e formidável — correspondente à vida eterna? —, que nasce da vontade e da emoção...[37]», enfim a vida na multiplicidade das suas manifestações «... aparece na obra do filósofo descrita por cálculos[38], ordenada por argumentos e por ideias»[39].

Guerra Junqueiro perfilha o conceito hegeliano de Filosofia, no sentido explicitado por Hegel:

«Para dizermos mais alguma coisa sobre a pretensão de ensinar como deve ser o mundo, acrescentaremos que a filosofia chega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efectuou e completou o processo da sua formação. O que o conceito ensina, mostra-o a História com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real, e depois de ter apreendido o mundo na sua substância, reconstrói-o na forma de um império de ideias. Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para a rejuvenescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite começam a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva»[40].

Os heróis e os artistas têm acesso directo à vida nas suas diversas manifestações, porque são eles que a criam — «na escala mais alta e no estado nascente»: os heróis, mais precisamente os santos, criam-na através da sua acção dirigida ao Bem, e os artistas, mais precisamente os poetas, criam-na através de obras artísticas que revelam a Beleza de Deus. Qualquer uma dessas criações espontâneas de vida são realizadas directa, imediata e participativamente pelos seus autores. O santo e o poeta não saem da vida para a conhecer: eles «conhecem» a vida na medida em que a criam. O filósofo, pelo contrário, precisa distanciar-se da vida para a poder olhar do «exterior» e à distância. Na obra do filósofo, ou seja, no pensamento do mundo, a vida é descrita e ordenada por ideias. Neste contexto, o Poeta não se inibe em identificar ou, pelo menos, equiparar a filosofia e a ciência: ambas tomam uma atitude objectivadora diante da vida, em vez de tomarem a atitude participativa e criadora da santo e do poeta.

A cada uma dessas classes de grandes homens corresponde, pelo menos, uma virtude essencial:

«A virtude do santo sublima-se no êxtase e na bênção, e a inspiração do poeta magnifica-a na música e no símbolo. Um reza, outro canta. O filósofo observa e medita. É um espelho que pensa»[41].

O santo reza, o poeta canta e o filósofo observa e medita. Embora fosse um homem empenhado nos assuntos públicos do seu tempo, Guerra Junqueiro não consegue abandonar uma certa concepção mística e contemplativa da vida: os grandes homens são fundamentalmente místicos que, mediante a contemplação, procuram a comunhão com Deus. O desinteresse mostrado pelo Poeta em relação à «vida activa», no sentido de Hannah Arendt[42], revela o sentido profundo do seu misticismo: a sua visão mística do mundo não só reduz a filosofia à «religião» — entenda-se à teologia, como também, ao identificar o cântico e a música, eleva a música acima das outras artes: «E a filosofia integral, como a arte suprema, será também religiosa, porque só em Deus, Infinito Amor, a vida encontra a sua unidade e a clara explicação do seu mistério»[43]. A grandeza dos grandes homens reside na grandeza das suas obras e a grandeza destas últimas depende da sua capacidade para revelar Deus no seu infinito amor. Daí que os grandes homens sejam necessariamente homens religiosos: «Todas as grandes almas, bússolas radiantes, se polarizam em Deus»[44].
1.4. O POLÍTICO. No texto O Monstro Alemão: Átila e Joana D’Arc (1918), Guerra Junqueiro introduz um quarto tipo de grande homem: o homem político, cujo «génio político […] paira mais baixo»
[45]. Na escala dos grandes homens, o filósofo já não se encontra «no último lugar». Quem ocupa agora esse lugar é o homem político cujo génio é caracterizado por Guerra Junqueiro nestes termos:

«Há-de amoldar-se, para se afirmar, ao corpo da nação. Não se amoldando, não se realiza. Os enxertos não prendem sem afinidade. Um belo ideal político é uma quimera, se as energias nacionais o não aceitam. Só os grandes povos têm estadistas grandes. O estadista de génio exalta e conjuga sinteticamente, equilibradamente, hierarquicamente, todas as forças vivas da nação, forças de riqueza e forças espirituais, e eleva a Pátria, pela vontade comum, ao grau mais alto de harmonia e de amor que lhe é possível atingir. E é quando a alma de uma pátria aspira ardentemente, e em vão, a um ideal soberano, que o génio do homem de Estado se revela com o seu poder maravilhoso. Tipo político perfeito — Cavour», que unificou a Itália num poema épico de amor, honrando não só a Itália mas também todo o género humano. Daí a sua dimensão universalista[46].

Embora a introdução do homem político no «último lugar» da escala junqueiriana dos grandes homens nos facilitasse a leitura que fazemos do seu pensamento filosófico, não iremos, contudo, recorrer a esse expediente hermenêutico para justificar a primazia da filosofia, já que o homem político mais não é que um sub-tipo de herói: aquele que luta pela justiça e, em última análise, pela unidade do género humano, à escala do Mundo[47].
2. GUERRA JUNQUEIRO E A FILOSOFIA. No texto Antero de Quental: O drama da sua vida (1894), Guerra Junqueiro afirma que o filósofo é:

«O espírito abstracto e metafísico, vivendo não a vida efémera e relativa das aparências e dos fenómenos, mas a vida invisível e íntima do Universo, interrogando não o como, mas o porquê da existência, libertando-se, ávido de infinito, no Tempo e no Espaço, a contemplar até à morte o enigma eterno»[48].

Trata-se de um texto filosófico denso, que, numa única frase, apresenta muitos enunciados que exigem escrúpulo hermenêutico.

Primeiro: O filósofo é o homem de espírito abstracto e metafísico que, vivendo «a vida íntima e invisível do Universo», interrogando «o porquê da existência», sustem-se, «ávido de infinito, no Tempo e no Espaço, a contemplar até à morte o enigma eterno». Isto quer dizer que o filósofo vive fora de si mesmo, com os olhos da alma cravados em Deus.

Segundo: Ser filósofo é pensar conceptualmente e pensar é «contemplar até à morte o enigma eterno». A filosofia é, por natureza, teoria, isto é, contemplação[49], mas teoria abstracta, porque se serve de conceitos para «sondar» o «enigma eterno». A filosofia é a tentativa de conceptualizar o Universo, não o universo da aparência, mas o universo da essência. A filosofia é metafísica, no sentido em que procura captar por conceitos a essência do mundo que se oculta por detrás daquilo que aparece — o mundo fenoménico, e, enquanto tal, é essencialmente teologia. Ao contrário da ciência, a filosofia não explica o mundo, descortinando o seu mecanismo de funcionamento, mas procura fundamentalmente compreender o sentido da existência. Movida pela «avidez de infinito», a filosofia interpreta todos os sinais a fim de «antecipar» o sentido teológico da evolução do mundo[50].

Terceiro: A herança platónica pesa sobre os ombros de Guerra Junqueiro. O dualismo ontológico de Platão reaparece, embora numa forma mais espiritualista, na distinção que o Poeta faz entre «a vida efémera e relativa das aparências e dos fenómenos» e «a vida invisível e íntima do universo». O filósofo, como qualquer outro homem, sustem-se na facticidade do mundo fenoménico. O homem como tal é um ser finito e mortal que «anseia» pelo infinito e eterno. O infinito, por excelência, é Deus. O homem, ao interrogar-se pelo sentido da existência, procura o «inteiramente outro». Ao procurarem revelar nas suas obras as qualidades essenciais de Deus, os grandes homens sobre-humanizam-se e, neste acto, distinguem-se daqueles a que chamámos os simplesmente homens[51]. Diz o Poeta:

«Nas almas medíocres e superficiais actua sobretudo a realidade transitória das linhas e dos sons, das formas e das cores. As naturezas elevadas, ao contrário, são sempre subjectivas e metafísicas»[52].

Dois tipos de homens, dois tipos de mundo: o dualismo ontológico implica e fundamenta um dualismo antropológico:

· As «almas medíocres e superficiais» são os simplesmente homens que, tal como os animais, se satisfazem com o mundo transitório das aparências e dos fenómenos. A sua alma zela apenas pela satisfação das necessidades do corpo. Como estão prisioneiros no mundo intramundano, os simplesmente homens são incapazes de elevar a sua alma até ao infinito. São prisioneiros das «exterioridades enganadoras do mundo tangível e material»[53]. A sua «animalidade», os seus «desejos», as suas «emoções» e os seus «apetites» absorvem completamente a sua vida, impedindo-os de «explicar a existência» e de «atingir o infinito».

· As «naturezas elevadas» são os grandes homens, cujo «espírito idealista se vai libertando das exterioridades enganadoras do mundo tangível e material»[54]. Mergulhando na sua essência mais íntima, isto é, na sua alma, as naturezas elevadas procuram elevar-se até ao «mistério supremo do au delà»[55]. «Explicar a existência, atingir o infinito, eis para elas o martírio cruciante, a necessidade inexorável»[56].

«Exilar-se do infinito» é cair na «mesquinhez anedótica da estreita vida dos sentidos»[57]. Esta é a condição dos simplesmente homens, incapazes de adelgaçar a sua animalidade e os seus apetites, de modo a cravar os olhos no infinito. Os grandes homens são, pelo contrário, sobre-humanos, na medida em que, transcendendo a sua animalidade, procuram exilar-se deste mundo, para puderem alcançar antecipadamente a verdadeira vida: a vida espiritual. Só deste modo conseguem eles ser os agentes activos e criadores da História: os seus «descobridores» e os seus «redentores», como diz Guerra Junqueiro. O «motor» desta ascensão espiritual é a Dor e o Sofrimento, conforme salienta o Poeta:

«A evolução da natureza, desde um mineral até um Cristo, desde um infusório até um Buda, não é mais que a infinita passagem do amor através do sofrimento, do espírito através da dor. Em vidas sem conta, em vidas inumeráveis, pelo Amor e pela Dor, pode a alma vegetal da cruz atingir quase em perfeição a alma celeste do seu crucificado»[58].

A vida espiritual surge quando o homem rompe os cabos que o ligam ao «cativeiro» terrestre. Exilar-se do mundo terrestre é refugiar-se no «sonho transcendente»: elevar-se espiritualmente acima do mundo das aparências e caminhar até ao infinito amor de Deus. O término deste «voo de águia» só é atingido quando o homem desaparece, isto é, morre, para «engolfar-se para sempre no abismo infinito». O homem realiza-se como sobre-humano quando, transcendendo a sua animalidade, se espiritualiza até que a morte o liberte para sempre da ilusão mundana, engolfando-o eternamente no abismo infinito. Guerra Junqueiro não vê a morte como um mal terrível, mas sim como a libertação definitiva e derradeira do cativeiro que é a vida e o mundo dos sentidos. Do Universo (mundo) à Vida e da Vida ao Espírito, há todo um percurso que tem de ser realizado com imenso esforço e coragem: só os grandes homens têm coragem de ser! A morte é o limiar de uma outra vida — a vida eterna, absolutamente espiritual.

Sem sofrimento e dor não pode haver verdadeiramente grandeza humana. O sofrimento imortaliza, na medida em que, arrancando o homem da sua condição animalesca, o eleva às alturas da imortalidade. Com a vinda da morte, o homem mortal (finito) torna-se espírito imortal (infinito). Os grandes homens devem a sua grandeza ao sofrimento e à dor por que passaram até alcançarem a imortalidade eterna. O sofrimento é uma força motora ascendente — santifica a vida. No sofrimento o homem encontra-se a si próprio e com todo o universo. O encontro com os outros — a justiça — é um encontro com Deus. A justiça é precisamente a irmandade santificada dos homens: é velar pelo bem do próximo e em comunhão com o próximo.

No texto No centenário de Alexandre Herculano (1910), Guerra Junqueiro escreve: «Viver é amar, e amar é padecer»[59]. Se viver é amar e se amar é padecer, então viver é padecer. Padecer significa sofrer — ser atormentado e dilacerado por «algo», normalmente as dores, a miséria, a doença ou até mesmo a dúvida. Tal como Schopenhauer[60], Guerra Junqueiro encara a vida como sofrimento, mas sofrimento que eleva e conduz a Deus — à «alegria plena».

Para justificar a ideia de amor como sofrimento, o Poeta diz: «Deus é o infinito amor, infinitamente vencendo a infinita dor»[61]. Se Deus é amor infinito e se o amor é sofrimento, então Deus é sofrimento infinito. Deus é sofrimento[62]: eis aqui um conceito revolucionário de Deus que foi desenvolvido sistematicamente por Jürgen Moltmann na sua teologia da cruz — do Deus Crucificado[63]. Todos os grandes homens, enquanto «expressões sagradas, religiosas», reflectem, no drama da sua vida, a tragédia do sofrimento divino. No drama da sua vida, os grandes homens, embora prisioneiros na Terra, podem libertar-se nas e pelas suas obras e olhar para o Céu, ao mesmo tempo que espalham sinais de luz (sinais sagrados) pelo mundo inteiro. As suas obras abalam sempre o Mundo, na medida em que são como que milagres que fazem irromper na Terra sinais sagrados do Céu. Deste modo, a discórdia terrena deixa entrar nos seus interstícios o amor celeste: na multiplicidade emergem sinais de unidade e da guerra pode nascer o amor[64].

No texto O Monstro Alemão: Átila e Joana D’Arc (1918), Guerra Junqueiro clarifica melhor a sua teoria dos grandes homens, quando, ao afirmar que «Bismarck não foi um grande homem, um homem de génio»[65], redefine o grande homem como um homem de génio, entendendo o génio como «criação impetuosa de harmonia, criação magnífica de amor»[66]. A partir do conceito de génio, retoma a sua tipologia dos grandes homens nos seguintes termos:

«O heroísmo é génio. O herói supremo é o santo. O santo, conquistando pela virtude o máximo de amor a que se eleva o homem, alcança e casa o máximo de existência, o máximo de natureza, o máximo de vida. É no globo terrestre o mais prodigioso e puro unificador. O grande artista genial, quando a inspiração o deslumbra, irmana-se com o santo. Toda a arte sublime é religiosa. O génio do Bem e da Beleza têm ambos a mesma essência de infinito, o amor. Valem pelo amor que resumem, pela quantidade de Deus que encarnam e comunicam.
«O génio do filósofo, estudando o Universo e descortinando-lhe as leis, faz a história raciocinada do amor, a teoria do amor. O artista e o santo geram e vivem o amor, espontaneamente, efusivamente, na acção e no êxtase. O filósofo descobre e encadeia os passos do amor, a marcha do amor, a vitória do amor. Os altos sistemas filosóficos resolvem-se, por natureza, em teologias. Um grande pensador é um teólogo. Mas um grande artista ou um grande herói é um taumaturgo. S. Francisco, Joana d’Arc e Beethoven fazem milagres»[67].

Os grandes homens são génios, na medida em que criam harmonia e amor. São homens que unificam, de algum modo e cada um em função do seu génio ou virtude, a multiplicidade em que se manifesta a vida. O herói, o artista e o filósofo formam uma «irmandade», no seio da qual se estabelece uma hierarquia. «O herói supremo é o santo» que gera e vive o amor no êxtase. O artista gera e vive o amor na acção criadora. O herói e o artista estão mais próximos um do outro que do filósofo, na medida em que os primeiros geram o amor, respectivamente no êxtase e na acção poética, enquanto o último se limita a teorizar no e pelo pensamento o amor. Teorizar o amor é uma «actividade» menos criadora e, por isso, menos «empenhada» na vida. O herói e o artista são taumaturgos no sentido de «fazerem milagres». Fazer milagres é, para Guerra Junqueiro, trazer ao mundo, isto é, à existência, um excesso de mundo. Esta valência ontológica resultante do obrar criador do herói e do artista é o que falta à actividade do filósofo: segundo o Poeta, a teoria é, por natureza, deficitária. Na filosofia há um déficit ontológico que a condena, bem como aos que a praticam, ao «último lugar» na escala das grandes obras produzidas pelos grandes homens.

A irmandade formada pelos grandes homens é polarizada, precisamente porque a cada uma dessas classes de grandes homens corresponde, teoricamente falando, apenas um dos três génios (atributos, qualidades ou virtudes) que se encontram unificados em Deus — presentes no mesmo Ser. O génio do Bem, o génio da Beleza e o génio da Verdade que, na Terra, são gerados e vividos separadamente por classes de grandes homens diferenciadas, encontram-se unidos harmoniosamente em Deus. O santo é, de resto, na Terra, «o mais prodigioso e puro unificador», uma vez que, na escala das virtudes, o Bem está acima de qualquer outra das duas virtudes. Aliás, tanto a Beleza como a Verdade mais não são que expressões do Bem. Os três génios ou virtudes participam, de modo desigual, da mesma «essência de infinito»: o amor. O Bem, a Beleza e a Verdade convergem na unidade do amor. Deus é o amor pleno — uno, infinito e perfeito.
3. FILOSOFIA E TEOLOGIA. A teoria junqueiriana dos grandes homens é, pois, tributária de uma teoria de Deus — de uma teologia: «Os altos sistemas filosóficos resolvem-se, por natureza, em teologias. Um grande pensador é um teólogo»
[68]. É certo que todo o heroísmo e toda a arte sublimes são, por essência, religiosos, no sentido em que tentam religar e reler entre si os elementos que na vida estão dispersos, mas, por si mesmos, são incapazes de revelar Deus na sua unidade plena. Só o conceito é capaz de unificar aquilo que aparece disperso na experiência vital. Entende-se agora a afirmação de Guerra Junqueiro: «A vida da natureza só chega à síntese na ideia de Deus»[69], bem como o seu conceito de filosofia como: «A filosofia é a sociologia do Universo, a história ordenada dos encadeamentos da existência, da evolução do amor»[70]. Ora, se a filosofia é «teoria do amor» e se Deus é «amor infinito», então toda a grande filosofia só pode ser teologia: «O homem é um resumo ideal da natureza. Andou o infinito e lembra-se; andará o infinito e já o sonha. Quando o génio explui, conta-nos a natureza a sua história. O génio supremo é o santo. O verbo santo, eis a língua clara do Universo»[71]. Assim, a filosofia que ocupava «o último lugar», logo depois da oração e da arte, na escala das actividades virtuosas, aparece agora como «primeira», isto é, como fundamento onto-teológico da teoria dos grandes homens[72]. A filosofia que se coloca a si mesma em «último lugar» revela-se, nesse acto, como a «primeira» — como o ponto de vista privilegiado a partir do qual tudo o resto, incluindo a poesia, tem acesso à linguagem que habita nas proximidades de Deus. Isto quer dizer que só mediante o pensamento conceptual toma a vida consciência de si mesma na sua comunhão potencial com Deus. As linguagens do heroísmo e da arte só alcançam a unidade quando traduzidas na linguagem conceptual do pensamento filosófico. O déficit ontológico da filosofia como actividade é um excesso ontológico potencial de realidade infinita que emana eternamente de Deus. Eis aqui o sentido derradeiro de um texto obscuro de Guerra Junqueiro:

«O léxicon, sem princípio nem fim, das vozes mudas do incriado, das línguas tácitas da natureza, alguém o ouviu que se recorde? Alguém. O homem, crisálida do anjo, foi monstro e planta e verme e rocha e onda; foi nebulosa, foi gás impalpável, foi éter invisível. Articulou todas as línguas, e delas conserva, obscuramente, vagas memórias dormitando»[73].

Cabe ao homem articular todas as línguas tácitas da natureza e, mediante a anamnese, relembrar as memórias adormecidas nelas. Mais uma vez esta concepção junqueiriana reconduz-nos directamente a Hegel:

«A meta — o saber absoluto ou o espírito que se sabe como espírito — tem por seu caminho a recordação dos espíritos como são neles mesmos e como desempenham a organização do seu reino. A sua conservação, segundo o lado do seu ser-aí livre que se manifesta na forma da contingência, é a história; mas, segundo o lado da sua organização conceptual, é a ciência do saber que-se-manifesta. Os dois lados conjuntamente — a história conceptualizada — formam a recordação e o calvário do espírito absoluto; a efectividade, a verdade e a certeza do seu trono, sem o qual o espírito seria a solidão sem vida […]»[74].

Assim, de repente, clarifica-se o sentido dos dois enunciados que compõem a definição de filosofia dada anteriormente por Guerra Junqueiro: «A filosofia é a sociologia do Universo, a história ordenada dos encadeamentos da existência, da evolução do amor»[75]. A filosofia enquanto pensamento que articula as diversas línguas da natureza antecipa conceptualmente a unidade; no entanto, a unidade conceptual articulada pela filosofia permanece virtual até que advenha a Morte como acontecimento redentor. Tal como Platão, para quem «filosofar é aprender a morrer»[76], Guerra Junqueiro não se inibe em escrever uns versos extremamente enigmáticos, nos quais parece querer explicitar o inexplicitável, dizer o indizível, exprimir o inexprimível, mais precisamente a Morte:

«Formas da matéria, que eu em vão desnudo,
Que invisíveis forças, e almas encobris?
Quem o sabe? A Morte, que conhece tudo...
Mas o enigma impresso no seu lábio mudo
Só na treva aos mortos é que a morte o diz!...»[77]

Na forma de enunciados, estes versos parecem querer dizer simplesmente isto: As formas da matéria encobrem forças e almas invisíveis. O homem procura desnudá-las mas em vão. O enigma da existência é quase inacessível à razão. Só a Morte o conhece e, por isso, só a sua fala poderia revelar ao homem o segredo do enigma. Contudo, a fala da Morte é muda. O homem não pode ouvir a fala que, no silêncio, revela a unidade da palavra e da coisa nomeada. Só os mortos escutam a fala da morte e, por isso, só os mortos conhecem o segredo do enigma: a palavra reconciliada com a coisa nomeada.

Guerra Junqueiro procura assim pensar a essência da fala e a fala da essência. A morte que aqui é mencionada é a lingua(gem). Para Guerra Junqueiro, a morte é pensada como uma metamorfose mediante a qual o corpo se converte em espírito, ou seja, a alma desencarna e regressa ao seu elemento. Contudo, a morte neste verso é algo mais que desencarnação: a Morte escrita com letra maiúscula é pensada como convocação. A «morte convoca» significa que a convocação é a essência da morte. Convocar significa chamar para reunião, fazer reunir, mandar comparecer. A morte reúne o que se encontra disperso na vida: os que morrem são, nessa mesma convocatória, reunidos na unidade que é o enigma revelado. A sua fala é a unidade plena que não pode ser ouvida pelos vivos, na medida em que é comunicação silenciosa. A morte convoca num duplo sentido: enquanto acontecimento que advém na Terra a morte reúne em torno do corpo morto todos os seus familiares e amigos mais próximos. Nesta convocação a morte reúne a família na sua última homenagem ao morto. O funeral é uma reunião dos que ficam vivos em torno do morto visível até que ele se torne invisível devido ao sepultamento. Por outro lado, a morte convoca o próprio morto para se reunir com a comunidade santa: o conhecimento é comunhão.

Na primeira convocação o morto é o cadáver que aguarda a sua sepultura. Na segunda e autêntica convocação, os mortos não são apenas as almas desencarnadas: o morto aqui é o retraído. O morto como retraído é a alma que se retira do mundo para se recolher e se contrair na unidade. Aí ela toma conhecimento do enigma numa relação santa com a unidade. Os mortos são as almas que partiram da Terra para regressar ao seu elemento, ou mais precisamente à sua região: o Céu onde conquistam a sua imortalidade.

Guerra Junqueiro vai mais longe quando diz que a Morte é conhecimento do todo. Aqui conhecimento significa relação com a unidade, ou melhor, reconhecimento-comunhão, «beijo infinito», síntese plena. Não é um processo mediante o qual um sujeito se defronta com um objecto na tentativa de o apreender sob um conceito e recorrendo a uma determinada linguagem. Conhecer significa engolfar-se na unidade, lá onde a fala revela o seu próprio segredo: a palavra e a coisa nomeada correspondem plenamente[78].

Quer isto dizer que os mortais não podem ter acesso ao enigma? Guerra Junqueiro diz:

«Só a morte o sabe... mais a Fé que abrasa,
Que penetra as coisas com o seu olhar!
Não há fé na alma, não há luz na casa...
A razão é um verme, mas a crença é asa...
Verme! Aos infinitos poderás chegar!...»[79]

A morte conhece tudo, na medida em que o âmago do ser se revela plenamente às almas que, mediante a morte, se libertaram definitivamente do «coveiro temporal» . Mas a Fé escrita com maiúscula inicial também pode penetrar as coisas para as conhecer melhor, sem «precisar d’olhos para ter olhar!». A fé responde à convocação, comparecendo e procurando descobrir nas pisadas dos homens santos a luz que a conduz por um caminho seguro à casa de Deus. Aparentemente a razão parece estar em desvantagem: se a fé voa, a razão rasteja, mas neste rastejar errante e cheiro de dúvidas pode descobrir os vestígios do Caminho do Céu.

Neste sentido, a morte não só põe termo ao fluxo do tempo, como também possibilita a bem-aventurança. A morte triunfa sobre o mal e sobre a dor, garantindo a comunidade santa na sua unidade com Deus. Ao apresentar a morte como acontecimento redentor, Guerra Junqueiro parece voltar as costas à crueldade vivida constantemente aqui na Terra. De certo modo, há aqui o perigo de convidar as pessoas a cometer o suicídio. Se a morte garante a felicidade, então por que razão não pomos rapidamente termo à nossa vida para alcançarmos mais depressa a felicidade do além? A Morte é soberana e só a ela cabe convocar aqueles que ela acha que devam reunir-se na unidade santa. Desafiar, ou melhor, precipitar a morte é desobedecer-Lhe. Uma morte precipitada é uma vida perdida — é um acto de «extremo egoísmo». Liberta-se sem libertar os outros: eis aquilo que não constitui o sentido genuíno da morte santa.
3.1. A ESTÉTICA. A justificação desta hermenêutica subtil mas «violenta», quase à Heidegger
[80], do pensamento de Guerra Junqueiro requer novas explicitações teóricas.

Como demonstram os textos dedicados ao estudo de grandes homens nacionais, nomeadamente Alexandre Herculano, Camões, Antero de Quental, Raul Brandão e tantos outros, Guerra Junqueiro faz sempre uma interpretação «expressiva» da sua obra. Assim, por exemplo, no texto Raul Brandão (1902-03), afirma peremptoriamente: «Busquei no seu livro a imagem ardente da sua alma»[81]. Decifrar a alma do autor através da sua obra: eis o princípio hermenêutico de Guerra Junqueiro, que, se necessário for, não rejeita o recurso a análises psicológicas profundas para atingir os seus «fins» — ler a alma do autor revelada na sua obra, mais precisamente «o [seu] Espírito evolucionando para Deus»[82]. Princípio subjectivista cabalmente rejeitado pela estética contemporânea, nomeadamente por Heidegger[83], Gadamer[84] e Adorno[85]. A verdade da obra não se encontra em si mesma, quer na sua forma tornada conteúdo, quer no mundo que institui, mas sim no «percurso espiritual» que deixa adivinhar do seu autor. O critério de avaliação da qualidade da obra não é intrínseco, mas extrínseco à própria obra: reside na qualidade moral da alma do seu autor que, por sua vez, é «medida» «pela quantidade de Deus que encarna». É, por isso, que Guerra Junqueiro diz que a única Beleza digna desse nome é a Beleza Moral[86] — a Beleza do carácter moral do autor que gerou a obra no itinerário da sua alma para Deus. A grandeza humana, exteriorizada e objectivada nas suas obras, mede-se, «aos olhos de Deus», pela virtude dos grandes homens que as produziram[87]. A estética junqueiriana aqui esboçada é uma estética «subjectivista» pensada como teologia da arte de cariz marcadamente moral.

Ora, dado que a ideia de arte pela arte lhe é completamente estranha, Guerra Junqueiro não reduz o seu «programa estético» a uma mera teoria das obras de arte. Conjugando arte e natureza, a estética junqueiriana é fundamentalmente liturgia: «O Universo é ritmo, a natureza é música. A Vida é divina porque é bela»[88]. No texto João de Deus: Biografia Espiritual (1910), o Poeta diz mesmo que «a arte, quando grande, é religiosa e panteísta. Sente infinito, exprime infinito, sugere infinito. Universaliza indivíduos, evapora números, toca na essência. Eucaristia sublime, mistério esplêndido, inefável! Deus a cantar no som, a brilhar na cor, a desenhar-se nas formas! Sim! A arte é Divindade, encarnando em música»[89]. A beleza de uma obra de arte digna desse nome nada mais é do que a recriação e a «reprodução» da Beleza natural do universo e da vida, compreendidos ambos como a face visível e bela de Deus: «A arte vale mais ou menos, segundo a porção de amor que abrange e que revela. A arte soberana é a que conjuga a natureza toda — homens e monstros, águas e árvores, pedras e nuvens, sóis e nebulosas, com o verbo criador, que é o verbo amar. O universo atómico, partículas inúmeras e vagabundas, fraterniza em Deus, unifica-se em Deus»[90].

A lógica da obra de arte soberana — entenda-se «sagrada» — conduz à emergência de uma outra racionalidade e de uma outra sensibilidade que desafiam a sociedade sem Deus. A arte enquanto «culto mágico de Deus» é «eucaristia»: os sentidos e a razão harmonizam-se e reconciliam-se para celebrar a Glória de Deus, ao mesmo tempo que o revelam e o antecipam no seu infinito amor. «Na arte, sentir é conhecer. Sentir é compreender com todo o corpo»[91] — a presença real de Deus na sua «criação». Se a arte é, aqui e agora, no espaço e no tempo, comunhão sensível e gratificante com Deus e a Natureza, a estética que a tematiza, enquanto filosofia, ou melhor, teologia da arte, antecipa conceptualmente, celebrando-a com «emoção viva», a comunhão plena com Deus, entendida como «beijo infinito» — entrada e descanso em Deus para sempre.
3.2. A HISTÓRIA. Daqui resulta que a preocupação filosófica de Guerra Junqueiro está centrada sobre o problema da História, entendida como história da salvação, como processo contínuo, embora oscilante ou mesmo prolongado, de espiritualização e de santificação constantes do mundo. Enquanto telos último da História, Deus é a unidade perfeita que os homens, sobretudo os grandes homens, devem antecipar e revelar nas suas obras e nas suas almas, antes de a morte libertadora os adormecer para sempre no infinito e eterno amor de Deus. Como diz Guerra Junqueiro no seu texto sobre Sousa Martins (1904): «A obra dos homens é a porção de Deus que derramaram»
[92]. A preocupação com os grandes homens é assim uma preocupação com o sentido da História no seu processo evolucionário para Deus. Por outras palavras: a teoria junqueiriana dos grandes homens é, no fundo, uma teoria da história lida em termos de filosofia da história, mais precisamente como teologia da história. Referindo-se a Raul Brandão, Guerra Junqueiro não deixa margens para dúvidas:

«Chamei aos Pobres uma confissão religiosa. Não há dúvida. Os seus pobres, meu amigo, são bocas de visões, articulando a alma de um vidente. Falam a sua língua e contam-nos a sua história. Não a história, no minuto e na rua, do homem sicrano, mas a história, no espaço e no tempo, do homem infinito, que vem de Deus e para Deus caminha»[93].

O Caminho do Céu e Prometeu Libertado[94] são duas obras formidáveis de Guerra Junqueiro, mas infelizmente estão inacabadas. Mas, mesmo assim, juntamente com Os Simples[95], têm uma palavra a dizer, talvez a palavra definitiva e derradeira. A peregrinação — o tema fundamental dessas obras poéticas — é compreendida como a história da salvação — o Caminho do Céu[96]. Assim, o poema Regresso ao Lar[97] que aparece como epílogo d’Os Simples desenvolve-se em seis momentos recordados e evocados depois do regresso ao lar:

— O primeiro momento recorda a partida do peregrino. Embora não se recorde de há quanto tempo tinha partido, o peregrino lembra-se de ter partido do seu saudoso e carinhoso lar chorando.

— O segundo momento recorda que, durante o seu exílio, só achou enganos, decepções e pesar: tudo isso ele quer esquecer!

— O terceiro momento revela que o peregrino se arrependeu de ter partido e, por isso, quer ser embalado para recuperar o tempo perdido.

— O quarto momento mostra o peregrino a lamentar que a partida, em vez de o enriquecer, o deixou pobrezinho, muito pobrezinho, porque até mesmo as riquezas doadas por Deus lhe tinham sido roubadas pelo caminho. Chora profunda e copiosamente essa perda. Na busca de riquezas perdeu as suas riquezas mais preciosas: perdeu-se a si mesmo!

— O quinto momento constata que do menino que tinha partido já nada resta: aquele que regressou veio mudado, muito mudado — não já um menino mas um velho cansado. Quer dormir e sonhar: quer morrer e morar junto de Deus!

— O sexto momento explicita a essência do regressar ao lar: o peregrino quer alcançar o descanso da sua alma para que ela durma em paz quando a Morte a vier buscar — muito brevemente. O peregrino morre e entra na morada de Deus!

O regresso ao lar, depois de um prolongado exílio pelo mundo e pela vida, é, na sua essência, um regresso a Deus, possibilitado pelo advento da Morte. A morte e a recordação constituem, pois, o tema fundamental do poema de Guerra Junqueiro. Regressar significa voltar para o ponto donde se tinha partido há muito tempo atrás. Donde se partiu? Do lar. Entre o lugar donde se partiu e o lugar ao qual se regressa há um hiato, uma espécie de não-lugar[98] — aquilo a que Guerra Junqueiro chama o exílio. O exílio é o estar fora e/ou longe do seu lugar, mais precisamente do seu lar — a casa, a morada, a família, o chão, o assento, o ninho, a pátria, a língua, a concha protectora, enfim Deus. O exílio é a Terra, a vida mortal, por oposição ao Céu, a vida eterna. O «mesmo lugar» é cindido imanentemente por um hiato, uma falha que, além de nos desalojar do nosso lar, nos lança na peregrinação — na errância, na diáspora, no exílio, no êxodo, na tragédia. Desalojados do nosso lar, erramos por caminhos distantes até encontrarmos o caminho de volta e de regresso ao lar — o Caminho do Céu.

A peregrinação é caminhar por lugares estranhos, longínquos e distantes do nosso lar: o peregrino parte em busca de lugares «santos», exila-se e, durante essa expatriação, descobre que o que procura encontra-se precisamente no «lugar» donde partiu. A errância peregrina reconduz de regresso ao lar: o chão donde nunca deveríamos ter partido, mas só sabemos isso quando partimos em busca do nosso lar. Para regressar ao lar é necessário ter abandonado o lar e partido em busca do lar. O lar só é a nossa morada quando o abandonamos na ilusão de ir descobri-lo noutros lugares distantes. Sem peregrinação, nunca descobriríamos que a nossa morada é o lar donde partimos para viajar por terras distantes, em busca do nosso lar. Quem não abandona o lar nunca encontrará o seu lar, mesmo que pise toda a vida o seu chão. O lar é a nossa morada depois da peregrinação. Quando partimos do nosso «lar» não sabemos que esse «lar» é o nosso lar: só o sabemos quando o deixamos para viajar por terras distantes. A distância aproxima e a proximidade distancia: o lar descobre-se nesta dupla-dobra. Donde partimos é a proximidade distante e para onde viajamos é a distância próxima: afastamo-nos para distante para nos aproximarmos novamente do lugar donde partimos. A saída-e-o-regresso são os dois caminhos que nos reconduzem novamente ao lar. A saudade é aquilo que nos chama de regresso ao lar.

Mas, quando regressamos ao lar, verificamos que já não é o mesmo lugar donde tínhamos partido. A nossa partida e os efeitos irreversíveis do tempo modificaram substancialmente o lar: o lar empobreceu-se. A morte visitou o lar e instalou-se lá aguardando o nosso regresso. Regressamos na expectativa de encontrar inalterado o lar donde partimos há muito tempo, mas, quando o pisamos, descobrimos que tudo mudou, incluindo nós mesmos. O lar donde partimos é recordação, lembrança, na proximidade da morte.

O homem está condenado a peregrinar até que a morte lhe possibilite o acesso ao seu verdadeiro lar — à sua morada eterna donde nunca mais partirá. Na Terra a vida é, essencialmente, errância — procura de morada. Parte-se de um lugar para encontrar outro lugar, mas, como não se encontra, regressa-se ao lugar de origem. Contudo, quando lá se chega, descobre-se que já não é o mesmo lugar — o lugar que se recorda como o lugar da alegria infantil é a antecipação do lugar onde queremos e iremos morrer. Qual é o estrangeiro que queira morrer longe do seu lugar de origem?! O nosso lar é o lugar onde iremos ser enterrados. A nossa morada é o lugar onde ficaremos enterrados. A morte restitui-nos o lar que tínhamos abandonado há muito tempo atrás.

Ao chamar-nos de regresso ao lar, a saudade avisa-nos da iminência da morte. A saudade é vizinha da morte. A saudade é a impossibilidade de regressar ao lar da infância que abandonámos há muito tempo atrás. A saudade confronta-nos com a nossa situação de seres mortais — com a nossa morte e com a morte dos nossos entes queridos (próximos). A saudade só surge depois de termos abandonado o lar e é ela que nos leva a regressar ao lar, que já não é o mesmo lar donde partimos há muito tempo. É, por isso, que a saudade, vizinha da morte, se projecta no Futuro, mas no Futuro de Deus. Nesta projecção, a saudade metamorfoseia-se em esperança — a esperança de reencontrarmos o nosso lar reconciliado depois da morte. Neste sentido, o regresso ao lar significa o regresso a Deus: o Deus da Esperança. A morte torna-se acontecimento escatológico: a morte é o caminho que nos conduz finalmente ao lar. Até que ela advenha somos sempre estranhos em lugares estranhos.

Mas, nesse regresso, nem tudo está perdido: agora estamos mais próximos de nós próprios, conhecemo-nos melhor e sabemos que nunca deixaremos de ser peregrinos até que a morte possibilite, pelo menos espiritualmente, encontrar a nossa derradeira morada — no reino de Deus junto dos que nos abandonaram.

O Prelúdio de Os Simples consta de dois poemas intitulados A Caminho e De Volta.

A Caminho: O peregrino é interrogado por diversas personagens simples, tais como o lavrador, a velhinha, a camponesa, a pastorinha, o mendigo e a estrela de Alva. Todos questionam a razão de ser da caminhada do peregrino: Qual o seu rumo? Eis as respostas do peregrino:

«Vou dar volta ao mundo...»
«Vou a prender monstros, combater serpentes...»
«Vou-me a ler Destinos, descobrir Fados...»
«Vou fazer tesoiros, fabricar diamantes...»
«Vou descobrir mundos, quero glória e fama!...»
«Florirei as pedras pelos maus caminhos!»[99]

A peregrinação é deixar a paz do lar e sair para o mundo. Caminhar é descobrir novos mundos, com o intuito quer de conquistar glória, fama e riqueza, quer de combater monstros e serpentes, de modo a «florir» os maus caminhos. A peregrinação é sempre uma viagem do conhecido-familiar para o desconhecido-estranho e, por isso, é uma viagem arriscada, sujeita a vários percalços e acidentes, como lhe lembram alguns personagens simples.

Partir para a descoberta do mundo é abandonar a segurança do lar e assumir os numerosos riscos imprevisíveis que ameaçam constantemente durante o percurso. A peregrinação pode ser aventureira ou sagrada. Mas, em qualquer um dos casos, parte-se sempre para o desconhecido. A vontade de descobrir novos mundos é a força que impulsiona o peregrino a trocar a segurança do lar pela insegurança do desconhecido. O peregrino quer desbravar novos mundos, descobri-los e conhecê-los. Com que finalidade? Para se descobrir a si mesmo — na sua essência mais autêntica.

De Volta: Afinal, quem sou eu?, donde venho? e para onde vou? Três questões que atormentam o peregrino antes de decidir partir do lar paterno para caminhar, qual vagabundo, pelo mundo, à procura das respectivas respostas. O desconhecido não é tanto o mundo que irá conhecer, mas fundamentalmente o si mesmo. O peregrino parte à procura e à descoberta de si mesmo, ou seja, do seu lugar no mundo. O objectivo da peregrinação é a descoberta de si mesmo. Só mediante o confronto de si mesmo com o estranho é que o peregrino descobre e reconhece o lar donde partiu como sendo o seu verdadeiro lar. O lar é o que há de mais próximo e, no entanto, não se deixa desvelar facilmente: aparece sempre como o mais distante. Quando parte o peregrino sente-se no seu lar como estranho e, é por o experimentar como estranho, que resolve partir. Parte na ilusão — encoberta como tal — de ir encontrar o familiar num outro lugar distante e desconhecido. Mas, à medida que caminha erraticamente no e pelo mundo, o peregrino é surpreendido pela sua estranheza radical.

O mundo que vai desbravando não é o seu mundo: este encontra-se atrás de si, no lugar de origem donde partiu há muito tempo. A distância desvela a familiaridade como sendo aquilo que se deixou atrás, num passado distante. A peregrinação conclui necessariamente com o regresso ao lar, agora reconhecido como tal. Afinal, o que o peregrino procurava esteve sempre debaixo dos seus pés: o solo originário onde nasceu. Eis o seu lar! Mas, quando chega ao lar, a Estrela Vésper diz-lhe:

«Ó sonhador louco d’outrora,
Teus sonhos lindos onde estão?!
Ébrio de luz, rico d’aurora,
Vi-te partir ... e vejo agora
Um morto erguido dum caixão!»[100]

Os olhos do peregrino recém-chegado (regressado) ao lar já não são «olhos cor de esp’rança», «olhos inocentes», «olhos encantados», «olhos brilhantes», «olhos cor de chama» ou «olhos cor da flor dos linhos», como quando partira, mas «olhos sem esp’rança», «olhos sem ventura», «olhos d’enjeitado», «olhos de coveiro» ou «olhos na agonia». A peregrinação foi uma tremenda desilusão. O destino do peregrino é regressar ao lar que deixou há muito tempo. O lar enjeitado recebe-o, com um certo desconforto. Afinal, quem é este peregrino que, depois de nos ter abandonado, regressa ao lar que enjeitou!? Como em Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, o peregrino tornou-se um estranho no seu próprio lar[101]. A sua chegada anuncia a morte.

O desenraizamento passará a ser o seu destino até que a morte lhe doa o seu verdadeiro lar: a morada de Deus. Aí encontrará a paz que procurou durante toda a sua vida terrena. Peregrinar é percorrer caminhos que não levam a parte nenhuma, a não ser de regresso ao lar que se abandonou antes de começar o êxodo. Neste percorrer caminhos distantes, o peregrino descobre a sua mortalidade: o regresso ao lar realiza-se tendo em vista morrer no seu lugar de origem que outrora lhe foi familiar. Final trágico este: morrer entre familiares que lhe são estranhos e que o tratam como estranho. A morte é a morte de cada um e cada um morre sozinho: a morte é um acontecimento solitário. Um homem nasce, vive e morre. Dele nada mais resta a não ser fugazes memórias adormecidas.
3.3. O PANTEÍSMO. A dificuldade teórica desta concepção heróica, isto é, teológica da história reside no seu pretenso panteísmo ou panpsiquismo. Se Deus e Mundo são co-originários, então, pelo menos em termos de consistência lógica interna, a evolução inteira do Universo deveria ser encarada como um processo em que o próprio Deus só se pode realizar e tomar consciência de Si mesmo à medida que os homens, abandonando a sua animalidade e a sua simples «humanidade», se sobre-humanizam, entregando-se à tarefa de santificar o mundo inteiro, de modo a que Deus possa triunfar com amor infinito sobre o seu inimigo co-originário: a matéria, que Guerra Junqueiro caracteriza enfaticamente como «crime» e «sofrimento» — «devorar o Mundo».

Torna-se agora evidente que o dualismo antropológico se funda num dualismo ontológico, o qual, por sua vez, se fundamenta num dualismo teológico. Os dois elementos co-originários — Deus (Espírito) e Satanás (Matéria) — são inimigos mortais. O Universo está dilacerado consigo mesmo: a realidade é atravessada em si mesma por contradições. Daí resulta o sofrimento inerente à própria vida. A história mais não é que uma luta entre esses dois princípios, cujo sentido aponta desde logo para a «vitória» plena do Bem sobre o Mal, de Deus sobre a Matéria. A história como santificação é o triunfo de Deus sobre o Mal e como espiritualização é o triunfo do Espírito sobre a Matéria, mas, neste duplo triunfo que é um só e mesmo triunfo — o de Deus, a redenção e a reconciliação devem ser totais. Isto quer dizer que o Mal deve converter-se a si e em si mesmo em Bem eterno e a matéria deve espiritualizar-se. O reino eterno é o reino do Espírito Santo: comunidade santa de Deus com os homens e com a natureza — Deus reconciliado com a sua própria criação e consigo mesmo.
3.4. A REDENÇÃO. No término da história não haverá nem vencedores nem vencidos: a multiplicidade geradora de sofrimento transforma-se e metamorfoseia-se em unidade plenamente realizada — amor infinito, Deus em comunhão com o seu mundo «recuperado». É o que diz Guerra Junqueiro quando escreve, no texto Raul Brandão, estas palavras fortes mas inequívocas:

«Rezar o Universo é polarizá-lo no infinito amor. Cantar não basta. Rezar é mais. Rezar é superlativo divino de cantar. A oração é a canção angelizada, a canção chorada e de mãos postas. O Universo absorve-a, compreende-a. Ouve-a Deus, os homens escutam-na, e as ondas, as águas e os rochedos, vagamente a percebem, como um hálito amigo, uma carícia branda e luminosa. Reze todas as dores, pobrezas, misérias, lutos, sofrimentos. Reze o lodo e o sangue, o ninho, o covil, o hospital, o cárcere, a enxovia, a terra trágica, ulcerada de mortes, e a noite côncava e fúnebre, ulcerada de sóis e de nebulosas. Reze a dor, mas reze também a alegria, que é a dor vencida e desbaratada pelo amor. Reze o triunfo do amor, a alegria ascendente da natureza, a marcha épica da vida pelo caminho eterno, que não tem fim. Reze chorando, mas lágrimas fecundas que façam parir a Terra, palpitar o seio e germinar a semente. Lágrimas de aurora, orvalho vivo e criador. Rezar e chorar, mas heroicamente, na acção e na luta, no Mundo e para o Mundo. Rezar como Nuno Álvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que vão para Deus, voltando as costas à natureza. Quem se quiser salvar, há-de salvar os outros. Quem renegar a natureza, renega Deus. A ascese egoísta é anticristã. O quietismo beato, apagando o Universo, apaga Deus. Quietismo e niilismo — dois zeros, dois sinónimos. O frade tenebroso, na concha da mão exangue e paralítica, sustenta uma caveira. É o nada olhando o não ser. O monge radiante (S. Francisco) na dextra poderosa, em vez de caveira, tem um globo de oiro constelado, onde se ergue uma cruz. Tem o Universo e Deus»[102].

Deste modo, Guerra Junqueiro escapa ou, pelo menos, ilude o problema da teodiceia[103], a saber: Se Deus que criou o Universo inteiro é Bom, como pode ter consentido a emergência do Mal no seio da sua criação? Para Guerra Junqueiro, Amor e Crime são co-originários: quer dizer que Deus não criou o mundo, pelo menos em algum instante do Passado. Ambos manifestam-se no mundo co-originariamente, isto é, eternamente. Deus sofre porque se encontra dilacerado consigo mesmo e em si mesmo: cabe ao homem responder ao chamamento da sua consciência, que, no fundo de si mesma, é um chamamento de Deus, para assumir a pesada tarefa de abandonar o mundo terreno e de se debruçar sobre si mesmo, de modo a descobrir no seu sofrimento o sofrimento de Deus. A evolução é, portanto, um processo progressivo e ascendente de espiritualização e de santificação, no decurso do qual a matéria se espiritualiza e se consagra, de tal modo que, algures no Futuro, se actualiza plenamente como amor infinito — «ideal realizado». Se o sentido último da história é o amor infinito, a sua força, embora operante desde sempre, reside na sua própria consumação final, ou seja, na sua realização plena. É como se a matéria não tivesse outro rumo a não ser converter-se gradual mas progressivamente no seu pretenso opositor: o amor eterno que dirige o curso da história a partir do futuro. No texto dedicado a Edith Cavell (1915), Guerra Junqueiro afirma:

«O norte da existência é o bem, o amor. O bem infinito, o amor infinito, chamam-se Deus. O homem sobre-humano, o santo, engolfa-se em Deus, embebe-se em Deus, e inunda de amor e de piedade a dor eterna do Universo. E, se é necessário para chegar a Deus, acabar na cruz, indefeso se rende aos seus verdugos, e, crivado de golpes e de ultrajes, expira em Deus, abençoando e perdoando»[104].
3.5. ESCATOLOGIA, DUALISMO E UNIDADE DO SER. O dualismo é um pensamento insatisfeito consigo mesmo e Guerra Junqueiro sabia-o melhor do que ninguém, já que projectava elaborar uma filosofia da Unidade do Ser, na qual certamente o dualismo não seria encarado como «pensamento legítimo». Com efeito, para Guerra Junqueiro, o dualismo ou até mesmo o pluralismo, antes mesmo de ser uma figura degenerada do pensamento conceptual, é essencial e fundamentalmente um «fenómeno» originário ou, como prefere dizer, uma tragédia que urge ser superada, transcendida e reconciliada na unidade do Ser, isto é, na comunhão santa de Deus e de toda a sua «criação». A história universal é, desde o seu começo mais originário, marcada pela tragédia divina, da qual decorre necessariamente a tragédia cósmica, por um lado, e a tragédia antropológica, vivida quer em termos individuais (o drama psicológico), quer em termos colectivos ou sociais (o drama dos povos). A tragédia divina — como acontecimento originário — ecoa contagiosamente em todas as esferas da sua «criação». A «criação» traz gravada em si mesma a tragédia de Deus. Dado que o homem é o ser mais próximo de Deus, depois dos anjos, cabe-lhe a tarefa de ser o pastor de Deus
[105], ou seja, de zelar para que a teleologia inerente ao processo evolutivo universal seja levada ao seu término — a unidade da criação divina. As palavras de Guerra Junqueiro não deixam subsistir qualquer dúvida a esse propósito:

«A alma de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime, como o corpo de Vénus entoa a vitória da linha viva e musical sobre a linha inerte, a linha bruta e desarmónica. Beleza de essência ou beleza de aparência, virtude de Jesus ou formosura de Vénus, têm, ancestralmente, a iniciá-las o mesmo horror e a mesma imperfeição. Do verbo odiar nasceu, evolutivamente, o verbo amar. Se o homem foi tigre, o beijo foi dentada. Toda a alegria pura vem do amor, e todo o amor inclui o sofrimento. A alegria é o sofrimento amoroso, o sofrimento espiritualizado. Deus é, pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dor. E, vencendo a infinita dor, ele é a infinita alegria, a paz absoluta, a glória eterna, a bem-aventurança ilimitada»[106].

A redenção significa precisamente a realização do desígnio da salvação: a «criação» deve encontrar-se no futuro eterno irmanada com o seu Criador na unidade plena do Ser. O dualismo deverá ser transcendido por um dos seus princípios imanentes: a matéria perversa metamorfosear-se-á em Espírito. A unidade do ser resulta assim de um processo de espiritualização e de santificação universais, no decorrer do qual o dualismo dissolve-se na unidade espiritual e santa do Ser. A dimensão escatológica do pensamento filosófico-teológico de Guerra Junqueiro não pode ser menosprezada e muito menos negada, como faz Leonardo Coimbra[107], a menos que se queira neutralizar por má-fé o potencial libertador do seu pensamento, fazendo dele um mero reflexo do «camponês abastado», para usar a expressão de António José Saraiva e de Óscar Lopes[108]. É esta esperança no Futuro de Deus que possibilita a Guerra Junqueiro manter uma fé firme na redenção plena, encarando desde logo a morte não como uma fatalidade que me rouba a possibilidade de realizar o projecto que sou, como em Sartre[109], ou como «a possibilidade da impossibilidade absoluta do ser-aí», como em Heidegger[110], mas sim como a possibilidade de realização plena: a morte é acontecimento escatológico que, ao converter o meu corpo num cadáver, me liberta e me redime, lançando-me na unidade do Ser. A morte é, por definição, um acontecimento redentor. A vida que se perde ganha-se na vida que se conquista: a vida espiritual lançada na unidade do Ser. Ao desaparecerem os constrangimentos intramundanos, o espírito fica entregue exclusivamente à sua essência — a unidade espiritual com Deus. A morte vence a matéria: a morte espiritualiza e santifica. Chorar o cadáver pode significar um apego demasiado forte aos assuntos intramundanos e às suas tragédias. Chorar o cadáver é fraqueza humana quando confrontado com a vida eterna conquistada pela alma. Chorar obsessivamente o cadáver é esquecer a alegria e a bem-aventurança que resultam da morte: a redenção plena. Guerra Junqueiro é peremptório a este respeito:

«Eu quero menos à minha pátria do que a meu pai e a minha mãe. E, contudo, eu não ficaria eternamente diante do cadáver de meu pai ou de minha mãe. Evolada a alma — a essência, resta matéria, monte de peçonha. Os olhos da carne chorariam em mim o eterno apartamento daquela carne sagrada. Os olhos da carne; os do espírito, não. Esses permaneceriam claros e serenos, fitando, no invisível, já libertas, as duas almas imortais»[111].

O mundo que não reconhece absolutamente nada para além de si mesmo é pura reificação: é esquecimento do Ser que, do futuro eterno, promete a alegria plena. A saudade junqueiriana não é, como muitos pensam, uma saudade do Passado, isto é, de um estilo de vida simples e bucólico; pelo contrário, a saudade junqueiriana é a saudade do Futuro. A unidade do Ser não é originária mas futura; daí resulta que o sentido genuíno da saudade aponte eternamente para o Futuro, donde Deus chama a sua «criação» à unidade reconciliada, ou seja, à comunhão sagrada. Como escreve Guerra Junqueiro:

«A vida é um calvário. Sobe-se ao amor pela dor, à redenção pelo sofrimento. Cristo é um redentor humano, Deus o redentor universal. É o ser infinito, porque é o amor ilimitado. E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinizou-se por encanto. Guerras, lutas, crimes, catástrofes, desordens, evaporam-se e fundem-se em harmonia mágica e perfeita»[112].

O homem lançado no mundo é um homem «alienado» da sua essência. A sua existência só começa a harmonizar-se com a sua essência potencial quando ele, encarnando a figura do grande homem, consegue erguer-se e olhar para o Céu. A terra é um exílio que só pode ser rompido e quebrado quando o homem se afasta dela e, mediante a Oração ao Pão e a Oração ao Céu[113], procura escapar dele, de modo a ir ao encontro de Deus. A morte quebra o exílio e oferece o Céu. A morte liberta, a morte salva, a morte garante a metamorfose peculiar da matéria em Espírito, a morte realiza: liquidando a vida sob coerção lança a alma na vida verdadeira. A morte como recordação é alegria: a alegria da libertação do calvário, da dor e do sofrimento, a alegria resultante da realização plena do espírito no seio da unidade de Deus. Se «toda a reificação é esquecimento», como dizia Adorno numa carta dirigida a Benjamin[114], então a morte é memória — memória de uma vida feliz que se consuma eternamente no infinito amor de Deus, vencendo para isso a reificação inerente à vida terrena. Com a morte, o homem conquista a sua essência, «engolfando-se» eternamente na unidade do Ser.

A Filosofia como Teologia escrita em chave escatológica é uma espécie de antecipação da unidade do Ser que nos aguarda a partir do futuro eterno de Deus. A filosofia da unidade do Ser escrita em forma de versos é mais que um imenso poema épico — é, antes de tudo e fundamentalmente, um poema escatológico. A libertação do Prometeu agrilhoado[115], perdido e amordaçado no calvário terrestre, por Cristo é a promessa de um novo reino: o reino de Deus em comunhão plena e real com a sua criação recuperada. Em última análise, a redenção é radicalmente escatológica: só no futuro eterno de Deus se encontra a verdadeira vida, mas até lá é necessário um longo percurso durante o qual o sofrimento e a dor funcionam como despertadores da individualidade e das memórias adormecidas. Estas aguardam o seu momento para despertarem plenamente nas grandes obras que cá se fazem, tendo em vista o despertar pleno no regaço acolhedor de Deus. A redenção é precisamente este despertar lento, gradual e até mesmo dramático das memórias adormecidas que habitam em cada um dos homens até que, finalmente, se reconciliam plenamente em Deus e na sua criação plenamente desperta. À cegueira da vida terrena sucede o despertar pleno da memória — da memória do futuro eterno de Deus. O Céu é o nosso único habitat verdadeiro: tudo o resto é peregrinação que, mesmo quando se desvia dos bons caminhos, acaba por conduzir de regresso ao lar. Este mais não é que o lar de Deus, onde a nossa existência encontra finalmente a sua essência — a sua essência infinita. O lar de Deus é o lar do infinito amor: nele tudo o que é mesquinho é esquecido, porque perdoado, e a memória torna-se uma força plena viva — a unidade do Ser encontrada e vivida na sua plenitude.
4. A TEORIA DO CRISTIANISMO ETERNO OU A ONTOLOGIA CRISTOLÓGICA DE GUERRA JUNQUEIRO. A título de epílogo, podemos condensar o pensamento filosófico de Guerra Junqueiro sob uma única designação: a teoria do cristianismo eterno ou, como a preferimos designar, a «ontologia cristológica». Para se compreender o sentido originário dessa teoria, é necessário tomar como fio condutor da interpretação um texto fundamental, onde Guerra Junqueiro expõe minuciosamente a sua concepção do cristianismo eterno: trata-se evidentemente do texto O “Sacré-Coeur” (1888-1904). O contexto do texto — uma visita dominical a Notre-Dame — será preterido a favor das ideias expostas que resistem às coerções do contexto concreto do qual emergiram. Enquanto ouvia atentamente o sermão do pregador, Guerra Junqueiro teve este pensamento: «A Igreja vive ainda e viverá, senti-o nessa hora, do cristianismo eterno que tem dentro»
[116]. A Igreja vive e viverá do cristianismo eterno que tem dentro de si. Mas: Que Igreja? Que Cristianismo?

Que Igreja? A Igreja da infância que, «das contínuas mortes da sua carne, ergueu-se, ilesa e luminosa, a sua imortalidade espiritual»[117]. Não a Igreja «dominadora e deslumbrante» que, mais tarde, «no trono de César, foi a rainha única do Mundo». Mas, «para quebrar-lhe a omnipotência, bastou a voz de um monge solitário»[118]. O Poeta acrescenta:

«A dor eleva, a dor exalta, a dor diviniza. O Cristianismo gerou-o o Amor e a Dor, nasceu, escorrendo sangue, numa cruz. A opulência pagã da Igreja foi o crime da Igreja. Quanto mais simples e mais humilde, mais vitoriosa e mais robusta»[119].

A Igreja verdadeira não é uma mera instituição, mas a comunidade cristã coextensiva ao Universo. Pode uma tal Igreja vir a ser destruída? A longevidade da sua história testemunha em contrário. Apesar de todas as tentativas levadas a efeito para a destruir, a Igreja sobreviveu sempre. Guerra Junqueiro refere, primeiramente, duas razões que justificam a sobrevivência da Igreja: em primeiro lugar, porque «vive ainda e viverá do cristianismo eterno que tem dentro», e, em segundo lugar, porque não se pode destruir Jesus: «Também se não destrói a Igreja, destruindo Jesus. A essência do cristianismo é universal e é eterna, imanente à vida»[120]. Dado ser imanente à vida, a essência do cristianismo é universal e eterna. Destruir o cristianismo equivale a destruir a própria vida. A vida é, na sua essência mais íntima, cristã. Daí que qualquer homem que tenha vivido no mundo em qualquer tempo e lugar históricos tenha sido sempre cristão. O homem é, por natureza, um ser-cristão.

«Houve cristãos sem conta antes de Cristo, cada santo que surge é um continuador de Cristo que aparece, e todo o homem que, sendo deísta, se eleva a um alto grau de moralidade, torna-se por esse facto um cristão verdadeiro. Cristo é filho do Espírito Divino, porque é filho do ideal humano sublimado, e este é o reflexo directo do Espírito de Deus»[121].

O sentido geral desta sequência de expressões linguísticas referentes à natureza de Cristo pode ser dita numa única frase: Cristo foi gerado espiritualmente por Deus no e pelo amor. O homem como ser «dilacerado» gera a sua descendência através da reprodução sexual: trata-se aqui, como em tantos outros animais e vegetais, de uma geração carnal. No entanto, os grandes homens criam obras espirituais que exaltam o amor infinito de Deus. O Ideal humano sublimado é a sexualidade transformada plena e totalmente em amor. Ora, Deus é amor infinito. Daí que o ideal humano sublimado seja reflexo directo do Espírito de Deus. Cristo é, assim, filho do Espírito de Deus gerado no seu amor infinito: quer dizer que Cristo é Amor eternamente gerado. No amor espiritual eleva-se o homem até Deus: o ideal humano é a essência divina realizada eternamente no futuro.

Guerra Junqueiro considera que o ateísmo consequente é, senão uma impossibilidade lógica, pelo menos uma impossibilidade real, dado que o amor eterno de Deus é imanente à vida: «Negar o cristianismo implica, pois, uma loucura monstruosa: negar Deus»[122]. Foi o que fez Nietzsche:

«Nunca ouviram falar daquele louco que, à luz clara da manhã, acendeu uma lanterna, correu para a praça do mercado e se pôs a gritar incessantemente: «Ando à procura de Deus! Ando à procura de Deus!» Estando reunidos na praça muitos daqueles que, precisamente, não acreditavam em Deus, o homem provocou grande hilaridade. «Será que se perdeu?», dizia um. «Será que se enganou no caminho, como se fosse uma criança?, perguntava outro. «Ou estará escondido?» «Terá medo de nós?» «Terá embarcado?» «Terá partido para sempre?», assim exclamavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. «Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu», gritou! «Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como o fizemos? Como conseguimos engolir todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao seu sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima e um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite? Não teremos de acender lanternas em pleno dia? Será que ainda não estamos a ouvir o ruído que fazem os coveiros a enterrar Deus? Ainda não nos terá chegado o cheiro da decomposição divina? Porque até os Deuses se decompõem! Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!»[123]

Ora, «matar Deus» é o mesmo que entregar a natureza ao domínio do homem e, consequentemente, à sua destruição. Heidegger viu isso quando comenta a palavra de Nietzsche «Deus está morto»: «Se Deus e os deuses estão mortos, no sentido da experiência metafísica elucidada, e se a vontade de poder é cientemente querida enquanto princípio de toda a instituição das condições do ente, isto é, como princípio da instituição dos valores, então o reino do ente como tal passa, sob a forma do reino sobre a terra, para as mãos de um novo querer do homem, determinado pela vontade de poder»[124]. É, por isso, que Guerra Junqueiro vê no super-homem de Nietzsche um «super-monstro», cujo «direito se mede pela força»: «Todas as energias ciclópicas do monstro alemão se distenderam para um crime: devorar o Mundo. A Alemanha organizou em quarenta anos a mais estupenda máquina de guerra que os séculos têm visto. Com oito milhões de soldados obedientes e ferozes, um comando implacável e matemático, uma artilharia de extermínio que arrasa cidades e fortalezas a sete léguas de distância, uma esquadra gigante, e um bando de zepelins vomitando fogo, a Alemanha grandiosa, a Alemanha única, invencível na terra, invencível no mar e invencível no espaço dominaria o Mundo»[125]. O reino do super-homem anunciado por Nietzsche coincide com o reino de Satanás — do «Anti-Cristo». A renegação de Deus e a renegação da natureza significam a mesma coisa: devorar o Mundo e entregá-lo à decomposição. Guerra Junqueiro tem perfeita consciência de que o Progresso, quando associado ao quietismo (renegação da natureza) e ao niilismo (renegação de Deus), se salda numa dialéctica negativa do progresso[126]:

«O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem — [entenda-se o super-monstro] — é a fera dilatada.«Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas de aço, os intestinos de bronze, o olhar de relâmpagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando labaredas, vomitando morte.

«A pata pré-histórica do atlantossáurio esmaga o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a presa do mastodonte escavacava um cedro, o canhão Krupp rebenta baluartes e trincheiras. Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasta uma capital.

«Os grandes monstros não chegaram verdadeiramente na época secundária; apareceram na última, com o homem. Ao pé de um Napoleão, um megalossáurio é uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milhões e milhões de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos fariseus e à gula devoradora da burguesia cristã e democrática. O matadouro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. […] O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar»[127].

Diante desse «matadouro» que é a sociedade que abandonou Deus e que, em seu lugar, idolatra o dinheiro, entregando-se ao infinito orgulho, ao infinito rancor, à infinita ambição, à infinita mentira, enfim à infinita crueldade, torna-se necessário acordar do «sonho execrando de canibais», resistir solidária e fraternalmente[128] e resgatar integralmente Deus e a Natureza[129], visando a sua reconciliação futura, isto é, plena, na comunhão sagrada:

«Eu vejo o céu tão claro como o cristal ou como a nuvem. Sinto Deus, absorvo Deus, aspiro Deus. O Mundo sem Deus converte-se-me em fruto oco, e as imensidades estreladas, em arquipélagos de zeros. Mundos sem fim, zeros sem conta. A infinita grandeza pede a unidade, reclama Deus. Os orbes são divinos, porque nascem de Deus e voltam para Deus. São martírios eternos, eternamente escalando os seus calvários. E só pela infinita dor chegam a Deus — infinito Bem, infinita Paz, infinito Amor»[130].

No mesmo texto, Justino de Montalvão (1908), Guerra Junqueiro, dando eco provavelmente à doutrina luterana da Igreja Invisível, afirma:

«[…] Na minha igreja e no meu templo todo o Universo está rezando. Reza a luz, o ar, a pedra, a água, o lábio, a flor. A natureza é um credo ascendente, uma oração a Deus evolutiva. Murmúrio bruto na montanha, sílaba na rosa, cântico em Apolo, idealidade — espírito em Jesus. A oração de Jesus é a mais alta, porque é o hino do Amor cantado pela Dor, o beijo infinito, húmido de sangue, escorrendo lágrimas»[131].

Se interpretarmos a essência de Deus como sendo potencialmente imanente à vida, donde resulta um panteísmo consequente — entendido como promessa eternamente realizada no futuro, então negar Deus equivale a negar a própria vida que, na sua evolução contínua e ascendente, visa metamorfosear-se imamentemente em amor infinito. Daí que a negação de Deus seja uma «loucura monstruosa»: um assassínio levado a cabo mediante uma série de crimes perpetrados contra o homem e a natureza. À luz do panteísmo compreendido como promessa eternamente realizada no futuro, o ateísmo não tem qualquer sentido: ateísmo e niilismo coincidem. Contudo, podemos enquanto homens falar e apenas falar na morte de Deus, tal como fez Nietzsche. Guerra Junqueiro distingue dois tipos possíveis de ateus:

«Muitos o negam verbalmente, e a Ele se encaminham pela virtude e pelo esforço. E outros, que se julgam íntimos de Deus, nem de longe o conhecem, porque a todo o momento o estão negando nos seus actos, embora o afirmem em palavras, loucas umas vezes, outras vezes hipócritas»[132].

Na medida em que o ateísmo não é uma doutrina consequente, a menos que seja levada ao extremo da destruição total da vida e da natureza, e tal era o projecto satânico da Alemanha prussianizada de Bismark e do Kaiser, a classificação dos dois tipos de ateus transforma-se naquilo que não poderia deixar de ser — uma tipologia dos tipos de cristãos:

· Os que negam verbalmente Deus, mas que se encaminham para Ele através das suas obras virtuosas, não são verdadeiros ateus, mas, pelo contrário, verdadeiros cristãos.

· Os que afirmam Deus nas suas palavras, mas que o negam nos seus actos, são falsos cristãos e, deste modo, estão mais próximos de ser autênticos ateus.

O pensamento simples que conduz Guerra Junqueiro nas considerações que tece sobre o ateísmo podemo-lo enunciar dizendo que a grandeza de um cristão se mede mais pela grandeza das suas obras e das suas acções do que pelas suas palavras de intenção[133]. Para ser verdadeiramente cristão, não basta afirmar Deus em palavras; mais — mas infinitamente mais — importante que as palavras — «loucas umas vezes, outras vezes hipócritas» — são as obras que comunicam o amor infinito de Deus. O ateu verbal pode ser um santo, mas o mesmo já não pode ser dito do cristão verbal: este último é, na melhor das hipóteses, louco ou hipócrita. Esta reflexão gira em torno do conceito de Deus como amor infinito, como ideal realizado plenamente no futuro. Quem ama é cristão, mesmo quando o negue ser verbalmente. Quem não ama, não é cristão, mesmo que o afirme ser verbalmente. Esta dualidade reflecte essencialmente aquilo que Guerra Junqueiro denomina enfaticamente a «tragédia divina»: Deus debatendo-se com a sua própria «dualidade originária». O cristianismo é a doutrina do amor infinito de Deus. O verdadeiro cristão é aquele que actualiza a sua essência cristã nas acções que pratica diariamente e permanentemente:

«Deus é a infinita perfeição, porque é Amor Infinito, sentindo e vencendo a infinita dor. Os mais amorosos são os que mais se lhe chegam, e os mais egoístas, os mais afastados e os mais ímpios»[134].

Guerra Junqueiro está agora preparado para enunciar a tese fundamental que norteia todo o seu pensamento filosófico:

«O Mundo caminha para um cristianismo integral, puro e perfeito, que absolutamente harmonize coração e razão, ciência e fé, natureza e Deus.«A escola sem Deus é o infinito sem rumo, é o Universo morto, decapitado»[135].

Se por Mundo entendermos o mundo histórico-natural, então estamos em condições para afirmar que o pensamento de Guerra Junqueiro, que tentámos explicitar emprestando-lhe uma moldura teórica sistemática e, tanto quanto possível, coerente, mais não é que uma teologia cósmica da História Universal, que caminha gradual mas progressivamente para a realização de um cristianismo integral, puro e perfeito. Actualizando a sua essência todo o Universo encontra-se irmanado ao infinito amor que é Deus.

O cristianismo eterno é, portanto, a história que se santifica até atingir a sua plenitude no futuro: o amor eterno de Deus. Embora Deus esteja desde sempre presente, o seu reino será o do futuro liberto da dor e do sofrimento. Do futuro eterno Deus conduz todo o Universo até ao seu eterno e infinito amor. Do futuro eterno Deus garante a reconciliação plena. O futuro é, por natureza, o tempo eterno de Deus: o passado e o presente são tempos que oscilam permanentemente em relação à atracção que o futuro exerce sobre eles. Sem o futuro eternamente garantido por e em Deus, os outros tempos careceriam de sentido, ou seja, seriam «infinito sem rumo» ou «mundos sem fim»: eles só ganham sentido quando do futuro escutam o chamamento de Deus — Amor Infinito que, «sentindo e vencendo a infinita dor», se encontra finalmente, eternamente em comunhão espiritual com a sua «criação».

Ora, esta leitura do pensamento de Guerra Junqueiro só foi possível porque o próprio Poeta ambicionou produzir uma grande filosofia: aquilo que o Poeta não podia dizer foi dito pelo Filósofo que pretendeu ser. Bastou forçar um pouco a letra do texto para que dele brotasse uma filosofia sistematicamente pensada e teoricamente elaborada.
Fonte: Sousa, J Francisco Saraiva de (2003). "Guerra Junqueiro: Poesia e Filosofia". Humanística e Teologia, 24:253-303. (Editado com notas e bibliografia no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online": Guerra Junqueiro: Poesia e Filosofia.)
J Francisco Saraiva de Sousa

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