domingo, 13 de abril de 2008

Tradição e Preconceito: Hermenêutica de Gadamer

«A filosofia de Gadamer completa a teoria ontológico-existencial da compreensão (de Heidegger) e, simultaneamente, constitui a base da sua superação, através da tónica na linguisticidade da compreensão». (Josef Bleicher) (Veja CyberCultura e Democracia Online.)
Na Introdução de "Verdade e Método", Hans-Georg Gadamer define claramente o propósito da sua obra: «A hermenêutica aqui desenvolvida não é, por conseguinte, uma metodologia das ciências humanas, mas uma tentativa de compreender o que as ciências humanas são na verdade, para além da sua auto-consciência metodológica, e o que as liga à totalidade da nossa experiência do mundo». O objectivo de Gadamer não é, pois, negar a necessidade de uma obra metodológica no seio das ciências humanas, ou reavivar a velha disputa sobre o método entre as ciências naturais e as ciências humanas, mas descobrir que tipo de discernimento e que tipo de verdade se podem encontrar nas ciências humanas. Porém, os resultados da sua análise conduziram à descoberta de que a própria teoria das ciências humanas é verdadeiramente filosofia, porque toda a compreensão é hermenêutica. Isto significa que toda a compreensão é linguística e que a compreensão nas ciências humanas deve ser analisada através do meio da linguagem. A análise da natureza da compreensão coincide, portanto, com a análise da «hermenêutica universal». Gadamer mostrou que a experiência hermenêutica «ultrapassa o domínio de controle da metodologia científica» (Habermas).
Para Gadamer, o significado de um texto nunca se esgota nas intenções do seu autor, porque, quando a obra passa de um contexto histórico para outro, novos significados podem ser acrescentados e extraídos desse texto, muitos dos quais provavelmente não foram imaginados pelo seu autor ou pelo seu público contemporâneo. A instabilidade constitui parte integrante do carácter do próprio texto e da sua significação. Toda a interpretação é, portanto, situacional, modelada e limitada pelos critérios historicamente relativos de uma determinada cultura. Isto excluí desde logo a possibilidade de se conhecer o texto «como ele é».
Segundo Gadamer, toda a interpretação de uma obra do passado consiste num diálogo entre o passado e o presente. Isto significa que a experiência hermenêutica não é monológica, como a ciência, mas dialógica ou dialéctica num sentido diferente do da história universal de Hegel: «Tal como uma pessoa procura chegar a acordo com o seu parceiro (de diálogo) em relação a um objecto, também o intérprete compreende o objecto a que o texto se refere (...), ficando ambos em produtiva conversa, sob influência da verdade do objecto e ligados assim um ao outro numa nova comunidade», na qual «deixamos de ser aquilo que éramos». Perante o texto, o intérprete escuta prudentemente a sua voz não familiar, permitindo que ele questione as suas preocupações actuais. Porém, aquilo que o texto nos "diz" depende, por sua vez, do tipo de perguntas que somos capazes de lhe fazer, bem como do nosso ponto de vista na história e da nossa capacidade de reconstituir a "pergunta" para a qual o texto é uma "resposta", uma vez que o texto também é um diálogo com a sua própria história. Compreender um texto é, portanto, compreender a pergunta a que o texto vem dar resposta.
Toda a compreensão é sempre uma "compreensão diferente", isto é, a realização de novas possibilidades de sentido. Na dialéctica da pergunta e da resposta, um texto acaba por ser um acontecimento ao ser actualizado na compreensão, que representa uma possibilidade histórica. O horizonte de sentido é limitado e a abertura, tanto do texto como do intérprete, constitui um elemento estrutural na fusão de horizontes. Isto significa que o presente só é compreensível em função do passado, com o qual forma uma "viva continuidade" histórico-efectiva, e que o passado só pode ser apreendido do nosso ponto de vista parcial dentro do presente. O entendimento (a fusão de horizontes) ocorre quando o nosso "horizonte" de significados e suposições históricas se "funde" com o "horizonte" dentro do qual o próprio texto está situado. Nesse momento de fusão, entramos no mundo estranho do texto, ao mesmo tempo que o situamos no nosso próprio mundo, chegando a uma compreensão mais completa de nós próprios. Como diz Gadamer: o intérprete, em vez de "deixar o lar", "chega ao lar".
Tal como T. S. Eliot, Gadamer considera que todos os textos acabam sempre por voltar a casa, porque, sob toda história, abrangendo silenciosamente o passado, o presente e o futuro, flui uma essência unificadora conhecida como "tradição". Todos os textos pertencem a essa tradição, que nos fala tanto através do texto do passado que lemos, como por nosso intermédio no acto de compreensão. Passado e presente, sujeito e objecto, o estranho e o íntimo, estão assim unidos por um Ser que os abrange a todos. Para Gadamer, os nossos preconceitos ou "compreensões prévias" (Bultmann) não prejudicam a recepção do texto do passado, já que estas pré-compreensões derivam da própria tradição, da qual o texto com que nos confrontamos faz parte integrante. O preconceito é, pois, um factor positivo e não negativo. Esta reabilitação do preconceito e do carácter "preconceituoso" da compreensão (o círculo hermenêutico de Heidegger) levou Gadamer a criticar o Iluminismo, que, ao sonhar com um conhecimento totalmente desinteressado, conduziu ao moderno "preconceito contra o preconceito" e, portanto, à desvalorização do preconceito, da tradição e da autoridade vistos conjuntamente como o oposto da Razão.
Para Gadamer, os preconceitos criativos, que se opõem aos preconceitos efémeros e deformadores, são os que surgem da tradição e que nos colocam em contacto com a tradição. A autoridade da própria tradição, ligada à nossa auto-reflexão permanente, determina quais dos nossos preconceitos são legítimos, e quais dos nossos preconceitos não são legítimos. Por conseguinte, os preconceitos não constituem obstáculos à verdadeira compreensão do mundo, mas possibilitam o seu conhecimento, retirando do texto ou do fragmento de realidade tudo aquilo que tem apenas uma significação passageira e efémera. Cabe à hermenêutica filosófica realçar o momento histórico na compreensão do mundo e determinar a sua produtividade hermenêutica: a tarefa do intérprete não é reproduzir o texto no seu estado primitivo, mas alargar o seu próprio horizonte para que possa integrar o outro. Ora, esta fusão de horizontes na compreensão só é possível quando pomos à prova os nossos preconceitos no encontro com o passado e tentamos compreender partes da nossa tradição, levando em conta o conhecimento da história efectiva, o único capaz de nos ajudar na fusão controlada dos horizontes de sentido. Isto significa que a verdadeira experiência hermenêutica é a da nossa finitude humana, da nossa própria historicidade.
Mas qual a tradição, e a tradição de quem, que Gadamer tem em mente? Evidentemente, trata-se da tradição Ocidental. Esta questão é frequentemente formulada pelos críticos da hermenêutica filosófica de Gadamer, que geralmente alegam que a sua teoria só pode ser válida na suposição de existir apenas uma tradição "principal", da qual participam todos os textos "válidos". Acusa-se Gadamer de supor que a história é um fluxo contínuo, ininterrupto, livre de rupturas decisivas, de conflitos e contradições, da qual herdámos os nossos preconceitos, como se a história fosse um lugar onde podemos estar, sempre e em qualquer momento, à vontade, como se o texto do passado aprofundasse, em vez de dizimar, a nossa presente auto-compreensão e como se o estranho fosse sempre secretamente familiar. Na sua polémica com Habermas, Gadamer procurou mostrar que a sua concepção da história e da tradição reconhece as diferenças históricas. Porém, este reconhecimento é tendencialmente «superado» por uma compreensão que «liga a distância temporal que separa o intérprete do texto». A distância temporal não só «vai deixando desvanecer aqueles preconceitos de natureza particular e limitada, como leva aqueles que ocasionam a compreensão genérica a emergir claramente como tal». Isto significa que a tradição supera a própria distância temporal, dado dispor de uma autoridade a que nos devemos submeter. A tradição, afirma Gadamer, «tem uma justificativa que foge aos argumentos da razão».
Gadamer descreveu a história como «a conversação que somos», isto é, como um diálogo vivo entre o passado, o presente e o futuro, reservando para a hermenêutica a tarefa nobre de procurar eliminar pacientemente os obstáculos que se possam erguer a essa interminável comunicação mútua. Contra os que o acusam de ser tradicionalista, organicista ou anti-moderno, Gadamer responde que «a tradição está em constante mudança» e que a adesão à tradição mais não é do que a integração das «antecipações no material da realidade». A história vista como "diálogo interminável" constitui uma visão de abertura total ao passado, ao presente e ao futuro. (Este post foi editado no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online": Hans-Georg Gadamer e Hermenêutica Filosófica. Devido à falta de tempo, tenho estado mais activo nesse blogue do que neste: ambos partilham a CyberFilosofia.)
J. Francisco Saraiva de Sousa

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