sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Mestre Eckhart: Política e Ateísmo Místico

«A alma conhece todas as outras coisas, só não conhece a si mesma». (Mestre Eckhart)

Mestre Eckhart (1260-1327) é o mestre da mística alemã, a quem se deve não só a origem da língua filosófica como também a origem da especulação filosófica alemãs.

A sua doutrina mística, sobretudo as 120 proposições elencadas pelo arcebispo franciscano de Colónia, Henrique II de Virneburg, posteriormente reduzidas a 28 proposições retiradas do seu livro Da Divina Consolação, foi considerada herética pela Igreja e, por isso, Mestre Eckhart foi condenado pelo Papa João XXII, embora tenha morrido antes da publicação da bula papal de excomunhão (27 de Março de 1329). A Igreja tinha as "suas razões" para desconfiar deste "dominicano" que pregava ao povo, em língua alemã, para transmitir e divulgar a sua «mensagem».

Mestre Eckhart era dominicano e, por isso, o tomismo aparece como pano de fundo dos seus escritos em latim. Por isso, ao contrário de São Boaventura (um místico franciscano), não reconheceu a primazia da vontade, isto é, da vida em relação ao “pensamento”. Em vez disso, Erckhart defende a primazia do entendimento (intelecto) e, portanto, aposta na razão, embora numa razão intuitiva. Mestre Eckhart é peremptório a este respeito:

«Nada faz mais verdadeiro o homem do que a renúncia de sua própria vontade. Verdadeiramente, sem a renúncia da própria vontade em todas as coisas, não conseguiremos nada diante de Deus. Mais ainda se conseguirmos realmente renunciar à própria vontade e se ousarmos despojar-nos interior e exteriormente de todas as coisas, então sim fizemos tudo, antes disto não fizemos nada. (…) (Só depois é que) deves entregar-te totalmente a Deus em todas as coisas e então não te preocupes com o que Ele fará por Ele mesmo. (…) Andar totalmente à luz da vontade de Deus, sem vontade própria, somente isso seria a perfeita e verdadeira vontade».

Toda a mística cristã deriva, em última análise, de Plotino e a de Mestre Eckhart não foge à regra: «(…) Deus é, em sentido próprio, um só, e Ele é intelecto ou pensar, e é só e simplesmente pensar, sem acréscimo de outro ser. Por isso, só Deus, pelo intelecto, produz as coisas no ser, porque só nele o ser e o pensar são idênticos». E mais adiante acrescenta: «“aquele que se une a Deus constitui, com Ele, um só espírito” (1 Cor 6, 17). Pois o intelecto é, propriamente, de Deus; Deus, porém, é um. Logo, o quanto cada qual tem de intelecto ou de capacidade intelectual, tanto tem de Deus, tanto do um e tanto do ser-um com Deus. Pois o Deus uno é intelecto, e o intelecto é o Deus uno. Por isso, Deus nunca e nenhures é Deus, salvo no intelecto».

Cada criatura carrega dentro de si a Ideia de Deus, a que Mestre Eckhart chama “centelha”. Esta chama, este fogo interior, não se perde nem pode ser completamente destruída. Com diz Mestre Eckhart: «A chamazinha é tão aparentada com Deus que se constitui um Uno só, sem distinção». Isto significa que «entre homem e Deus não existe só nenhuma diferença, como também nenhuma pluralidade, não existe senão a unidade». Desta concepção deriva o famoso tema da «geração de Deus na alma».

A compreensão deste conceito é fundamental para a leitura que fazemos do pensamento de Mestre Eckhart. A sua tese, segundo a qual «a razão é a cabeça da alma», embora possa soar a tomismo ou mesmo a aristotelismo, significa simplesmente que a razão se concentra na suprema interioridade, como uma força que já não está junto das outras forças, mas que constitui a cabeça de toda a “tonalidade afectiva”, incluindo a vontade, o instinto, o movimento, o entusiasmo, a desgraça e a felicidade. Toda a “afectividade” está resumida na razão e é carregada pela razão. Não se trata evidentemente de uma razão abstracta, mas da cabeça da alma, ou melhor, da totalidade da alma. Eckhart dá muitos nomes a esta totalidade: scintilla (centelha), “pequeno castelo dentro da alma”, enfim synteresis da plena disponibilidade e do total desprendimento, portanto, da perfeita liberdade.

A palavra “synteresis” significa consciência, não consciência moral, tal como a conhecemos, mas sim consciência mística. Desprender-se ou despojar-se é o ponto de acreditação do homem com Deus que «habita» dentro de si, com o espírito da humanidade liberta e voltada sobre si mesma, enfim com o espírito da essencialidade humana.

Este conceito está intimamente ligado com a “pobreza na alma” enquanto despojada de tudo aquilo que não é necessário para a essencialidade, nem para chegar a ser essencial. Thomas Münzer chama “desprovimento” ou “desprendimento” a este desprender-se do supérfluo, da intranquilidade vã, do ruído das preocupações e dos prazeres inessenciais. Tudo aquilo que dissipa ou que distrai, o múltiplo, inclusivamente toda a falsa riqueza proveniente da falta de rectidão, tem de desaparecer, caso o homem procure alcançar uma grande pureza. Mestre Eckhart diz:

O verdadeiro desprendimento ou a completa disponibilidade nada mais é senão «que o espírito permaneça tão insensível em face de todas as vicissitudes da alegria e da dor, das honrarias, dos ultrajes e dos insultos, como uma montanha de chumbo é insensível a um sopro de vento. Tal desprendimento inabalável conduz o homem à máxima semelhança com Deus. Pois o ser Deus, Deus o deve ao seu desprendimento imutável; e do desprendimento Lhe vem a pureza e a simplicidade e a imutabilidade. Assim sendo, se o homem deve assemelhar-se a Deus, isso se fará pelo desprendimento. Pois este conduz o homem à pureza, e da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Donde resulta uma semelhança entre Deus e o homem, mas tal semelhança deve nascer da graça, pois é a graça que desprende o homem de todas as coisas temporais e o purifica de todas as coisas passageiras. E sabe que estar vazio de toda a criatura é estar cheio de Deus, e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus».

Deus comunica connosco no castelo, na centelha, na sua própria pureza como pureza da nossa essência alcançada e realizada nessa união. Ora, esta comunicação directa de Deus com o homem adquire claramente uma significação política: Deus comunica-se sem vinculações mediadas pela Igreja, sem sacramentos. O Igreja, os sacramentos, os senhores, tudo isso é desnecessário, porque há um caminho directo para o Altíssimo, acessível a todos os cristãos. A missão da Igreja como mediadora dos sacramentos e da administração dos mistérios torna-se, de certo modo, ilegítima, até porque se converte numa barreira que impede a divinização dos homens. Todos estes mistérios podem ser penetrados e perscrutados pela razão, não pela razão comum, mas pela razão do homem que volta a si mesmo, do homem que habita na centelha (o “homem interior” por oposição ao “homem exterior”), porque esta razão é a mesma que é designada nos mistérios. Os homens foram feitos à imagem de Deus e, desde que se desprendam e se despojam de tudo, com a ajuda da graça divina, podem não somente compreendê-la em si mesmos, mas também realizá-la em si mesmos.

Uma das teses defendidas por Mestre Eckhart condenada pela bula papal diz precisamente isso: «Há algo na alma que é incriado e incriável; se toda a alma fosse assim, seria incriada e incriável; e isto é o entendimento».

No seu sermão “O Silêncio da Criação”, Mestre Eckhart comenta esta tese: «A este respeito, um mestre pagão disse uma bela palavra para outro mestre: “Percebo em mim uma coisa que brilha na minha razão; sinto que é algo mas não posso compreender o que seja; só me parece que, se conseguisse apreendê-lo, conheceria toda a verdade”. Respondeu o outro mestre: “Então procura. Pois, se puderes apreendê-lo, terás o conjunto de toda a bondade e a vida eterna”».

Isto significa que a divindade deve desprender-se e rebaixar-se, isto é, "descer ao mundo", purificando-se de tudo o que os senhores e os ideólogos da dominação fizeram em seu nome, e, ao sair de si mesmo, o divino converte-se em nada. Ora, deparamo-nos aqui com a teologia negativa, com interessantes contactos com o ateísmo, mas com um ateísmo místico. Deus converte-se em luz, que habita nas trevas. Deus converte-se em deserto puro, o pleno vazio, o despojado de tudo o que é instituição existente, que, para ser compreendido na sua pureza, precisa do homem tornado puro, pobre, para lhe dar ou restituir a plenitude, sem saciedade, mentira ou alienação.

Irrompe-se nesse instante um abismo vazio, no qual o homem despojado e Deus despojado se encontram. A afirmação herética é a de que Deus deve ser verdadeira vida para o homem e não ao contrário, como defende a ortodoxia cristã. Com esta afirmação, o acto da criação é invertido: não é Deus que fez o homem à sua imagem, mas o homem é que cria incessantemente Deus à sua imagem, não só a falsa representação de Deus, o Deus da Igreja que não é verdadeiramente Deus, mas o conteúdo válido da fé das próprias representações puras. Como disse Ernst Bloch, «Deus nasce como homem na synteresis». Ou como diz Mestre Eckhart: «Por isso, peço a Deus que me torne livre de Deus. (…) Neste impulso recebo tamanha riqueza, que Deus com tudo aquilo que é como “Deus” e com toda a sua obra divina, não me pode ser suficiente; pois me é dado nesse irromper, que eu e Deus sejamos Uno. Aí eu sou o que era. E aí nem acrescento nem diminuo. Pois sou aí uma causa imóvel, que move todas as coisas».

Gottfried Keller observou correctamente o parentesco entre a mística e o ateísmo, porque a mística reclama como riqueza humana a riqueza divina e como riqueza divina a riqueza humana. Assim, L. Feuerbach e Angelus Silesius estão próximos, até porque o primeiro compreendeu que o Cur Deus homo, porque Deus se fez homem, a encarnação de Deus, está intimamente ligada à sua crítica antropológica da religião. Deus na sua pureza e o homem na sua pureza trocam os seus rostos (faces) e tornam-se indistinguíveis. Este encontro tem lugar na synteresis e, em concreto, no instante.

O instante significa “agora”, aliás um agora muito breve, instantâneo, milésimos de segundo. Este nunc stans é, como já sabia Santo Agostinho, o momento que preenche tudo, o momento em que tudo se realiza e, ao mesmo tempo, que traz no seu bojo a realização, o cumprimento. Este momento converte-se em instante místico, em que sucede o grande encontro. No instante está contida toda a eternidade, de modo que o instante é o abismo em que o próprio Deus da graça deve desaparecer como ilusão e em que se produz a divinização do homem. Isto sucede na vivência da unio mystica, da fusão do homem com Deus, que abarca tudo e que tem uma duração sem limites, na qual se esfumam todas as categorias temporais.

Ora, Mestre Eckhart une a ideia de "agora" como ponto central do mundo, que está em todas as partes, com uma concepção cosmológica da geometria medieval. Muito antes de Copérnico ou de Giordano Bruno, Alanus ab Insulis ou Alain de Lille, descreveu o universo como uma esfera infinita. Se o cosmos é infinito, então o centro, como num círculo infinito, reside em todas as partes, não está "aqui" ou "ali", mas em qualquer ponto do ser. Esta concepção desloca o homem e o seu mundo para fora do centro, ao mesmo tempo que lhes concede a centralidade, porque qualquer lugar pode agora ser o centro do mundo e não somente Deus que habita para além do mundo finito. A concepção de omnia ubique de Nicolau de Cusa está aqui antecipada: tudo está concentrado em todas as partes, em cada ponto do cosmos. Na mística de Mestre Eckhart, esta ideia ajuda a reforçar o valor infinito da alma humana, porque implica uma transformação da sublimidade: o sublime já não é sublime ou misterioso porque esteja longe, mas porque está muito próximo deste pequeno homem, o microcosmos.

Este instante pontual, visto como centro espacial do mundo, é alcançado e conquistado de modo mais visível e despojado do supérfluo precisamente na synteresis, na chama, na centelha, no castelo, no ponto profundo do espírito, onde habita Deus como o mais íntimo, o mais próximo, o mais cosmicamente central do homem e do mundo. Aqui reside provavelmente a "maior heresia" da mística de Mestre Eckhart: o homem é a verdade de Deus, tema posteriormente pensado de modo radical por L. Feuerbach. Esta proposição deve ser lida como um retorno do mundo a Deus e, ao mesmo tempo, como um retorno de Deus ao mundo e, sobretudo, ao homem. Isto significa que Deus pensado como transcendente ou mesmo como existente se dissolve no instante místico que brilha no homem. Contudo, Deus não brilha no homem existente, mas sim num homem oculto. Ao antigo conceito místico do Deus absconditus corresponde aqui o contraconceito de um homo absconditus, de um homem oculto, para o qual se deseja avançar e que se comporta negativamente em relação a tudo aquilo que foi e tem sido. Deste modo, o homem converte-se em objecto do mais elevado respeito e da mais elevada dignidade. A mística de Mestre Eckhart retoma novamente aqui a teologia negativa e afirma que o homem é Deus e Deus é homem no ponto mais profundo da centelha.

De facto, Mestre Eckhart defende a primazia do conhecimento, isto é, da vita contemplativa sobre a vida activa, a qual está plasmada na representação do mundo. Para Mestre Eckhart, o mundo total despojado daquilo que não é essencial é um processo de conhecimento, no qual o Deus implícito, imanente, se conhece a si mesmo no mundo. Essência e conhecimento são uma só e mesma coisa. Como disse Ernst Bloch: «Em Eckhart a essência do mundo, Deus, abre os seus olhos numa Ilíada do devir e numa Odisseia do des-vir, ou do retorno ao seu centro». Ou como diz Mestre Eckhart: «Todo o grão refere-se ao trigo, todo o metal refere-se ao ouro, todo o nascimento refere-se ao homem». Entenda-se: não ao homem como algo já existente, mas ao homem como um possível megantropo. (Este post compreende dois textos, Mestre Eckhart: Mística e Política e Mestre Eckhart: Cur Deus Homo e Ateísmo Místico, publicados no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online".)

J Francisco Saraiva de Sousa

Internet e CyberFilosofia

A comunicação mediada por computador (CMC), usando instrumentos tais como correio elecrónico ("e-mail"), "open virtual discussion groups" (ou "newsgroups"), fóruns, "real-time text correspondence" (ou "chat rooms"), "voice exchange" (ou "telephony"), e "face-to-face vídeo communications" (ou "videoconferencing"), tornou-se uma rotina integrada na vida quotidiana da maior parte da população. A Internet é precisamente a espinha dorsal da comunicação global mediada por computador: é, portanto, a rede que liga mais redes de computadores, a qual possibilita a criação de novas comunidades virtuais (H. Rheingold), levando as pessoas a unir-se on-line em torno de valores e interesses partilhados, a elaboração de identidades on-line consistentes com as suas identidades off-line, sobretudo entre os utilizadores sexualmente estigmatizados, e a emergência de uma «cultura da virtualidade real» (Castells), da qual a filosofia não é estranha. (Leia o restante texto neste post Computadores, Internet e CyberFilosofia.)
J Francisco Saraiva de Sousa

Antropologia de Helmuth Plessner

«Sem o sopro da vida o corpo humano é um cadáver; sem o pensar o espírito humano está morto.» (Hannah Arendt)
Os posts que tenho editado sobre antropologia filosófica visam, em última análise, destruir toda a história da sociologia "atarefada" e o seu pretenso relativismo, que, quando foi levado a sério, como no caso da ex-URSS ou nos gabinetes de pesquisa administrativa, contribuiu para a liquidação da individualidade e da dignidade da vida humana, como testemunham os erros cometidos pela interpretação "comunista" da teoria de Marx.
Alheios à tradição de Sócrates e, portanto, à tradição do pensamento crítico, os sociólogos "atarefados" atarefam-se em mil e uma actividades rotineiras, sem imaginação, em busca de fama ou de algum prémio, como se essa ambição mesquinha lhes restituísse a dignidade do exercício de pensamento. E o seu Homo sociologicus (Ralf Dahrendorf) mais não é do que um fantoche, manipulado pela má-publicidade (Habermas) e, portanto, destituído de "verdadeiro self" (Rogers) e de pensamento autónomo, figura contra a qual a antropologia filosófica na sua ociosidade criativa elabora a noção de Homo absconditus. Esta é a única figura que faz justiça à afinidade existente entre dialéctica e tragédia que Lucien Goldmann soube captar na sua obra "Le Dieu Caché", retomando os textos do jovem Georg Lukács.
Em 1928, Helmuth Plessner (1892-1985) publicou a sua obra fundamental de antropologia filosófica, "Die Stufen des Organischen und der Mensch", mas, quando regressa à Alemanha após o seu exílio holandês, em 1945, confronta-se com duas obras, a de Heidegger que ilude o aspecto "natural e social" do ser humano, e a de Arnold Gehlen que destaca o seu aspecto biológico. Plessner não se inibe e procura retomar o seu caminho já presente na sua obra anterior "Die Einheit der Sinne" (1923). Para Plessner, o homem não é um animal dotado de um espírito que lhe foi insuflado de fora (concepção quase bíblica), mas um "ser de uma-só-peça" (aus-einem-Guss-Sein), composto pelo biológico-natural e pelo espiritual-cultural, pela physis e pela psyche. Isto equivale a dizer que a condição humana é um corpo animado e um espírito encarnado. Deste modo, Plessner afirma a unidade indissolúvel, sem fissuras, da interioridade (Innen) e da exterioridade (Aussen) do ser humano.
Contra o dualismo platónico, cristão e cartesiano, Plessner elabora o conceito de "posicionalidade" (Positionalität) como categoria unitária dos seres vivos. Isto significa que a posicionalidade é própria dos organismos vivos por oposição ao inorgânico: os organismos vivos mantêm as suas relações com o seu meio e afirmam-nas, enquanto o inorgânico se caracteriza pela sua "a-relacionalidade" com o mundo-circundante.
Com este conceito de posicionalidade, a antropologia de Plessner estuda as estruturas, não como essências ou princípios absolutos, mas na sua relação com as conjunturas ambientais, históricas e emocionais, sempre mutáveis e imprevisíveis. Fundada na relação entre o organismo e o meio, a antropologia de Plessner distancia-se da oposição mantida pela antropologia de Max Scheler entre espírito e vida. Com o homem, a esfera da vida dá um salto radical e alcança um nível distinto do "desenrolar normal" do existente. A identidade humana reconhece-se no seu ser-corpo e também no seu ser-no-corpo. Isto significa que o "eu" pode reconhecer-se plenamente tanto na esfera física como na esfera psíquica.
Por causa da sua "posição excêntrica", portanto, anticartesiana, o homem pode relacionar-se tanto com a dimensão corporal como com a dimensão espiritual, tanto com o mundo externo como com o mundo interno. Isto quer dizer que o homem se tem a si mesmo e é si mesmo, ou seja, pode compreender o seu corpo (Körper) como um objecto qualquer, analisá-lo e compará-lo com outros corpos e objectos, mas também pode identificar-se com o seu corpo (Leib), identificado com o centro das suas sensações, acções e emoções. Ao contrário dos animais, o homem não é somente um corpo, mas tem também um corpo, o que permite a Plessner falar do duplo-aspecto (Doppelaspektivität) do ser humano.
A posição excêntrica em que se encontra o homem permite-lhe descentrar-se, renunciar à sua própria centralidade em relação às coisas e às pessoas do próprio meio, e, quando se distancia de si próprio, o homem pode ver-se a si mesmo e a sua situação no cosmos. Esta distância foi chamada consciência, vista como sinónimo de laceração ou de fractura incurável que se manifesta em todos os momentos da existência humana. A necessidade de ser um corpo no sentido somático e psíquico e a necessidade de ter um corpo no sentido material conduzem a uma fractura irremediável no interior da existência humana. O homem é supostamente essa fractura, o centro da incessante mediação entre o exterior e o interior e, por isso, em todos os momentos da sua existência, deve procurar um equilíbrio, sempre provisório e precário, que é expressão da sua condição utópica, da sua inalcançável fixação de homo absconditus.
A obra "Die Stufen des Organischem und der Mensch" propõe uma teoria dos modelos orgânicos essenciais, chamada "teoria apriorística dos caracteres orgânicos essenciais", onde leva a cabo uma dedução, em sentido kantiano, das categorias e dos princípios a priori de que dependem as características da vida em geral e, muito especialmente, do homem. O centro desta teoria é ocupado pelo princípio de posicionalidade, que permite estabelecer, ao nível ontológico e cognitivo, a diferenciação entre realidade orgânica e realidade inorgânica e entre o mundo animal e o mundo humano. Esta diferenciação posicional entre os diferentes reinos da natureza (vegetal, animal e humano) é entendida como um verdadeiro princípio constitutivo da natureza, mais do que uma mera classificação, da qual se originam os distintos níveis do orgânico, cujo carácter gradual se fundamenta na coesão interna do vivente, na sua capacidade de relação com o mundo externo e na autonomia interior do próprio eu. Nesta "escala posicional", o homem ocupa o vértice, sendo cada uma das escalas autónoma em relação às outras.
1) O primeiro nível da escala é o vegetal. Marcado por uma forma aberta, o organismo vegetal encontra-se englobado numa área concreta, sem poder distinguir-se dela e, deste modo, destacar a sua individualidade. Torna-se impossível distinguir, no mundo vegetal, entre um mundo interno e um mundo externo, porque não há um centro, um si mesmo, que confira consciência ao sujeito. Isto significa que, na ausência de um órgão central, uma planta não é um individuum, mas um dividuum, incapaz de se mover voluntariamente e, por conseguinte, de alcançar a plenitude. A planta permanece para sempre incompleta: é um inacabamento intrínseco.
2) No reino animal, a forma aberta transforma-se em forma fechada, porque as interacções com o meio ocorrem através da mediação de uma estrutura central determinante, que activa a inserção do animal no seu habitat. O animal é um organismo autónomo que reage ao seu ambiente de acordo com os seus próprios impulsos, sensações e instintos. Além disso, o animal é dotado de consciência, porque é capaz de distinguir-se do seu meio e de opor-se ao seu meio. Contudo, apesar de possuir um centro, o animal não possui capacidade reflexiva: «O animal vive no seu centro e retorna a ele, mas não vive como centro» (Plessner), porque, embora saiba conhecer e actuar, o animal não tem consciência dos seus conhecimentos e das suas acções. Isto significa que o animal não tem consciência do que faz, porque ainda não possui um "eu".
3) O homem encontra-se na posição mais elevada da escala do orgânico. Tal como o animal, o homem possui uma forma fechada, mas, ao contrário do animal, é capaz de distanciar-se de si próprio e alcançar a autoconsciência, que constitui o ponto culminante de todo o sistema dos seres vivos. Por causa desta sua capacidade reflexiva, o homem pode distanciar-se voluntariamente do seu centro, o que lhe permite superar a necessidade biológica à qual o animal permanece prisioneiro, dado ser incapaz de ter consciência daquilo que faz. A autoreflexão possibilita ao homem transcender o seu próprio centro biológico e, deste modo, conquistar uma posição excêntrica: «Esta posição de ser centro e, simultaneamente, estar na periferia, merece o nome de excentricidade» (Plessner).
A posição excêntrica do homem manifesta-se através de uma pluralidade de formas e torna-o capaz de interpretar diversas personagens no cenário do grande "teatro do mundo". Como vimos, com o animal passa-se do dividuum, que é típico do vegetal, para o individuum, que é a singularidade garantida pelo centro. Com a sua excentricidade, o homem passa do indivíduo para a pessoa, que é a perfeita realização da excentricidade como autoconsciência. Embora saiba distinguir entre ele mesmo e o seu meio, o animal é incapaz de distinguir entre ele e ele próprio, portanto, não consegue estabelecer uma distância consigo próprio. Ora, o homem constitui-se como tal a partir da autoreflexão, a qual implica uma visão, ponderação e interpretação de si próprio desde um ponto exterior, descentrado e crítico, aquilo a que Plessner chama a sua "posição excêntrica" (exzentrische Positionalität).
Plessner procurou formular uma «doutrina das leis fundamentais ou categorias da vida», com o objectivo de estabelecer lógica e sistematicamente (não em termos evolutivos) as etapas do desenvolvimento dos seres vivos, entre os quais o homem ocupa um lugar privilegiado. Estas leis antropológicas fundamentais são a artificialidade natural, a imediatez mediada e o lugar utópico, as quais explicam como o homem constrói a sua vida a partir da separação originária da "imediatez mediada", expressão que Plessner retoma da dialéctica de Hegel.
1) A primeira lei é a da "artificialidade natural". O homem não vive em contacto imediato com o seu meio, porque é forçado a transformar o mundo natural num mundo artificial. Esta transformação implica a imersão do homem na instabilidade e na perplexidade que o confrontam constantemente com a atitude interrogativa e o desafiam a responder às questões: Que devo fazer?, Como devo viver? ou Como devo solucionar os meus problemas? O homem não pode ser exclusivamente um ser natural, mas é obrigado a produzir instrumentos que lhe permitam transformar o mundo natural e convertê-lo no seu próprio habitat: um mundo artificial, no qual encontra a sua "terra natal", a sua "segunda natureza". Dado ser um "animal carente" (Gehlen), o homem deve suprir com o seu engenho, artificialmente, as suas carências naturais: quer dizer que o homem é naturalmente um "ser artificial" e tudo o que produz (moral, valores e vinculação às normas ideais) é resultado da artificialidade humana. Ao contrário do animal, que se mantém em equilíbrio consigo mesmo e com o meio, o homem é um "coração inquieto": está sempre à procura de equilíbrio, reconciliação, porque não possui um meio natural próprio.
2) A segunda lei é a da "imediatez mediada". O homem vive ao mesmo tempo como organismo animal na imediatez da natureza e como ser excêntrico através da mediação cultural. Na peugada de Hegel, Plessner destaca a importância das mediações na existência humana, as quais são reflexivas, devido à sua posição excêntrica. Ao contrário do animal, o homem é confrontado com uma "imediatez mediada" (Unmittelbarkeit) e uma fractura da imediatez que é própria do animal: o homem deve proceder a constantes transformações do natural, para dar vida ao inexistente, as múltiplas criações artificiais que alcança através das interrogações e dos reptos que lhe coloca a própria existência.
3) A terceira lei é a do "lugar utópico", à qual Plessner dedicou uma obra inteira. Como ser excêntrico, o homem encontra-se constantemente projectado para além de qualquer para além. Isto significa que o homem nunca se sente em casa, nem nas suas objectivações culturais, nem nas suas ordenações sociais, simplesmente porque para o homem não há nenhum lugar fixo no universo. Até a história carece de sentido definitivo. A tese da excentricidade humana é incompatível com toda a posição definitivamente consolidada, colocando o homem à procura constante de novas possibilidades, sempre abertas e, portanto, condenadas a não conseguir fixar a sua posição. Como diz Plessner: «(O homem) está em posição excêntrica esteja onde estiver, e, ao mesmo tempo, não está onde está». (Este post foi originariamente publicado no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online" com o título Helmuth Plessner: Conditio Humana.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Antropologia de Arnold Gehlen

«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres!» (Herder)
De acordo com a "história dogmática da disciplina", a antropologia filosófica foi fundada propriamente por Max Scheler e levada a cabo pelos seus seguidores: H. Plessner, A. Portmann. A. Gehlen, E. Rothacker e M. Landmann. Estas primeiras antropologias filosóficas esboçaram uma síntese ou imagem filosófica coerente do homem a partir da biologia e, muito especialmente, da etologia tal como foi fundada por K. Lorenz. Por isso, esta primeira abordagem filosófica do homem foi justamente designada antropobiologia, ao lado da qual surgiram mais recentemente novas antropologias filosóficas distintas entre si pelas abordagens adoptadas: Rothacker e, parcialmente, Cassirer adoptaram uma abordagem culturalista, Ph. Lersch segue uma abordagem psicológica, Marcuse adopta uma abordagem sociológica marcadamente freudomarxista, Lévi-Strauss abraça a etnologia e W. Pannenberg, J. Moltmann e Karl Rahner apresentam o repto teológico.
Neste post, pretendemos apresentar em linhas gerais a antropologia filosófica de Arnold Gehlen, que, apesar de ser herdeira da abordagem de Max Scheler, traz para o centro da reflexão antropológica o contributo decisivo da etologia de K. Lorenz e de um autor menos conhecido Herder (1744-1803). Tanto Scheler quanto Gehlen aceitam a questão do homem tal como tinha sido formulada por Herder: «O que falta ao animal que se aproxima mais do homem (quer dizer, ao macaco) que explique a razão por que ele não se tornou homem?» Esta formulação da questão do homem implica necessariamente uma ruptura com todas as imagens filosóficas do homem ao longo da história da filosofia: a grega (Platão e Aristóteles), a cristã (Santo Agostinho e São Boaventura) e a moderna (Descartes), possibilitando o recurso aos dados recolhidos pelas ciências empíricas particulares. Como a resposta de Gehlen é muito semelhante à de Herder, vale a pena citar na integra um texto deste último:
«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres! Não há nele nenhum impulso obscuro e inato que o conduza no seu elemento e no seu círculo de acção à sobrevivência e às tarefas que lhe são próprias. Não tem faro, cheiro instintivo, que o arraste para as ervas capazes de lhe matar a fome! Não dispõe dum mestre mecânico, cego, que lhe venha construir um ninho! Ei-lo, abandonado e só! Fraco e ameaçado, sujeito à fúria dos elementos, à fome, a todos os perigos, à rapina dos animais mais fortes. a mil mortes possíveis! Sem o ensinamento imediato da natureza criadora, sem a condução segura dessa mão! Cercado e perdido!»
Contudo, após ter apresentado o homem como um ser deficiente, Herder passa, logo a seguir, a apresentar os seus aspectos vantajosos:
«Mas, por mais viva que seja esta imagem, a verdade é que não é a imagem do homem... É apenas um aspecto superficial e, mesmo esse, colocado sob uma falsa luz. Se o entendimento e a reflexão são o dom natural da espécie humana, então esta tinha que se exprimir de imediato, ao mesmo tempo que se exprimiam a fraqueza da sua sensibilidade e a miséria das suas privações. A criatura miserável, sem instintos, vinda das mãos da natureza em estado de tal abandono, era também, desde o primeiro momento, a criatura livre e racional que havia de se socorrer a si própria porque, aliás, outra coisa não podia. As carências e necessidades enquanto animal, tornaram-se causas prementes para mostrar, com todas as suas forças, que era homem. (...) O centro de gravidade do homem, o direccionamento principal da sua actividade anímica, residia no entendimento, na reflexão humana, do mesmo modo que na abelha reside sem mediações na sucção e na construção dos favos».
«(...) E, do mesmo modo (o amor maternal), também na totalidade do género humano a natureza sabe transformar a fraqueza em força. É por isso mesmo que o homem vem ao mundo tão fraco, tão necessitado, tão destituído de ensinamentos naturais, todo ele sem talentos, sem habilidade, como nenhum animal; para que possa, como nenhum animal, gozar duma educação e para que o género humano, como nenhuma espécie animal, possa tornar-se um todo intimamente ligado!»
A imagem do homem elaborada por Herder é bastante complexa e, neste último parágrafo citado, ele, partindo do modelo do amor maternal, procura mostrar que o "ser prematuramente nascido" (Bolk) precisa dos cuidados maternais e da comunidade onde nasceu, de modo a adquirir a linguagem e outros traços que farão dele um ser adulto capaz de construir o seu próprio mundo, de modo a proteger-se das adversidades e colmatar as suas fraquezas biológicas: «Somos, pois, afirma Herder, criaturas da linguagem». Comparados com os outros animais, nascemos demasiado fracos, destituídos de instintos e, por isso, incapazes de fazer face às adversidades; se não fossem os cuidados maternais prestados durante esse período crítico das nossas vidas, estaríamos condenados ao abandono e à morte. Apesar disso, somos dotados de entendimento e de reflexão e possuímos o dom da linguagem, qualidades da nossa natureza que compensam as nossas deficiências naturais e que "fazem de nós homens" e, como tal, distintos dos restantes animais.
Na sua obra "O Homem, sua Natureza e seu Lugar no Mundo", Arnold Gehlen (1940) considera que a qualidade essencial do homem reside na ausência de adaptação a um determinado meio-ambiente. Face à elevada especialização e à segurança instintiva do animal, o homem surge biologicamente como um «ser deficiente», devido à sua falta de especialização, à sua imaturidade e à sua pobreza de instintos. Para sobreviver, o homem tem de compensar esta falta de especialização com a sua própria acção, a qual lhe permite construir um mundo cultural, onde surgem as suas mais elevadas realizações espirituais e culturais.
Gehlen chama ao homem o «ser incompleto» (ou "em busca permanente") e pensa que foi constrangido, por carência de adaptações morfológicas especiais, a fabricar o seu próprio mundo de cultura, através da sua acção: «Com efeito, morfologicamente, o homem, em contraposição aos mamíferos superiores, está determinado pela carência que é necessário explicar no seu sentido biológico exacto como não-adaptação, não-especialização, primitivismo, isto é: não-evoluído; de outra forma: essencialmente negativo» (Gehlen). Isto significa que a sua conduta universal se caracteriza pelo conceito de «abertura ao mundo«, em contraste com a «vinculação ao meio» que caracteriza a conduta dos animais: «(...) O homem é um ser desesperadamente inadaptado. É de uma mediania biológica única no seu género (...) e só conseguiu sair desta carência mediante a sua capacidade de trabalho ou o dom da acção; isto é: com as suas mãos e a sua inteligência. Precisamente por isso está erecto, circum-spectans (olhando ao redor) e as suas mãos estão livres» (Gehlen).
O comportamento animal está «vinculado ao meio», enquanto a conduta humana está «livre do meio» e, por isso, é uma conduta «aberta ao mundo». O animal tem um meio limitado; o homem, pelo contrário, vive num mundo aberto; é um "ser aberto ao mundo". O meio ambiente (Umwelt) significa um espaço vital perfeitamente limitado sobre o qual se estabelece de forma específica um ser vivo. O mundo (welt) significa, pelo contrário, um horizonte vasto que rompe, por definição, qualquer limitação precisa e elimina toda a fixação, sendo por isso mais amplo que o espaço vital imediato. Daqui resulta que o animal é um ser ligado ao meio porque está ligado ao instinto, e que o homem está aberto ao mundo, precisamente porque carece da adaptação animal a um "ambiente-fragmento": «A abertura ao mundo, vista (como uma incapacidade natural de viver num ambiente-fragmento), é fundamentalmente uma tarefa» (Gehlen). Isto significa que, face à carência de um meio ambiente (circum-mundo) com distribuição de significados realizada por via instintiva, o homem tem de realizar essa tarefa, mediante os seus próprios meios e por si mesmo, isto é, o homem precisa «transformar por si mesmo os condicionamentos carenciais da sua existência em oportunidades de prolongamento da sua vida» (Gehlen). O homem é «um ser práxico porque é não-especializado e carece, portanto, de um meio ambiente adaptado por natureza. A essência da natureza transformada por ele em algo útil para a vida chama-se cultura e o mundo cultural é o mundo humano» (Gehlen). A partir desta noção de homem como um ser carencial e, por isso, um "ser em-risco", Gehlen elabora uma imponente teoria da cultura como conceito antropobiológico e do homem como «um ser de cultura por natureza», porque "não-terminado".
K. Lorenz critica a noção do homem como "ser não-completo", alegando que não se trata de um conceito biológico, porque «não há seres não adaptados, ou então são simplesmente seres isolados, condenados a desaparecer, feridos por factores mortíferos». De facto, como lembra Lorenz, o cérebro do homem, com as suas dimensões grandiosas, representa uma adaptação morfológica especial e absolutamente evidente. Apesar disso, Lorenz reconhece que a teoria de Gehlen encerra qualquer coisa de fundamentalmente verdadeiro: «um ser que possuísse uma adaptação morfológica claramente especializada nunca poderia ter dado o homem». Adolf Portmann mostrou que as realizações culturais superiores não podem ser explicadas a partir deste elemento negativo de uma deficiência biológica, mas, como vimos, Lorenz que partilha esta crítica não descarta completamente a teoria do homem de Gehlen: um ser especializado não daria um homem, um ser que deve assumir a tarefa de criar o seu próprio mundo. O seu cérebro prepara-o biologicamente para levar a cabo essa tarefa, sem lhe garantir nada, até porque o cérebro é, ele próprio, um "órgão aberto ao mundo", portanto em-risco permanente de fracassar. Contudo, quando elabora a sua teoria das instituições sociais, em diálogo permanente com a etologia, Gehlen reforça a sua teoria do homem como "ser incompleto".
J Francisco Saraiva de Sousa