sexta-feira, 2 de abril de 2010

Max Horkheimer: Crítica da Razão Instrumental

«Hoje a ideia de maioria, privada dos seus fundamentos racionais, assumiu um aspecto completamente irracional. Toda a ideia filosófica, ética e política - tendo sido cortado o cordão umbilical que ligava essas ideias às suas origens históricas - tende a tornar-se o núcleo de uma nova mitologia, e esta é uma das razões pela qual o avanço do iluminismo tende a reverter, até certo ponto, para a superstição e a paranóia. O princípio da maioria, na forma de veredictos populares sobre todo e qualquer assunto, implementado por toda a espécie de escrutínios e modernas formas de comunicação, tornou-se a força soberana à qual o pensamento tem de prover. É um novo deus, não no sentido em que os arautos das grandes revoluções o conceberam, isto é, como um poder de resistência à injustiça existente, mas como um poder de resistência a qualquer coisa que não se acomode. Quanto mais o julgamento do povo é manipulado por todo o tipo de interesses, mais a maioria é apresentada como árbitro na vida cultural. Presume-se que justifique os representantes da cultura em todos os seus domínios, até os produtos da arte e da literatura popular que enganam as massas. Quanto mais a propaganda científica faz da opinião pública um simples instrumento de forças obscuras, mais a opinião pública surge como um substituto da razão. Esse ilusório triunfo do progresso democrático consome a substância intelectual da qual tem vivido a democracia». (Max Horkheimer)
Uma visão de conjunto da evolução da teoria crítica - a expressão forjada por Horkheimer nos anos 30 do século XX para designar o marxismo visto como uma filosofia da não-identidade - e do percurso histórico da Escola de Frankfurt é-nos dada por Martin Jay, Rolf Wiggershaus, David Held, Paul-Laurent Assoun, Zoltán Tar, Eugene Lunn, Terry Eagleton, Stephen Eric Bronner, Christoph Türcke e Fredric Jameson. A criação oficial do Institut für Socialforschung (Instituto de Pesquisa Social) teve lugar no dia 3 de Fevereiro de 1923, por um decreto do Ministério da Educação, na base de um acordo com a Gesellschaft für Socialforschung (Sociedade para a Investigação Social). O seu primeiro director indigitado foi Carl Grünberg e a sua revista chamava-se Archiv, sendo em 1932 substituída pela Zeitschrift für Socialforschung. Em 1931, Horkheimer reorganiza o Instituto de Pesquisa Social e imprime-lhe uma nova orientação teórica e um novo projecto político: a sociologia é substituída pela Filosofia Social. Surge assim a teoria crítica como uma tentativa teórica original, cujo manifesto é o artigo de Horkheimer - Teoria Tradicional e Teoria Crítica, publicado na Zeitschrift, em 1937. A teoria crítica é basicamente uma criação de Max Horkheimer (1895-1973). Os pensadores mais ilustres da Escola de Frankfurt são, além do seu fundador, Theodor W. Adorno (1903-1969), Herbert Marcuse (1898-1978), Walter Benjamin (1892-1940) e Erich Fromm (1900-1980), aos quais podemos acrescentar Ernst Bloch (1885-1977) e Jürgen Habermas. Outros nomes menos conhecidos são Franz Borkenau, Kurt Albert Gerlach, Henryk Grossmann, Otto Kirchheimer, Mira Komarovski, Siegfried Kracauer, Leo Lowenthal, Franz Neumann, Friedrich Pollock, Andries Sternheim, Félix Weil e Karl August Wittfogel. Nesta hora de despertar do pesadelo neoliberal, é preciso reconstruir a teoria crítica e esta reconstrução exige não só o repúdio da ética do discurso de Karl Otto Apel e Jürgen Habermas, mas sobretudo a construção de uma nova utopia, em diálogo produtivo com Marx e os textos seminais da Escola de Frankfurt.
Na Primavera de 1944 (Fevereiro e Março), Horkheimer realizou cinco palestras públicas na Universidade de Colúmbia, das quais resultou a publicação em 1947 do seu livro Eclipse of Reason, onde apresenta as suas ideias sobre a dialéctica do esclarecimento. Em 1947, Horkheimer e Adorno publicaram Dialektik der Aufklärung. A análise crítica da Dialéctica do Esclarecimento fornece-nos todos os instrumentos teóricos necessários para compreender a crise profunda da Modernidade: Horkheimer e Adorno generalizam a crítica marxista da história das sociedades de classes na direcção de uma crítica fundamental e total da história do pensamento ocidental e da sua praxis, entendida como a lógica de uma dominação universal da natureza e do homem. A radicalização da crítica justifica-se pelo facto da dominação da natureza estar a assumir formas não económicas: a visão do mundo natural como um campo de controle e de manipulação humana implica a dominação do próprio homem e do mundo humano. O Iluminismo já não pode ser visto unicamente como o correlato cultural da burguesia em ascensão, mas deve ser alargado de modo a incluir o espectro completo do pensamento ocidental ou mesmo do pensamento em geral. A razão toma assim a sua dimensão histórico-filosófica, de modo a poder pensar como entrou num conflito tão radical consigo própria. Com esta crítica radical da razão que entra em conflito consigo mesma no seio da história, a teoria crítica converte-se numa nova Filosofia da História que desmonta a mitologia da Modernidade capitalista: «o próprio mito é já razão e a razão volta a ser mitologia». O ideal de dominar a natureza, cujos traços já se encontram na astúcia de Ulisses e até mesmo no Génesis, sela o destino da razão instrumental e da autoridade: a vocação emancipatória da razão cede à barbárie. A razão instrumentaliza-se ao transformar a natureza em instrumento, enquanto a natureza procura vingar-se periodicamente contra essa sujeição instrumental. Porém, a revolta da natureza acaba por ser integrada no sistema capitalista, como seu mecanismo de perpetuação, paralisando a crítica e a praxis radical de transformação do mundo. Horkheimer e Adorno usam o princípio marxista da troca como conceito-chave para compreender a sociedade ocidental na sua evolução histórica, o que lhes permite ligar a racionalização de Weber ao conceito de reificação de Lukács. À radicalização da crítica deveria corresponder uma praxis radical e era essa a intenção da Escola de Frankfurt: a razão (Vernunft) - o conceito nuclear da teoria crítica - significa a reconciliação das contradições, incluindo a contradição entre homem e natureza. Após criticar severamente as teorias da identidade absoluta, sem no entanto negar a separação do sujeito e do objecto, Horkheimer destaca a importância da razão objectiva como um antídoto a ser usado contra o império reificado da razão subjectiva instrumentalizada: «Os dois conceitos de razão não representam duas vias separadas e independentes da mente, embora a sua oposição represente uma verdadeira antinomia. A tarefa da filosofia não é lançar teimosamente um contra o outro, mas promover a crítica recíproca dos dois conceitos e, deste modo, se for possível, preparar na esfera intelectual a conciliação dos dois na realidade» (Horkheimer).
O Eclipse da Razão de Horkheimer compreende cinco capítulos - Meios e Fins (I), Panaceias em Conflito (II), A Revolta da Natureza (III), Ascensão e Declínio do Indivíduo (IV) e Sobre o Conceito de Filosofia (V). O objectivo da análise realizada por Horkheimer é explicitar, numa perspectiva imanente, o conceito de racionalidade subjacente à nossa cultura, a fim de «descobrir se esse conceito não contém falhas que o tornam vicioso». Horkheimer descobre uma falha fatal: o conhecimento técnico alarga o horizonte da acção e do pensamento humanos, enquanto a autonomia do indivíduo, a sua capacidade de resistir ao mecanismo de manipulação das massas, o seu poder de imaginação e o seu pensamento independente, sofrem uma regressão substancial. O avanço dos recursos técnicos de informação e a omnipresença do sistema todo-poderoso da indústria cultural implicam um processo de desumanização: «o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objectivo: a ideia de homem». A emergência vitoriosa do neobarbarismo é sintoma da crise da cultura superior do Ocidente: a racionalidade progressista está, na perspectiva de Horkheimer, «a obliterar a própria substância da razão, em nome da qual se apoia a causa do progresso».
1. Meios e Fins. Neste primeiro capítulo, Horkheimer estabelece uma diferenciação entre razão subjectiva - a racionalidade formal de Weber - e razão objectiva - a racionalidade substantiva de Weber, de modo a clarificar o processo de formalização da razão e as suas implicações teóricas e práticas de longo alcance, tais como a perda da força racional dos conceitos, a dissolução da ideia de razão objectiva, a desumanização do pensamento, a dissociação entre as aspirações humanas e as potencialidades da ideia de verdade objectiva, a instrumentalização da actividade, o pluralismo gerador de um traço esquizofrénico na vida moderna, a perda da experiência, a neutralização da mensagem subversiva das obras de arte, a perseguição da filosofia e a estupidificação da razão. A distinção entre razão objectiva e razão subjectiva corresponde à diferenciação feita na Dialéctica do Esclarecimento (Horkheimer e Adorno) entre dois conceitos de esclarecimento: a razão objectiva destaca os fins e a harmonia como um princípio inerente à realidade, enquanto a razão subjectiva se relaciona com os meios e a adequação de procedimentos a propósitos considerados como certos e presumivelmente auto-justificativos, sem questionar a sua racionalidade. A passagem da razão objectiva para a razão subjectiva foi um processo histórico gradual de esvaziamento do conteúdo objectivo de todos os conceitos racionais, do qual resultou finalmente no nosso tempo indigente a impossibilidade de ver a realidade particular como racional per si: «todos os conceitos básicos, esvaziados do seu conteúdo, tornaram-se meros invólucros formais». A subjectivação da razão - reduzida à capacidade de calcular probabilidades e de coordenar os meios correctos para alcançar um determinado objectivo, implica, simultaneamente, a sua formalização e a sua instrumentalização: a razão transforma-se em mero instrumento usado pelo sistema para dominar a natureza e o homem. O eclipse da razão objectiva é, portanto, o triunfo da razão instrumental, cujo significado é retirado da sua ligação a outros fins alheios à racionalidade e cujo valor é determinado pela função operacional que desempenha na dominação da natureza e do homem. Uma actividade só é racional quando serve outro fim ou propósito - o negócio, a saúde, o relaxamento, o descanso, etc., que ajude a recuperar a energia produtiva, e, no que respeita às obras de arte, a formalização da razão manifesta-se como reificação. A reificação resulta da transformação operada pelo aparelho económico capitalista de todos os produtos da actividade humana em mercadorias. Horkheimer destaca o papel desempenhado pelo pragmatismo neste processo de subjectivação da razão: a tese central do pragmatismo - James, Dewey e Peirce - é «a opinião de que uma ideia, um conceito ou uma teoria, mais não são do que um esquema ou plano de acção». A definição da verdade como o sucesso da ideia significa que as nossas ideias são verdadeiras porque as nossas expectativas se cumprem e as nossas acções têm sucesso. O ataque pragmatista à contemplação e ao pensamento especulativo visa glorificar a perícia técnica: o pensamento passa a ser avaliado por algo que não é pensamento - o seu efeito na produção ou o seu impacto sobre o comportamento social. Ao liquidar-se a si mesma, abdicando da sua capacidade para determinar a racionalidade dos fins, a razão capitula perante o sistema social existente, levando ao conformismo: o indivíduo ajusta o seu comportamento à realidade tal como é. Ser racional é, segundo esta perspectiva instrumental, não ser refractário.
2. Panaceias em Conflito. A dialéctica elabora-se e exerce-se na e pela crítica da sociedade estabelecida e das suas ideologias. Sem esses conteúdos objectivos não há propriamente dialéctica: Horkheimer elaborou a teoria crítica através do diálogo e da crítica de outros pensadores - Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Bergson, Dilthey, Weber, Husserl, Heidegger, Scheler, Sartre - e de outras tradições filosóficas - o positivismo, o pragmatismo, a Lebensphilosophie, o existencialismo, o neotomismo, a metafísica, a fenomenologia -, isto é, a génese da teoria crítica foi tão dialéctica como o método que aplicou aos fenómenos sociais. As panaceias em conflito são, neste segundo capítulo, o positivismo, do qual o pragmatismo é uma versão, e o neotomismo: «Tendo perdido a sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjectiva, sublinhado pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objectivo; no seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterónomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. O seu valor operacional, o seu papel na dominação dos homens e da natureza tornou-se o único critério para a avaliar». Horkheimer encara o pragmatismo como uma expressão do positivismo, porque ambas as correntes do pensamento identificam a filosofia com o cientismo: a apologia da ciência-instrumento vista como a campeã automática do progresso e como glorificação da tecnologia. A crítica do cientismo nestas duas versões complementares é articulada por Horkheimer com a crítica do neotomismo: as duas escolas antagónicas são censuradas pelo facto de bloquearem o pensamento crítico, através de afirmações autoritárias e despóticas. Segundo Horkheimer, cada uma destas filosofias expressa uma verdade, mas, logo a seguir, é levada a distorcê-la e a torná-la exclusiva: o positivismo critica o dogmatismo, anulando o princípio de verdade, em nome do qual a crítica alcança o seu sentido, enquanto o neotomismo defende o princípio de verdade com uma tal rigidez que o transforma no seu oposto. Positivismo e neotomismo têm um carácter heterónomo: o primeiro tende a substituir a razão autónoma pelo automatismo da metodologia científica moderna, o segundo pela autoridade de um dogma.
3. A Revolta da Natureza. A natureza dominada vinga-se periodicamente contra a sua sujeição repressiva, quer sob a forma de rebeliões sociais, quer sob a forma do crime organizado e da perturbação mental. Horkheimer retoma aqui o conceito freudiano de
civilização como repressão das exigências dos instintos humanos, ligando-o ao processo histórico da sociedade burguesa que visa a dominação da natureza, para minar a ideia de progresso e a tese iluminista do desencantamento do mundo: «Dado que a subjugação da natureza, dentro e fora do homem, prossegue sem um motivo significativo, a natureza não é efectivamente transcendida ou reconciliada, mas simplesmente reprimida». O processo de repressão provoca reacções violentas por parte da natureza que acossam a civilização desde os seus primórdios. Porém, a moderna civilização burguesa conseguiu integrar e domesticar essas revoltas da natureza, usando-as como mecanismo de perpetuação da sua matriz civilizacional: «Traços típicos da nossa era actual são a manipulação desta revolta pelas forças predominantes da própria civilização e o uso da mesma como um meio de perpetuação das próprias condições que a provocaram e contra as quais insurge. A civilização como irracionalidade racionalizada integra a revolta da natureza como outro meio ou instrumento». Horkheimer analisa o fascismo como o culminar da racionalidade técnica da sociedade capitalista. Com a emergência do fascismo, o iluminismo retrocede à barbárie: o fascismo, compreendido como síntese satânica da razão instrumental e da natureza, encoraja a revolta da natureza do indivíduo e, ao mesmo tempo, suprime-a: «No fascismo moderno, a racionalidade atingiu um ponto em que não se satisfaz simplesmente com a repressão da natureza; a racionalidade agora explora a natureza, incorporando no seu próprio sistema as potencialidades rebeldes da natureza. Os nazis manipularam os desejos reprimidos do povo alemão».
A actual crise financeira e económica revela o momento de verdade da teoria do fascismo de Horkheimer e de Marcuse, segundo a qual o totalitarismo é o resultado natural da democracia liberal-burguesa. A teoria de Marx não precisa ser revista para identificar o fascismo: o que se modificou no capitalismo tardio (Werner Sombart) foi a forma de dominação. As posições de comando dispersas em organizações individuais foram substituídas pela dominação totalitária dos interesses particulares sobre toda a sociedade, alterando substancialmente a composição das classes dirigentes. A burocracia foi alargada até adquirir um grau elevado de autonomia. O capitalismo organizou-se e planificou-se com a revolução dos administradores (James
Burnham). Independentemente de se reclamarem da Direita ou da Esquerda, os economistas, os gestores, os administradores e os políticos neoliberais comportam-se como fascistas, que organizam e remodelam a população numa colectividade resignada e pronta a servir nas mãos das novas classes dirigentes qualquer objectivo civil e militar. O neoliberalismo que culmina o capitalismo tardio (Spätkapitalismus) à escala global e que produziu a actual crise financeira e económica é, na sua substância, neofascismo, que recorre ao darwinismo para legitimar a sua dominação global. Horkheimer discute diversos aspectos do mecanismo de perpetuação, tais como a interiorização da dominação pelo desenvolvimento do sujeito abstracto, a inversão dialéctica do princípio de dominação pela qual o homem se torna, ele próprio, um instrumento da mesma natureza daquele que domina, e a repressão do impulso mimético, mediante os quais a civilização procura integrar a revolta da natureza no seu próprio sistema, negando o antagonismo do espírito em relação à natureza. Porém, como a ideologia do neoliberalismo decorre do darwinismo incorporado no pragmatismo americano, vamos analisar apenas a situação do homem numa cultura de autopreservação, a partir do darwinismo perspectivado como uma filosofia que pertence à principal corrente derivada do iluminismo - o positivismo - e que reflecte a revolta da natureza contra a razão. Segundo o darwinismo popular - aquele que predomina actualmente na divulgação científica - a sobrevivência do mais apto - o êxito ou sucesso do indivíduo, em linguagem económica neoliberal -, depende da sua capacidade de adaptação às pressões que a sociedade e a economia de mercado exercem sobre ele: a sobrevivência do indivíduo requer a sua transformação num mecanismo que reage a cada momento às situações difíceis de um modo apropriado e, na nossa sociedade industrializada, deliberadamente ajustado. Como a vida social está cada vez mais submetida à racionalização e à planificação, a vida do indivíduo, incluindo os seus impulsos mais ocultos, que outrora constituíam o seu domínio privado, deve adaptar-se às exigências da racionalização e da planificação sociais: «a autopreservação do indivíduo pressupõe o seu ajustamento às exigências de preservação do sistema», do qual não consegue escapar. Ora, a racionalização não resulta da acção de forças anónimas do mercado, mas sim da acção consciente de uma minoria de burocratas e de tecnocratas, que decide em nome da massa de sujeitos, obrigando-os a ajustar as suas vidas e os seus comportamentos a uma realidade que os confronta como algo absoluto e esmagador: aqueles que recusam navegar a onda criada pelas classes dirigentes são automaticamente excluídos. O princípio de realidade estabelecido não permite ao indivíduo - outrora autónomo - confrontá-lo e conformar a realidade com a esfera do ideal: as ideologias foram sistemática e deliberadamente desacreditadas ou omitidas pelo pensamento único, com o objectivo de facilitar a elevação da realidade estabelecida ao status de ideal. O ajustamento é apresentado como o modelo de todos os tipos de comportamento subjectivo e objectivo, privado e público: o triunfo da razão subjectiva é, portanto, o triunfo da realidade unidimensional, para usar o conceito de Marcuse.
A minoria de gestores corruptos que levou a cabo a globalização substituiu a selecção natural pela acção racional, mas compreendeu que o conceito de sobrevivência do mais apto é simplesmente a tradução dos conceitos da razão formalizada - e da sua
economia neoliberal - na linguagem da história natural. Darwin inverte a metafísica idealista, quando encara a razão como um órgão da natureza. Para a metafísica idealista, o mundo era, de certo modo, um produto da mente, enquanto, para o darwinismo, a mente é um processo da natureza, que abdica da filosofia para lhe dar voz: «a natureza, poderosa e venerável deidade, é governante e não governada». Embora tenha auxiliado a natureza rebelde, libertando-a da tirania do logos, a equiparação darwinista da razão e da natureza é uma falácia típica da era da racionalização instrumental: a equiparação darwinista da razão e da natureza degrada a razão e exalta a natureza bruta como pura vitalidade. Idealismo e materialismo mais não são do que meras versões da racionalidade instrumental: o primeiro deprecia a natureza como força bruta, o segundo louva-a como pura vitalidade, mas ambos bloqueiam a visão da natureza como «um texto a ser interpretado pela filosofia que, se for correctamente lido, revelará uma história de sofrimento infinito». Porém, o darwinismo exige a adaptação incondicional do indivíduo a uma realidade social esmagadora, cuja opacidade não permite questionar e problematizar: o seu conceito de razão como órgão natural, em vez de libertar a razão da sua tendência intrínseca para a dominação e de a investir com maiores possibilidades de conciliação, implica a rejeição de todos os elementos da mente que transcendam a função de adaptação, usando-os como meros instrumentos da autopreservação. A abdicação darwinista do espírito converte a razão em serva da selecção natural. A dialéctica procura uma terceira alternativa que possibilite conciliar a natureza e a razão, para além do materialismo e do idealismo, porque a negação teórica do antagonismo entre espírito e natureza significa, na prática, admitir o princípio da dominação universal da natureza pelo homem. Como escreve Horkheimer: «Somos herdeiros, para o melhor ou o pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se a ambos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resulta. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente».
4. Ascensão e Declínio do Indivíduo. A liquidação da razão acarreta necessariamente a liquidação do indivíduo: «Se a razão é declarada incapaz de determinar os objectivos supremos da vida e deve contentar-se em reduzir tudo o que encontra a um mero instrumento, o seu único objectivo remanescente é apenas a perpetuação da sua actividade de coordenação. Essa actividade era outrora atribuída ao sujeito autónomo. Contudo, o processo de subjectivação afectou todas as categorias filosóficas: em vez de as relativizar e de as preservar numa unidade de pensamento melhor estruturada, reduziu-as ao status de factos a ser catalogados. Isso também é verdadeiro para a categoria do sujeito. A filosofia dialéctica desde os tempos de Kant tentou preservar o transcendentalismo crítico, sobretudo o princípio de que os traços e as categorias fundamentais da nossa compreensão do mundo dependem de factores subjectivos. A consciência da tarefa de determinar as origens subjectivas dos conceitos deve estar presente em cada etapa de definição do objecto. Isso aplica-se tanto às ideias básicas como facto, acontecimento, coisa, objecto, natureza, quanto às relações psicológicas ou sociológicas. Desde o tempo de Kant, o idealismo jamais esqueceu essa exigência da filosofia crítica. Até os neo-hegelianos da corrente espiritualista vêem no ego "a mais alta forma de experiência que nós temos, mas... não uma forma verdadeira", porque a ideia de sujeito é em si mesma um conceito que deve ser relativizado pelo pensamento filosófico. Mas Dewey, que por vezes parece unir-se a Bradley na elevação da experiência à mais elevada posição na metafísica, declara que "o ego ou sujeito da experiência é parte e parcela do curso dos acontecimentos". Segundo Dewey, "o organismo - o ego, o sujeito da acção - é um factor dentro da experiência". E, no entanto, quanto mais a natureza é vista como "uma total mixórdia de substâncias heterogéneas", como meros objectos em relação aos sujeitos humanos, mais o outrora presumivelmente sujeito autónomo é esvaziado de qualquer conteúdo, até se tornar finalmente um mero nome sem nada a denominar. A transformação completa de todos os domínios do ser à condição de meios conduz à liquidação do sujeito que presumivelmente deveria usá-los. Isto dá à moderna sociedade industrializada o seu aspecto niilista. A subjectivação que exalta o sujeito também o condena. /No processo da sua emancipação, o ser humano partilha o destino do resto do seu mundo. A dominação da natureza envolve a dominação do homem. Cada sujeito deve não só participar na sujeição da natureza exterior, humana ou não-humana, como, para o fazer, deve subjugar a natureza em si mesmo. A dominação tornou-se interiorizada por si mesma».
Com a entrada da psicanálise no Instituto de Pesquisa Social, termina a era de Grünberg e começa a era de Horkheimer: o recurso à teoria de Freud é fundamental para compreender o mecanismo de perpetuação que integra a revolta da natureza no próprio sistema da civilização ocidental. A interiorização da repressão e a inversão dialéctica do princípio de dominação ajudam a clarificar o destino do indivíduo na cultura da autopreservação. Horkheimer analisa exaustivamente as peripécias da individualidade ao longo da história do Ocidente, isto é, desde a ascensão do indíviduo na Grécia Antiga até ao seu declínio na sociedade moderna. O que interessa aqui destacar é a crise do indivíduo: o antagonismo entre a individualidade e as condições económicas e sociais da sua existência deixou de ser na sociedade de consumo um elemento essencial na construção da própria individualidade. O antagonismo em relação à sociedade, mediante o qual o indivíduo constrói o seu self como projecto, foi completamente suplantado na mente consciente dos indivíduos pelo desejo de adaptação milimétrica à realidade. A mediação do poder social pelo poder sobre as coisas implica o domínio do próprio indivíduo pelas coisas, a perda de traços individuais genuínos, a perda de liberdade e a transformação da sua mente num autómato da razão formalizada. O sistema da indústria cultural ajuda a integrar o indivíduo no sistema de instrumentos, mostrando-lhe o seu caminho na realidade como ela é e como deve ser e será. O liberalismo conduziu, pela via da colonização económica do mundo da vida e do mundo da personalidade, ao conformismo total: a mónada liberal - o símbolo do indivíduo económico atomístico da sociedade burguesa - converteu-se finalmente num tipo social, isto é, numa figura sem rosto e sem personalidade, incapaz de planear o futuro remoto para os seus herdeiros e para si. O indivíduo entregue exlusivamente à tarefa da autopreservação desiste da sua esperança de auto-realização: a sua mente está fechada para o sonho de um mundo basicamente diferente e para os conceitos que, em vez de serem meras classificações ou rótulos de factos e de estatísticas, sejam orientados para a realização verdadeira de um mundo melhor. De certo modo, estes indivíduos de mente fechada e cognitivamente atrofiada são meras projecções astrais da mente do engenheiro, isto é, da mente do industrial em forma tecnológica e economicamente orientada: o comando decidido da mente tecnológica visa transformar «os homens num conjunto de instrumentos sem objectivos próprios». O processo de reificação do homem está praticamente consumado nesta era tecnocrática e economicista: o homem é cada vez mais reduzido a um mero instrumento, avaliado em função de critérios estritamente económicos, tais como a sua produtividade, a sua eficiência e a sua competitividade. Perante este processo que converte o homem em instrumento, o empresário em funcionário, o trabalhador em sindicalista integrado, o político em corrupto deslumbrado, o economista em ladrão profissional, o universitário em burreco diplomado, o magistrado em agitador fascista, o jornalista em criador de intrigas, o professor em incompetente diplomado e o erudito em especialista da opinião pública, e que paralisa a evolução para o humano, a filosofia desespera, porque teme pelo futuro: «Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular (da TV), os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania».
5. Sobre o Conceito de Filosofia. Todos os conceitos filosóficos tradicionais estavam enraizados no conceito do universalmente humano da espécie humana, mas a sua formalização levada a cabo pelo cientismo separou-os desse conteúdo humano. Neste sentido, a formalização da razão significa desumanização do pensamento: o ataque positivista à contemplação e o louvor da perícia técnica expressam o triunfo dos meios sobre os fins, ou seja, o triunfo pragmatista da fábrica como protótipo da existência humana, mediante o qual todos os sectores da cultura superior são modelados segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório executivo racionalizado. A Filosofia torna-se assim alvo da perseguição totalitária movida pela mentalidade de engenheiro contra os intelectuais que recusam reduzir a razão a um mero instrumento: «Um homem inteligente não é aquele que pode simplesmente raciocinar com correcção, mas aquele cuja mente está aberta à percepção de conteúdos objectivos, que está apto a receber o impacto das suas estruturas essenciais e a transformá-las em linguagem humana; isto também se aplica à natureza do pensamento como tal e do seu conteúdo objectivo. A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo objectivo e do seu poder de julgar este último, e que a reduz ao papel de uma agência executiva mais preocupada com o "como" do que com o "porquê", transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registar factos. A razão subjectiva perde toda a espontaneidade, produtividade e poder para descobrir e afirmar novas espécies de conteúdo - perde a própria subjectividade. Como uma lâmina de barbear frequentemente afiada, esse "instrumento" torna-se demasiado ténue e, afinal, inadequado até mesmo para dominar as suas tarefas formais». A emancipação do intelecto da vida instintiva não o livra do seu conteúdo concreto. Ao reduzir as suas ligações com este conteúdo, a razão subjectiva atrofia o intelecto e contribui para a crescente estupidificação em curso.
Horkheimer opõe ao princípio da dominação da natureza a ideia marxista de reconciliação do homem com a natureza, mas rejeita toda a filosofia que procure afirmar a unidade da natureza e do espírito: o monismo filosófico é censurado pelo facto de servir para entrincheirar e fortificar a ideia de dominação da natureza pelo homem. A dialéctica rejeita tanto o monismo como o dualismo e, nesta dupla-rejeição, resiste à sua própria imobilização: hipostasiar um dos pólos ou dos momentos do processo ou ansiar desesperadamente pela sua resolução final é abdicar da própria dialéctica. Horkheimer reitera a dicotomia metodológica das ciências naturais e das ciências sociais reabsorvidas na e pela Filosofia: as ciências naturais trabalham com fórmulas, enquanto a filosofia reexamina significados. O filósofo, que recusa o temor de que a capacidade de pensar possa ser tolhida de alguma maneira pelo sistema dominante, «não pode falar sobre o homem, o animal, a sociedade, o mundo, a mente, o pensamento, tal como o cientista da natureza fala sobre uma substância química qualquer: o filósofo não possui uma fórmula. Não existe fórmula. A descrição adequada, revelando o significado de qualquer desses conceitos, com todas as suas sombras e interligações com outros conceitos, é ainda uma tarefa prioritária. Aqui, a palavra, com os seus estratos semi-esquecidos de significado e associações, é o princípio director». Estas conexões devem ser repensadas e preservadas nos conceitos, que, longe de sairem limpos e novos em folha das oficinas da produção teórica, são fragmentos de uma verdade total em que se encontra o seu significado: a preocupação fundamental da filosofia é construir a verdade a partir desses fragmentos. Assim, a definição de liberdade é, segundo Horkheimer, a teoria da História e vice-versa. Em polémica com o neopositivismo lógico, Horkheimer repudia a lógica formal, em nome da lógica hegeliana, que «é tanto a lógica do objecto quanto a do sujeito; (que) é uma teoria abrangente das categorias básicas e das relações entre a sociedade, a natureza e a história». Horkheimer atribui à linguagem um papel determinante na compreensão dos fenómenos sociais e na desocultação da verdade, definida como adequação entre o nome e a coisa: «A filosofia é o esforço consciente para unir todo o nosso conhecimento e compreensão numa estrutura linguística em que as coisas são chamadas pelos seus nomes exactos». Walter Benjamin tinha elaborado uma teoria da linguagem, na base da qual estava a crença de que o mundo tinha sido criado pela palavra de Deus: o acto de criação de Deus é aqui visto como uma concessão ou doação de nomes e o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o dom de nomear. Porém, os nomes do homem e os nomes de Deus não são exactamente os mesmos, porque, com a separação entre o homem e a coisa, se perdeu a adequação absoluta do discurso divino: o discurso humano traz a marca da corrupção que é a lógica formal, mediante a qual o homem nomeia as coisas por meio de abstracções e de generalizações. A tarefa do crítico redentor é precisamente libertar e recuperar essa linguagem de Deus, aprisionada e perdida nos textos humanos, através da descodificação hermenêutica das diversas aproximações inferiores do homem. Embora evite a fundamentação teológica da teoria da linguagem de Benjamin, Horkheimer aceita a noção da corrupção da linguagem «pura» (Karl Krauss): o discurso humano, produzido e difundido pela cultura de massas, tornou-se unidimensional e afirmativo (Marcuse), instrumental e ideológico, e, por isso, na sua condição de instrumento das forças dominantes e obscuras na sociedade administrada, incapaz de expressar a negação, isto é, de escutar a voz de protesto dos oprimidos. Cabe à filosofia chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes, sondando os testemunhos mudos da linguagem e os estratos da experiência que neles se preservam: «A linguagem reflecte os anseios dos oprimidos e a condição da natureza».
A Dialéctica é Filosofia-Mundo e filosofia-mundo negativa, no sentido em que todos os seus conceitos se referem à negação da totalidade antagónica da ordem existente: «O todo é, como escreve Adorno, o não-verdadeiro». Os grandes ideais da civilização ocidental - liberdade, justiça plena, igualdade, fraternidade - são os protestos da natureza contra a sua condição humilhada, perante os quais a filosofia assume duas atitudes: a renúncia à exigência de ser considerada como verdade definitiva e absoluta (1) e a admissão de que as ideias culturais fundamentais têm valores de verdade, que a filosofia pode avaliar, levando em conta o meio social antagónico onde se originam (2). Ao assumir estas duas atitudes, a filosofia opõe-se à ruptura entre as ideias e a realidade: «A filosofia confronta o existente, no seu contexto histórico, com a exigência dos seus princípios conceptuais, a fim de criticar a relação entre ambos e, assim, transcendê-los. A filosofia saca o seu carácter positivo precisamente da acção recíproca destes dois procedimentos negativos». A teoria crítica é geralmente caracterizada como crítica imanente, um procedimento dialéctico que Horkheimer, Benjamin, Adorno e Marcuse usaram de modo ligeiramente distinto. A negação, que exerce um papel fundamental na dialéctica, tem duas faces: (1) negação das pretensões absolutas da ideologia dominante - crítica da ideologia - e (2) negação das exigências imperiosas da realidade estabelecida. A dialéctica debruça-se sobre os valores existentes e insere-os num conjunto teórico que revela a sua relatividade. E, visto que sujeito e objecto, palavra e coisa, não podem ser conciliados nas actuais circunstâncias sociais e económicas, a dialéctica usa o princípio de negação para tentar salvar as verdades relativas do naufrágio dos falsos princípios fundamentais. A essência do pensamento dialéctico reside na compreensão da negatividade e da relatividade da ordem estabelecida e da sua cultura de autopreservação. Mas a posse desse conhecimento não constitui - por si só - a superação da totalidade antagónica existente. A dialéctica marxista é completamente distinta da dialéctica hegeliana, na medida em recusa o princípio de identidade, em nome da diferença entre o ideal e o real e entre a teoria e a praxis. O que está em jogo na situação presente é saber se no futuro irá predominar a tendência barbarizante ou a visão humanista: «A lógica da história é tão destruidora como os homens que produz: onde quer que penda a sua força de gravidade, reproduz o equivalente do infortúnio passado. O normal é a morte». Ou, como Adorno esclarece mais adiante, «a enfermidade actual consiste justamente na normalidade». A filosofia não pode determinar o rumo da história e muito menos garantir de antemão o triunfo da visão humanista, mas, ao «fazer justiça àquelas imagens e ideias que, em determinadas épocas, dominaram a realidade, exercendo o papel de absolutos, e que foram abandonadas no curso da História», pode funcionar como um correctivo da História. Como memória e consciência da espécie humana, a filosofia pode ajudar a evitar que a marcha da humanidade mergulhe na catástrofe: a sua função consiste em auxiliar as pessoas a reconhecer a desproporção entre o peso do mecanismo esmagador do poder social e o das massas atomizadas. A negação determinada, a denúncia da racionalidade instrumental que mutila a humanidade e impede o seu livre desenvolvimento, repousa, como diz Horkheimer, na confiança no homem. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa