sábado, 2 de fevereiro de 2008

Antropologia de Arnold Gehlen

«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres!» (Herder)
De acordo com a "história dogmática da disciplina", a antropologia filosófica foi fundada propriamente por Max Scheler e levada a cabo pelos seus seguidores: H. Plessner, A. Portmann. A. Gehlen, E. Rothacker e M. Landmann. Estas primeiras antropologias filosóficas esboçaram uma síntese ou imagem filosófica coerente do homem a partir da biologia e, muito especialmente, da etologia tal como foi fundada por K. Lorenz. Por isso, esta primeira abordagem filosófica do homem foi justamente designada antropobiologia, ao lado da qual surgiram mais recentemente novas antropologias filosóficas distintas entre si pelas abordagens adoptadas: Rothacker e, parcialmente, Cassirer adoptaram uma abordagem culturalista, Ph. Lersch segue uma abordagem psicológica, Marcuse adopta uma abordagem sociológica marcadamente freudomarxista, Lévi-Strauss abraça a etnologia e W. Pannenberg, J. Moltmann e Karl Rahner apresentam o repto teológico.
Neste post, pretendemos apresentar em linhas gerais a antropologia filosófica de Arnold Gehlen, que, apesar de ser herdeira da abordagem de Max Scheler, traz para o centro da reflexão antropológica o contributo decisivo da etologia de K. Lorenz e de um autor menos conhecido Herder (1744-1803). Tanto Scheler quanto Gehlen aceitam a questão do homem tal como tinha sido formulada por Herder: «O que falta ao animal que se aproxima mais do homem (quer dizer, ao macaco) que explique a razão por que ele não se tornou homem?» Esta formulação da questão do homem implica necessariamente uma ruptura com todas as imagens filosóficas do homem ao longo da história da filosofia: a grega (Platão e Aristóteles), a cristã (Santo Agostinho e São Boaventura) e a moderna (Descartes), possibilitando o recurso aos dados recolhidos pelas ciências empíricas particulares. Como a resposta de Gehlen é muito semelhante à de Herder, vale a pena citar na integra um texto deste último:
«Visto como um animal nu, destituído de instintos, o homem é o mais miserável dos seres! Não há nele nenhum impulso obscuro e inato que o conduza no seu elemento e no seu círculo de acção à sobrevivência e às tarefas que lhe são próprias. Não tem faro, cheiro instintivo, que o arraste para as ervas capazes de lhe matar a fome! Não dispõe dum mestre mecânico, cego, que lhe venha construir um ninho! Ei-lo, abandonado e só! Fraco e ameaçado, sujeito à fúria dos elementos, à fome, a todos os perigos, à rapina dos animais mais fortes. a mil mortes possíveis! Sem o ensinamento imediato da natureza criadora, sem a condução segura dessa mão! Cercado e perdido!»
Contudo, após ter apresentado o homem como um ser deficiente, Herder passa, logo a seguir, a apresentar os seus aspectos vantajosos:
«Mas, por mais viva que seja esta imagem, a verdade é que não é a imagem do homem... É apenas um aspecto superficial e, mesmo esse, colocado sob uma falsa luz. Se o entendimento e a reflexão são o dom natural da espécie humana, então esta tinha que se exprimir de imediato, ao mesmo tempo que se exprimiam a fraqueza da sua sensibilidade e a miséria das suas privações. A criatura miserável, sem instintos, vinda das mãos da natureza em estado de tal abandono, era também, desde o primeiro momento, a criatura livre e racional que havia de se socorrer a si própria porque, aliás, outra coisa não podia. As carências e necessidades enquanto animal, tornaram-se causas prementes para mostrar, com todas as suas forças, que era homem. (...) O centro de gravidade do homem, o direccionamento principal da sua actividade anímica, residia no entendimento, na reflexão humana, do mesmo modo que na abelha reside sem mediações na sucção e na construção dos favos».
«(...) E, do mesmo modo (o amor maternal), também na totalidade do género humano a natureza sabe transformar a fraqueza em força. É por isso mesmo que o homem vem ao mundo tão fraco, tão necessitado, tão destituído de ensinamentos naturais, todo ele sem talentos, sem habilidade, como nenhum animal; para que possa, como nenhum animal, gozar duma educação e para que o género humano, como nenhuma espécie animal, possa tornar-se um todo intimamente ligado!»
A imagem do homem elaborada por Herder é bastante complexa e, neste último parágrafo citado, ele, partindo do modelo do amor maternal, procura mostrar que o "ser prematuramente nascido" (Bolk) precisa dos cuidados maternais e da comunidade onde nasceu, de modo a adquirir a linguagem e outros traços que farão dele um ser adulto capaz de construir o seu próprio mundo, de modo a proteger-se das adversidades e colmatar as suas fraquezas biológicas: «Somos, pois, afirma Herder, criaturas da linguagem». Comparados com os outros animais, nascemos demasiado fracos, destituídos de instintos e, por isso, incapazes de fazer face às adversidades; se não fossem os cuidados maternais prestados durante esse período crítico das nossas vidas, estaríamos condenados ao abandono e à morte. Apesar disso, somos dotados de entendimento e de reflexão e possuímos o dom da linguagem, qualidades da nossa natureza que compensam as nossas deficiências naturais e que "fazem de nós homens" e, como tal, distintos dos restantes animais.
Na sua obra "O Homem, sua Natureza e seu Lugar no Mundo", Arnold Gehlen (1940) considera que a qualidade essencial do homem reside na ausência de adaptação a um determinado meio-ambiente. Face à elevada especialização e à segurança instintiva do animal, o homem surge biologicamente como um «ser deficiente», devido à sua falta de especialização, à sua imaturidade e à sua pobreza de instintos. Para sobreviver, o homem tem de compensar esta falta de especialização com a sua própria acção, a qual lhe permite construir um mundo cultural, onde surgem as suas mais elevadas realizações espirituais e culturais.
Gehlen chama ao homem o «ser incompleto» (ou "em busca permanente") e pensa que foi constrangido, por carência de adaptações morfológicas especiais, a fabricar o seu próprio mundo de cultura, através da sua acção: «Com efeito, morfologicamente, o homem, em contraposição aos mamíferos superiores, está determinado pela carência que é necessário explicar no seu sentido biológico exacto como não-adaptação, não-especialização, primitivismo, isto é: não-evoluído; de outra forma: essencialmente negativo» (Gehlen). Isto significa que a sua conduta universal se caracteriza pelo conceito de «abertura ao mundo«, em contraste com a «vinculação ao meio» que caracteriza a conduta dos animais: «(...) O homem é um ser desesperadamente inadaptado. É de uma mediania biológica única no seu género (...) e só conseguiu sair desta carência mediante a sua capacidade de trabalho ou o dom da acção; isto é: com as suas mãos e a sua inteligência. Precisamente por isso está erecto, circum-spectans (olhando ao redor) e as suas mãos estão livres» (Gehlen).
O comportamento animal está «vinculado ao meio», enquanto a conduta humana está «livre do meio» e, por isso, é uma conduta «aberta ao mundo». O animal tem um meio limitado; o homem, pelo contrário, vive num mundo aberto; é um "ser aberto ao mundo". O meio ambiente (Umwelt) significa um espaço vital perfeitamente limitado sobre o qual se estabelece de forma específica um ser vivo. O mundo (welt) significa, pelo contrário, um horizonte vasto que rompe, por definição, qualquer limitação precisa e elimina toda a fixação, sendo por isso mais amplo que o espaço vital imediato. Daqui resulta que o animal é um ser ligado ao meio porque está ligado ao instinto, e que o homem está aberto ao mundo, precisamente porque carece da adaptação animal a um "ambiente-fragmento": «A abertura ao mundo, vista (como uma incapacidade natural de viver num ambiente-fragmento), é fundamentalmente uma tarefa» (Gehlen). Isto significa que, face à carência de um meio ambiente (circum-mundo) com distribuição de significados realizada por via instintiva, o homem tem de realizar essa tarefa, mediante os seus próprios meios e por si mesmo, isto é, o homem precisa «transformar por si mesmo os condicionamentos carenciais da sua existência em oportunidades de prolongamento da sua vida» (Gehlen). O homem é «um ser práxico porque é não-especializado e carece, portanto, de um meio ambiente adaptado por natureza. A essência da natureza transformada por ele em algo útil para a vida chama-se cultura e o mundo cultural é o mundo humano» (Gehlen). A partir desta noção de homem como um ser carencial e, por isso, um "ser em-risco", Gehlen elabora uma imponente teoria da cultura como conceito antropobiológico e do homem como «um ser de cultura por natureza», porque "não-terminado".
K. Lorenz critica a noção do homem como "ser não-completo", alegando que não se trata de um conceito biológico, porque «não há seres não adaptados, ou então são simplesmente seres isolados, condenados a desaparecer, feridos por factores mortíferos». De facto, como lembra Lorenz, o cérebro do homem, com as suas dimensões grandiosas, representa uma adaptação morfológica especial e absolutamente evidente. Apesar disso, Lorenz reconhece que a teoria de Gehlen encerra qualquer coisa de fundamentalmente verdadeiro: «um ser que possuísse uma adaptação morfológica claramente especializada nunca poderia ter dado o homem». Adolf Portmann mostrou que as realizações culturais superiores não podem ser explicadas a partir deste elemento negativo de uma deficiência biológica, mas, como vimos, Lorenz que partilha esta crítica não descarta completamente a teoria do homem de Gehlen: um ser especializado não daria um homem, um ser que deve assumir a tarefa de criar o seu próprio mundo. O seu cérebro prepara-o biologicamente para levar a cabo essa tarefa, sem lhe garantir nada, até porque o cérebro é, ele próprio, um "órgão aberto ao mundo", portanto em-risco permanente de fracassar. Contudo, quando elabora a sua teoria das instituições sociais, em diálogo permanente com a etologia, Gehlen reforça a sua teoria do homem como "ser incompleto".
J Francisco Saraiva de Sousa

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