segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Reler Espinosa

Tenho editado alguns posts noutros blogues que giram em torno de Espinosa e todos eles apontam para uma nova leitura. Althusser captou essa necessidade de reler Espinosa em nova chave, mas infelizmente não chegou a levar a cabo essa tarefa, bem como a de reler toda a filosofia política do Iluminismo.
Reproduzo aqui um texto editado no meu blogue CyberCultura e Democracia Online e aproveito a ocasião para desejar um bom Ano Novo a todos os meus amigos online e offline, sobretudo aos ilustres companheiros de jornada e autores de blogues filosóficos: "Café Filosófico de Évora", "Hípias Maior", "Forum Filosofia", "Páginas de Filosofia", "Telegrapho de Hermes", e "De Rerum Natura". Um abraço especial para o Renato e o Valter do "Café Filosófico de Évora" e para a Borboleta do "Hípias Maior".


«O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autómatos: é fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles possam usar livremente a razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a liberdade». (Espinosa)
Ao contrário do que pensa António Damásio, a filosofa de Espinosa (1632-1677) teve um enorme impacto no pensamento moderno e, de certo modo, ainda não foi avaliado dignamente o seu contributo político, com excepção da obra de Jean-T. Desanti.
As ideias políticas de Espinosa foram expostas em duas obras: O Tratado Teológico-Político, publicado em 1670, com uma falsa indicação quanto ao lugar onde foi editado, e o Tratado Político, publicado em 1677, após a morte de Espinosa. Estes dois tratados só podem ser compreendidos no âmbito geral da filosofia de Espinosa, tal como se exprime na Ética ou mesmo no Tratado da Reforma da Inteligência, ambas publicadas em 1677. Penso, aliás na peugada de Althusser, que esta última obra inacabada representa uma promessa de mudança radical de paradigmas: a problemática da filosofia do conceito, em vez da problemática da filosofia da consciência ou mesmo do paradigma da filosofia da comunicação, para já não falar da problemática ontológica. Dado não termos elaborado esta filosofia do conceito, torna-se muito mais difícil avaliar o contributo de Espinosa no domínio da política e do Estado.
O Tratado Teológico-Político submete a religião a uma crítica sistemática: uma crítica exemplar dos textos e uma crítica dos milagres e das profecias. Para Espinosa, a Escritura é uma obra humana e, portanto, falível, como procura demonstrar quando destaca as suas contradições. Esta crítica dos textos é dotada de uma enorme qualidade hermenêutica. Espinosa defende o divórcio entre a teologia e a filosofia, entre a fé e a razão: «O objecto da filosofia é unicamente a verdade; o da fé (...), é apenas a obediência e a piedade». Portanto, entre a Filosofia e a religião «não existe nenhuma relação nem qualquer afinidade«.
A terceira parte do Tratado Teológico-Político (capítulos XVI a XX) conjuga a crítica da cidade terrena e da cidade de Deus, para mostrar que o Estado possui um fundamento natural e racional, não teológico. Espinosa defende um regime liberal, não só em matéria religiosa, mas também em matéria política. A «liberdade de filosofar» é fundamental para a manutenção da paz no Estado e da piedade. Espinosa faz baixar a razão à Terra e tenta expulsar o temor e o ódio, de modo a introduzir o livre raciocínio na matéria religiosa e a mostrar que os homens devem ser julgados pelos seus actos. A liberdade de pensamento emana do próprio direito natural. Daí que «ninguém seja obrigado, consoante o direito natural, a viver segundo a vontade alheia, e que cada um seja o protector inato da sua própria liberdade». É certo que os homens podem transferir o seu direito natural, mas «ninguém pode despojar-se completamente do seu direito natural e (...) os súbditos, por consequência, conservam sempre alguns direitos que lhes não podem ser negados sem que isso constitua um perigo para o Estado».
Uma vez que a verdadeira finalidade do Estado deve ser garantir a liberdade, Espinosa critica severamente os governos monárquicos e defende o governo democrático: o Estado democrático é aquele que «me parece o mais natural e o que mais se aproxima da liberdade que a natureza reconhece a cada um». «Em democracia, com efeito, ninguém transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria do todo social, de que ele próprio faz parte e, nessa medida, todos continuam iguais, tal como acontecia anteriormente no estado de natureza». A democracia é, segundo Espinosa, o único regime capaz de garantir «a manutenção da liberdade», desde que os cidadãos não alienem completamente os seus direitos naturais.
Espinosa tem consciência do carácter paradoxal da condição humana e sabe que os homens, apesar de serem naturalmente livres, não sabem ser livres, preferindo alguma forma de escravatura. «Porque ninguém, na realidade, é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão». Aqui reside o núcleo da crítica da actual sociedade de consumo e da sua ideologia de mercado, que fazem do homem um escravo do tipo "besta ou autómato", portanto, um ser racionalmente reduzido ou atrofiado que alienou completamente o seu direito natural, isto é, a sua liberdade. «Ninguém, com efeito, pode alguma vez transferir para outrem a seu poder e, consequentemente, o seu direito, ao ponto de renunciar a ser um homem». Ora, é isso que está a acontecer nas democracias ocidentais: os indivíduos renunciam aos seus direitos naturais e, portanto, renunciam à sua condição humana. Marx, um leitor atento de Espinosa, lutou contra a escravidão laboral da classe operária e pelo seu reconhecimento político. Reler Espinosa à luz das actuais circunstâncias políticas e económicas é restituir o liberalismo radical à teoria de Marx e elaborar uma nova política de Esquerda, aquela que visa reformar o Estado de modo a que este cumpra a sua verdadeira finalidade: garantir a liberdade e combater a corrupção que fez da democracia "representativa" um regime cleptocrático, portanto, uma oligarquia simulada. A teoria de Marx é profundamente liberal, avessa a uma "leitura comunista", de resto equivalente à democracia cleptocrática vigente e seu "centralismo democrático" (conceito não-marxista), onde uns poucos (as classes dirigentes) julgam que só eles sabem tudo e querem que tudo seja orientado segundo a sua maneira de ver, aquela que avalia tudo em função da sua ambição e do seu lucro pessoais. A "ditadura do proletariado" (outro conceito não-marxista) corresponde à "ditadura das classes dirigentes" vigente nas sociedades ocidentais, sobretudo europeias: os seus rostos são mais estalinistas do que o próprio Estaline! (Detecta-se aqui uma clara tentativa de libertar Marx da leitura "comunista" e de resgatar o seu pensamento em chave liberal: Irei mostrar isso noutro post sobre "Marxismo Liberal". Afinal, a Filosofia é um campo de batalha!)
(Veja
Damásio e Espinosa.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Florbela Espanca: Poesia e Filosofia

A leitura de Florbela Espanca coloca desde logo um sério problema hermenêutico. No seu «Diário do Último Ano», Florbela confessa, ao mesmo tempo que desafia o seu potencial e virtual leitor futuro:
«Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros […] talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto (II, p.33)».
Uma confissão: «Compreendi que nada compreendi […] de mim». Uma esperança: talvez os outros possam revelar «o meu ser misterioso» — aquilo que Florbela «foi» mas que não compreendeu. Pesada tarefa essa de compreender um ser que compreendeu que nada tinha compreendido do seu segredo mais íntimo, mais essencial. Mas o que torna esta tarefa ainda mais arriscada é o facto desse ser ter sido o ser de uma mulher e o nosso ser ser o ser de um homem.
Portanto, o nosso problema torna-se mais complexo: Como é que o homem que sou pode revelar o ser de uma mulher que nunca se esquece da sua condição feminina? Será que o Ser é, ele próprio, dilacerado em si mesmo por esta dupla condição masculina/feminina que procura, cada uma a seu modo, sondar o seu segredo? Ou será que Florbela se entregou a uma tarefa que ultrapassa a sua condição feminina? De facto, o Ser só tem sido dito, até hoje, no «masculino». Quererá isto dizer que a ontologia é tarefa exclusiva de homens?
Sabemos que Florbela não desejava uma mera pesquisa biográfica: ela queria compreender o «ser» do Dasein que tinha sido — um empreendimento hermenêutico de cariz ontológico: uma hermenêutica ontológica do Dasein. Uma expressão sua mostra precisamente isso: «Morrer na morte». Morrer na morte é querer ser esquecida, completamente esquecida, como se nunca tivesse sido lançada no mundo. Contudo, ela aguarda que alguém, no futuro, a resgate do esquecimento.
O nosso empreendimento hermenêutico muda assim de rumo: resgatar Florbela é recuperá-la para a vida e para o pensamento — é manter viva a sua memória, de modo a indicar e relembrar aos homens que eles são, antes de tudo, seres mortais. E mais importantes do que os vivos que se perderam em caminhos que não levam a parte alguma são os Mortos. Morrer na morte é, nesse sentido, um regresso virtual ou real à vida do pensamento daqueles que não se esqueceram dos que morreram desassossegados. A morte deixa de ser encarada com angústia: o que se deseja é viver uma vida sem angústia. A vinda dos Mortos avisa-nos e indica-nos o caminho a seguir: pensar a verdade do Ser como uma possibilidade para viver uma vida sossegada. Apesar das diferenças, não restam dúvidas: Florbela quis compreender o segredo do Ser, à custa de não realizar plenamente a sua condição feminina. Florbela auto-sacrificou-se para alertar os outros para a necessidade urgente de pensar, sem nada querer para além da fruição da verdade do Ser.
O suicídio de Florbela é o seu acto mais ousado e mais profundo: não vale a pena viver quando a vida nos desaloja de nós mesmos, impossibilitando a realização das nossas possibilidades mais íntimas e essenciais. Viver é mais do que viver a vida do dia-a-dia; viver é amar e amar é entrar em sintonia com o mistério do Ser. O suicídio é o acto que deve acordar os que sempre estiveram adormecidos — é invitá-los e convocá-los para a tarefa de pensar profundamente sobre aquilo que merece ser pensado dignamente: a vida de cada um de nós e a vida de todos nós juntos, com os outros, os animais, a natureza, enfim o mundo comum.
Pensamos ter deslocado o nosso problema hermenêutico: apesar de sermos diferentes, isto é, de pertencermos a géneros opostos, cabe-nos a todos zelar por uma vida justa e digna. Veremos até que ponto este deslocamento nos permitirá resolver o problema chamado Florbela Espanca, sem cairmos nas armadilhas do preconceito ordinário.
A morte como deixar-de-ser do Dasein, sem qualquer outra possibilidade real de «sobrevivência», incluindo nas lembranças daqueles que amaram ou amam o Morto querido, é um pensamento típico daqueles indivíduos que desejam matar pela segunda vez o Morto, de modo a virem a dispor do Vivo a seu bel-prazer. A morte como fim sem outras possibilidades revela o egoísmo e a maldade dos que pensam nestes termos. Matar a Morta pela segunda vez é esquecê-la completamente, negando-lhe até mesmo os momentos em que esteve viva nas nossas vidas.
Dada a sua infelicidade essencial devida à actividade de pensar, Florbela desejou a sua própria morte, mas de um modo inesperado: Florbela quis morrer na morte para não vir a ser julgada por todos aqueles que não a tinham compreendido e que não a tinham amado. Se a sua vida foi sofrida na mais completa solidão, o suicídio desejado deveria ser um esquecimento: o esquecimento da Morta que não foi feliz entre os vivos. A partir do momento em que o seu irmão morre, Florbela perdeu a última esperança que a ligava à vida: o amor do seu irmão. Morto o irmão, nada mais lhe resta a não ser preservar a sua memória longe dos vivos e aguardar sem esperança a sua própria morte. Morrer na morte é desejar ser esquecido, já que não há ninguém vivo que a possa lembrar com saudade; mas é também o desejo de desaparecer na morte sem deixar marcas e vestígios. Florbela não quer ser recordada, porque não quer ser julgada. Todo o julgamento é visto por ela como uma segunda morte. Querer morrer na morte é o mesmo que mergulhar num silêncio sem lembranças.
Se ela imortalizou o seu Morto querido, não queria, no entanto, ser imortalizada, nem sequer pelos que estavam mais próximos de si. No entanto, deixa um desafio a um interprete futuro: já que não a compreenderam em vida, pode suceder que alguém, vindo do futuro e a partir da sua obra, resolva resgatar a Morta que quis morrer em vida e também morrer na morte, simplesmente para não ser julgada. Resgatar significa aqui preservar a memória viva da Morta que quis ser esquecida na morte por aqueles que a julgaram em vida. Morrer na morte é aguardar silenciosamente por alguém, inteiramente estranho, que a resgate desse sono profundo que não quer ser incomodado por ninguém que não a tenha amado. Nas lembranças silenciosas da Morte o resgate é um acto de amor. Compreender finalmente Florbela é um modo de lhe restituir o amor que a vida lhe negou; é recordá-la naquilo que ela era e foi, mas que ninguém, nem sequer ela mesma, chegou a compreender.
Afinal, compreender o quê? Compreender que todo o animal lançado no mundo merece ser amado e ser feliz. Por não ter sido amada, Florbela não foi feliz e não foi feliz por não ter sido compreendida na sua mais íntima essência. Negado o amor, restava-lhe a solidão povoada de pensamentos, nomeadamente o pensamento e o projecto da morte. Já não olhava para baixo, mas para cima — para o céu, em busca de conforto e de socorro que nunca a socorreu. Afinal, quem é Deus? Amor, responde Florbela seguindo a tradição cristã. Mas que tipo de amor é esse que não acode os que o procuram? Compreensão plena, livre de julgamentos. O desafio lançado por Florbela é, ele mesmo, um desafio hermenêutico.
Florbela desejou deixar de pensar e entregar-se ao momento, mas o seu pensamento era mais forte que as suas emoções e desejos passageiros, em particular aqueles que desejam abdicar do pensamento. Viver ou pensar? Mesmo sabendo que a vida que não pensa pode criar a ilusão de felicidade, Florbela quis o impossível: viver a pensar e pensar a vida. Pode não ter encontrado a felicidade, mas encontrou-se a si mesma num mundo solitário que, de resto, é o do pensamento. Para Florbela, pensar já era uma preparação para a morte vindoura. Um vida sem pensamento é pura ilusão! Mais vale pensar que se enganar a si mesmo. Desiludida com o mundo e os seus homens, restava-lhe olhar nos olhos os animais ou mesmo qualquer ocorrência da natureza. Nesse olhar encontrou Florbela aquilo que nunca encontrou entre os homens: a serenidade ou, mais precisamente, a vontade de não querer — e, antes de tudo, a vontade de não querer viver ou habitar num mundo que nunca foi nem seria o seu mundo, dado ser e continuar a ser o mundo daqueles que não sabem escutar a voz aflita daquele que pede socorro. Morrer na morte foi o pensamento que levou Florbela a encarar o suicídio como uma evasão na evasão — como um modo de alcançar a serenidade que sempre desejou.
O resgate de Florbela exige uma compreensão integral da sua obra, onde guardou os seus mistérios, susceptível de a fazer «voltar» ou «regressar» do reino dos mortos, não para ser julgada mas para ser lembrada como aquele ser que da vida só quis ser amada, isto é, compreendida. Amar a Morta é manter a lembrança viva daquilo que foi na sua essência mais genuína: uma peregrina. Florbela «sacrificou» a sua vida ao pensamento, aparentemente «em vão», mas cabe-nos a nós — os seus leitores futuros — restituir-lhe a sua coragem de ter escolhido o caminho mais difícil da vida: pensar, em vez de se entregar a uma vida ilusória, onde o amor já nada significa para além de um comércio sexual em que os íntegros perdem a sua dignidade — a dignidade de serem «limpos».
«Quem me dera poder morrer na morte»: eis um pensamento aparentemente estranho, como estranha foi a vida de Florbela. Morrer na morte: este pensamento tem significações diferentes quando dito por um vivo ou «murmurado» por um morto.
Ernst Bloch diria que não se pode falar da morte, porque, além de não termos experiência da nossa própria morte, não falamos com os mortos. É certo que existem pessoas que dizem ser dotadas de poderes para comunicar com os mortos, mas, se o que elas descrevem pode ser analisado em termos científicos, a sua suposta experiência não pode ser esclarecida racionalmente. Contudo, há uma maneira de «escutar» a morte: a lembrança do morto permite um diálogo interior com o morto naquilo que foi em vida e naquilo que nos delegou — o seu testemunho. Um diálogo com o morto querido é uma modalidade de «discurso interior»: graças às lembranças intensificadas pela experiência brutal da morte, o pensar consigo mesmo é enriquecido e povoado pela presença recordada do morto querido e pela sua marca única e insubstituível. O pensamento interior evoca o morto — torna-o presente e dialoga com ele. Comigo mesmo falo, falando com o morto querido, e falo com o morto querido, convocando-o ao abrigo do meu discurso interior. Conversar com o morto é manter viva a sua memória: é mantê-lo na nossa proximidade e conceder-lhe em mim mesmo o direito à sua palavra compreendida.
Negar esta experiência da morte de outrem é próprio daqueles indivíduos que não amaram, isto é, não compreenderam verdadeiramente os «seus» mortos. Dialogar com os mortos, sobretudo os queridos, é não só não os esquecer mas também querer que eles não sejam mortos uma segunda vez e todas as vezes que for necessário.
Se Florbela disse, em vida, que desejava morrer na morte, este seu desejo deve estar sempre presente no pensamento daqueles que a querem deveras compreender. Um tal desejo é uma dupla-antecipação: a antecipação da morte certa e o desejo revelado antecipadamente de querer morrer novamente nessa morte de que ninguém escapa. A primeira antecipação é uma fatalidade do destino: ninguém pode evitar a sua própria morte. Todos os que nascem morrem necessariamente e este acontecimento não resulta de uma escolha, excepto talvez naqueles que se antecipam à morto suicidando-se realmente. No fundo, não escolheram verdadeiramente a morte: limitaram-se a executar aquilo a que não podem por destino escapar — a morte sempre-já os escolheu, dado que todos são seres mortais. Florbela só deseja morrer na morte, ou seja, ser esquecida completamente, se a morte não corresponder à sua pré-noção de serenidade; caso contrário, a morte seria o prolongamento de um julgamento que começou em vida e no qual não se revia. Assim, morrer na morte é desejar interromper o julgamento dos outros que estão longe de compreender a sua vida, mesmo quando já não faz parte do mundo dos vivos. Com efeito, só se morre dignamente quando somos recordados como seres únicos e singulares: este é o testemunho, a palavra deixada pelo morto, com a qual devemos comunicar para compreender aquilo que quis ser e foi efectivamente, se soubermos honrar a sua presença passada.
O morto desaparece, sendo reintegrado nas cadeias tróficas, mas o seu espírito — esse não desaparece enquanto houver no mundo alguém que queira manter viva a sua memória e viver na sua proximidade, numa comunhão só possibilitada pelo discurso interior, durante o qual o «eu» fala e escuta o morto presente na sua memória. O pensamento não só recorda o morto como também actualiza, nesse acto, a sua presença num diálogo em que tudo é constantemente renovado e aprofundado. Deste modo, o morto, retraído à visão e aos sentidos, emerge plenamente no pensamento interior, donde continua a participar nos contextos práticos da vida quotidiana. Esta é a experiência mais sublime e bela que podemos ter com a morte dos outros, sobretudo os queridos, aqueles que amaremos até ao fim das nossas vidas. A estética da morte reside precisamente nesta comunhão espiritual entre o vivo e o seu morto querido.
A consciência que mergulha profundamente na sua «interioridade», descobrindo que está sozinha num mundo estranho, avizinha-se, nesse instante, da morte, que deixa de ser temida e passa a ser próxima e «companheira». A consciência que toma a morte como companheira anseia pela sua morte: procura na morte o sossego e a tranquilidade que a vida diária lhe nega sistematicamente e, frequentemente, de modo «cruel» — cruel no sentido em que a palavra dirigida ao outro cai no silêncio aterrador de um diálogo impossível. Enfrentar a existência e a indigência dos tempos pós-modernos na solidão exige uma proximidade íntima com a morte. É, por isso, que Nietzsche escreveu estas palavras que só são enigmáticas para quem nunca se descobriu a si mesmo na sua mais profunda solidão: «O pensamento no suicídio é um poderoso meio de consolação: com ele, afastamos facilmente muitas noites más» (PABM, p.104, §157). Sobretudo, naquelas noites em que somos capazes de pensar afastados dos espaços públicos e da sua visibilidade. E, no entanto, Nietzsche afirmava ser mais preferível pensar a vida do que pensar a morte.
Florbela mostra que, para pensar a vida com verdade, é preciso pensar a morte e, em particular, tê-la como companheira. Com efeito, no pensamento da morte encontra-se algo mais do que a consolação que a vida nos nega: encontra-se a nossa subjectividade única e singular, bem como a força para continuar a viver, de modo a não permitir que a vulgaridade mate até mesmo os que já morreram.
A «ciência da morte» é, de certo modo, uma «ciência do desassossego», mas o desassossego é aí metamorfoseado em consolo e em tentativa derradeira de comunicar. A ciência da morte não se comunica publicamente: primeiro, «escreve-se» intimamente e, depois, a palavra não escutada é exteriorizada na escrita, mas numa escrita que ainda não perdeu a esperança de receber uma resposta e encetar um diálogo. O «diário íntimo» é a forma privilegiada de um tal discurso interior que se abriga na morte. Dialogando consigo mesmo e com os vestígios do morto presentes na sua memória e exteriorizando esse diálogo para as folhas de um caderno, tudo isso é uma forma de não perder a esperança: a esperança de ser lido/escutado por alguém já nascido ou ainda por vir. O diário é escrito para ser lido por alguém que recupere o sentido desse discurso do esquecimento e responda àqueles pensamentos que não foram escutados na devida altura. Nessa abertura ao mundo uma alma definha aos poucos, na esperança de vir a ser compreendida e resgatada do esquecimento, mesmo que dela já nada exista a não ser as palavras escritas.
Florbela morreu e desapareceu do mundo das aparências, mas a sua obra está aí à espera de ser lida e compreendida. Contudo, estabelecer um diálogo com os seus pensamentos guardados em palavras é, como era sua intenção e desejo, procurar compreendê-la nas «infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto» (11, p.33). Mas, afinal, quem foi Florbela Espanca? Esta interrogação não é tanto uma questão biográfica ou psicológica mas fundamentalmente uma questão hermenêutica, até porque uma análise psicológica seria vista pela própria Florbela, se ainda fosse viva, como um prolongamento de julgamentos a que foi submetida durante a sua passagem pelo mundo das manifestações. O seu feminismo, se existe, não é certamente psicológico, mas profundamente hermenêutico.
No Poema "Sou Eu!", o último terceto é sintomático:
«Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas
«Prendeu da vida, assim como ninguém,
«Os maus espinhos sem tocar nas rosas!»
Da vida Florbela reteve apenas nas suas mãos ansiosas os maus espinhos, deixando escapar, sem nunca lhes ter tocado, as rosas. Uma vida irremediavelmente danificada, de certo modo perdida. O soneto "O Meu Impossível" (p.363) lança mais luz: A sua «alma ardente» é vista como «ânsia de procurar sem encontrar/A chama onde queimar uma incerteza!» A vida danificada não se rende imediatamente a certeza de já não ter vontade de não querer e esperar da vida: a incerteza mantém Florbela prisioneira da vida, porquanto nela ainda habita uma alma que procura a «chama» que possa dar-lhe uma certeza, ou melhor, um sentido. Contudo, dado que essa procura constante, a de uma vida inteira, nada encontrar, converte-se assim em vontade de não querer. A ânsia de procurar sem encontrar é a vida e a morte de Florbela. A resposta é clara:
«Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
«É nada ser perfeito! É deslumbrar
«A noite tormentosa até cegar
«E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!»
A procura que não encontra aquilo que procura, enfim a vida de Florbela vista da sua perspectiva interior, todo o seu esforço foi «em vão». Uma vida desperdiçada, ter sido «em vão» todo o seu esforço vital: isto é o impossível de Florbela — não encontrar o que procurou ansiosamente durante toda a sua vida. De resto, uma impossibilidade vivida e pensada como tal. Nem Deus a socorreu: Vida triste que, no soneto "Deixai Entrar a Morte" (p.387), anseia pela própria Morte:
«Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
«A que vem para mim, pra me levar».
O dia torna-se escuro e a noite ilumina-se. Da vida já nada espera: a alma deseja que a Morte a ilumine.
«Que sou eu neste mundo? A deserdada,
«A que prendeu nas mãos ...
«A vida inteira ...
«E que, ao abri-las, não encontrou nada».
No poema "A Minha Morte" (p.55), Florbela fala da sua morte: «Velei na vida o meu viver inteiro,/E nunca mais tive um sonho a que sorrir». Ora, no poema "A Vida e a Morte" (p.30), «a vida é o sorriso/E a morte da vida a guarida». Se a vida é um sorriso, na medida em que o sonho diurno se realiza, a vida de Florbela foi antes um pesadelo. É certo que teve um sonho diurno — «Eu quero amar, amar perdidamente!» ("Amar!", p.322), mas a sua vida não sorriu a esse sonho. A procura ansiosa do amor foi «em vão». Do sonho nada resta, a não ser a consciência do seu fracasso. Em "Nostalgia" (p.323), mas sobretudo em "Quem sabe?..." (p.337), Florbela entrega-se a uma meditação metafísica e diz: «Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!», e termina:
«Quem sabe se este anseio de Eternidade,
«A tropeçar na sombra, é a Verdade,
«É já a mão de Deus que me acalenta?»
"Voz Que Se Cala" (p.365) é outro poema altamente significativo: A voz que se cala rende-se ao Destino e o Destino é a Morte que, eventualmente, poderá — Quem sabe? — iluminar uma vida nova — «Além» —, uma vida que sorria eternamente para a alma que a procurou incessantemente na Terra sem a encontrar. Ainda em vida, mesmo no limiar da Morte, Florbela despede-se do corpo, retendo apenas o cuidado da sua alma. Deste modo, o seu discurso desfaz-se do feminismo e o sentido de alguns pares de categorias é invertido: o Dia da Vida é a Noite da Vida e a Noite da Vida é o Dia da Vida. A vida é noite e a morte é dia — o grande dia. O amor que não encontrou em vida pode vir a encontrar na morte e no «além», porquanto Deus é supostamente Amor. Aí, na Eternidade, o impossível torna-se possível, a menos que o severo julgamento da vida tenha também os seus direitos e efeitos no «além». Diante desse cenário — a partir do qual Cândido elaborou o seu drama "A Primeira Morte de Florbela" —, já nada mais resta a não ser morrer na morte — pura e simplesmente desaparecer. A Eternidade sorridente iluminada pelo Amor não é, pelo menos aqui nesta Terra onde vivemos como «sombra duma sombra/Por entre tanta sombra igual a mim!" ("Nostalgia", p.323), uma certeza, mas um anseio, uma esperança de que podemos, finalmente, realizar o nosso sonho diurno: «amar perdidamente». Se assim não for, ou se deseja «voltar» à vida obscura anterior (p.323) ou se deseja morrer na morte: Calar definitivamente a voz para que não haja mais palavras de anseio e deixar de sonhar. Afinal, desta perspectiva, o sonho diurno aparece como um obstáculo à vida «feliz». O sonho que se projecta num futuro amor é a maior ilusão: a ilusão que nos impede viver a vida que temos como mais certa. Vida desperdiçada em sonhos diurnos, vida perdida eternamente numa imensa escuridão onde nada mais existe a não ser o silêncio: o silêncio das vozes que se calaram para sempre.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Hans Jonas: Pensar Deus depois de Auschwitz

Excurso provisório sobre a teologia especulativa de Hans Jonas
Auschwitz foi um acontecimento real e Deus permitiu que esse acontecimento horroroso acontecesse. Poder-se-ia dizer que depois de Auschwitz já não se pode pensar mais em Deus, mas uma tal atitude não nos ilibaria da nossa responsabilidade.
Hans Jonas coloca a questão nestes termos: «Que tipo de Deus poderia permitir isso?»
. A questão colocada nestes termos não visa romper com qualquer tipo de compreensão de Deus e muito menos negar Deus: não é Deus que é posto em questão, mas uma determinada concepção teológica de Deus — aquilo a que Moltmann chamou o «Deus de Parménides»:
«O Deus de Parménides é “pensável” porque é o ser eterno, uno e pleno. Pelo contrário, o que não é, o passado e o futuro, não são “pensáveis” Na contemplação da presente eternidade deste Deus, tornam-se impensáveis — pois não “são” — o que não é, o movimento e a mudança, a história e o futuro. A contemplação deste Deus não permite uma experiência inteligente da história, mas só a sua negação. O logos deste ser liberta e exonera, para o presente eterno, do poder da história»
.
Hans Jonas pensa, talvez demasiado precipitadamente, que, diante desta pergunta, o judeu «está teologicamente numa posição mais difícil que o cristão»
. Dado que espera a verdadeira salvação no mais-além, o cristão encara este mundo como sendo, em grande medida, diabolizado e, por isso, objecto de desconfiança. O pecado original tornou o mundo humano objecto de desconfiança permanente. O judeu, pelo contrário, vê neste mundo o lugar da criação divina, da justiça e da redenção. Daqui resulta que Deus é, em primeiro lugar, o Senhor da História.
Ora, Auschwitz «põe em causa todo o conceito tradicional de Deus»
, na medida em que «acrescenta à história judia algo nunca visto, algo que não se pode abordar com as antigas categorias teológicas». Poder-se-ia abandonar definitivamente o conceito de Deus e, desse modo, por termo à questão, mas Hans Jonas considera mais adequado «pensá-lo novamente para não ter que prescindir dele e buscar uma nova resposta ao velho problema de Job. Por isso, procura «oferecer um fragmento de teologia abertamente especulativa», elaborada a partir da experiência judia. Tal teologia despede-se do conceito de Deus como Senhor da História, aproximando-se, quer queira ou não Jonas, do espírito de toda a teologia cristã.
1. A TEOLOGIA FENOMENOLÓGICA DE JONAS. Para expor o seu novo conceito de Deus, Hans Jonas recorre a um mito elaborado por ele e que pode ser designado o mito do ser-no-mundo de Deus. Trata-se de uma conjectura figurada mas verosímil, de resto admitida por Platão para a esfera mais elevada do conhecimento. Eis o teor do mito:
«No princípio, por uma escolha não conhecível, o fundo divino do ser decidiu entregar-se à aventura e à infinita diversidade do devir. E fez isso totalmente. Ao integrar-se na aventura do espaço e do tempo, a divindade não reteve nada dela mesma; não permaneceu nenhuma parte inacessível e imune de si para dirigir, corrigir e finalmente garantir desde fora a sinuosa formação do seu destino no mundo do criado. O espírito moderno defende esta imanência incondicional. O seu valor ou o seu desespero, e em todo o caso a sua radical sinceridade, levam-no a tomar a sério o nosso ser-no-mundo, isto é, a entender o mundo como abandonado a si mesmo, as suas leis como fechadas a qualquer intromissão e o rigor da nossa pertença a ele como não atenuado por uma providência extramundana. Isto mesmo afirma o nosso mito do ser-no-mundo de Deus. Mas não no sentido de uma imanência panteísta, porque se Deus e o mundo são simplesmente idênticos, o mundo representa em todo o momento e em qualquer estado a sua plenitude, e Deus não pode nem perder nem ganhar. Ou melhor, para que possa existir o mundo, Deus renuncia ao seu próprio ser; despoja-se da sua divindade para voltar a recebê-la da odisseia do tempo, carregada com a colheita ocasional de experiências temporais imprevisíveis, sublimada ou talvez também desfigurada por elas. Neste abandono de si mesmo da integridade divina a favor do devir incondicional não se pode supor nenhum outro saber prévio salvo o que se refere às possibilidades que o ser cósmico oferece devido às suas próprias condições: Precisamente a estas condições entregou Deus a sua causa quando se alienou a favor do mundo«Durante eões o mundo esteve seguro nas mãos lentas do acaso cósmico e das probabilidades do seu jogo quantitativo, enquanto, simultaneamente, pela circulação da matéria — assim podemos conjecturá-lo — se foi acumulando uma memória paciente. Com o seu aumento cresceu uma esperança intuitiva, com a qual o eterno acompanhou cada vez mais de perto as obras do tempo. Assim se produziu um tardio emergir da transcendência desde a opacidade da imanência.
«E então surgiu a primeira moção de vida, que introduz uma nova linguagem no mundo. Com esta linguagem intensificou-se extremamente o interesse por parte do eterno e produziu-se um súbito salto no crescimento para a recuperação da sua plenitude. Este momento, que estava à espera a divindade em devir, era o acaso universal, e nele, pela primeira vez, a sua pródiga participação mostrou sinais da sua redenção final. Começou uma incessante acumulação de sensações, percepções, aspirações e actuações, que se ia erguendo em formas mais e mais diversas e intensas sobre os mudos redemoinhos da matéria, e desta acumulação a eternidade cobrou força, encheu-se de conteúdos e mais conteúdos de auto-afirmação, até que, no seu despertar, Deus pode dizer pela primeira vez que a Criação era boa.
«Mas é necessário ter presente que a vida trouxe consigo a morte e que a mortalidade era o preço que a nova possibilidade de ser teve de pagar por si mesma. Se a meta tivesse sido a permanência constante, a vida nem sequer deveria ter começado, porque em nenhuma das suas formas possíveis a sua persistência pode medir-se com a dos corpos inorgânicos. Trata-se de um ser essencialmente revogável e destrutível, de uma aventura da mortalidade, que obteve em préstimo as trajectórias finitas dos si-mesmos individuais por parte da matéria duradoura, sob as suas condições e para o curto prazo do organismo metabolizante. Esse breve sentir-se a si mesmo, actuar e sofrer de indivíduos finitos, aos quais só a pressão da finitude outorga toda a intensidade e o frescor do seu sentir, é precisamente o âmbito onde se desenrola a paisagem divina com todo o jogo das suas cores e onde a divindade se experiencia a si mesma...
«É necessário observar também que, na inocência da vida antes da aparição do saber, a causa de Deus não podia falhar. Cada diferenciação de espécies, que a evolução produziu, acrescentou uma nova às possibilidades de sentir e actuar, enriquecendo assim a auto-experiência do fundo divino. Cada dimensão da resposta do mundo, que se abriu no seu transcurso, significou para Deus uma nova modalidade para provar o seu ser encoberto e para se descobrir a si mesmo nas surpresas da aventura universal. E toda a colheita do seu apremiado esforço por devir, seja clara ou obscura, incrementa no mais além o tesouro da eternidade vivida no tempo. Se isso já é certo para o espectro em desenvolvimento da própria diversidade, quanto mais ainda para a crescente alerta e paixão da vida que vai a par com o crescimento da percepção e o movimento no mundo animal. A constante intensificação dos impulsos e do medo, do prazer e da dor, triunfo e miséria, amor e inclusive crueldade — o penetrante da sua própria intensidade e de toda a experiência em geral — é um ganho para o sujeito divino»
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Deus alienou-se a favor do mundo: desta tese decorre o carácter estrutural da teologia de Hans Jonas. A sua teologia mais não é que uma fenomenologia de Deus e da sua experiência, elaborada em analogia com a Fenomenologia do Espírito de Hegel
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Deste mito decorrem implicações teológicas sérias, algumas das quais são tratadas por Hans Jonas.
1. A concepção de um Deus sofredor opõe-se directamente à ideia bíblica da majestade divina.
O cristianismo usa constantemente a expressão deus sofredor, mas num sentido diferente daquele em que a emprega Jonas. A sua teologia não fala de um «acto único por meio do qual a divindade pôs uma parte de si mesma numa situação de sofrimento (a encarnação e a crucificação), com a finalidade especial de redimir os seres humanos»
. Deus sofredor tem um sentido mais radical na teologia de Jonas que no cristianismo: «a relação de Deus com o mundo inclui um sofrimento de Deus desde o momento da Criação, e certamente desde o da criação dos seres humanos». O sofrimento das criaturas é evidenciado por qualquer teologia e, como tal está incluído na ideia radical de Jonas de que «Deus sofre com o criado». Embora esta ideia choque com a noção de majestade divina, ela não é completamente alheia à bíblia hebraica. Basta recordar o profeta Oseias e a emotiva queixa amorosa de Deus sobre a sua infiel esposa Israel.
2. A teologia especulativa de Jonas esboça a imagem de um Deus que devém: «É um Deus que surge no tempo em vez de possuir um ser perfeito que permanece eternamente idêntico a si mesmo»
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Tal ideia de um devir divino contradiz a tradição grega platónico-aristotélica, a qual declara como atributos de Deus a transtemporalidade, a impassibilidade e a imutabilidade. Ao sustentar a contraposição ontológica entre ser e devir, donde o devir é inferior ao ser e característico do mundo corpóreo mais baixo, o pensamento clássico exclui logo à partida a ideia de um devir do ser puro e absoluto da divindade. Ora, segundo Jonas ou mesmo Moltmann, o conceito grego de divindade nunca se coadunou verdadeiramente com o espírito e a linguagem da bíblia. O conceito de um devir divino combina-se talvez melhor com, esse mesmo espírito bíblico.
Mas o que quer dizer que Deus devém? A teologia fenomenológica de Jonas concede a Deus, pelo menos, «tanto “devir” como o que fica patente no mero facto de que fica afectado pelo que acontece no mundo, e “afectado” significa “alterado”, mudado no seu estado»
. Quando decidiu alienar-se no mundo, Deus aceitou submeter-se aos efeitos do devir. Com efeito, «a própria Criação, enquanto acto e existência do seu resultado, significa uma mudança decisiva no estado de Deus, porque com ela deixa de estar só». Além desta mudança, a relação contínua de Deus com o criado, uma vez que existe e se move no fluir do devir, significa precisamente que Ele «experiencia algo com o mundo e que, portanto, o que sucede neste influi no seu próprio ser». Ora, se Deus está em alguma relação com o mundo, como afirma qualquer religião, então «só é assim como o Eterno se tem “temporalizado” e, por meio das realizações do processo universal, se vai modificando progressivamente». Isto aplica-se tanto à simples relação com o saber que o acompanha, como ao interesse.
Deste conceito de Deus em devir deriva uma consequência marginal, que possibilita destruir a ideia do eterno retorno do mesmo. Esta ideia elaborada por Nietzsche opunha-se à metafísica judaico-cristã.
«A ideia de Nietzsche é com efeito, o símbolo mais extremo da viragem para a temporalidade e a imanência incondicional, longe de qualquer transcendência que pudesse conservar uma memória eterna do que perece no tempo. A sua ideia é que, pelo simples esgotamento das permutações possíveis na repartição de elementos materiais, deve voltar a estabelecer-se uma configuração «originária» do cosmos, com a qual tudo volta a começar de idêntica maneira; e se uma vez, então também incontáveis vezes, como Nietzsche o exprime na metáfora do “anel dos anéis, o anel do eterno retorno”»
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Ora, se a eternidade não é imune ao que acontece no tempo, não pode haver um retorno do mesmo, uma vez que «Deus não é o mesmo depois de ter atravessado a experiência de um processo universal. Cada mundo novo terá incluído na sua própria herança a recordação do precedente ou, por outras palavras: não haverá uma eternidade indiferente e morta, mas uma eternidade que cresce com a colheita temporal que se vai acumulando»
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3. Os conceitos de um Deus sofredor e em devir estão intimamente relacionados com o conceito de um Deus que está preocupado.
A preocupação — o cuidado — não é uma estrutura característica exclusivamente do Dasein, como queria fazer crer Heidegger. Também Deus está preocupado, embora não seja ontologicamente um ser-para-a-morte
. Um Deus preocupado «não está distante, separado e fechado em si mesmo, mas envolvido naquilo pelo qual se preocupa».
Independentemente daquilo que tenha sido o seu estado «originário», Deus deixou de ser fechado em si mesmo «no momento em que entrou em relação com a existência do mundo, criando este mundo ou permitindo o seu aparecimento»
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É certo que o judaísmo sempre esteve familiarizado com este facto de que Deus se preocupa pelas suas criaturas, mas a teologia de Jonas acentua o aspecto menos familiar da preocupação divina: «Deus cuidador não é nenhum mago que no acto mesmo de se preocupar já resolva o que é motivo da sua preocupação»
. Ao alienar-se no mundo, Deus deixou algo a fazer pelos outros actores e, ao proceder assim, permitiu que aquilo que O preocupa esteja nas mãos dos outros.
4. Daqui decorre que Deus é também um «Deus ameaçado, um Deus com um risco próprio»
. Este conceito de Deus ameaçado merece ser destacado. Desde Gehlen e outros antropólogos de orientação bio-filosófica, sabemos que o homem, devido à ausência de adaptações filogenéticas que lhe doem um mundo, é um ser em risco. A teologia de Jonas «humaniza» de tal modo a divindade que até mesmo Deus é encarado como um ser em risco permanente. Ao alienar-se no mundo, Deus entregou-se completamente ao devir mundano, correndo um risco próprio. Deus entregou-se, num acto de dádiva pura, ao destino da história universal.
Deus é um Deus ameaçado, «porque de outro modo o mundo se acharia num estado de permanente perfeição»
. Ora, basta abrir os olhos para ver que o mundo está longe da perfeição. O mundo actual é miséria. Tal facto «só pode significar uma de duas coisas: ou bem que não existe Um Deus (ainda que talvez mais de um), ou que este Um (uno) deixou algo distinto de si mesmo, algo criado por ele, um espaço de acção e um direito de co-decisão para o que é motivo da sua preocupação». O mundo humano, mais do que qualquer outro aspecto da criação, é verdadeiramente o motivo da preocupação de Deus: o homem ameaça directamente Deus com a sua crueldade manifestada ao longo da história. Ora, se existe Um Deus, este é um Deus cuidador e, por conseguinte, não é «um mago», isto é, um Deus que intervenha milagrosamente na história sempre que o homem se afasta do seu caminho. «De qualquer maneira, por um acto de sabedoria insondável ou de amor ou qualquer outro motivo divino, [Deus] renunciou a garantir a satisfação de si mesmo pelo seu próprio poder, e fê-lo depois de já ter renunciado por meio da Criação mesma a ser o todo do todo».
A renúncia de Deus só pode ser um acto de amor pleno, como de resto acentua o cristianismo.
5. Daqui decorre aquilo a que Jonas chama o «ponto mais crítico [da sua] aventura teológica especulativa: Não é um Deus omnipotente!»
. Ao criar o mundo, Deus abdicou da sua omnipotência, entregando-se ao devir. Jonas é peremptório: «Sustento, com efeito, que, em virtude da nossa imagem de Deus e de toda a nossa relação com o divino, não podemos manter já a doutrina tradicional (medieval) de um poder divino absoluto e ilimitado». Esta é, sem dúvida, a tese fundamental desenvolvida pela teologia especulativa de Hans Jonas: Deus não é omnipotente, como afirmava de forma enfática Santo Agostinho.
Jonas justifica esta tese a dois níveis: ao nível lógico e ontológico e ao nível religioso.
Ao nível lógico, Jonas articula «o paradoxo que se encontra no próprio conceito de poder absoluto»
. De acordo com Jonas, do simples conceito de poder decorre que «a omnipotência é um conceito contraditório em si [mesmo], que se anula a si mesmo e que resulta absurdo». Tal oxímero é explicitado através da comparação do poder absoluto com a liberdade absoluto humana:
«[A liberdade não] começa onde acaba a necessidade, [tal como defenderam tanto Hegel como Marx], a liberdade consiste e vive no medir-se com a necessidade. O mesmo vale também para o poder, que seria vazio se fosse absoluto e único. Poder absoluto e total significa um poder que não está limitado por nada, nem sequer pela existência de algo outro em geral, algo fora dele mesmo e distinto dele. Porque a mera existência de algo outro representaria já uma limitação, e o poder único deveria aniquilá-lo para conservar o seu carácter absoluto. Então o poder absoluto, na sua solidão, não teria nenhum objecto sobre o que pudesse exercer o seu efeito, mas como poder sem objecto, um poder é impotente e anula-se a si mesmo. «Omni» equivale aqui a «zero». Para que possa actuar, tem que haver algo outro e tão pronto como aparece, o uno já não é omnipotente, embora o seu poder pudesse ser indefinidamente superior em qualquer comparação. A existência tolerada de outro objecto limita por si mesma o poder da mais poderosa força eficiente enquanto condição da sua possibilidade de actuar, isto é, pelo facto de lhe permitir assim que seja uma força eficiente. Em suma, «poder» é um conceito relacional que requer uma relação pluripolar. Mas inclusivamente então um poder, que não encontra nenhuma resistência no outro da sua relação, é igual que nenhum poder em absoluto. Um poder só pode entrar em acção em relação com algo que também tem poder. Se não quer ser ocioso, o poder consiste na capacidade de superar algo, e a coexistência com algo é como tal suficiente para que se cumpra esta condição. A existência significa resistência e, portanto, é uma força que actua contra algo. O mesmo que na física uma força sem resistência, isto é, sem uma força contrária, permanece vazia, também o será na metafísica um poder sem contrapoder, por desigual que este pudesse ser. Aquilo sobre o que o poder actua deve Ter por si mesmo um poder, ainda que este viesse do primeiro e originariamente lhe tivesse sido concedido juntamente com a sua existência por meio de uma renúncia a si mesmo do poder ilimitado, ou seja, por meio do acto da Criação. Em resumo, não é possível que todo o poder esteja só do lado de um sujeito efectuante único. O poder deve estar compartilhado para que possa existir poder em geral»
.
Depois de ter apresentado a objecção lógico-ontológica à noção de poder absoluto, Jonas apresenta uma outra objecção, desta vez teológica e autenticamente religiosa:«A omnipotência divina só pode coexistir com a bondade divina ao preço da absoluta insondabilidade de Deus, isto é, do seu carácter enigmático. Ante a existência do mal ou inclusivamente só da miséria no mundo, deveríamos sacrificar a compreensibilidade de Deus à relação dos outros dois atributos. Só de um Deus de todo incompreensível se pode dizer que, ao mesmo tempo, é absolutamente bom e omnipotente e que tolera, sem dúvida, o mundo tal como é. Dito de maneira mais geral, os três atributos em questão — bondade absoluta, omnipotência e compreensibilidade — estão numa relação tal que qualquer conexão de dois deles exclui o terceiro»
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Na economia geral dos três atributos geralmente atribuídos a Deus, só se podem ligar os atributos dois a dois, com a exclusão de um terceiro. Se ligarmos a omnipotência com a bondade divina, teremos de encarar Deus como um ser insondável, isto é, incompreensível. É preciso ceder um desses atributos para conservar uma concepção integral de Deus.
«A bondade, isto é, o querer o bem, é certamente inseparável do nosso conceito de Deus e não pode ser restringida. A compreensibilidade ou cognoscibilidade está duplamente condicionada: pela essência de Deus e pelas limitações do ser humano, e, em última instância, está sujeita à limitação, mas sob nenhuma condição pode ser totalmente negada»
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A concepção de Deus elaborada por Jonas abdica da omnipotência divina a favor da ideia de Deus como um ser Bom e, de certo modo, cognoscível. Negar a compreensibilidade de Deus, além de atentar contra a revelação, equivale a defender um Deus oculto. Ora, «o Deus abconditus, o Deus oculto (para não falar do Deus absurdo) é uma ideia profundamente alheia à fé judia»
. Segundo Jonas, a Tora baseia-se e insiste em que «podemos entender a Deus, naturalmente não do todo, mas algo dele, da sua vontade, das suas intenções e inclusivamente da sua essência, porque se nos deu a conhecer. A revelação teve lugar, possuímos os seus mandamentos e leis e a alguns — os seus profetas — comunicou-se directamente, usando-os como a sua boca para todos, que fala na língua dos seres humanos e do tempo, isto é, balbuciando pelas limitações dos meios, mas sem se manter num secreto obscuro. Um Deus completamente oculto e incompreensível é um conceito inaceitável segundo a norma judia».
Se associarmos à bondade divina à sua pertença omnipotência, obtemos igualmente um Deus oculto, mais precisamente um Deus obscuro. Ora, é precisamente essa concepção de Deus que é problematizada pela experiência de Auschwitz:
«Depois de Auschwitz podemos dizer, mais decididamente do que nunca, que uma divindade omnipotente ou não seria infinitamente boa ou então totalmente incompreensível (no seu domínio sobre o mundo, que é donde só podemos compreendê-la). Mas, se Deus tem de ser compreensível de certo modo e até certo grau (e devemos sustentar isso), então o seu ser-bom deve ser compatível com a existência do mal e só pode sê-lo se não é omni-potente. Só desta maneira podemos continuar a sustentar que é compreensível e bom e que, sem dúvida, existe o mal no mundo. E, dado que já vimos que o conceito da omnipotência é em si mesmo duvidoso, é este o atributo de que temos de prescindir»
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O argumento de Jonas em torno da omnipotência permite-lhe estabelecer o princípio, «para qualquer teologia que esteja em continuidade com a herança judia, de que há que considerar o poder de Deus como limitado por algo cuja existência por direito próprio e cujo poder de actuar por autoridade própria são reconhecidos por Deus mesmo»
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A limitação do poder de Deus poderia ser interpretada como uma mera concessão por parte de Deus, «a que ele pode revogar quando o deseja, isto é, como a retenção de um poder irrestrito que possui, mas que, em virtude do direito próprio do criado, só usa de maneira limitada. Mas isto não seria suficiente, porque ante os tormentos realmente e absolutamente monstruosos que uns seres humanos infringem a outros inocentes de maneira unilateral — tratando-se sempre da espécie criada segundo a imagem de Deus —, se deveris poder esperar que o bom Deus rompesse de vez a própria regra da extrema discrição do seu poder e que interviesse com um milagre de salvação. Mas não ocorreu nenhum milagre de salvação. Durante os anos das atrocidades de Auschwitz, Deus permaneceu em silêncio. Os milagres que se produziram só eram obra de seres humanos (...)»
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Enquanto alguns homens justos, cuja memória não deve ser abandonada ao esquecimento dos arquivos, não se recusavam a sacrificar a sua vida para salvar os inocentes, «Deus permaneceu em silêncio». Mas este silêncio não pode ser compreendido como desinteresse e muito menos como cumplicidade: Deus não interveio, não porque não quis, «mas porque não pôde»
intervir.
É, por isso, que Jonas propõe «a ideia de um Deus, que durante um tempo — o tempo do processo universal em progresso — renunciou a todo o seu poder de imiscuir-se no curso das coisas do mundo; que não contestou o choque do acontecer terreno contra o seu próprio ser com «a mão forte e o braço estendido», como recitam os judeus cada ano comemorando o êxodo do Egipto, mas com a intensidade da sua muda solicitação a favor da sua meta incumprida»
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Jonas reconhece que a sua teologia especulativa se distancia substancialmente da mais antiga doutrina judia. Algumas das treze doutrinas de fé formuladas por Maimónides, nomeadamente os enunciados sobre o poder supremo de Deus sobre a Criação, os enunciados que afirmam que Deus recompensa os bons e castiga os maus ou mesmo os enunciados que insistem na chegada futura do Messias prometido, que se cantam no serviço religioso judeu, tornam-se caducos a partir do momento em que não se pode falar já da «mão forte» de Deus. Contudo, dado que «a impotência de Deus só se refere ao físico»
, os enunciados que falam do chamamento das almas, da inspiração dos profetas e da Tora, a ideia de eleição, a ideia de um único Deus e o chamamento «escuta Israel!», continuam a ser válidos na perspectiva teológica de Jonas.
A teologia de Jonas abdica do dualismo maniqueísta para explicar o Mal. Este «só surge nos corações humanos e ganha poder no mundo. Na mera admissão da liberdade humana encontra-se implícita uma renúncia ao poder divino»
. A negação da omnipotência divina deixa teoricamente aberta a escolha entre um dualismo originário — teológico ou ontológico — e a autolimitação do Deus único por meio da sua Criação desde o nada. De acordo com Jonas, o dualismo pode adoptar duas formas: a maniqueísta e a platónica.
O dualismo maniqueísta defende a existência de uma força do mal activa que, desde o princípio, actua em todas as coisas contra o propósito divino. Desta posição resulta uma teologia de dois deuses, a qual é inaceitável não só para o judaísmo, como afirma Jonas, mas sobretudo para o cristianismo. A ideia de um único Deus está acima de qualquer problematização.
O dualismo platónico afirma a existência de um meio passivo que, de uma maneira igualmente universal, permite somente a materialização imperfeita do ideal no mundo. Daqui decorre uma ontologia da forma e da matéria. Mas uma tal ontologia só pode responder, no melhor dos casos, ao problema da imperfeição e da necessidade na natureza, deixando sem resposta o problema do mal activo que implica uma liberdade com autoridade própria, inclusivamente frente ao seu Criador.
Ora, a questão teológica actualmente pertinente é precisamente «o facto e o êxito do mal por vontade, muito mais que as pragas da cega causalidade natural: Auschwitz e não o terramoto de Lisboa», que tanto preocupou Leibnitz ou Voltaire. Como escreve Jonas: «Só com a Criação desde o nada temos a unidade do princípio divino juntamente com a sua autolimitação, que deixa espaço à existência e à autonomia do mundo. A Criação foi o acto da soberania absoluta, com o qual esta manifestou a sua vontade de deixar de ser absoluta em função da existência de uma finitude que se pode autodeterminar. Trata-se, portanto, de um acto de auto-alienação divina»
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Jonas recorda a corrente subterrânea da cabala judaica, estudada por Gershom Scholem, para mostrar que a tradição judia é menos ortodoxa em questões de soberania divina do que pretende a doutrina oficial. Com efeito, a cabala conhece um destino de Deus, ao qual este se submeteu aquando do devir do mundo. Daí que Jonas diga que o seu mito só radicaliza «a ideia do zimzum, este conceito central da cabala luriana. Zimzum significa contracção, retirada, autolimitação. Para dar espaço ao mundo, o En-Ssof do começo, o Infinito, teve de recolher-se em si mesmo para fazer surgir o vazio no e do qual pôde criar o mundo. Sem este recolher-se em si mesmo não poderia existir nada mais ao lado de Deus, e só o seu continuado limitar-se preservou as coisas finitas de perder o seu ser próprio novamente no «todo dentro do todo» divino»
. Jonas vai ainda mais longe quando sublinha que «a contracção é total, o infinito na sua totalidade e poder alienou-se no finito, entregando-se [inteiramente] a ele».
Coloca-se agora a questão de saber se uma tal concepção da auto-alienação de Deus no mundo finito deixa algum lugar para uma relação com Deus. Em termos mais radicais, devemos colocar a questão: Um Deus autolimitado pode ser objecto de adoração? A resposta de Jonas é longa, mas compacta:
«Renunciando à sua própria invulnerabilidade, o eterno fundo do mundo permitiu a este que existisse. Todas as criaturas devem a sua existência a esta autonegação e receberam graças a ela tudo o que havia a receber do mais além. Uma vez que se entregou por completo ao mundo e a seu devir, Deus já não tem nada a dar. Agora cabe ao ser humano dar o seu a Deus. E pode fazê-lo procurando, nos caminhos da sua vida, que não se converta em motivo para que Deus se arrependa de haver permitido o devir do mundo. Isto poderia ser talvez o segredo dos desconhecidos «trinta e seis justos», que, segundo o ensinamento judeu, não devem faltar nunca para que o mundo possa continuar a existir; a eles podem ter pertencido no nosso tempo alguns dos mencionados «justos entre os povos». O segredo seria, pois, que graças à superioridade do bem sobre o mal, que podemos supor para a lógica não causal das coisas do mais além, a sua santidade oculta é capaz de redimir uma culpa infinita, de saldar a conta de uma geração e de salvar a paz do reino invisível»
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No fundo, a teologia especulativa de Jonas procura dar uma resposta ao problema de Job, mas a resposta que dá é contrária à do Livro de Job. Enquanto Job apela à plenitude do poder do Deus criador, Jonas apela à sua renúncia ao poder. Apesar dessa diferença, as duas respostas são elogiosas, «porque a renúncia ocorreu para que possamos existir»
e até mesmo na resposta de Job Deus sofre.Ao alienar-se completa e inteiramente no mundo e no seu devir, Deus colocou o homem diante da responsabilidade de zelar pelo seu destino certo. Somos responsáveis quer diante Deus, quer diante dos outros e de todas as coisas criadas. Cabe ao homem a responsabilidade de redimir e de salvar o mundo, vencendo o mal. Na memória infinita de Deus tudo é conservado, tanto o que já não existe quanto o que ainda não existiu. A memória de Deus aguarda que o homem cumpra o prometido. A teologia de Jonas exige uma ética da responsabilidade. Aliás, fundamenta uma tal ética.
2. DEUS: MEMÓRIA E SOFRIMENTO. Deus como infinita memória que guarda cada detalhe da vida das suas criaturas é uma concepção que pode ser comparada com o mito das punições eternas de Platão e, em ambos os casos, os seres vivos serão confrontados com essa memória infinita que os julgará para sempre. Em Platão, encontra-se aqui um fundamento da vida política da Polis. Aos justos resta-lhes a benaventurança eterna. Numa civilização dada ao prazer imediato e embrutecedor, o pragmatismo recomenda a recuperação da dor, porquanto esta ensina a viver a vida de modo disciplinado e responsável. O hedonismo é inimigo da democracia.
3. IMPLICAÇÕES PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ. É certo que Jonas tende a elaborar uma teologia no âmbito da tradição judaica, mas um tal empreendimento neglicencia uma outra tradição mais vasta, da qual o judaísmo faz parte, a menos que os judeus pretendam ser um povo privilegiado e, nesse caso, devem ser abandonados à sua sorte: referimo-nos ao Ocidente como civilização. A Filosofia como guardiã dessa grande tradição greco-romana mantém a sua pretensão à universalidade, reforçada pela mensagem cristã. O Deus de Moisés, de Abraão e de Jacob é o mesmo Deus de Cristo e de todos os seres humanos. O judaísmo só faz sentido quando dissolvido no cristianismo: fora desta matriz universal o judaísmo corre o risco de ser encarado como uma seita sectária cujo destino é governado pelas leis do conflito religioso.
Daqui resulta que a Trindade de Deus só pode ser pensada em devir: Deus Pai no seu estado originário decide arriscar-se e cria o Filho. Aqui começa a odisseia de Deus alienado no mundo, do qual só se pode libertar quando o homem vencer o próprio mal: o Espírito Santo é a comunidade santa de Deus com a sua criação recuperada. Mas Deus é o ser em risco e, a menos que tenha eleito alguma assembleia, como supõe a mística judaica, pode correr o risco derradeira de perder o mundo para Si e perder-se a Si mesmo. Não há Igreja que possa recuperar Deus: somente os homens o podem fazer. Mas o Deus que queremos salvar já não é objecto da teologia, porque Deus não é epistemologicamente objecto. Este facto é escamoteado por muitas teologias que reificam «deus», tal como os judeus adoraram o bezerro de ouro no deserto.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 16 de dezembro de 2007

A Espiral do Silêncio

Walter Lippmann (1922) descobriu, no seu livro «Public Opinion», que a observação dos factos e dos eventos é filtrada, inclusive moralmente, por pontos de vista selectivos, pontos de vista orientados por estereótipos ou códigos. As pessoas vêem o mundo tal como este se reflecte na «opinião pública» e as avaliações morais são canalizadas por estereótipos, ficções e símbolos carregados de emoções. As pessoas vivem, portanto, num mundo limitado por estes «preconceitos» difundidos pelos mass media, com os quais fazem face à complexidade, à grandeza e à fugacidade do mundo.
Embora trate da opinião pública, Lippmann não oferece nenhum conceito de opinião pública, limitando-se a mostrar como se transmite e como se impõe a opinião pública. O estereótipo, seja negativo ou positivo, é tão conciso e tão pouco ambíguo que possibilita a todas as pessoas saber quando devem falar e quando devem ficar caladas. Por isso, é indispensável para pôr em andamento os processos de conformidade social.
No seu livro «The Spiral of Silence», Elisabeth Noelle-Neumann (1984) apresenta uma teoria da opinião pública, elaborada a partir de um acto eleitoral (1972). Chama-se «hipótese da espiral do silêncio», que vou reformular nestes termos: Num debate público sobre determinado tema, as pessoas expressam abertamente e defendem com confiança os seus pontos de vista. As que recusam a perspectiva dominante (aquela que parece ter mais apoio explícito) sentem-se marginalizadas e, frequentemente, retiram-se e calam-se. Esta inibição faz com que a opinião que recebe apoio explícito pareça mais forte do que é realmente, e a outra, mais débil. Num processo em espiral, o ponto de vista mais visível e explicito acaba por dominar a cena pública e o outro desaparece da consciência pública, devido ao facto dos seus apoiantes ficarem silenciosos, por terem medo do isolamento. Aliás, na peugada dos estudos de Solomon Asch, Noelle-Neumann defende que o medo do isolamento é a força que põe em marcha a espiral do silêncio, mas é provável que outros programas filogenéticos contribuam para a produção desse efeito.
Esta hipótese da espiral do silêncio tem sido muito debatida e qualquer programa de teorias da comunicação social aborda esta teoria da opinião pública, como se ela resistisse a todos os testes empíricos que possam ser imaginados para a refutar. Mas, mesmo ao nível da mera argumentação racional, a teoria de Noelle-Neumann mostra-se fraca quando confrontada com a obra «Mudança Estrutural da Esfera Pública» de Jürgen Habermas. Noelle-Neumann encontra no passado muitos autores que corroboram muitas das suas teses, tais como Hobbes, Tocqueville, Rousseau, David Hume, John Locke, Lutero, Maquiavel, John Hus ou mesmo os escritores da Antiguidade Clássica. Para todos os efeitos, tem o mérito de possibilitar encarar a opinião pública como uma espécie de tirania da maioria, contra a qual nos devemos proteger e lutar para que a democracia saiba defender-se dessa tirania mediada e imposta pelos mass media tradicionais. Isto é o liberalismo político defendido por Stuart Mill:
«Não basta, portanto, a protecção contra a tirania do magistrado: carece-se também de protecção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade a impor, por outros meios além das penas civis, as suas próprias ideias e práticas como regras de conduta àqueles que divergem delas, e a estorvar o desenvolvimento e, se possível, impedir a formação de alguma individualidade em desacordo com os seus fins, compelindo todos os caracteres a imitar o modelo do dela. Há um limite na ingerência legítima da opinião colectiva sobre a independência individual; e achar esse limite e mantê-lo contra a usurpação é tão indispensável para o bom andamento dos negócios humanos como a protecção contra o despotismo político».
Trata-se efectivamente de uma concepção política da liberdade e, tal como afirma Hannah Arendt, não vejo outra concepção alternativa ou outro espaço em que posso ser livre a não ser no espaço público. Os luso-corruptos odeiam visceralmente o liberalismo político: o poder judicial ou, como diz Stuart Mill, a tirania do magistrado, bem patente no caso "Apito Dourado" ou no abuso das escutas telefónicas, deve ser limitado, nomeadamente pelo poder legislativo. Mas, como sabemos, em Portugal, o direito é a arma dos poderes luso-corruptos instituídos e nem sequer os bancos privados que seguem aparentemente um modelo anglo-saxónico de gestão escapam à regra latina.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Reler Sampaio Bruno

«José Pereira de Sampaio (1857-1915), natural do Porto, onde, com excepção de um período de exílio (1981-93) por motivos políticos, se processou toda a sua vida, adoptou aos 14 anos o pseudónimo de Bruno, a que sempre se manteve fiel e do qual provém a denominação de Sampaio Bruno, por que é mais conhecido. Autor de obra vasta, de índole política, religiosa e filosófica, na qual se salientou o Brasil Mental (1898), e A Ideia de Deus (1902), por duas razões - escreve Joel Serrão - figura neste Dicionário (de História de Portugal): 1) a sua acção de propangadista da República e o papel que a sua obra de pensador (de raízes esotéricas) desempenhou na cultura portuguesa dos fins do século (XIX) e primeiro quartel do (século XX); 2) a bibliografia, que também nos legou, de temas históricos» (Joel Serrão, 1985).
Sampaio Bruno legou-nos uma obra vasta que, com excepção do estudo de Joel Serrão («Sampaio Bruno: O Homem e o Pensamento»), ainda não foi seriamente avaliada, quer pela sua novidade e erudição, quer pelos seus contributos especificamente filosóficos nos domínios da teoria política, da teoria estética, da teoria da história e da teoria da religião. E isto devido sobretudo ao facto de ser mais um pensador ilustre do Porto e, por isso, marginalizado pelo luso-pensamento dominante, o de Lisboa.
Com estas breves considerações, pretendemos resgatar o pensamento de Sampaio Bruno e insuflar-lhe uma rajada de ar fresco vivo, apesar da sua linguagem ser um pouco rebuscada. Além do seu pensamento político republicano, destacamos o seu contributo nos domínios da estética e da filosofia da história.
1) Estética de Sampaio Bruno. Este pensador portuense ilustre escreveu uma das maiores obras em língua portuguesa sobre a «evolução do romance» no Ocidente, destacando o romance português, e entrando em confronto com grandes filósofos e literatos mundiais, num tempo tão indigente como era o seu. Com efeito, «A Geração Nova» (1885) deve figurar na história da estética e da teoria literária, juntamente com a «Teoria do Romance» de Georg Lukács e os escritos de Walter Benjamin, e, em muitos aspectos, antecipa a «sociologia do romance» tal como a elaborou Lucien Goldmann. É preciso reler esta obra que confronta as estéticas de Kant e de Hegel, sem esquecer Marx, que exerceu um fascínio sobre Sampaio Bruno.
2) Filosofia da História de Sampaio Bruno. Se nada foi feito no domínio estético aberto por Bruno, muito foi feito para destruir a filosofia da história de Sampaio Bruno. Joel Serrão afirma que a sua filosofia da história portuguesa «é de matriz esotérica (sic) e messianista, na qual se destaca, no primeiro dos livros referidos («O Encoberto», 1904), a sua crítica à concepção predominante na época, e defendida por Antero de Quental e Oliveira Martins, da decadência nacional, após a empresa dos Descobrimentos».
De facto, os pensadores do Porto sempre foram mais optimistas do que os restantes pensadores portugueses, até porque a burguesia era mais forte no Porto do que noutras cidades de Portugal. As obras referidas são, além de «O Encoberto», «Portuenses Ilustres» (1907-1908), «O Porto Culto» (1912) e a obra póstuma «Os Cavaleiros do Amor» (1960).
Consideramos que a teoria da história atribuída a Sampaio Bruno deve ser reavaliada em nova chave hermenêutica. Por isso, o enigma do Encoberto ainda continua à espera de ser revelado nessa nova chave hermenêutica, uma chave que faça justiça à Cidade do Porto, contra as injúrias inventadas por cérebros perversos e mal intencionados.
António Quadros (1982) é um dos paladinos dessa concepção obscura da história de Portugal, o sebastianismo, que desenvolve fora de uma matriz filosófica. Contra ela, Sampaio Bruno escreveu: «Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem». Pouco mais adiante, Sampaio Bruno acrescenta: «Ora, a humanidade é irresumível, e o carácter da sociabilidade reside precisamente em sua extensibilidade. Civilização quer dizer integração. Não são devaneios políticos; são factos corroborados. Considere-se o acesso recente do Japão à nossa cultura ocidental» (p.332-333). A própria estrutura da obra não permite necessariamente uma leitura sebastianista da história de Portugal, apontando claramente numa direcção mais «global» e aberta, como diríamos hoje. O Encoberto só pode ser revelado numa outra chave hermenêutica: a da globalização sempre em marcha e aberta.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Defesa do Espírito Crítico

Ontem (10 de Dezembro de 2007) tomei conhecimento de uma estatística deveras preocupante: os alunos que ingressam nos cursos de Letras, em particular no curso de Filosofia, são oriundos das classes sociais menos favorecidas. O aspecto negativo não reside na proveniência social, mas no facto do que isso significa num país em que não existe realmente "igualdade de oportunidades", como é o caso de Portugal, de resto governado por classes dirigentes muito "amigas da corrupção" e pouco democráticas. Estes alunos "escolhem" a Filosofia não por opção ou vocação, mas porque não têm outra alternativa: carecem de competências cognitivas e são alunos com um longo historial de insucessos escolares. Por isso e pelo facto de não termos bons professores universitários, a Filosofia não encontra futuro em Portugal e está fragilizada em relação às políticas economicistas e burocráticas levadas a cabo pelas classes dirigentes.
No meu blogue «CyberCultura e Democracia Online», tenho chamado a atenção dos portugueses para esta situação de penúria intelectual portuguesa e, no post «Hipótese do Cérebro Social», fiz esta proposta:
«A Filosofia deve distanciar-se das Faculdades de Letras e de Ciências Sociais e ser integrada nas Faculdades de Ciências e/ou de Matemática.
«As alternativas profissionais que os cursos de Filosofia oferecem, nomeadamente relações públicas, são tarefas para ser executadas por escravos e não por filósofos. Os professores universitários portugueses de Filosofia revelam nestas propostas a sua imbecilidade congénita. O seu lugar não é na academia, mas num hospício para atrasados mentais, que, sem competências, se apoderaram por métodos escusos de empregos garantidos e sem real avaliação. As Tias-do-Chá e os Pandas devem ser denunciados e humilhados publicamente, pelo lixo dos seus trabalhos publicados, pela falta de qualidade das suas aulas, meras projecções da sua substância protoplasmática diabolizada, e pela incompetência manifestada pelos seus licenciados, mestres e doutores. Mais: os seus crimes, bem como as suas ligações corruptas a outras instituições obscuras, devem tornar-se públicos e alvo de punições disciplinares.
«E, para evitar que a Filosofia seja seguida pelos mais néscios dos alunos, torna-se necessário obrigá-los a estudar matemática e ciências, com domínio pleno da estatística e de outros métodos quantitativos. Platão não estudava "porcaria", mas matemática. Por isso, é muito estranho que se ensine Platão sem se saber matemática! Estou certo que não será este governo a levar a cabo estas reformas estruturais do ensino, mas a denúncia fica feita neste país que nega o futuro desafogado, devido à mediocridade das suas elites incultas mas diabólicas. (O mesmo poderia ser dito de outros cursos. Mas coube-me aqui salvar a honra da minha dama: a Filosofia.)».
Noutros posts, tenho tentado explicar esta situação de indigência intelectual e defendido o pensamento crítico. Eles podem ser lidos aqui: Modelos Críticos, Eclipse do Pensamento Crítico e O Eclipse da Democracia. A filosofia é inseparável da democracia. Ora, como a democracia está a ser subvertida internamente pelas novas classes dirigentes e pela corrupção, cabe aos filósofos dignos desse nome defender o pensamento crítico e a democracia, sabendo que nesta luta estão sozinhos, porque o poder dispensa a crítica.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Eu Saturado e Novas Terapias

Vou apresentar outro autor, outro pensamento, não de forma exaustiva, mas lacunar e crítica. Kenneth J. Gergen é um psicólogo social, cujo percurso intelectual revela a superioridade da Filosofia sobre as chamadas ciências sociais e humanas, bem como a necessidade da Filosofia socorrer a própria ciência dos ataques relativistas: as suas obras são efectivamente obras de filosofia, a que ele acrescenta «pós-moderna». Mas, quer seja pós-moderna ou não, a obra que quero apresentar, «The Saturated Self: Dilemmas of Identity in Contemporary Life» (1991), trata de um assunto que me é particularmente grato: uma teoria do Self elaborada a partir do construtivismo social, fortemente marcado pela obra de Peter I. Berger e Thomas Luckmann, «A Construção Social da Realidade», e, segundo o autor, com implicações terapêuticas, de resto tratadas noutra obra.


A tese de Gergen é a seguinte: «O processo de saturação social está a produzir uma mudança profunda no nosso modo de compreender o eu». O século XX foi dominado por dois vocabulários do eu: a visão romântica do eu e a visão moderna do eu. A visão romântica do eu, herdada do século XIX, atribui a cada indivíduo traços de personalidade, tais como paixão, alma, criatividade ou integridade moral. Este vocabulário é essencial para o estabelecimento de relações comprometidas, amizades fiéis e objectivos vitais. Nos inícios do século XX, o vocabulário romântico foi posto em perigo pelo surgimento do vocabulário moderno do eu, segundo o qual as principais características do eu não são uma questão de intensidade, mas fundamentalmente uma capacidade de raciocínio para desenvolver os nossos conceitos, opiniões e intenções conscientes. As pessoas normais são, segundo este vocabulário, previsíveis, honestas e sinceras. Por isso, os modernistas acreditam no sistema educativo, na vida familiar estável, na formação moral e na escolha racional de determinada estrutura familiar. Contudo, nos finais do século XX, estas duas concepções do eu começaram a desmoronar-se, devido à erosão das bases sociais que as sustentam, através das forças da saturação social.
Estas forças são fundamentalmente as tecnologias da saturação social (de baixo nível e de alto nível) que fazem com que o indivíduo mergulhe cada vez mais no mundo social, expondo-o, como acontece na comunicação mediada por computador (tecnologia de alto nível), às opiniões, valorizações e estilos de vida de outras pessoas distantes. Esta imersão profunda num mundo social plural e cada vez mais global leva-nos até uma nova consciência do eu, a visão pós-moderna do eu. A saturação social invade a vida quotidiana, levando-nos a imergir cada vez mais no nosso meio social e a reflecti-lo completamente. Gergen fala mesmo de assédio do eu e de colonização do nosso próprio ser, a qual reflecte a fusão de identidades parciais por obra da saturação social, começando a surgir um estado multifrénico no qual os indivíduos experimentam a vertigem da multiplicidade ilimitada. Ambos os processos, a colonização do ser próprio e o estado multifrénico, constituem prelúdios significativos da consciência pós-moderna. O resultado é a erosão do eu identificável. A saturação social proporciona-nos uma multiplicidade de linguagens do eu incoerentes e desvinculadas entre si. Aliás, para Gergen, o pós-modernismo nada mais é do que esta pluralidade de vozes que rivalizam entre si pelo direito à existência e que competem para ser aceites como expressão legítima do verdadeiro e do bom.
Não pretendemos criticar esta teoria do Self proposta por Gergen, mas apenas chamar a atenção para o facto dos filósofos conservadores e comunitaristas, tais como Alasdair MacIntery, Charles Taylor ou mesmo Paul Ricoeur, já terem reagido a este desafio dos tempos globais, enquanto os filósofos liberais e socialistas de Esquerda, salvo raras excepções (Anthony Giddens, Christopher Lasch, Berkeley Robert Bellah, Richard Sennett ou mesmo Michel Foucault), ainda permanecem muito indiferentes à questão do Self e do sentido. É certo que já existem reacções interessantes, sobretudo no mundo anglo-saxónico, muitas das quais analíticas (John Searle) e logicistas (P.F. Strawson), mas a Esquerda está muito voltada para a glorificação do Self Fluído, não-sólido, como se essa liquidificação e fragmentação do eu fosse saudável, o que está longe de estar provado. Mas é muito provável que um tal estudo deva questionar seriamente a própria validade do modelo construtivista social. Com efeito, os dados que recolhi ao longo da minha cyberpesquisa não apontam necessariamente nessa direcção: a erosão do eu identificável (a mesmidade de John Locke). Mas este assunto, bem como a elaboração de políticas de renovação do eu e de autenticidade, para as quais as obras de Gergen são fundamentais, será discutido num outro post, logo que tenha tempo, levando em conta os nossos próprios clássicos, tais como L.S. Vygotsky, A.R. Luria, Mikhail Bakhtin e a sua semiótica social, bem como a semiótica social australiana, e sobretudo um leitor atento de Marx, George Mead, além de Freud e de Fromm. Pensou em Pavlov e na sua reflexologia? Engana-se: esse deixo-o aos zombis de Daniel Dennett.
Este post foi editado originariamente no meu blogue «CyberCultura e Democracia Online», tendo sido acompanhado por este outro post que pode ler aqui: Filosofia Clínica e Reconstrução da Identidade. Abre-se assim um novo campo de investigação filosófica: a Filosofia Clínica, além deste modelo do self de Gergen ser útil para elaborar uma teoria do cyberself, uma das tarefas deste blogue.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Filosofia e EtnoCiências

Nos Estados Unidos, surgiu, nos anos 60, uma nova problemática teórica que recebeu a designação de etnociência, apesar de ser igualmente conhecida por etnosemântica ou mesmo nova etnografia, cujos trabalhos mais representativos são os de Berlin, Kay, Conklin, Frake, Goodenough, Metzger, Romney e Tyler.
A etnociência considera a cultura como um sistema de cognições partilhadas intersubjectivamente ou, simplesmente, como um sistema de conhecimentos e de crenças. A criação da cultura não é atribuída aos factores biológicos ou ambientais, mas ao intelecto humano. As emoções, as acções, o meio e outros elementos mais não são que elementos materiais organizados pelo intelecto humano. Goodenough (1957) concebe cada cultura concreta como «um sistema de perceber e organizar os fenómenos naturais, as coisas, os acontecimentos, o comportamento e as emoções». Daqui resulta que o objecto de estudo da etnociência «não são os fenómenos materiais como tais, mas o modo como estes se organizam na cabeça das pessoas. As culturas não são fenómenos materiais, mas organizações (mentais) de fenómenos materiais» (Tyler, 1969).
Na perspectiva da etnociência, o intelecto humano gera a cultura através de um determinado número de regras finitas ou por meio da lógica inconsciente. O seu objectivo é determinar quais são essas regras. Ora, esta ideia de que, por debaixo da diversidade da cultura, existe um «conjunto de regras para a contrução e interpretação socialmente adequadas das distintas mensagens» (Frake, 1964) retoma o programa da gramática transformacional, elaborado por Chomsky (1975), que procura descobrir as estruturas mentais a priori e universais subjacentes à linguagem, bem como o programa estruturalista desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1975, 1987). Enquanto o estruturalismo interessava-se pela formulação das regras gramaticais que governam a totalidade das trocas sociais e que são válidas para todas as culturas, a etnociência interessa-se directamente pela formulação das regras gramaticais que regem cada cultura concreta.
Entendemos a gramática de uma língua quando podemos enunciar uma proposição gramaticalmente correcta, ou seja, uma proposição que seja considerada correcta por todos os falantes nativos dessa língua. De modo semelhante, argumenta a etnociência, podemos dizer que entendemos uma cultura quando conhecemos as regras que nos permitem enunciar as formas de comportamento que os nativos consideram adequadas a cada circunstância. Apesar de não podermos predizer o que cada falante dirá ou fará unicamente com o conhecimento da gramática, a etnociência considera que isso seria possível se, além das regras gramaticais, conhecêssemos o conteúdo informacional necessário para poder falar ou tomar decisões.
Devido à ênfase dada aos problemas cognitivos, o estudo da gramática de cada cultura consiste em estudar «a forma das coisas que os indivíduos têm nas suas cabeças e os seus modelos de percepção, para os relacionar entre si e, se for possível, poder integrá-los» (Goodenough, 1957). Daí que a tarefa fundamental da etnociência seja a de descobrir as formas de percepção dos membros de cada cultura concreta e o modo como eles descrevem o seu mundo. Esta perspectiva tem sido chamada descrição emic ou «interna» de uma cultura, por oposição ao ponto de vista «externo» ou descrição etic, que consiste em descrever cada cultura concreta utilizando ao categorias de que o investigador dispõe.
Deste modo, a etnociência tende a centrar a sua atenção naqueles aspectos de uma cultura que reflectem de forma mais cingida a concepção que os nativos têm do seu meio, da natureza humana e da sociedade, dando por pressuposto que as expressões linguísticas e o discurso em geral expressam, de maneira directa, os princípios que organizam o intelecto humano. Daí a sua dedicação ao estudo dos sistemas terminológicos ou dos sistemas de nomes que os membros de uma cultura usam para descrever as plantas (etnobotânica), as cores e os animais (etnozoologia) do seu meio (etnoecologia), bem como aos termos do seu sistema de parentesco. Estes sistemas de termos estão organizados de maneira sistemática, através de um conjunto fixo de princípios organizativos. Supondo a existência de um número fixo e limitado de princípios que são os que todas as culturas empregam para gerar e construir os seus próprios sistemas, a etnociência espera poder determinar os princípios usados para gerar cada um destes sistemas terminológicos ou domínios. Contudo, ao contrário do estruturalismo, a etnociência não considera que esses princípios estejam fundados em estruturas mentais subjacentes.
A etnociência tem sido alvo das mais diversas críticas, algumas das quais a identificam com o idealismo (Harris, 1993), mas é necessário reconhecer a sua utilidade na investigação de terreno ou etnográfica. De facto, ela permite descobrir os processos e as regras estruturais mediante as quais uma determinada população classifica o seu mundo. A tentação idealista da etnociência pode ser superada quando integramos a sua etnometodologia nos métodos que nos possibilitam ter um acesso indirecto ao funcionamento do sistema nervoso humano através dos resultados da sua actividade: os comportamentos, a linguagem e a cognição.
Encarar a etnociência como uma ciência auxiliar das neurociências da cognição implica uma reformulação teórica: a linguagem estrutura uma concepção do mundo que, do ponto de vista científico, deve ser considerada como um domínio da ideologia. Ao mesmo tempo que é produzida pela mente-cérebro, a ideologia contribui, durante o desenvolvimento, para a organização do próprio cérebro. De origem marxista, o conceito de ideologia traz as marcas da filosofia que tutela o projecto científico. Com efeito, se a ideologia é usar o sentido para estabelecer e sustentar relações assimétricas de poder, o seu estudo reconstrutivo implica necessariamente a desmistificação das relações sociais.
J Francisco Saraiva de Sousa

História ou Apologética?

Durante o "zapping" habitual, calhou passar pela RTP2 (25 de Novembro de 2007) e ver que, num programa cultural interessante deste canal da RTP, a convidada era Maria de Fátima Bonifácio, uma historiadora portuguesa que admiro, não por ter lido as suas obras, mas pelas suas participações em programas televisivos.
Assisti à parte final do programa sobre D. João VI, o Clemente, e retive esta noção muito espantosa de que a luta de classes defendida pelo materialismo histórico e a luta de raças preconizada pelo nazismo eram «científicas» e, portanto, podiam ser «classificadas» no mesmo plano. O que é espantoso nesta afirmação, provavelmente não pensada, não é apenas colocar no mesmo plano o materialismo histórico e o nazismo, mas rotulá-los de «ciências» ou «crenças científicas», como se a ciência fosse também mera crença, sem questionar a natureza científica desigual desses discursos, um dos quais ideológico (o nazismo), como se tudo tivesse o mesmo «valor» no mercado plural do sentido! Isto é relativismo absoluto e total e, quem entra neste jogo linguístico, tem a mesma «autoridade» que os adversários: Fátima Bonifácio reduziu enfaticamente a historiografia a um conjunto de perspectivas, isto é, narrativas, todas equivalentes e todas muito pouco críticas, para não dizer a-críticas. A sua «verdade» historiográfica auto-anula-se.
Compreende-se esta «opinião» a partir do momento em que a nossa historiadora coloca o materialismo histórico no mesmo plano cognitivo do nazismo: ao negar a luta de classes, Fátima Bonifácio reduz a historiografia a uma narrativa a-crítica, metabolicamente reduzida, e pseudo-factual (os seus supostos factos empíricos podem ser e são as mentiras conspiradas pelas classes dominantes e relatadas pelos seus cronistas oficiais), centrada exclusivamente na dimensão política, tal como encarnada e protagonizada pelos governantes, mais precisamente na «intriga política», esquecendo malevolamente o sofrimento das classes desfavorecidas. A sua visão da democracia é oligárquica e cleptocrática.
Pelo menos, Fátima Bonifácio reconheceu involuntariamente que o materialismo histórico era um «discurso científico», sem medo de pensar o futuro e sem abdicar da teoria. É provável que o nazismo tenha adaptado oportunisticamente o estilo marxista à sua causa (o nacional-socialismo), mas há uma diferença entre eles: a luta de classes é real e constitui um «motor» da história, cientificamente comprovado, mas o mesmo já não pode ser dito da «luta racial», que, até mesmo nas suas manifestações históricas inegáveis, está sempre subordinada à luta pelo poder e, por isso, constitui necessariamente uma ideologia: uma doutrina que visa legitimar assimetrias de poder.
A prova desta confusão teórica exibida por Fátima Bonifácio está no facto de ter referido uma obra sobre o nazismo, segundo ela a melhor (sic), reforçando o seu carácter de narração, esta figura degenerada do pensamento pós-moderno! Felizmente, salvaguardou a Filosofia, o que significa que, apesar do seu relativismo historiográfico, reconhece que há um discurso teórico capaz de "dizer a verdade", sem se deixar aprisionar no campo da doxa, isto é, das opiniões improvisadas em função dos interesses de momento, os das actuais classes dirigentes. Ao abandonar a teoria, Fátima Bonifácio entrega-se à mera construção de narrativas sobre outras narrativas, as do passado que pretende iluminar (sic), incapaz de exercer o "pensamento crítico". A sua historiografia é «conspirativa» (embora diga não ser partidária da conspiração, como todos os conspiradores da história), portanto, é a visão ideológica dos «vencedores« da História (W. Benjamin): é mera crónica tão válida quanto a das suas fontes e todas elas motivadas metabolicamente para glorificar os poderes instituídos, mais os do presente do que os do passado.
A mais-valia teórica que Marx trouxe à historiografia é desprezada, porque, na verdade, Fátima Bonifácio, uma mulher que prezo, é uma beneficiária do sistema pós-revolucionário e dos seus direitos adquiridos. (Daí talvez a sua atracção pelo estudo das monarquias e da nobreza!) Celebrou em Genebra «Maio de 68», «fingindo que estudava» (palavras suas) e, de repente, viu-se instalada, juntamente com a sua geração, no poder. Ora, como já Maquiavel sabia, aqueles que estão no poder não desejam mudar nada, fazendo tudo para conservar os seus privilégios, e, se foram algum dia revolucionários, tornaram-se com o decorrer do tempo mais reaccionários do que os próprios «fascistas». A sua memória sofreu um «apagão» súbito, porque o poder, sobretudo aquele que cai milagrosamente em mãos moral e intelectualmente impreparadas, produz amnésia histórica e política. A geração dos hippies (geração grisalha) é actualmente o maior inimigo da democracia, da liberdade, da justiça e da mobilidade. Hoje, ser de Esquerda é lutar contra a antiga Esquerda, a que está instalada no poder. E é contra esses traidores que devemos lutar, retomando os grandes ideais do socialismo radical.
Fátima Bonifácio poderia apresentar muitos argumentos a seu favor, mas a minha crítica, ainda que improvisada, demoliu completamente a sua visão da história, denunciando o seu carácter apologético: a apologia do poder instituído. A sua visão da história é absolutamente ideológica e, como tal, deve ser denunciada e deitada ao lixo, onde a aguardam as mentiras milenares elaboradas pelos abusadores do poder e narradas pelos seus "cronistas oficiais" para justificar a miséria e o sofrimento. A história factual é a perspectiva adoptada por aqueles que desistiram de pensar, porque sabem que o pensamento crítico é o arqui-inimigo dos poderes estabelecidos.
Até Mónica Filomena prefere o factual! O seu liberalismo metabolicamente reduzido é a defesa descarada dos seus direitos adquiridos: uma catedrática reformada que pode falar tudo o que lhe passa pela cabeça, finalmente liberta do crivo da crítica e da responsabilidade intelectual. As suas opiniões são meras conspirações contra a verdade. Daí que queiram reduzir a ciência a mera crença em competição com outras crenças! Ora, como sabemos, os conspiradores negam sempre a velha teoria da conspiração, porque, como dizia Althusser, a ideologia dominante nunca diz ser uma ideologia, isto é, "sou ideológica". Se o fizessem, os seus adeptos denunciavam-se como «amigos das mentiras» que visam legitimar assimetrias de poder, fortemente estimuladas pelas políticas da educação, mesmo as levadas a cabo pelo actual governo socialista.
J Francisco Saraiva de Sousa