segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Fernando Pessoa: Poesia e Homossexualidade

«Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,
Trincasse velas, remos, cordame e poleame
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes! (...)
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez - pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!»
(Álvaro de Campos, Ode Marítima)
«A mulher que sou quando me conheço». (Bernardo Soares, Livro do Desassossego)
É muito difícil encontrar actualmente uma definição consensual da psiquiatria, porque são diversas as áreas disciplinares que contribuem para a constituição da psiquiatria como ramo da medicina, fazendo com que se desdobre em diversas problemáticas, e para o diagnóstico e a terapêutica das perturbações mentais. Uma definição vulgar define a psiquiatria como um ramo da medicina que estuda a patologia da "vida de relação" ao nível da integração que assegura a autonomia e a adaptação do homem nas condições da sua existência, mas a tendência é cada vez mais a de a encarar como uma ciência do comportamento e das perturbações de comportamento. A imagem popular da psiquiatria ainda associa-a às "doenças mentais", de resto uma designação que caiu em desuso, e é essa noção que descobrimos em Fernando Pessoa. Num dos seus escritos de crítica literária, Fernando Pessoa afirmou que "o único crítico de arte ou de letras deve ser o psiquiatra". A noção do psiquiatra como o único crítico literário é deveras estranha. Como fingidor nato, Fernando Pessoa simula conhecer a obra de Freud e dos Freudianos e chega mesmo a dizer que não precisava ler Freud para "conhecer, pelo simples estilo literário, o pederasta e o onanista, e, adentro do onanismo, o onanista praticante e o onanista psíquico". E, mais adiante, procura explicar a introversão (autista) de Mário de Sá-Carneiro - a sua falta de calor humano e de ternura humana - pelo facto de ter perdido a mãe quando tinha dois anos. Como nunca conheceu o carinho materno, devido à morte prematura da mãe, Sá-Carneiro vira sobre si-mesmo a ternura própria e, como verificou Joel Serrão, torna-se um onanista compulsivo. Numa carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa utiliza a psiquiatria para explicar a génese dos heterónimos: "A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim". Porém, entre ser simplesmente histérico ou ser um histero-neurasténico, Pessoa opta pela segunda hipótese, "porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia..."
Fernando Pessoa auto-rotula-se em termos médicos como um "histero-neurasténico" desde a infância, mas, nesta auto-interpretação, não é a sua personalidade, a sua sexualidade real ou a sua enfermidade de alma que interessam: o que deveras interessa é compreender a unidade da sua obra poética, onde o seu eu se despersonaliza. A noção de despersonalização de que fala Pessoa parece aproximá-lo da teoria impessoal da poesia de T.S. Eliot: a concepção de poesia como um "todo vivo de toda a poesia já escrita". Nesta perspectiva, o poeta procura conhecer o passado, a Tradição ou o Espírito Ocidental, do qual o presente é a compreensão, e aperfeiçoar constantemente esse conhecimento, rendendo-se e auto-sacrificando-se a si próprio, numa extinção contínua da sua personalidade. Porém, em Fernando Pessoa, a despersonalização não significa o sacrifício das personalidades e das opiniões dos poetas, dos homens e das mulheres a uma ordem impessoal, a Tradição, mas sim a fragmentação do próprio eu e a sua dispersão - orquestrada pelo "dramaturgo" - em múltiplas identidades poéticas, os seus heterónimos, fragmentação essa que Pessoa, na carta a Armando Cortes-Rodrigues, pensa, talvez de modo precipitado, em termos de "crise psíquica", portanto, em termos psiquiátricos, possibilitando uma leitura psicopatológica da sua obra e da sua "alma enferma" (William James). Mas, como onde há dramaturgo, há uma linha condutora consciente unificadora e controladora da dispersão interior, a despersonalização não significa, em Fernando Pessoa, dissociação e/ou desrealização: Fernando Pessoa não sente que perdeu o controle sobre os seus pensamentos, imaginação ou lembranças, como se o seu corpo - movimentos corporais e comportamentos - e a sua mente - pensamentos e identidades - lhe fossem completamente estranhos, observados por si à distância como algo morto (despersonalização), ou carentes de integração e, portanto, fora do controle consciente e selectivo (dissociação). A auto-interpretação de Pessoa em termos psiquiátricos mais não é do que um recurso retórico para dar conta da sua "tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram": Fernando Pessoa é desde a infância um "dramaturgo".
Usando a obra de Freud e de Nietzsche, Harold Bloom reescreveu a história literária em termos de complexo de Édipo: os poetas vivem angustiados à sombra de um "poeta forte" anterior que, como "pai primordial", o "Pai Poético", os oprime. Todos os poemas podem ser lidos como tentativas de escapar dessa "angústia de influência" mediante a remodelação e a revisão sistemáticas de um poema anterior: "A Influência Poética - quando diz respeito a dois poetas fortes, autênticos -, processa-se sempre através de uma leitura má do poeta anterior, um acto de correcção criativa que é realmente e necessariamente uma interpretação errónea. A história da influência poética frutífera, que o mesmo é dizer a tradição principal da poesia ocidental a partir do Renascimento, é uma história de angústia e de caricatura defensivas, de distorções, de revisionismos perversos e deliberados sem os quais a poesia moderna enquanto tal não poderia existir". Presos nas teias da rivalidade edipiana, filhos e pais travam constantemente batalhas entre si e, quando essas lutas são entre iguais fortes, o poeta forte procura a todo o custo desarmar a força castradora do seu "perseguidor" - o pai -, penetrando-o a partir de dentro e reescrevendo o poema precursor de modo a revê-lo, deslocá-lo, encobri-lo e modificá-lo. É por isso que todos os poemas podem ser lidos como uma reescritura de outros poemas, mais precisamente como a sua "interpretação errónea". Só assim - lendo-se mal uns aos outros - os poetas fortes conseguem abrir espaço à sua própria originalidade imaginativa, isto é, desobstruir um "espaço de imaginação para si próprios". O poeta forte mais não é do que um "atrasado" que, reconhecendo corajosamente esse "atraso", procura enfraquecer a força do precursor. O poema é essa tentativa de enfraquecimento e de encobrimento que visa, através de diversos recursos retóricos, tais como as seis proporções de revisão - clinamen, tessera, kenosis, demonização, askesis e apófrades -, desfazer e superar outro poema-pai, donde resulta que o significado de um poema é outro poema gerado intra- e inter-poeticamente: "O poeta forte não consegue gerar-se a si próprio - deve esperar pelo seu Filho, que o definirá como ele definiu o seu Pai Poético. Gerar quer aqui dizer usurpar, e esse é o trabalho dialéctico do Querubim", isto é, da "angústia criativa".
A utilização da psicanálise para elaborar uma teoria da poesia não é isenta de dificuldades ou mesmo de abusos hermenêuticos. Theodor W. Adorno denunciou todas as interpretações psicanalíticas da arte que erigem abusivamente em critério um psiquismo normal, mesmo quando a qualidade estética é, como nos casos de Baudelaire e de Fernando Pessoa, condicionada pela ausência da mens sana: "As obras de arte são, para a psicanálise, sonhos diurnos; ela confunde-os com documentos, transfere-os para os que sonham enquanto que, por outro lado, os reduz, em compensação da esfera extramental salvaguardada, a elementos materiais brutos, de um modo aliás curiosamente regressivo em relação à teoria freudiana do «trabalho do sonho». (...) As obras de arte são incomparavelmente muito menos reflexo e propriedade do artista do que pensa um médico, que apenas conhece o artista no seu divã. Só os diletantes referem tudo o que se encontra na arte ao inconsciente. A pureza da sua sensibilidade repete clichés decadentes. No processo de produção artístico, as moções inconscientes são impulso e material entre muitos outros. Inserem-se na obra de arte através da mediação da lei formal; o sujeito literal, que compõe a obra, não passaria de um cavalo pintado. As obras de arte não constituem thematic apperception tests do seu autor. Em tal amusia é responsável também o culto que a psicanálise rende ao princípio de realidade: o que não lhe obedece é sempre «fuga» apenas, a adaptação à realidade surge como o summum bonum". Na carta a João Gaspar Simões, Fernando Pessoa denuncia precisamente a "franca paranóia (freudiana) de tipo interpretativo", cujo "critério psicológico original e atraente" de avaliação das obras de arte assenta numa "interpretação sexual". O freudismo conduz à produção de livros de ciência "obscenos" que interpretam os "artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante", "ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizada contemporânea". Ora, para Fernando Pessoa, "o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo". É imperfeito, porque nenhum sistema teórico nos pode dar a chave única da "complexidade indefinida da alma humana". É estreito, porque reduz tudo à sexualidade, esquecendo que "nada se reduz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atómica". E é utilíssimo, porque destacou três elementos importantes da vida da alma e fundamentais para a sua interpretação: o inconsciente e a qualidade irracional dos humanos (1), a importância da sexualidade como força motivacional (2) e aquilo a que Pessoa chama a "translação", isto é, "a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de se determinar a existência de certas qualidades ou defeitos por meio de efeitos aparentemente interrelacionados com elas ou eles" (3). Fernando Pessoa não nega o uso dos conceitos psicanalíticos como "estímulo da argúcia crítica", desde que esta saiba "afiar a faca psicológica (imagem fálica) e limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico (imagem iónica)". Contra os abusos interpretativos de alguns críticos, Pessoa esclarece que a função do crítico é estudar o artista exclusivamente como artista (1), clarificar a explicação central do artista (2), e cercar os seus estudos de uma "leve aura poética de desentendimento" (3). E apresenta o seu exemplo para clarificar o segundo ponto metodológico: "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro - eis tudo. Do ponto de vista humano - em que ao crítico não compete tocar, pois de nada lhe serve que toque - sou um histero-neurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir". A chave hermenêutica apresentada por Pessoa para abrir todas as fechaduras da sua expressão poética reconduz-nos ao célebre poema "Autopsicografia":
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
"E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
"E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração".
Teixeira de Pascoaes, o pai eterno visado no trabalho intra-poético de Fernando Pessoa, deixou-nos estas palavras de cautela hermenêutica: "Ser sincero é ser, é possuir uma presença integral, como as árvores e os penedos. A mentira representa pontos obscuros, falhas da nossa pessoa que pretendemos ocultar. Mas a sinceridade é a própria luz das almas. Por isso, ela seduz e deslumbra os olhos que amam a claridade". Quando analisa a poesia alheia, em especial a dos pais poéticos que urge assassinar, Fernando Pessoa recorre, dito em linguagem hegeliana, à mediação psicológica e à mediação sociológica para compreender as obras de arte e, no caso referido, para interpretar mal os poemas precursores. O recurso abundante à mediação psicológica visa denegrir os chamados "poetas místicos" - Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro e Jaime Cortesão, entre outros - e, como recurso extra-poético, viola o ponto dois da metodologia da crítica literária proposta pelo próprio Fernando Pessoa: explicitar a "explicação central do artista". Os heterónimos ou as máscaras de Pessoa - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, além do seu semi-heterónimo Bernardo Soares -, cada um dos quais apetrechado com um profundo conceito de vida e marcado pelas suas próprias influências e preferências poéticas, nacionais e estrangeiras, embora todos eles "discípulos de Caeiro", incluindo o próprio Fernando Pessoa, constituem personagens que Pessoa utiliza para interpretar mal esses poetas nacionais, de modo a desbravar um espaço onde pudesse afirmar sem mácula a sua originalidade imaginativa. A dramatização e a criação dessas máscaras acontecem dentro da própria poesia de Pessoa ou, como prefere dizer, dentro de si próprio, o que mostra a intensidade da angústia da influência sofrida continuamente por Pessoa, que precisa usurpar os outros e vivê-los como suas criações internas e privadas dentro de si próprio. A elaboração das biografias de cada um dos heterónimos mostra que, durante a sua viagem, Pessoa acaba por assassinar cada um deles, com o objectivo de descobrir a sua unidade original. Numa atitude de desprezo pelos seus contemporâneos e antecessores, Pessoa afirma que a sua crise psíquica é a crise "de se encontrar só" por se ter adiantado de mais dos "companheiros de viagem". Ora, afirmar que se encontra adiantado em relação aos poetas-pais equivale a reconhecer o sucesso da sua tarefa de os superar ou de os melhorar. Porém, essa superação bem-sucedida não é evidente, até porque Pessoa se limita a substituir o saudosismo de Pascoaes por um futurismo absolutamente místico: a mitologia do Quinto Império, fortemente devedora dos ensinamentos herméticos de Sampaio Bruno, mas privado da sua leitura antropológica do Encoberto. Bernardo Soares acaba por reconhecer esse fracasso poético: "A minha alma é fraca de mais para ter sequer a força do seu próprio entusiasmo. Sou feito de ruínas do inacabado e é uma paisagem de desistência a que definiria o meu ser. /Divago, se me concentro; tudo em mim é decorativo e incerto, como um espectáculo na bruma. /Escrevo com uma grande intensidade de expressão; o que sinto nem sei o que é. Sou metade sonâmbulo e a outra parte nada. /A mulher que sou quando me conheço". Conhecer a mulher que é ou, como diz Prado Coelho, a sua pederastia passiva, é reconhecer que a sua ambição, mesmo a de vir a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, não foi suficiente para fazer dele um poeta forte, tal como Shakespeare, Goethe ou Whitman: o seu super-Camões que parodia o super-homem de Nietzsche foi apenas um sonho diurno que não conseguiu concretizar e completar. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

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