terça-feira, 27 de maio de 2008

Modernidade, Mass Media e Tradição (Dois)

«São o constante revolucionar da produção, a ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação, que distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. Todas as relações fixas, imobilizadas, com o seu cortejo de ideias e opiniões veneráveis, são varridas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes de chegarem a consolidar-se. Tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais despertos as verdadeiras condições da sua vida e as suas relações com os outros homens» (Karl Marx/F. Engels): Eis aqui enunciado o princípio de uma nova teoria marxista da modernidade, já vislumbrada por Marshall Berman.
3. A teoria da modernização proposta pela teoria social clássica deve ser revista à luz de quatro objecções fundamentais:
1ª. Com o desenvolvimento das sociedades modernas, ocorreu efectivamente um declínio gradual da fundamentação tradicional da acção e do papel da autoridade tradicional. De facto, como demonstraram Marx e Weber, os aspectos normativo e legitimador da autoridade tradicional entraram em declínio acelerado nas sociedades modernas, embora na nossa era da globalização hajam sinais da sua «recuperação» por parte de movimentos conservadores.
2ª. Porém, noutros aspectos, a tradição conserva a sua importância no mundo moderno, quer como meio de dar sentido ao mundo e à vida (aspecto hermenêutico), quer como meio de criar um sentido de pertença (aspecto identificador), sem o qual a vida perde o encanto.
3ª. Apesar de manter a sua importância, a tradição transformou-se: a transmissão do material simbólico tornou-se cada vez mais separada da interacção social quotidiana partilhada em ambientes comuns. Isto significa que, como diz Thompson, as tradições não desapareceram, como teimam em afirmar os teóricos da modernidade ou da pós-modernidade, mas perderam a sua fundação nos locais partilhados da vida quotidiana. É esta mediatização da tradição que permitiu a Liliane Lurçat falar das "crianças TV".
4ª. O desenraizamento das tradições dos locais partilhados da vida quotidiana não significa que as tradições flutuem livremente; pelo contrário, as tradições só poderão sobreviver se e somente se forem continuamente reincorporadas em novos contextos e refundadas em novos tipos de unidades territoriais. Os mass media de segunda geração (Mark Poster) constituem esses novos territórios, onde as tradições podem voltar a reflorescer.
A teoria clássica da modernização implica não só o declínio da tradição, mas também o desaparecimento da sociedade tradicional. Ora, a relação entre tradição e modernidade é muito mais complexa e paradoxal, porque o declínio evidente da autoridade tradicional e dos fundamentos tradicionais da acção social não significa necessariamente a morte da tradição, sobretudo depois de 11 de Setembro. Pelo contrário, aponta para novos sinais de mudança na sua natureza e no seu papel que se tornam cada vez mais evidentes à medida que os indivíduos começam a confiar mais nas tradições mediadas e separadas dos contextos sociais partilhados, para dar sentido ao mundo e criar sentido de pertença. Para exemplificar esta complexidade, podemos referir duas obras: "O Fim de uma Tradição: Cultura e Desenvolvimento no Município de Cunha" de Robert W. Shirley e "The Passing of Traditional Society" de Daniel Lerner. Ambas assentam numa pesquisa de terreno e tratam do processo de modernização no Médio Oriente/Líbano (Lerner) e no Município de Cunha/Brasil (Shirley).
A teoria de Lerner é particularmente emblemática, porque retoma a oposição clássica entre sociedades tradicionais e sociedades modernas, encarando a transição das primeiras para as segundas em função da teoria da modernização exposta brilhantemente em termos económicos por Maurice Dobb na sua «evolução do capitalismo» ou mesmo por Raymond Aron nas suas lições sobre a «sociedade industrial». Segundo Lerner, as características mais relevantes das sociedades tradicionais são as seguintes: 1) As sociedades tradicionais fragmentam-se em comunidades isoladas umas das outras, nas quais as relações de parentesco desempenham um papel fundamental, de resto reconhecido por Engels. 2) Nestas sociedades, os horizontes das pessoas são limitados pelo contexto geográfico: as interacções sociais reduzem-se ao conhecimento recíproco e personalizado. 3) A vida quotidiana é rotinizada segundo padrões tradicionais que raramente são justificados ou problematizados pelas pessoas, dada a ausência de conhecimento de outros estilos de vida alternativos que se desenrolam em locais distantes. 4) Dado as pessoas que nasceram nessas comunidades terem uma vida que se desenrola em conformidade com rotinas não-questionadas, a sua auto-expressão é relativamente exígua e o seu self tende a ser limitado: o self enraíza-se no familiar e na rotina e a sua trajectória de vida é organizada à custa de uma auto-reflexão mais alargada, aberta e abrangente.
Nas sociedades modernas, o indivíduo é dotado de um elevado grau de flexibilidade e de mobilidade física e mental (Simmel), portanto, completamente estranho ao mundo fechado (A. Koyré) do "self tradicionalista" ou do indivíduo traditivo-dirigido (David Riesman). Esta abertura do self foi facilitada não só pelo crescimento das viagens, do turismo e dos deslocamentos, mas sobretudo pela difusão de "experiências mediadas": a comunicação de massas funciona assim como «um multiplicador da mobilidade» (Lerner) física e/ou virtual. Este confronto com novos estilos de vida alternativos torna a vida quotidiana das pessoas menos rígida e, ao mesmo tempo, mais insegura (Giddens, Winnicott), na medida em que se começa a imaginar o que pode vir a acontecer no futuro, em vez de pressupor que será igual ao passado, como sucedia nas sociedades tradicionais avessas ao relógio (Carlo Cipolla, L. Mumford, G. J. Whittrow). Retomando um conceito fenomenológico (Scheler), Lerner usa o termo "empatia" para descrever a capacidade de um indivíduo para se colocar no lugar ou no papel do outro (G. Mead), capacidade esta dependente da exposição aos mass media. Ora, esta capacidade possibilita aos indivíduos distanciar-se imaginariamente das circunstâncias imediatas e interessar-se por temas e assuntos que não afectam directamente a sua vida diária.
O aperfeiçoamento da empatia torna o self mais expansivo, aberto e ansioso. Em vez de se localizar num ponto fixo de uma suposta ordem imutável das coisas, o self percebe a sua própria vida como um ponto que se move ao longo de uma trajectória de coisas imaginadas. Com efeito, imaginar um mundo para além das imediações locais significa alargar os horizontes de mundo e da vida, mas também significa imaginar um mundo de riscos (Ulrich Beck) e de novas oportunidades, muitas das quais perdidas (Heidegger), no qual pode ou não nascer uma nova vida através de uma contínua assimilação de experiências verdadeiras e vicárias.
Apesar de reconhecer o impacto dos mass media na estruturação das sociedades modernas, Lerner tende a encarar a passagem das sociedades tradicionais para as sociedades modernas como um processo de racionalização crescente que elimina gradualmente a necessidade de formular um conjunto de conceitos, crenças e valores, capaz de doar sentido ao mundo e ao lugar que cada um de nós ocupa no mundo. Como escreveu Max Weber, aliás na peugada de Nietzsche e de Tolstoi: Para o indivíduo moderno, «a morte constitui um acontecimento que não tem sentido. (Ora, dado a morte já não ter sentido, a vida) também perdeu o sentido». Esquecido o sentido, o que resta ao homem senão a errância na qual mergulha a loucura? Neste mundo inóspito, a vida tem deixado de ser predominantemente peregrinação e, no que se refere às identidades, o peregrino tem cedido o seu lugar predominante às figuras do deambulador, do vagabundo, do turista e do jogador (Z. Bauman).
«A autoridade tal como a conhecemos outrora, saída da experiência romana de fundação e entendida à luz da filosofia política grega, não foi restabelecida em parte nenhuma, fosse através de revoluções ou através desse expediente ainda menos promissor que são as restaurações, e menos ainda através de tendências conservadoras que de vez em quando invadem a opinião pública. Viver numa esfera política onde nem a autoridade nem a concomitante consciência de que a fonte da autoridade transcende o poder e as pessoas que o detêm significa ver-se novamente confrontado, sem a confiança religiosa num começo sagrado nem a protecção de normas de conduta tradicionais e por isso auto-evidentes, com os problemas mais elementares da convivência humana». (Hannah Arendt)
4. A literatura sobre a destruição da tradição é abundante e releva, como vimos, da teoria clássica da modernização. Porém, a teoria de Lerner ajuda a esclarecer a relação entre a tradição e os mass media, ao mesmo tempo que possibilita mostrar que o desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação não levou necessariamente à destruição da tradição vista como matriz identitária e hermenêutica. Pelo contrário, os mass media da segunda geração transformaram a tradição: a sua formação e a sua transmissão tornaram-se cada vez mais dependentes das formas de comunicação que transcendem os contextos práticos e locais da interacção face a face, o que pode ajudar a compreender a crise da escola.
A tradição foi, portanto, mediatizada e este processo de mediatização da tradição acarretou, como observou Thompson, três consequências fundamentais: a tradição torna-se mais desritualizada, despersonalizada e desenraizada ou deslocada.
1. Desritualização. A fixação do conteúdo simbólico nos produtos dos mass media garante uma forma de permanência temporal que, geralmente, não existe nos intercâmbios comunicativos que se desenrolam nas interacções face a face. Esta continuidade temporal diminui a necessidade de reconstituição prática e contínua dos conteúdos simbólicos, ao mesmo tempo que facilita o seu acesso alargado (Walter Benjamin). Assim, a manutenção da tradição no tempo torna-se menos dependente de uma reconstituição ritualizada, isto é, a tradição torna-se cada vez mais desritualizada, sem ser destruída ou perder a sua força. Neste sentido, a descoberta do alfabeto e, posteriormente, da imprensa, constitui a maior revolução tecnológica de todos os tempos (Marshall McLuhan, Derrick de Kerckhove), sem a qual a filosofia não teria emergido na Grécia Antiga (Eric Havelock).
2. Despersonalização. Ao tornar-se cada vez mais dependente das formas mediadas de comunicação, a transmissão da tradição separa-se e distancia-se dos indivíduos com os quais interagimos na vida diária: a tradição é assim despersonalizada, adquirindo uma certa autonomia e uma autoridade próprias, já que não depende dos indivíduos para ser transmitida. Na sua obra mais magnífica, "Tristes Trópicos", Claude Lévy-Strauss elaborou a hipótese deveras interessante de que «a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão», apoiando-a no célebre caso de um chefe tribal que a fingiu usar para exercitar o seu poder sobre os outros. Para Lévy-Strauss, «a luta contra o analfabetismo confunde-se assim com o reforço do controle dos cidadãos pelo Poder. Pois é necessário que todos saibam ler para que este último possa dizer: ninguém pode ignorar a lei». Porém, como lembra Hannah Arendt, a partir da experiência romana, autoridade e poder são fenómenos distintos:
«A tradição preservava o passado ao transmitir de geração em geração o testemunho dos antecessores, tanto o dos que haviam criado e testemunhado a sagrada fundação, como o dos que, ao longo de séculos, a tinham aumentado pela sua autoridade. Enquanto esta tradição se mantivesse ininterrupta, a autoridade permanecia intacta; e agir sem autoridade nem tradição, sem padrões e modelos aceites e consagrados pelo tempo, sem o auxílio da sabedoria dos pais fundadores, era algo de inconcebível. O conceito de uma tradição espiritual e de uma autoridade em matéria de pensamento e de ideias deriva aqui da esfera política, sendo, por conseguinte essencialmente derivativa, tal como a concepção platónica do papel da razão proveio da esfera filosófica e se tornou derivativa no âmbito dos assuntos humanos. Fundamental, porém, em termos históricos é o facto de os romanos terem sentido que precisavam de pais fundadores e de exemplos de autoridade também no domínio do pensamento e das ideias, e o facto de terem adoptado os grandes "antepassados" da Grécia como figuras de autoridade em matéria de teoria».
Como mostra a actual crise da escola e da educação, a autoridade é distinta do poder e não depende da personalização, isto é, das interacções face a face que se desenrolam em contextos práticos da vida quotidiana. Isto parece significar que a mediatização da tradição não constitui um factor susceptível de explicar a perda de autoridade. Se a tradição perdeu autoridade, tal facto não pode ser imputado à sua mediação, mas deve ser procurado na crise de autoridade que está instalada na esfera política.
3. Deslocação. Ao se tornarem dependentes dos meios de comunicação, no que respeita à sua conservação e à sua transmissão de geração em geração, as tradições foram gradualmente desenraizadas e deslocadas, já que o elo que as mantinha ligadas a lugares específicos de interacção face a face, tais como a escola, a igreja ou a família, foi enfraquecido e, parcialmente, quebrado. A conexão entre tradição e unidades espaciais reais foi assim destruída.
Estes três aspectos definem a mediatização da tradição que não foi destruída pela modernização, mas, em vez disso, foi desenraizada e deslocada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação desde a descoberta da escrita e da imprensa. Falta saber se este deslocamento da tradição poderá conduzir a uma espécie de "prisão virtual", onde o self se perde a si mesmo na mesma proporção em que perde o contacto directo com os outros reais em contextos de interacção face a face, embora a própria tecnologia da Internet esteja a criar novas formas de exposição pública mediatizadas que, de certo modo, neutralizam a despersonalização.
«As interpenetrações de civilizações não constituem fenómeno novo, ligado à expansão europeia do século XIX. Pelo contrário, pode-se dizer que a História de toda a humanidade é a História do contacto, das lutas, das migrações e das fusões culturais». (Roger Bastide)
«A razão destruiu o seu próprio progenitor. Podemos agora acrescentar o parricídio à lista dos seus crimes. É parricida, além de impotente e suicida». (Ernst Gellner)
5. Como vimos anteriormente, à medida que se tornam cada vez mais dependentes dos meios de comunicação de massas no que se refere à sua conservação e à sua manutenção, as tradições são gradualmente desenraizadas dos lugares particulares e, por consequência, ficam menos dependentes das interacções face a face. Este desenraizamento das tradições facilita a sua adaptação, transformação, transfiguração ou codificação por parte dos indivíduos que têm acesso aos meios de produção e de distribuição das formas simbólicas mediadas. Contudo, se não forem reimplantadas em contextos práticos da vida quotidiana, as tradições mediadas correm o sério risco de perderem importância, ficando entregues à deriva e à flutuação permanentes. O conceito de "invenção da tradição" foi criado para mostrar que a mediação da tradição é, no fundo, um processo de reinvenção da tradição (Hobsbawm & Ranger), o qual garante a sua coerência. Desalojada dos lugares particulares, a tradição é assumida, remodelada, reinventada e reimplantada de novas maneiras na vida social, sem perder a sua autenticidade.
Com o desenvolvimento dos mass media da primeira e da segunda gerações, as tradições foram desenraizadas, trabalhadas e novamente fundadas em novos tipos de unidades territoriais que, com a globalização da comunicação, tendem a cobrir todo o planeta, como se este se tivesse convertido numa "aldeia global" (Marshall McLuhan). O acesso das populações de todas as regiões da Terra às novas tecnologias da informação e da comunicação, sobretudo à comunicação mediada por computador, cria um novo problema que merece atenção: Tradições diferentes misturam-se em territórios partilhados, reais ou virtuais, e confrontam-se quando são difundidas pelos mass media à escala global e deslocadas pelas populações migrantes, podendo incentivar conflitos interculturais.
A migração é um fenómeno característico das sociedades modernas. Quando migram ou são forçadas a mudar de um lugar originário para outro estranho, as pessoas transportam consigo conjuntos de valores, de crenças e de padrões de comportamento que fazem parte das suas tradições. Estas tradições nómadas sustentam-se através de reconstituições ritualizadas e de práticas de narração oral de histórias em contextos de interacção face a face (Goffman). Porém, com o decorrer do tempo, as tradições nómadas sofrem transformações, uma vez que, estando afastadas dos seus contextos originais, se misturam com conteúdos simbólicos provenientes das novas circunstâncias em que são reconstituídas. Este processo de assimilação ou de aculturação foi analisado pelos teóricos sociais da Escola de Chicago e Alfred Schutz esboçou a sua fenomenologia social (Veja este post ainda não elaborado:
Alfred Schutz: a Fenomenologia do Lar). Darcy Ribeiro tratou da transfiguração étnica e da integração das populações indígenas no Brasil moderno e, tal como Gilberto Freyre e Roger Bastide, analisa este fenómeno sob o conceito de mestiçagem cultural.
De um modo geral, as tradições nómadas transportadas pelas pessoas que se deslocam para outros territórios culturais e civilizacionais ou são integradas na cultura para a qual foram levadas, ou são rejeitadas e os seus «transportadores», condenados à exclusão social. A mediatização das tradições possibilita e facilita a conservação e o renovamento das tradições nómadas entre os migrantes e os grupos deslocados. Apesar deste papel desempenhado na conservação dessas tradições nómadas, os mass media e os deslocamentos de populações de migrantes favorecem e promovem a dispersão das tradições. Além de criar uma paisagem cultural extremamente complexa e diversificada, a dispersão das tradições provoca novas formas de tensão e de conflitos sociais, culturais e étnicos. Estes conflitos podem ser observados em contextos e níveis diferentes.
1. Ao nível da família, pais e filhos oriundos de populações migrantes tendem a avaliar de modos diferentes as tradições originárias, donde resulta quase sempre um conflito de gerações. Os pais desejam conservar uma certa continuidade cultural com o passado, enquanto os filhos preferem assimilar as tradições da comunidade de acolhimento, onde nasceram e pretendem viver.
2. Ao nível individual, uma pessoa tende a experimentar subjectivamente este conflito geracional como um confronto entre conjuntos de crenças e de valores que impelem em diferentes direcções. O indivíduo sente-se, nessa situação, dividido entre duas tradições: a paterna e a da comunidade que o acolhe, isto é, entre o passado e o futuro.
Esta situação permite compreender a busca de raízes como um projecto cultural que tem uma forte, embora ambivalente, relação com as populações migrantes. O apelo às origens oferece uma via para recuperar e inventar tradições que religuem os indivíduos aos lugares de origem, reais ou imaginários, de modo a ajudar a remodelar um aspecto do self que foi suprimido, ignorado ou estigmatizado pela comunidade de acolhimento. Contudo, este projecto de recuperação de tradições ligadas a um suposto lugar de origem tende a ser vivido pelo indivíduo de um modo ambivalente, porque sente que as tradições de origem não têm nada a ver com o tipo de vida que deseja construir para si mesmo.
Nas sociedades modernas, as tradições étnicas estão cada vez mais em contacto umas com as outras, devido às migrações étnicas e à globalização dos produtos dos mass media. Este contacto intercultural entre tradições diferentes não é geralmente acompanhado pela compreensão recíproca entre os indivíduos que pertencem a grupos diferentes. Como verificamos actualmente na Europa e nos USA em relação aos muçulmanos, o encontro de tradições muito diferentes gera formas intensas de conflito intercultural, sobretudo quando estão associadas a relações étnicas e a relações assimétricas de poder e de desigualdade. Além disso, o contacto entre tradições ou civilizações tende a gerar formas intensificadas de definição de fronteiras que tomam a forma de esforços contínuos para proteger a integridade de tradições e para reafirmar formas de identidade colectiva ligadas a tradições culturais, mediante a exclusão social daqueles que não pertencem ao grupo. Estas actividades de definição de fronteiras podem ser simbólicas e/ou territoriais e originam formas de exclusão geradoras de violência.
Apesar disso, o processo de mestiçagem cultural parece ser, pelo menos aparentemente, uma fonte de criatividade e de dinamismo culturais. Actualmente, a mistura de populações e de tradições cria um contínuo híbrido cultural ou uma multiplicidade de culturas mestiças, que revelam que, num mundo cada vez mais dominado pelos fluxos de comunicação e de informação e pelas migrações culturais, as tradições não estão imunizadas contra os efeitos resultantes dos encontros inevitáveis com outros radicalmente diferentes. Os mass media são ambíguos: estimulam a busca das origens ou mesmo o diálogo intercultural, ao mesmo tempo que fomentam os conflitos interculturais. Nesta hora de ameaça terrorista, o Ocidente deve resgatar a sua tradição cognitivamente superior (Habermas) e orgulhar-se da sua História. (Publicado originariamente em "CyberCultura e Democracia Online".)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Modernidade, Mass Media e Tradição (Um)

«O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia» (Horkheimer & Adorno)
1. A filosofia social clássica legou-nos a ideia de que o desenvolvimento das sociedades modernas implicou necessariamente a perda de importância da tradição na vida quotidiana. Se a tradição é «coisa do passado», então as sociedades modernas contrastam com as «sociedades tradicionais». Esta ideia foi incorporada pelas teorias da modernização vista como um processo de desenraizamento das tradições, e assenta em dois pressupostos fundamentais:
1. A teoria social clássica foi herdeira do Iluminismo, que encarava a tradição uma fonte de mistificação e, como tal, uma inimiga da Razão e um obstáculo ao Progresso Humano.
2. A teoria social clássica via, portanto, a emergência e o desenvolvimento das sociedades modernas como um processo dinâmico intrinsecamente destruidor da tradição. Como herança do passado, a tradição devia ser criticada e dissipada em nome da Razão e, mesmo que isso não fosse possível, a própria dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia da sua destruição.
Karl Marx. A convergência destas duas considerações é evidente tanto na obra de Marx como na obra de Max Weber. Sob a influência do Iluminismo, Karl Marx via a tradição como a principal fonte de mistificação que encobria e ocultava a verdadeira natureza das relações sociais. A dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia, ela própria, de quebrar e dissolver as relações sociais e as tradições das sociedades pré-modernas. Pelo menos, é assim que a modernização é apresentada no "Manifesto do Partido Comunista". Isto significa que a desmistificação das relações sociais é um processo latente ao desenvolvimento e à expansão do modo de produção capitalista: «O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a alteração incessante da produção, o derrubamento contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais imobilizadas na tradição, com o seu cortejo de concepções e de ideias, fixas e veneráveis, se dissolvem; aquelas que as substituem caducam antes mesmo de cristalizarem. Tudo o que tinha solidez e perdurbalidade esvai-se em fumo, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são forçados, finalmente, a encarar com olhos desiludidos as suas condições de existência e as suas relações mútuas» (Marx & Engels). Quando as forças de produção atingirem um determinado nível de desenvolvimento, entrarão em contradição com a manutenção das relações de produção estabelecidas, levando o proletariado a vê-las como relações de exploração do homem pelo homem e a lutar pela sua transformação revolucionária, em direcção a uma sociedade mais livre e justa, portanto, mais transparente: «Antes de tudo, a burguesia produz os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis» (Marx & Engels).
Max Weber. Embora não fosse optimista como Marx, Max Weber acreditava que o desenvolvimento do capitalismo industrial seria acompanhado pelo desaparecimento das cosmovisões tradicionais. É certo que a ética protestante desempenhou um papel fundamental na emergência do capitalismo ocidental, mas, uma vez estabelecido como forma predominante de actividade económica, o capitalismo adquiriu uma tal força que acabou por dispensar as ideias e as práticas religiosas que tinham sido necessárias ao seu surgimento. Além de ter promovido o aparecimento do Estado burocrático nacional, o desenvolvimento do capitalismo racionalizou progressivamente a acção social e adaptou-a aos critérios da eficiência técnica. O puramente pessoal e individual, o elemento espontâneo e emotivo da acção tradicional, foi esmagado pelas exigências de objectivos racionalmente calculados. Este processo de racionalização e, portanto, de desencantamento do mundo, foi o preço pago pela racionalização ocidental, de resto vista como «a fatalidade dos tempos modernos» (Weber).
As teorias da modernização elaboradas posteriormente aceitaram a existência da oposição entre sociedades tradicionais e sociedades modernas e encararam a passagem das primeiras para as segundas como um processo irreversível e de sentido único. Estas teorias podem ser enquadradas sob uma mesma designação: a grande narrativa da transformação cultural, para retomar um conceito de Lyotard, que Horkheimer & Adorno apresentaram numa perspectiva filosófica na sua obra "Dialéctica do Esclarecimento", onde, associando as ideias de Marx e de Weber, com recurso a Nietzsche e a Freud, conceberam a dialéctica do progresso como regressão. Esta grande narrativa da modernização pode ser reconduzida a três elementos-chave:
1. O surgimento do capitalismo industrial na Europa e noutros lugares do mundo foi acompanhado pelo declínio das crenças e das práticas religiosas e mágicas que prevaleciam nas sociedade pré-industriais. Isto significa que o desenvolvimento económico capitalista foi seguido, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e das práticas religiosas e pela racionalização progressiva da vida social. Peter Berger definiu a secularização como um processo de «progressiva "perda de realidade" por parte das interpretações religiosas tradicionais do mundo». Ao racionalizar sectores cada vez mais amplos da vida social, a modernização privou o indivíduo da segurança que lhe proporcionavam as instituições tradicionais. Esta insegurança implicou «a ameaça constante de isolamento e de falta de sentido».
2. O declínio da religião e da magia prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças seculares ou ideologias, que servem para mobilizar a acção política, sem referência a valores ou a seres de outro mundo (seres sobrenaturais). A consciência religiosa e mística da sociedade pré-industrial foi substituída pela consciência prática enraizada nas colectividades sociais e animadas pelos sistemas seculares de crenças.
3. Estes desenvolvimentos deram lugar à "Era da Ideologia" que culminou em movimentos revolucionários radicais no final do século XIX e inícios do século XX. Estes movimentos foram as últimas manifestações da era da ideologia. Actualmente, a política é cada vez mais um problema de reforma gradual e de acomodação pragmática de interesses em conflito. A acção social e política é cada vez menos animada por sistemas seculares de crenças que exigem a mudança social radical. Por isso, estamos a assistir não só ao fim da era das ideologias, mas também ao fim da ideologia como tal, como defenderam Daniel Bell, Raymond Aron, Jean-François Lyotard e Vattimo.
Lyotard vai mais longe quando afirma que o projecto moderno da realização da universalidade não foi abandonado ou esquecido, mas destruído e liquidado, e, em seu lugar, surge aquilo a que chamou pós-modernidade. Porém, A. Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash reagiram contra a esta teoria do fim da modernidade, opondo-lhe uma nova teoria da modernidade, a modernização reflexiva, já previamente desenvolvida por Giddens. Esta nova teoria defende que, nas primeiras fases da modernização, muitas instituições dependiam das tradições das sociedades pré-industriais. Contudo, à medida que a modernização entra na sua fase mais avançada (a modernização reflexiva de Beck), as tradições começaram a perder a sua força, de modo que as sociedades modernas se tornaram "destradicionalizadas". Embora não tenham ainda desaparecido completamente, as tradições gozam de um estatuto que mudou significativamente. As práticas tradicionais perderam o monopólio da verdade e tornaram-se menos seguras quando são expostas ao escrutínio e à discussão públicos. Ao serem chamadas a defender-se, estas práticas perdem o status de verdades inquestionáveis. Um modo de sobrevivência é a sua transformação num tipo de fundamentalismo, como o islâmico, que rejeita o apelo da justificação discursiva e procura, num clima de dúvida generalizada, reafirmar o seu carácter inviolável.
Podemos alegar dois argumentos contra a tese do declínio da tradição que teria acompanhado o desenvolvimento das sociedades modernas:
1. Determinadas tradições e sistemas de crenças tradicionais continuam a estar presentes nas sociedades dos séculos XX e XXI, tais como as igrejas católicas ou protestantes, às quais vieram associar-se os novos movimentos religiosos ou mágicos, tomados geralmente como o regresso do sagrado.
2. A tese do declínio da tradição não leva em conta o papel dos mass media.
J. Thompson foi dos poucos teóricos sociais que compreendeu a verdadeiro impacto dos mass media na transformação das sociedades modernas. A sua teoria da modernização assenta na ideia crucial de que a mediatização da tradição a dotou de nova vida, liberando-a das limitações da interacção face a face e revestindo-a de novas características. A tradição desritualizou-se e perdeu parcialmente a sua fundação nos contextos práticos da vida quotidiana. Os mass media electrónicos tanto os da primeira geração como os da segunda geração são actualmente a nova fundação da tradição.
«Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso». (Walter Benjamin)
2. Mas afinal o que é a tradição? No seu sentido mais geral, a tradição é, como diz Thompsom, «um traditum, isto é, qualquer coisa que é transmitida e trazida do passado». Thompson distingue quatro aspectos diferentes da tradição, frequentemente confundidos, mas interligados entre si: o hermenêutico, o normativo, o legitimador e o identificador.
1º. Aspecto hermenêutico. A hermenêutica de Heidegger a Gadamer encara a tradição como um conjunto de pré-compreensões ou de preconceitos de fundo que são aceites pelos indivíduos quando se orientam na vida quotidiana e que são transmitidos de geração em geração. Para a hermenêutica, a tradição não constitui um guia normativo usado para orientar a acção, mas um esquema interpretativo, uma estrutura mental prévia, usada para ajudar os indivíduos a entender e a compreender o mundo em que foram e estão lançados. Toda a compreensão funda-se em pré-compreensões ou, como prefere dizer Gadamer, em preconceitos, portanto, num conjunto de conceitos que tomamos como certos e evidentes e que fazem parte integrante da tradição a que pertencemos. Nenhuma compreensão pode ser completa e inteiramente isenta destes preconceitos fácticos ou contrafácticos.
Como já vimos noutro post, Gadamer leva a cabo a requalificação da crítica iluminista da tradição. Ao opor as noções de razão, de conhecimento científico e de emancipação às noções de tradição, de autoridade e de mito, o Iluminismo não descartou a tradição como tal, mas articulou um conjunto de novos preconceitos e de novos métodos que formavam o núcleo duro de outra tradição: a tradição do próprio Iluminismo. Por conseguinte, o Iluminismo não constitui a antítese da tradição, mas é, ele próprio, uma tradição entre outras tradições: um conjunto de suposições ou preconceitos aceites como verdadeiros, sem exame prévio, que articulam uma estrutura cognitiva que ilumina o conhecimento do mundo. Quando Habermas lhe lembra que a tradição pode ser criticada, Gadamer responde que esta é sempre uma tradição aberta e em constante mudança.
2º. Aspecto normativo. As tradições também são conjuntos de suposições, crenças e padrões de comportamento, trazidos do passado, que servem como princípios orientadores para as acções e as crenças do presente. Este aspecto normativo da tradição manifesta-se de duas maneiras: a) as tradições do passado podem funcionar como princípio normativo no sentido de rotinizarem determinadas práticas (práticas rotineiras), desse modo realizadas com pouca reflexão, dado que sempre foram realizadas da mesma maneira ao longo dos tempos. A vida quotidiana desenrola-se normalmente sob o signo da rotina. b) As tradições do passado também podem funcionar como princípio normativo no sentido de fundamentarem tradicionalmente determinadas práticas (práticas tradicionalmente fundamentadas), isto é, de justificá-las pela referência à tradição.
3º. Aspecto Legitimador. A tradição pode, em determinadas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade. Max Weber distinguiu três modos de estabelecer a legitimidade de um sistema de dominação: a) a autoridade legal, cujas reivindicações de legitimidade se fundam em fundamentos racionais que envolvem a crença na legalidade das normas promulgadas; b) a autoridade carismática, cuja legitimidade se baseia em fundamentos carismáticos que implicam a devoção à santidade ou ao carácter excepcional de um indivíduo; e c) a autoridade tradicional, cuja legitimidade fundada na tradição envolve a crença no carácter sagrado de tradições imemoriais.
No caso da autoridade legal, os indivíduos obedecem a um sistema impessoal de normas, porque a burocracia é o regime de ninguém e onde ninguém pode ser responsabilizado, excepto os chamados "criminosos" criados pelas próprias leis. No caso da autoridade tradicional, as pessoas obedecem à pessoa que ocupa a posição de autoridade tradicionalmente sancionada: as suas acções tornam-se obrigatórias por tradição. Nalgumas circunstâncias, a tradição pode ter um carácter político, funcionando não só como princípio normativo de acção, mas também como base para o exercício do poder exercido sobre outros, de modo a garantir a sua obediência. Neste sentido, as tradições tornam-se ideológicas, sendo usadas para sustentar relações desiguais e assimétricas de poder.
4º. Aspecto Identificador. Este aspecto da tradição diz respeito ao papel desempenhado pela tradição na formação da identidade: identidade pessoal e identidade colectiva. A auto-identidade refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo, como sendo um indivíduo dotado de determinadas características ou traços pessoais e situado numa determinada trajectória de vida. A identidade colectiva refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo como sendo membro de um grupo social ou colectividade mais vasta. Trata-se, portanto, do sentido de pertença: a noção de fazer parte integrante de um grupo social que tem uma história própria e um destino colectivo comum.
O processo de formação de identidade não começa do nada; pelo contrário, como já vimos noutro post, constrói-se sempre a partir de um conjunto de material simbólico pré-existente que constitui a fonte da identidade. Ora, as tradições são precisamente reservatórios de suposições, preconceitos, crenças e padrões de comportamento que, trazidos do passado, fornecem os materiais simbólicos necessários para a auto-formação da identidade individual e colectiva. Assim, o sentido que cada um tem de si mesmo e de pertencer a um grupo social é moldado e condicionado pela tradição a que pertence. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 17 de maio de 2008

Escola de Konstanz e Teoria da Recepção

«Os meus poemas têm o sentido que se lhes dê». (Paul Valéry)
«A obra literária faz apelo, de um modo essencial, à leitura». (Hans-Georg Gadamer)
A estética da recepção surgiu na República Federal da Alemanha, nos anos 70, onde adquiriu o estatuto de escola na Universität Konstanz: a Escola de Konstanz, cujos teóricos mais destacados são Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, ambos discípulos de Hans-Georg Gadamer, cujos princípios hermenêuticos ou mesmo fenomenológicos adaptaram à crítica literária.
A história da literatura moderna pode ser sumariamente periodizada em três fases em função do triângulo Autor, Obra e Leitor e do seu elemento privilegiado:
1. Uma preocupação com o autor manifestada pelo romantismo e predominante no século XIX, girando muito em torno da estética do génio de Kant: o autor é visto como um génio que cria sem regras e o sentido tende a ser descoberto na intenção desse génio criativo.
2. Uma preocupação exclusiva com o texto protagonizada pela Nova Crítica: o texto literário é visto não como documento biográfico ou histórico ou simples soma de influências literárias exercidas sobre ele, mas como obra de arte sujeita e submetida às suas próprias leis estéticas.
3. E, nas últimas décadas, uma transferência acentuada da atenção para o leitor e o público tematizada pela teoria da recepção: Segundo Paul Valéry, não existe sentido pré-estabelecido num texto; o sentido concretiza-se em cada acto de leitura e com cada leitor de um modo novo e inesperado. Como escreveu Hans Robert Jauss:
«No triângulo formado pelo autor, a obra e o público, este último não é de forma alguma um elemento passivo, que reagiria em cadeia, mas antes uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história (da literatura). A vida da obra na história não é pensável sem a participação activa daqueles a quem se dirige. É a sua interpretação que faz entrar a obra na continuidade de um horizonte dinâmico de experiência, na qual se opera a permanente passagem de uma recepção simples a um comportamento crítico, de uma recepção passiva a uma recepção activa, e das normas estéticas reconhecidas a uma produção nova».
Neste triângulo comunicacional, o leitor foi o elemento menos privilegiado pelas teorias estéticas. Coube à estética da recepção destacar o seu papel na história da literatura, porque sem leitor não há (verdadeiramente) textos literários. Estes textos são processos de significação que só se "concretizam" ou se "actualizam" (W. Iser) na prática de leitura. A leitura é um processo activo em que o leitor está sempre a formular hipóteses construtivas sobre o significado do texto, estabelecendo conexões implícitas, preenchendo "lacunas", "rupturas" ou "hiatos", fazendo deduções e comprovando suposições. Esta actividade hermenêutica do leitor só é possível graças ao uso de conhecimentos tácitos do mundo em geral e das convenções literárias em particular. O texto em si convida o leitor a dar-lhe sentido. O leitor concretiza a obra literária que, em si mesma, mais não é do que uma cadeia de marcas negras organizadas numa página e que, por mais sólida que pareça, se compõe de "hiatos", fracturas ou "indeterminações". Para terem efeitos, os elementos indeterminados do texto dependem da interpretação do leitor, podendo ser interpretados de várias maneiras, por vezes conflituais entre si. Quanto mais informação transmite o texto, mais indeterminado ele se torna: a mais-valia informacional desencadeia reacções diferentes em diferentes leitores e, em vez de fazer o texto mais preciso e transparente, torna-o mais indeterminado, portanto mais aberto ao diálogo produtivo com os seus leitores de todos os tempos.
A leitura é um movimento dinâmico complexo que se desdobra no tempo. Segundo Roman Ingarden, a obra literária apenas existe como uma série de "schemata" (ou orientações gerais) que o leitor deve tornar realidade efectiva, com o recurso a determinadas "pré-compreensões" e a um amplo horizonte de crenças e de expectativas a partir das quais, dentro das quais e com as quais as várias características da obra devem ser avaliadas. A continuação da leitura exige necessariamente a modificação das expectativas iniciais até que o "círculo hermenêutico" (da parte ao todo e do todo à parte) comece a ficar solucionado, revelando um sentido coerente. O leitor esforça-se por estabelecer um sentido coerente a partir do texto e, para levar a cabo essa tarefa, selecciona e organiza os seus elementos em todos coerentes, excluindo alguns elementos e destacando outros, de modo a concretizar a obra. Sob poderosa influência da fenomenologia, Wolfgang Iser fez uma distinção fundamental entre "texto", considerado como pura potencialidade, e "obra", considerada como conjunto de sentidos constituídos pelo leitor ao longo da leitura. Desta distinção não resulta o relativismo ou a arbitrariedade do sentido, mas a concepção produtiva da leitura como a constituição do sentido a partir do texto, isto é, segundo as regras de jogo inscritas no texto. Isto significa que a estrutura do texto não determina o sentido, mas somente o ritmo, isto é, a forma da constituição do sentido.
A leitura não é, portanto, um movimento linear progressivo e cumulativo, mas um trabalho activo no decurso do qual as expectativas iniciais do leitor geram um quadro de referências para a interpretação do que vem a seguir. Porém, o que vem a seguir pode transformar retrospectivamente a sua compreensão original, ressaltando certos aspectos e colocando outros em segundo plano. À medida que prossegue a leitura, o leitor abandona certas suposições, revê crenças, realiza revisões de sentido, enfim faz deduções e previsões cada vez mais complexas: cada frase abre um horizonte que é confirmado, questionado, problematizado ou destruído pela frase seguinte. O leitor lê simultaneamente para trás e para a frente, recordando e prevendo, consciente de outras concretizações possíveis do texto negadas pela sua leitura. Isto significa que o leitor é, de certo modo, uma espécie de co-autor do texto que concretiza em obra (W. Iser). Esta actividade produtiva de leitura é realizada em muitos níveis ao mesmo tempo, dado o texto ter segundos e primeiros planos, diferentes pontos de vista narrativos, camadas alternativas de significado, entre as quais o leitor se move constantemente. Segundo W. Iser, a obra literária mais eficiente e valiosa é aquela que obriga o leitor a formular uma nova consciência crítica dos seus códigos estéticos e das expectativas habituais, ou seja, que transgride os modos normativos de ver e ensina novos códigos de entendimento. A função da leitura é, como já tinha sido mostrado por Gadamer, levar o leitor a uma auto-consciência mais profunda e catalisar uma visão mais crítica da sua própria identidade, como se aquilo que lê ao avançar na leitura de um livro fosse ele próprio.
Hans Robert Jauss disse de outro modo a missão da leitura: «Reduzir a arte a um simples reflexo é limitar o efeito que ela produz no reconhecimento do já conhecido: vingança da mimesis platónica, essa herança que se renega. Deste modo, ficaria precisamente vedada à estética marxista a possibilidade de compreender o carácter revolucionário da arte: o poder que ela tem de libertar o homem de preconceitos e representações arreigadas na sua situação histórica e de o abrir a uma percepção nova do mundo, à antecipação de uma realidade nova». Ou então: «A experiência da leitura pode libertá-lo de exigências de adaptação, preconceitos e constrangimentos da sua praxis da vida, conduzindo-o a renovar a sua percepção das coisas. O horizonte de expectativa próprio da literatura distingue-se do da praxis histórica da vida pelo facto de não apenas conservar os traços das experiências feitas mas de antecipar também as possibilidades ainda não realizadas, alargando os limites do comportamento social, ao suscitar aspirações, exigências e objectivos novos, e abrindo assim as vias da experiência futura».
Existem algumas variações no seio da estética da recepção, mas aquilo que foi analisado neste post é suficiente para mostrar que, no âmbito da literatura, esta teoria soube demarcar-se da explicação imanente da obra literária, conhecida nos USA com a designação de Nova Crítica (Leo Spitzer), produzindo uma verdadeira teoria estética preocupada com os efeitos da experiência estética, aliás muito próxima das estéticas marxistas. Hans Robert Jauss converteu efectivamente a teoria da recepção numa estética da recepção entendida como teoria da comunicação, vendo a experiência estética como consciência produtiva (poiesis) que cria um mundo como sua própria obra; como consciência receptiva (aisthesis) que aproveita a oportunidade para renovar a sua percepção interna e externa da realidade, e como abertura à intersubjectividade (katharsis), à qual dedicaremos outro post.
Anexo Crítico. A estética da recepção surgiu no seio da sociedade de consumo (Jean Baudrillard): o leitor das estéticas clássicas era uma espécie de filólogo solitário. Como a educação está actualmente em regressão, o leitor é hoje qualquer um desde que funcione em manada neste horizonte metabolicamente reduzido: muita opinião mas escassez cognitiva. As leituras não-orientadas podem privar o texto literário da sua verdade, sendo reduzido a uma mera mercadoria. Aqui reside o núcleo da crítica que faço à teoria da recepção na sua versão banal: uma estética da indigência de espírito e da privação activa de conhecimento.
A teoria da recepção assenta (ou devia assentar) na fenomenologia social da vida diária (Schutz), a qual destaca a multiplicidade de realidades: o leitor possui o seu próprio acervo de conhecimentos prévios (Husserl, Heidegger, Gadamer, Schutz) historicamente efectivo que preenche as lacunas do texto literário, dando-lhe um sentido coerente. Ao acentuar o papel do leitor/público, a estética da recepção tornou-se teoria da comunicação: autor (produção), obra e leitor (recepção), privilegiando o papel do leitor na constituição do sentido. No contexto da indigência cognitiva predominante nas nossas sociedades, o diálogo entre a obra e o público tende a transformar-se numa palhaçada, porque o público finge que lê, é destituído de conhecimentos e o sistema de educação já não desempenha o seu papel crítico e orientador na formação cultural, deixando de cuidar do desenvolvimento psicológico e cognitivo das crianças: regressão cognitiva. Esta é a ameaça que pende sobre a reactualização criativa da tradição.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Ateísmo e Filosofia Marxista

«É inútil querer salvar um sentido incondicionado sem Deus.» (Horkheimer, 1963)
Max Horkheimer, cuja frase aparece em epigrafe, é o filósofo marxista que escreveu o célebre ensaio intitulado "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" (1937), "o manifesto filosófico" da Escola de Frankfurt. Esta frase tirada de um ensaio mais tardio de Horkheimer (1963), "Teísmo-Ateísmo", justifica só por si a tese que pretendo defender, sem a desenvolver, neste post: O marxismo não é (teoricamente falando) um ateísmo.
Ao contrário de Nietzsche e de Freud, Marx nunca colocou a «questão de Deus» para a negar, isto é, negar a existência de Deus, embora tenha criticado a religião. O seu texto mais enfático a este propósito é um texto de juventude datado de 1843-44. Com efeito, na sua "Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução", Marx dedica muitos parágrafos à crítica da religião, enunciando a tese muito divulgada e mencionada segundo a qual a religião é o ópio do povo. Eis o texto:
«É esta a base da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem (Feuerbach). A religião constitui de facto a auto-consciência do homem, enquanto ele não se encontrou ainda ou não voltou a perder-se. Mas o homem não é um ser abstracto, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo humano, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, produzem a religião que é uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritual, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e justificação. É a realização fantástica do ser humano na medida em que o ser humano não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indirectamente a luta contra o mundo cujo aroma espiritual é a religião.
«A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo uma expressão da miséria real e um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo.
«A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é uma condição para a sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, a crítica embrionária do vale de lágrimas de que a religião é a auréola.
«A crítica colheu das cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem capricho ou consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, actue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo como seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório à volta do qual gira o homem enquanto não circula em torno de si próprio.
«Consequentemente, a tarefa da história, uma vez que o outro mundo de verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A imediata tarefa da filosofia, que está ao serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana na sua forma secular, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política».
Este texto (mais do que a "Questão Judaica" que merece ser estudada em diálogo com a sociologia da religião de Max Weber) circulou por todo o mundo e foi lido, juntamente com os escritos de Nietzsche e de Freud, com os quais tem algumas semelhanças, como uma espécie de manifesto do ateísmo, quando na realidade ele assume que o ateísmo foi uma ideologia burguesa realizada/superada e que, por conseguinte, a luta nesse momento era (e ainda é) contra a alienação económica.
Embora Jean-Paul Sartre tenha assumido o ateísmo e, portanto, o humanismo, a maior parte dos grandes pensadores marxistas nunca defenderam o marxismo como um ateísmo. Louis Althusser que rejeitou as obras de juventude de Marx, anteriores a 1845, como não sendo «marxistas», foi peremptório nesta «matéria»:
«...O ateísmo é uma ideologia religiosa (ateísmo como sistema teórico) e, por isso, o marxismo não é um ateísmo. (...) O Marxismo não é um ateísmo tal como a física moderna não é uma física anti-aristotélica. (...) O marxismo trata a religião, o teísmo e o ateísmo do mesmo modo que a física moderna trata a física aristotélica, lutando teoricamente contra ela quando esta constitui um obstáculo teórico, combatendo-a ideológica e politicamente quando constitui um obstáculo ideológico e político. Do ponto de vista teórico o marxismo opõe-se a toda e qualquer pretensão teórica da religião. Teoricamente, o marxismo não é um ateísmo, é uma doutrina que, na medida em que a religião existe como obstáculo, se vê obrigado a lutar contra ela. É preciso que isto se diga porque é verdade. Ora bem, existem leis para a luta teórica, ideológica e política; lutar não quer dizer matar as pessoas nem forçá-las a renunciar às suas ideias. Lutar pode ser também reconhecer o que certas ideias aberrantes escondem de positivo... com as ideias existentes, portanto, uma luta sem trégua. Com o positivo que as ideias indicam, escondendo-o. existem amplas possibilidades de entendimento e esclarecimento...» (Carta a Michel Simon, Agosto de 1966).
Curiosamente, quer Althusser tenha ou não tomado conhecimento, a obra de Ernst Bloch pode ser vista como uma leitura positiva de Marx com a religião judaico-cristã, levada a cabo em chave ateia, como testemunha a sua magnífica obra "Atheismus im Christentum. Zur Religion Des Exodos Und Des Reichs" (1968), de resto já presente nas suas obras anteriores "O Princípio Esperança" e "O Espírito da Utopia" (1918), para já não referir "Thomas Münzer: Teólogo da Revolução" (1919). Nesta obras, Bloch distingue uma corrente fria e uma corrente quente no marxismo: a primeira protagonizada por Engels é mais científica (ciência dialéctica das tendências), enquanto a segunda é mais utópica (nova ciência do futuro), não num sentido abstracto mas concreto: a Utopia Concreta, cujo conceito é pensado a partir de um novo materialismo ("Experimentum mundi", 1975). Para Bloch, «ateísmo e utopia concreta constituem, na radicalidade de um mesmo acto, simultaneamente a destruição da religião e uma esperança religiosa herética, uma esperança recolocada sobre os seus pés. A utopia concreta é a filosofia e a prática do conteúdo tendencial presente no mundo em estado de latência». O conceito de «transcender sem transcendência» (também usado por Jean-Paul Sartre) pode ser visto como outra maneira de dizer que a teoria de Marx está vinculada a uma filosofia escatológica da história que visa, em última análise, a realização do «reino da liberdade» (o equivalente marxista do Reino de Deus, mas sem Deus), num mundo sempre aberto à novidade e, portanto, à experiência do futuro, à experiência do mundo. Neste sentido, o marxismo autêntico e o cristianismo autêntico coincidem, tal como testemunharam as lutas dos camponeses guiadas pela "teologia da revolução" de Thomas Münzer. Embora refira Feuerbach, tal como fizera Marx, Bloch podia ter mostrado que a "Fenomemologia do Espírito" de Hegel era já, também ela, uma "antropologia secularizada e ateia". Sem este espírito utópico, o marxismo frio torna-se incapaz de orientar a práxis transformadora que visa a emancipação humana, bem como a "ressurreição da natureza", outro conceito de Marx muito pouco compreendido pelos seus discípulos (Veja Filosofia de Ernst Bloch).
A filosofia da Esperança de Bloch inspirou a "Teologia da Esperança" de Jürgen Moltmann e a Teologia da Libertação na América Latina (Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff). Todas superam o dualismo tradicional entre "história da salvação" e "história do mundo", sendo levadas a propor a realização da utopia concreta no horizonte da escatologia da história. Gutierrez defende que a história humana não é uma história paralela ao projecto salvífico de Deus, mas a estrutura concreta onde acontece a história da salvação: a história humana foi completamente assumida por Jesus Cristo. Ora, segundo a concepção de Bloch da religião desteocratizada e do "transcender sem transcendência", a ênfase é colocada na afinidade entre a escatologia utópica da Bíblia e a escatologia secularizada do marxismo. Para Bloch, o marxismo, dado ser um salto mediatizado do reino da necessidade no reino da liberdade, deve reclamar para si toda a herança subversiva e anti-estática expressa (evidente ou implicitamente) na Bíblia. Por isso, afirma que a Bíblia deve ser lida com os olhos do "Manifesto Comunista", sem deixar que o sal do ateísmo se torne insosso.
Embora não simpatizasse muito com o projecto filosófico de Ernst Bloch, Horkheimer, pelo menos o último Horkheimer, parece retomar um certo "teísmo do protesto", em chave evidentemente negativa, a partir do qual pretende esboçar uma nova ética, em confronto com as éticas "naturalistas". Assim, quando analisa o materialismo do século das Luzes, afirma que este colocou a natureza no lugar da divindade destronada (D' Holbach). Mas, como diz mais adiante, a natureza só pode ensinar o direito do mais forte e a autopreservação; não ensina a liberdade e a justiça. Por isso, Horkheimer pensa que, na nossa era de questionamento constante de Deus, o teísmo constitui o pensamento de uma realidade mais justa, até porque o ateísmo em voga se tornou o pensamento do poder: sem a referência ao divino, a acção boa perde a sua glória, a salvação daqueles que são injustamente perseguidos e condenados à exclusão social. Na hora presente, a teoria crítica recupera o seu lado teológico: a «expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente». A sua teologia (negativa) teísta é «a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode ter a última palavra».
Que diversidade de interpretações do pensamento de Karl Marx! Penso que todas elas mostram que a teoria de Marx não é um ateísmo ou mesmo um humanismo. O «regresso às próprias coisas», proposto por Husserl nas suas "Investigações Lógicas", já tinha sido proposto por Marx, de uma forma exemplar que abriu a Filosofia à empiria, ensinando os filósofos a estar atentos ao devir da realidade, sem dogmatismo e posicionando-se sempre contra a injustiça e a falta de liberdade. Por isso, a teoria de Marx assumiu sempre a forma de uma crítica, mas de uma crítica em constante devir, porque também a realidade social sobre a qual incide está em devir.
E, quanto à religião, Marx sabia que só há Deus ou Sagrado onde existem homens ou, por outras palavras, onde existem homens há Deus: «O significado dos conceitos (em especial desta oposição entre ateísmo e teísmo) não permanece inafectado pela história, e a sua transformação é infinitamente diferenciada» (Horkheimer). Por isso, nesta hora em que o Ocidente é confrontado com fundamentalismos terroristas, uns demasiado teístas, outros plasticamente ateus, não compreendo como se pode estudar Filosofia e tirar um curso de Filosofia sem nunca se ter estudado História Comparada das Religiões, Filosofia da Religião e Teologia! Em vez disso, dizem-se palermices a partir da leitura incompetente de obras de divulgação científica, num estilo claramente opinativo e sofistico, sem levar em conta a história dogmática da nossa herança ocidental, portanto, a nossa tradição crítica de pensamento. Ora, a hora presente exige a elaboração de uma teoria filosófica da religião, pensada no âmbito da antropologia filosófica e levando em conta a antropologia teológica, em especial a de Moltmann, a de Paul Tillich, a de Rudolf Bultmann e a de Wolfhart Pannenberg. De uma maneira ou de outra, todos nós mortais ansiamos pelo «inteiramente Outro» (Horkheimer), isto é, por Deus, a justiça plena! (Este texto foi inicialmente publicado em "CyberCultura e Democracia Online" e pode ser visto aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa