FENOMENOLOGIA DO LAR
Alfred Schutz estabelece uma diferença entre as atitudes daquele indivíduo que regressa ao lar (o Retornado) e a do forasteiro (estrangeiro):
· O forasteiro «dispõe-se a ingressar num grupo que não é nem nunca foi o seu. Sabe que se encontrará num mundo não familiar, organizado de outra maneira que (o grupo) do qual provem, cheio de obstáculos e difícil de dominar»[1].
· «O que volta ao lar, pelo contrário, prevê o seu regresso a um ambiente do qual sempre teve e crê continuar a ter um conhecimento íntimo e que o basta pressupor para se orientar dentro dele»[2].
Em suma: «O forasteiro que se aproxima do grupo deve antecipar, de maneira mais ou menos vazia, o que encontrará; o que volta ao lar basta-lhe recorrer às suas recordações»[3]. O forasteiro antecipa (futuro), enquanto o que regressa ao lar recorda (passado). As duas atitudes deixam-se captar na oposição entre antecipação e recordação.
Schutz propõe-se analisar as «experiências típicas do que volta ao lar em termos gerais de psicologia social»[4]. A sua análise gira essencialmente em torno da experiência dos ex-combatentes que retornam ao lar depois de uma temporada passada no campo de batalha. No entanto, o viajante que regressa do estrangeiro, o emigrante que volta à sua terra natal ou o jovem que, depois de ter prosperado noutro sítio, se estabelece seguidamente na sua cidade de origem são outros exemplos de indivíduos que regressam ao lar. Segundo Schutz, o indivíduo que «volta ao lar» é aquele que «retorna ao seu lar de modo definitivo (não temporário, como o soldado de licença ou o estudante pupilo que passa as férias de fim de ano com a sua família»[5].
Mas o que é o lar? Schutz responde:
«O lar é tanto um ponto de partida como um ponto terminal. É o ponto de origem do sistema de coordenadas que aplicamos ao mundo para nos orientarmos nele. Geograficamente, o «lar» é determinado lugar da superfície da Terra. O lugar em que me encontro é a minha «morada»; o lugar onde penso permanecer é a minha «residência»; o lugar donde provenho e aonde quero retornar é o meu «lar». Mas não é somente o lugar — a minha casa, a minha habitação, o meu jardim, a minha cidade —, mas tudo o que representa. O carácter simbólico da noção de «lar» é emocionalmente evocativo e difícil de descrever. O lar significa diferentes coisas para pessoas diferentes»[6].
Para Schutz, o lar é o lugar donde se provem e para onde se quer retornar depois de uma longa ausência, bem como tudo aquilo que representa para cada pessoa particular. Neste sentido, o lar pode significar diferentes coisas, tais como a casa paterna, a língua materna, a família, a noiva ou o noivo, os amigos, uma paisagem querida, as canções que me ensinou a minha mãe, a comida preparada de uma maneira particular, coisas familiares de uso quotidiano, enfim costumes e hábitos pessoais. Em síntese, Schutz considera o lar como «um modo peculiar de vida composto de pequenos elementos mas importantes, aos quais se tem afecto»[7]. Entre esses pequenos elementos existem coisas que ocupam um modesto lugar no valor colectivo das «coisas do lar», mas, quando deixam de estar disponíveis a qualquer momento, começam a ser apreciadas de uma outra forma — mais «forte» e intensa. Isto significa que o lar representa «uma coisa para quem nunca o tenha abandonado, outra para quem habita longe dele e outra para (aquele) que retorna»[8].
O lar toma essencialmente três significações em função da significação atribuída por diferentes pessoas, nomeadamente para quem nunca o abandonou (os presentes), para quem está longe dele (os ausentes) e para quem regressa (os retornados). Dado que adopta o ponto de vista do participante, Schutz é levado a descrever o lar em função daquilo que ele significa para cada um desses três participantes. Trata-se, pois, de uma fenomenologia da experiência quotidiana do lar.
· O forasteiro «dispõe-se a ingressar num grupo que não é nem nunca foi o seu. Sabe que se encontrará num mundo não familiar, organizado de outra maneira que (o grupo) do qual provem, cheio de obstáculos e difícil de dominar»[1].
· «O que volta ao lar, pelo contrário, prevê o seu regresso a um ambiente do qual sempre teve e crê continuar a ter um conhecimento íntimo e que o basta pressupor para se orientar dentro dele»[2].
Em suma: «O forasteiro que se aproxima do grupo deve antecipar, de maneira mais ou menos vazia, o que encontrará; o que volta ao lar basta-lhe recorrer às suas recordações»[3]. O forasteiro antecipa (futuro), enquanto o que regressa ao lar recorda (passado). As duas atitudes deixam-se captar na oposição entre antecipação e recordação.
Schutz propõe-se analisar as «experiências típicas do que volta ao lar em termos gerais de psicologia social»[4]. A sua análise gira essencialmente em torno da experiência dos ex-combatentes que retornam ao lar depois de uma temporada passada no campo de batalha. No entanto, o viajante que regressa do estrangeiro, o emigrante que volta à sua terra natal ou o jovem que, depois de ter prosperado noutro sítio, se estabelece seguidamente na sua cidade de origem são outros exemplos de indivíduos que regressam ao lar. Segundo Schutz, o indivíduo que «volta ao lar» é aquele que «retorna ao seu lar de modo definitivo (não temporário, como o soldado de licença ou o estudante pupilo que passa as férias de fim de ano com a sua família»[5].
Mas o que é o lar? Schutz responde:
«O lar é tanto um ponto de partida como um ponto terminal. É o ponto de origem do sistema de coordenadas que aplicamos ao mundo para nos orientarmos nele. Geograficamente, o «lar» é determinado lugar da superfície da Terra. O lugar em que me encontro é a minha «morada»; o lugar onde penso permanecer é a minha «residência»; o lugar donde provenho e aonde quero retornar é o meu «lar». Mas não é somente o lugar — a minha casa, a minha habitação, o meu jardim, a minha cidade —, mas tudo o que representa. O carácter simbólico da noção de «lar» é emocionalmente evocativo e difícil de descrever. O lar significa diferentes coisas para pessoas diferentes»[6].
Para Schutz, o lar é o lugar donde se provem e para onde se quer retornar depois de uma longa ausência, bem como tudo aquilo que representa para cada pessoa particular. Neste sentido, o lar pode significar diferentes coisas, tais como a casa paterna, a língua materna, a família, a noiva ou o noivo, os amigos, uma paisagem querida, as canções que me ensinou a minha mãe, a comida preparada de uma maneira particular, coisas familiares de uso quotidiano, enfim costumes e hábitos pessoais. Em síntese, Schutz considera o lar como «um modo peculiar de vida composto de pequenos elementos mas importantes, aos quais se tem afecto»[7]. Entre esses pequenos elementos existem coisas que ocupam um modesto lugar no valor colectivo das «coisas do lar», mas, quando deixam de estar disponíveis a qualquer momento, começam a ser apreciadas de uma outra forma — mais «forte» e intensa. Isto significa que o lar representa «uma coisa para quem nunca o tenha abandonado, outra para quem habita longe dele e outra para (aquele) que retorna»[8].
O lar toma essencialmente três significações em função da significação atribuída por diferentes pessoas, nomeadamente para quem nunca o abandonou (os presentes), para quem está longe dele (os ausentes) e para quem regressa (os retornados). Dado que adopta o ponto de vista do participante, Schutz é levado a descrever o lar em função daquilo que ele significa para cada um desses três participantes. Trata-se, pois, de uma fenomenologia da experiência quotidiana do lar.
PRESENTES. Schutz começa por descrever a estrutura social do mundo do lar em função do modo «como a vê» o homem que vive no lar e que nunca o abandonou. “Sentir-se como em sua casa”: esta expressão remete directa e imediatamente para o maior grau de familiaridade e de intimidade. O mundo do lar é o que há de mais familiar e íntimo:
«A vida do lar segue um padrão rotineiro organizado; tem objectivos bem estabelecidos e meios comprovados para os atingir (lograr), corporificados num conjunto de tradições, hábitos, instituições e horários para as actividades de toda a espécie, etc.. A maior parte dos problemas da vida diária são abordáveis mediante esses padrões. Não é necessário definir ou redefinir situações que apareceram muitas vezes, nem procurar novas soluções para velhos problemas até então satisfatoriamente resolvidos. O modo de vida no lar governa, como esquema de expressão e interpretação, não só os meus próprios actos, mas também os dos outros membros do endogrupo. Posso confiar em que, utilizando este esquema, compreenderei os propósitos do outro e poderei fazer-me compreender por ele. O sistema de significações adoptado pelos membros do endogrupo mostra um elevado grau de conformidade. Tenho sempre uma boa probabilidade — subjectiva e objectivamente — de predizer a acção do Outro para mim, assim como a reacção do Outro frente aos meus próprios actos sociais. Não só podemos prever o que sucederá amanhã; também temos uma boa probabilidade de planificar com acerto um futuro mais distante. Em essência, as coisas continuarão a ser o que têm sido até agora, embora, por suposto, surjam novas situações e sucessos inesperados. Mas no lar até os desvios em relação à vida rotineira quotidiana são dominados de uma maneira que é definida pelo estilo geral em que as pessoas do lar encaram as situações extraordinárias. Existe uma maneira — uma maneira comprovada — de enfrentar uma crise na vida de trabalho, de dirimir problemas familiares, de estabelecer a atitude que se deve adoptar ante a doença e inclusive a morte. Formulado de maneira paradoxal, até existe uma maneira rotineira de tratar a novidade»[9].
Em termos de relações sociais, a vida no lar transcorre, de modo actual ou, pelo menos, potencial, nos grupos primários — expressão forjada por Cooley para designar a relação íntima cara a cara. Como não partilha o conceito cooliano de intimidade, Schutz distingue entre relações cara a cara e relações íntimas.
· «Uma relação cara a cara pressupõe que aqueles que participam nela partilham um espaço e tempo durante a relação. Por um lado, a comunidade de espaço significa que cada participante pode observar de modo imediato o corpo do Outro, as suas expressões faciais, os seus gestos, etc., como sintomas do seu pensamento. O campo das expressões do Outro abre-se plenamente às possíveis interpretações e o actor pode controlar de forma imediata e directa, pela reacção do seu comparticipe, o efeito dos seus próprios actos sociais. Por outro lado, (a comunidade de espaço) significa que determinado sector do mundo externo é igualmente acessível a todos os co-participantes na relação cara a cara, que pode tocar, ver, ouvir, etc., as mesmas coisas. Dentro deste horizonte comum, há objectos de interesse comum e de significatividade comum; coisas com as quais ou sobre as quais operar, de modo actual ou potencial. A comunidade de tempo refere-se menos à medida de tempo externo (objectivo) que partilham os co-participantes que à participação de cada um deles na vida interior do Outro nesse momento. Na relação cara a cara, posso captar os pensamentos do Outro num presente vivido, à medida que são elaborados e construídos; o mesmo pode fazer ele com respeito à minha corrente de pensamento e ambos conhecemos e levamos em conta esta possibilidade. O Outro é para mim e eu sou para o Outro, não uma abstracção, não um mero exemplo de conduta típica, mas — precisamente por compartilhar um presente vivido em comum — esta única personalidade individual nesta única situação particular»[10].
Estas são algumas das características da relação cara a cara, que Schutz prefere chamar relação Nós pura. De acordo com Schutz, as demais relações sociais podem e devem ser interpretadas como derivações da relação Nós pura.
· A relação Nós pura «refere-se somente à estrutura formal de relações sociais baseadas na comunidade de espaço e de tempo e (...) pode ser preenchida com uma grande variedade de conteúdos, que apresentam graus diversos de intimidade e de anonimia»[11].
Cooley estava errado ao atribuir a intimidade — como conteúdo específico — à relação cara a cara no âmbito do grupo primário, uma vez que «a categoria de intimidade é independente da relação cara a cara»[12]. Compartilhar o presente vivido da pessoa que amamos ou da pessoa com quem viajamos no metro são tipos diferentes de relações cara a cara: a primeira é uma relação íntima, a segunda, não o é.
O conceito grupo primário implica uma terceira noção, independente das outras duas já mencionadas — a do carácter recorrente de certas relações sociais. Este carácter não se limita às relações Nós puras e às relações íntimas. Os grupos primários — tais como um matrimónio, uma amizade, um grupo familiar ou um jardim infantil — «são situações institucionalizadas que permitem restabelecer a relação interrompida e continuá-la onde foi interrompida a última vez»[13]. Pelo menos, todos os membros integrantes do grupo primário pressupõem a existência dessa possibilidade — o restabelecimento e continuação da relação social. Os exemplos referidos mostram que essas relações não consistem numa relação cara a cara primária, permanente e estritamente contínua, mas numa série de relações cara a cara apenas intermitentes. Como esclarece Schutz: «Em geral, a vida no lar equivale a uma vida em grupos primários actuais ou potenciais»[14]. Isto significa, pelo menos, três coisas:
1. Significa «partilhar com os outros um sector do espaço e do tempo — que inclui objectos circundantes como fins e meios possíveis — e interesses baseados num sistema de significatividades subjacente e mais ou menos homogéneo»;
2. «Significa, além disso, que os participantes numa relação primária se experimentam uns aos outros como personalidades singulares num presente vivido, ao seguir o desenrolar do seu pensamento como um sucesso em curso e compartilhar, por fim, as suas antecipações do futuro em forma de planos, esperanças ou ansiedades»;
3. «Significa, por último, que cada um deles tem a possibilidade de restabelecer a relação Nós, se for interrompida, e continuá-la como se não houvesse produzido nenhuma intermitência»[15].
Deste modo, «para cada co-participante, a vida do Outro passa a ser, de tal modo, uma parte da sua própria autobiografia, um elemento da sua história pessoal. O que é, o que chegou a ser e o que será são codeterminados pela sua participação nas múltiplas relações primárias actuais ou potenciais vigentes no grupo do lar»[16].
AUSENTES. O aspecto que a estrutura social do mundo do lar apresenta muda totalmente para o homem que deixou o lar — para quem a vida no lar já não é acessível de maneira imediata, tal como sucede para o homem que vive no lar.
O indivíduo que deixou o lar entra noutra dimensão social que já «não abarca o sistema de coordenadas usado como esquema de referência para a vida no lar»[17]. «Já não experimenta como participante, num presente vivido, as múltiplas relações Nós que formam a textura do grupo do lar. Ao abandoná-lo, substituiu essas experiências vividas por recordações, que conservam apenas o que a vida no lar significava até ao momento em que o deixou. O que até então era uma série de constelações singulares, formadas por pessoas, relações e grupos particulares, recebe o carácter de meros tipos; esta tipificação determina inevitavelmente uma deformação da estrutura subjacente de significatividades. Em certa medida, o mesmo é válido em relação àqueles que deixou. Ao se interromper a comunidade de espaço e de tempo, por exemplo, restringiu-se o campo dentro do qual se manifestam e se abrem à interpretação as expressões do Outro. A personalidade do Outro já não é acessível como unidade; ficou esmiuçada (esmigalhada). Já não se possui a experiência total da pessoa amada, dos seus gestos, da sua maneira de caminhar e de falar, de escutar e de fazer coisas; ficam recordações, uma fotografia, algumas linhas manuscritas, etc. Até certo ponto, a situação das pessoas separadas é a dos que morrem; “partir, c’est mourir un peu”»[18].
Partir é morrer um pouco: De facto, a separação das pessoas resultante do abandono do lar é um momento antecipador da morte que é certa e inevitável. O destino é irrevogavelmente a morte. As relações interrompidas nunca mais poderão ser retomadas e continuadas. Embora não tenha necessariamente consciência disso, quem abandona o lar inicia um processo de separação que irá culminar inevitavelmente na morte. O lar está, pois, condenado à morte e as lembranças que dele permanecem são, como diz Schutz, tipificações que deformam a estrutura subjacente às relações (domésticas) das significações. Os que ficam no lar, sobretudo os mais velhos, aguardando a morte, são reduzidos a tipos e recordados como tais, como se todo o processo de desenvolvimento e mais precisamente envelhecimento tivesse ficado prisioneiro daquele momento único da separação. No lar a vida continua de modo vagaroso, lento e triste, mas quem o abandonou há muito tempo recorda um lar fixado num momento do tempo: o lar vivo é congelado na memória reificadora daquele que partiu. As suas lembranças já não são as recordações de um lar vivo mas as de um lar morto.
É certo que existem diversos meios de comunicação, em particular a correspondência e o telefone, que podem ser utilizados para tentar manter algum tipo de relação com o que resta do lar, mas nenhum deles é suficiente para travar os efeitos reificadores da separação. Schutz menciona como exemplo a correspondência:
«Mas quem escreve uma carta dirige-se à tipificação do destinatário, tal como o conhecia quando se separaram e este lê a carta como escrita por uma pessoa que é tipicamente a mesma que deixou. Pressupor tal tipicidade (e qualquer tipicidade) significa dar por assente a probabilidade de que o que antes era típico continua a sê-lo no futuro; por outras palavras, que a vida continuará a ser o que foi até então: continuarão a ser significativas as mesmas coisas, reinará o mesmo grau de intimidade nas relações pessoais, etc.. Sem dúvida, a mera mudança de ambiente faz que ambos atribuam importância a outras coisas e reavaliem velhas experiências; na vida de cada comparticipante surgiram novas experiências, inacessíveis para o Outro»[19].
A separação veda o acesso directo, imediato e vivido ao Outro: cada participante tem novas experiências que já não pode partilhar, num presente vivido, com o Outro. Daqui decorre a perda de intimidade entre os participantes. Mesmo que se encontrem ocasionalmente, numa relação cara a cara, a comunicação que estabelecem é sistematicamente deformada e distorcida pela falta de intimidade: comunicam em função de tipificações que já não correspondem efectivamente a cada um deles. Num fundo, são dois estranhos que tentam restabelecer e continuar um contacto que se perdeu no tempo. Como escreve Schutz:
«Esta mudança do sistema de significatividades tem o seu corolário no grau cambiante de intimidade. Aqui, o termo “intimidade” designa apenas o grau de conhecimento seguro que temos de outra pessoa ou de uma relação social, um grupo, um padrão cultural ou uma coisa. No que diz respeito a uma pessoa, o conhecimento íntimo permite-nos interpretar o que quer expressar e prever as suas acções e reacções. Na forma mais elevada da intimidade, conhecemos, como diz Kipling, a «alma nua» do Outro, mas a separação oculta-o por detrás de um estranho disfarce, difícil de eliminar»[20].
O abandono do lar é uma separação, tal como a definiu Bowlby: as pessoas separam-se umas das outras e as que deixam o lar ficam afastadas das coisas que lhe dizem respeito. A separação implica a perda de intimidade. Schutz chama ausentes aos indivíduos que deixam, por qualquer motivo ou razão, o lar.
«Do ponto de vista do ausente, a ânsia de restabelecer a velha intimidade, não só com pessoas mas também com coisas, é a característica principal do que se chama «saudade»»[21] — a mágoa que se sente de coisas ou pessoas ausentes.
Schutz atribui a saudade somente aos que abandonam o lar, mas a saudade também é vivida intensamente pelos que ficaram no lar. A saudade é nostalgia de algo e/ou de alguém que se perdeu algures no passado. A saudade é sempre a nostalgia de uma unidade primordial rompida pela partida ou pela perda de alguém. Mas a unidade primordial que se visa em qualquer uma das situações é puramente imaginária, para não dizer mesmo mitológica. Os que partem constróem uma imagem idílica do lar e os que ficam querem recuperar o lar esmiuçado pela partida. Ambos anseiam pelo regresso ao lar, mas esse regresso é sempre entendido como um regresso ao paraíso. Eis aqui o núcleo mitológico da saudade.
A mudança descrita no sistema de significatividades e no grau de intimidade é experimentada de maneira diferente pelo ausente e pelo grupo do lar:
· O grupo do lar «continua a sua vida quotidiana dentro do esquema habitual»[22]. É certo que também este esquema terá mudado e até de uma maneira mais ou menos abrupta após a separação, mas os que ficaram no lar, embora conscientes desta mudança, continuam a conviver neste mundo cambiante, experimentam-no como cambiante no imediato, adoptam o seu sistema interpretativo e ajustam-no à mudança. Como diz Schutz: «O sistema pode ter mudado na sua totalidade, mas como sistema, sem nunca ter sido desbaratado e destruído; embora modificado, continua a ser um recurso útil para se desempenhar na vida. O endogrupo tem agora outros objectivos e outros meios para os alcançar, mas continua a ser um endogrupo»[23].
Regra geral, quem abandona o lar vai à procura de uma vida nova ou até mesmo vai criar um novo lar. Deixa para trás um mundo que congela na (sua) memória. Nem sempre tem consciência das implicações da sua partida: o lar que abandona transforma-se irremediavelmente e os que ficam têm plena consciência disso. Mas Schutz não se apercebe que os que ficam também querem partir — ou seja, recomeçar uma vida nova. Mas querem essencialmente o regresso do seu lar. A sua memória é activada — uma memória genealógica. Este aspecto da partida tem sido sistematicamente negligenciado por todos os que abordaram esta temática do regresso ao lar: os que ficam, sobretudo os mais idosos, com menos possibilidades de recomeçar uma nova vida ou mesmo de refazer a vida que têm, acordam memórias adormecidas. A saudade não lhes é estranha. As possibilidades não actualizadas, irremediavelmente perdidas para sempre, atormentam a (sua) consciência: a memória converte-se em imaginação e, neste movimento, recupera imagens perdidas. O objecto visado pela saudade começa por ser a «recuperação» de possibilidades que foram reprimidas pelas possibilidades que foram actualizadas: a sua vida poderia ter sido diferente... Aqui a saudade é vizinha do arrependimento. Provavelmente, o último arrependimento! A morte, essa, avizinha-se.
· «O ausente tem a vantagem de conhecer o estilo geral»[24] do esquema habitual em que decorre a vida quotidiana do endogrupo. As suas experiências prévias — adquiridas no decorrer da sua permanência no lar antes do abandono — permitem-lhe deduzir «o que se passa no lar», mas os que ficaram no lar não têm experiência imediata de como vive o ausente.
Convém recordar que Schutz refere-se aqui, bem como em todo o seu ensaio, à experiência do soldado que teve, voluntária ou involuntariamente, de abandonar o (seu) lar para ir para a Guerra[25]. Há neste caso uma discrepância que se torna particularmente evidente aquando do regresso do soldado a casa: «Esta discrepância entre a singularidade e decisiva importância que o ausente atribui às suas experiências e o facto de que as pessoas do lar as pseudotipificam atribuindo-lhes uma pseudosignificatividade é um dos maiores obstáculos para o mútuo restabelecimento das relações Nós interrompidas. Sem dúvida, o êxito ou o fracasso do retorno ao lar dependerá da probabilidade de transformar essas relações sociais em relações decorrentes. Mas, ainda que tal discrepância não perdure, a solução total deste problema continuará a ser um ideal irrealizável»[26].
RETORNADOS. O retorno ao lar é, conforme reconhece Schutz, «um ideal irrealizável», pelo menos na sua plenitude, tal como é perspectivada pelos participantes envolvidos no restabelecimento das relações Nós. Como observa Schutz, coloca-se aqui o problema da irreversibilidade do tempo interior, tal como foi analisado por Heráclito, Bergson, Kierkegaard, Péguy e G. H. Mead:
«O mero facto de que envelhecemos, de que novas experiências surjam de modo contínuo dentro da nossa corrente de pensamento, de que experiências anteriores recebam permanentemente significados interpretativos adicionais à luz dessas novas experiências que têm modificado, em maior ou menor grau, o nosso estado de ânimo, todas estas características básicas da nossa vida mental impedem que o mesmo se repita. Ao ser recorrente, o recorrente já não é mais o mesmo. Ainda que se procure e anseie a repetição, o que pertence ao passado nunca pode ser reinstaurado em outro presente exactamente tal como era antes. Num começo, coadjuvava antecipações vazias, horizontes de processos futuros e referências a probabilidades e possibilidades; agora a visão retrospectiva comprova se essas antecipações se têm concretizado ou não; as perspectivas têm mudado; o que somente estava no horizonte tem-se deslocado para o centro da atenção ou tem desaparecido por completo; as que antes eram probabilidades têm-se convertido em realidades ou têm mostrado ser impossibilidades; em resumo, a experiência anterior tem agora outro sentido»[27].
Schutz reconhece que a análise fenomenológica do regresso ao lar envolve três complicados problemas filosóficos — o tempo, a memória e o significado, sem no entanto os analisar. Alega apenas duas razões para os mencionar:
1. A análise de um problema sociológico concreto conduz inevitavelmente a determinadas questões filosóficas básicas que não podem ser elucidadas mediante a utilização de termos «abstractos» cujo significado não tenha sido clarificado pelos especialistas em ciências sociais. Sem essa clarificação, termos tais como «adaptação», «ajustamento», «ambiente» ou «padrão cultural» funcionam mais como conceitos-tampão do que como conceitos «explicativos».
2. Estes problemas determinam a forma e até mesmo o conteúdo da atitude do indivíduo que regressa ao lar.
Embora não observe mudanças substanciais na vida do endogrupo ou nas suas relações com ele, «o lar a que retorna não é, de modo algum, o lar que deixou ou o lar que recordava e ansiava durante a sua ausência. E, pela mesma razão, o (indivíduo) que volta ao lar não é o mesmo homem que o abandonou. Não é o mesmo nem para ele nem para aqueles que esperam o seu retorno»[28]. Este enunciado é, conforme acentua Schutz, válido para qualquer tipo de regresso ao lar, inclusive para aqueles que regressam ao lar depois de umas breves férias:
«Ainda ao regressar ao lar depois de umas breves férias, comprovamos que o antigo ambiente habitual tem para nós um significado adicional, que deriva das nossas experiências durante a nossa ausência e baseia-se nelas. Seja qual for a avaliação concomitante, as coisas e os homens, pelos menos no começo, terão outro rosto. Será necessário certo esforço para retransformar as nossas actividades em tarefas de rotina e reactivar as nossas relações recorrentes com os homens e com as coisas. E isto não é de estranhar, já que nos propusemos que as nossas férias fossem uma interrupção da nossa rotina quotidiana»[29].
Quebrar a rotina e retomar a rotina são dois momentos do mesmo fenómeno: a ida e a volta.
«Em certa medida, todo aquele que volta ao lar tem experimentado o fruto mágico do estranho, quer seja doce ou amargo. Por mais que nos domine a saudade do lar, sempre desejamos transplantar ao velho esquema algo dos novos objectivos, dos meios recém-descobertos para os concretizar e experiências obtidas no exterior»[30]. Daqui Schutz deduz uma conclusão prática: «Num primeiro momento, não só o que regressa à sua terra natal descobre nela um aspecto desusado. Também ele parece estranho para aqueles que o esperam e a névoa que o rodeia faz dele um desconhecido. Tanto o que retorna ao lar como os que o esperam necessitarão da ajuda de um Mentor que “lhes diga o que ocorre”»[31].
A nostalgia do lar é sintoma do desenraizamento que caracteriza estruturalmente o homem moderno. Este sente-se estranho a si mesmo em qualquer lugar onde quer que se encontre. Nenhum desses lugares constitui o seu vero lar. Como diz P. Berger, vivemos num mundo sem lar. Daí que sinta a necessidade de regressar ao lar, ao lugar donde partiu há muito tempo. Ora, um lar desse tipo só pode ser a casa paterna. É aí que o retornado irá procurar as suas raízes, mas, quando lá chega, observa que nem ele é o mesmo homem, nem o lar é o mesmo lar. Tudo se modificou de modo irreversível. A nostalgia do lar transforma-se numa tremenda desilusão: a anomia encontra-se espalhada por todos os lugares da Terra e nenhum deles parece ser o nosso verdadeiro lar. Frustrada a saudade resta apenas sondar o último lar — o túmulo. É aqui que entra Guerra Junqueiro. Com Schutz ou mesmo Marcuse, aprendemos que o tempo é o nosso maior inimigo. No esboço do seu Poema (épico) Prometheu Libertado, Guerra Junqueiro não podia ser mais explícito: «O tempo — esse coveiro imortal do universo»[32].
«A vida do lar segue um padrão rotineiro organizado; tem objectivos bem estabelecidos e meios comprovados para os atingir (lograr), corporificados num conjunto de tradições, hábitos, instituições e horários para as actividades de toda a espécie, etc.. A maior parte dos problemas da vida diária são abordáveis mediante esses padrões. Não é necessário definir ou redefinir situações que apareceram muitas vezes, nem procurar novas soluções para velhos problemas até então satisfatoriamente resolvidos. O modo de vida no lar governa, como esquema de expressão e interpretação, não só os meus próprios actos, mas também os dos outros membros do endogrupo. Posso confiar em que, utilizando este esquema, compreenderei os propósitos do outro e poderei fazer-me compreender por ele. O sistema de significações adoptado pelos membros do endogrupo mostra um elevado grau de conformidade. Tenho sempre uma boa probabilidade — subjectiva e objectivamente — de predizer a acção do Outro para mim, assim como a reacção do Outro frente aos meus próprios actos sociais. Não só podemos prever o que sucederá amanhã; também temos uma boa probabilidade de planificar com acerto um futuro mais distante. Em essência, as coisas continuarão a ser o que têm sido até agora, embora, por suposto, surjam novas situações e sucessos inesperados. Mas no lar até os desvios em relação à vida rotineira quotidiana são dominados de uma maneira que é definida pelo estilo geral em que as pessoas do lar encaram as situações extraordinárias. Existe uma maneira — uma maneira comprovada — de enfrentar uma crise na vida de trabalho, de dirimir problemas familiares, de estabelecer a atitude que se deve adoptar ante a doença e inclusive a morte. Formulado de maneira paradoxal, até existe uma maneira rotineira de tratar a novidade»[9].
Em termos de relações sociais, a vida no lar transcorre, de modo actual ou, pelo menos, potencial, nos grupos primários — expressão forjada por Cooley para designar a relação íntima cara a cara. Como não partilha o conceito cooliano de intimidade, Schutz distingue entre relações cara a cara e relações íntimas.
· «Uma relação cara a cara pressupõe que aqueles que participam nela partilham um espaço e tempo durante a relação. Por um lado, a comunidade de espaço significa que cada participante pode observar de modo imediato o corpo do Outro, as suas expressões faciais, os seus gestos, etc., como sintomas do seu pensamento. O campo das expressões do Outro abre-se plenamente às possíveis interpretações e o actor pode controlar de forma imediata e directa, pela reacção do seu comparticipe, o efeito dos seus próprios actos sociais. Por outro lado, (a comunidade de espaço) significa que determinado sector do mundo externo é igualmente acessível a todos os co-participantes na relação cara a cara, que pode tocar, ver, ouvir, etc., as mesmas coisas. Dentro deste horizonte comum, há objectos de interesse comum e de significatividade comum; coisas com as quais ou sobre as quais operar, de modo actual ou potencial. A comunidade de tempo refere-se menos à medida de tempo externo (objectivo) que partilham os co-participantes que à participação de cada um deles na vida interior do Outro nesse momento. Na relação cara a cara, posso captar os pensamentos do Outro num presente vivido, à medida que são elaborados e construídos; o mesmo pode fazer ele com respeito à minha corrente de pensamento e ambos conhecemos e levamos em conta esta possibilidade. O Outro é para mim e eu sou para o Outro, não uma abstracção, não um mero exemplo de conduta típica, mas — precisamente por compartilhar um presente vivido em comum — esta única personalidade individual nesta única situação particular»[10].
Estas são algumas das características da relação cara a cara, que Schutz prefere chamar relação Nós pura. De acordo com Schutz, as demais relações sociais podem e devem ser interpretadas como derivações da relação Nós pura.
· A relação Nós pura «refere-se somente à estrutura formal de relações sociais baseadas na comunidade de espaço e de tempo e (...) pode ser preenchida com uma grande variedade de conteúdos, que apresentam graus diversos de intimidade e de anonimia»[11].
Cooley estava errado ao atribuir a intimidade — como conteúdo específico — à relação cara a cara no âmbito do grupo primário, uma vez que «a categoria de intimidade é independente da relação cara a cara»[12]. Compartilhar o presente vivido da pessoa que amamos ou da pessoa com quem viajamos no metro são tipos diferentes de relações cara a cara: a primeira é uma relação íntima, a segunda, não o é.
O conceito grupo primário implica uma terceira noção, independente das outras duas já mencionadas — a do carácter recorrente de certas relações sociais. Este carácter não se limita às relações Nós puras e às relações íntimas. Os grupos primários — tais como um matrimónio, uma amizade, um grupo familiar ou um jardim infantil — «são situações institucionalizadas que permitem restabelecer a relação interrompida e continuá-la onde foi interrompida a última vez»[13]. Pelo menos, todos os membros integrantes do grupo primário pressupõem a existência dessa possibilidade — o restabelecimento e continuação da relação social. Os exemplos referidos mostram que essas relações não consistem numa relação cara a cara primária, permanente e estritamente contínua, mas numa série de relações cara a cara apenas intermitentes. Como esclarece Schutz: «Em geral, a vida no lar equivale a uma vida em grupos primários actuais ou potenciais»[14]. Isto significa, pelo menos, três coisas:
1. Significa «partilhar com os outros um sector do espaço e do tempo — que inclui objectos circundantes como fins e meios possíveis — e interesses baseados num sistema de significatividades subjacente e mais ou menos homogéneo»;
2. «Significa, além disso, que os participantes numa relação primária se experimentam uns aos outros como personalidades singulares num presente vivido, ao seguir o desenrolar do seu pensamento como um sucesso em curso e compartilhar, por fim, as suas antecipações do futuro em forma de planos, esperanças ou ansiedades»;
3. «Significa, por último, que cada um deles tem a possibilidade de restabelecer a relação Nós, se for interrompida, e continuá-la como se não houvesse produzido nenhuma intermitência»[15].
Deste modo, «para cada co-participante, a vida do Outro passa a ser, de tal modo, uma parte da sua própria autobiografia, um elemento da sua história pessoal. O que é, o que chegou a ser e o que será são codeterminados pela sua participação nas múltiplas relações primárias actuais ou potenciais vigentes no grupo do lar»[16].
AUSENTES. O aspecto que a estrutura social do mundo do lar apresenta muda totalmente para o homem que deixou o lar — para quem a vida no lar já não é acessível de maneira imediata, tal como sucede para o homem que vive no lar.
O indivíduo que deixou o lar entra noutra dimensão social que já «não abarca o sistema de coordenadas usado como esquema de referência para a vida no lar»[17]. «Já não experimenta como participante, num presente vivido, as múltiplas relações Nós que formam a textura do grupo do lar. Ao abandoná-lo, substituiu essas experiências vividas por recordações, que conservam apenas o que a vida no lar significava até ao momento em que o deixou. O que até então era uma série de constelações singulares, formadas por pessoas, relações e grupos particulares, recebe o carácter de meros tipos; esta tipificação determina inevitavelmente uma deformação da estrutura subjacente de significatividades. Em certa medida, o mesmo é válido em relação àqueles que deixou. Ao se interromper a comunidade de espaço e de tempo, por exemplo, restringiu-se o campo dentro do qual se manifestam e se abrem à interpretação as expressões do Outro. A personalidade do Outro já não é acessível como unidade; ficou esmiuçada (esmigalhada). Já não se possui a experiência total da pessoa amada, dos seus gestos, da sua maneira de caminhar e de falar, de escutar e de fazer coisas; ficam recordações, uma fotografia, algumas linhas manuscritas, etc. Até certo ponto, a situação das pessoas separadas é a dos que morrem; “partir, c’est mourir un peu”»[18].
Partir é morrer um pouco: De facto, a separação das pessoas resultante do abandono do lar é um momento antecipador da morte que é certa e inevitável. O destino é irrevogavelmente a morte. As relações interrompidas nunca mais poderão ser retomadas e continuadas. Embora não tenha necessariamente consciência disso, quem abandona o lar inicia um processo de separação que irá culminar inevitavelmente na morte. O lar está, pois, condenado à morte e as lembranças que dele permanecem são, como diz Schutz, tipificações que deformam a estrutura subjacente às relações (domésticas) das significações. Os que ficam no lar, sobretudo os mais velhos, aguardando a morte, são reduzidos a tipos e recordados como tais, como se todo o processo de desenvolvimento e mais precisamente envelhecimento tivesse ficado prisioneiro daquele momento único da separação. No lar a vida continua de modo vagaroso, lento e triste, mas quem o abandonou há muito tempo recorda um lar fixado num momento do tempo: o lar vivo é congelado na memória reificadora daquele que partiu. As suas lembranças já não são as recordações de um lar vivo mas as de um lar morto.
É certo que existem diversos meios de comunicação, em particular a correspondência e o telefone, que podem ser utilizados para tentar manter algum tipo de relação com o que resta do lar, mas nenhum deles é suficiente para travar os efeitos reificadores da separação. Schutz menciona como exemplo a correspondência:
«Mas quem escreve uma carta dirige-se à tipificação do destinatário, tal como o conhecia quando se separaram e este lê a carta como escrita por uma pessoa que é tipicamente a mesma que deixou. Pressupor tal tipicidade (e qualquer tipicidade) significa dar por assente a probabilidade de que o que antes era típico continua a sê-lo no futuro; por outras palavras, que a vida continuará a ser o que foi até então: continuarão a ser significativas as mesmas coisas, reinará o mesmo grau de intimidade nas relações pessoais, etc.. Sem dúvida, a mera mudança de ambiente faz que ambos atribuam importância a outras coisas e reavaliem velhas experiências; na vida de cada comparticipante surgiram novas experiências, inacessíveis para o Outro»[19].
A separação veda o acesso directo, imediato e vivido ao Outro: cada participante tem novas experiências que já não pode partilhar, num presente vivido, com o Outro. Daqui decorre a perda de intimidade entre os participantes. Mesmo que se encontrem ocasionalmente, numa relação cara a cara, a comunicação que estabelecem é sistematicamente deformada e distorcida pela falta de intimidade: comunicam em função de tipificações que já não correspondem efectivamente a cada um deles. Num fundo, são dois estranhos que tentam restabelecer e continuar um contacto que se perdeu no tempo. Como escreve Schutz:
«Esta mudança do sistema de significatividades tem o seu corolário no grau cambiante de intimidade. Aqui, o termo “intimidade” designa apenas o grau de conhecimento seguro que temos de outra pessoa ou de uma relação social, um grupo, um padrão cultural ou uma coisa. No que diz respeito a uma pessoa, o conhecimento íntimo permite-nos interpretar o que quer expressar e prever as suas acções e reacções. Na forma mais elevada da intimidade, conhecemos, como diz Kipling, a «alma nua» do Outro, mas a separação oculta-o por detrás de um estranho disfarce, difícil de eliminar»[20].
O abandono do lar é uma separação, tal como a definiu Bowlby: as pessoas separam-se umas das outras e as que deixam o lar ficam afastadas das coisas que lhe dizem respeito. A separação implica a perda de intimidade. Schutz chama ausentes aos indivíduos que deixam, por qualquer motivo ou razão, o lar.
«Do ponto de vista do ausente, a ânsia de restabelecer a velha intimidade, não só com pessoas mas também com coisas, é a característica principal do que se chama «saudade»»[21] — a mágoa que se sente de coisas ou pessoas ausentes.
Schutz atribui a saudade somente aos que abandonam o lar, mas a saudade também é vivida intensamente pelos que ficaram no lar. A saudade é nostalgia de algo e/ou de alguém que se perdeu algures no passado. A saudade é sempre a nostalgia de uma unidade primordial rompida pela partida ou pela perda de alguém. Mas a unidade primordial que se visa em qualquer uma das situações é puramente imaginária, para não dizer mesmo mitológica. Os que partem constróem uma imagem idílica do lar e os que ficam querem recuperar o lar esmiuçado pela partida. Ambos anseiam pelo regresso ao lar, mas esse regresso é sempre entendido como um regresso ao paraíso. Eis aqui o núcleo mitológico da saudade.
A mudança descrita no sistema de significatividades e no grau de intimidade é experimentada de maneira diferente pelo ausente e pelo grupo do lar:
· O grupo do lar «continua a sua vida quotidiana dentro do esquema habitual»[22]. É certo que também este esquema terá mudado e até de uma maneira mais ou menos abrupta após a separação, mas os que ficaram no lar, embora conscientes desta mudança, continuam a conviver neste mundo cambiante, experimentam-no como cambiante no imediato, adoptam o seu sistema interpretativo e ajustam-no à mudança. Como diz Schutz: «O sistema pode ter mudado na sua totalidade, mas como sistema, sem nunca ter sido desbaratado e destruído; embora modificado, continua a ser um recurso útil para se desempenhar na vida. O endogrupo tem agora outros objectivos e outros meios para os alcançar, mas continua a ser um endogrupo»[23].
Regra geral, quem abandona o lar vai à procura de uma vida nova ou até mesmo vai criar um novo lar. Deixa para trás um mundo que congela na (sua) memória. Nem sempre tem consciência das implicações da sua partida: o lar que abandona transforma-se irremediavelmente e os que ficam têm plena consciência disso. Mas Schutz não se apercebe que os que ficam também querem partir — ou seja, recomeçar uma vida nova. Mas querem essencialmente o regresso do seu lar. A sua memória é activada — uma memória genealógica. Este aspecto da partida tem sido sistematicamente negligenciado por todos os que abordaram esta temática do regresso ao lar: os que ficam, sobretudo os mais idosos, com menos possibilidades de recomeçar uma nova vida ou mesmo de refazer a vida que têm, acordam memórias adormecidas. A saudade não lhes é estranha. As possibilidades não actualizadas, irremediavelmente perdidas para sempre, atormentam a (sua) consciência: a memória converte-se em imaginação e, neste movimento, recupera imagens perdidas. O objecto visado pela saudade começa por ser a «recuperação» de possibilidades que foram reprimidas pelas possibilidades que foram actualizadas: a sua vida poderia ter sido diferente... Aqui a saudade é vizinha do arrependimento. Provavelmente, o último arrependimento! A morte, essa, avizinha-se.
· «O ausente tem a vantagem de conhecer o estilo geral»[24] do esquema habitual em que decorre a vida quotidiana do endogrupo. As suas experiências prévias — adquiridas no decorrer da sua permanência no lar antes do abandono — permitem-lhe deduzir «o que se passa no lar», mas os que ficaram no lar não têm experiência imediata de como vive o ausente.
Convém recordar que Schutz refere-se aqui, bem como em todo o seu ensaio, à experiência do soldado que teve, voluntária ou involuntariamente, de abandonar o (seu) lar para ir para a Guerra[25]. Há neste caso uma discrepância que se torna particularmente evidente aquando do regresso do soldado a casa: «Esta discrepância entre a singularidade e decisiva importância que o ausente atribui às suas experiências e o facto de que as pessoas do lar as pseudotipificam atribuindo-lhes uma pseudosignificatividade é um dos maiores obstáculos para o mútuo restabelecimento das relações Nós interrompidas. Sem dúvida, o êxito ou o fracasso do retorno ao lar dependerá da probabilidade de transformar essas relações sociais em relações decorrentes. Mas, ainda que tal discrepância não perdure, a solução total deste problema continuará a ser um ideal irrealizável»[26].
RETORNADOS. O retorno ao lar é, conforme reconhece Schutz, «um ideal irrealizável», pelo menos na sua plenitude, tal como é perspectivada pelos participantes envolvidos no restabelecimento das relações Nós. Como observa Schutz, coloca-se aqui o problema da irreversibilidade do tempo interior, tal como foi analisado por Heráclito, Bergson, Kierkegaard, Péguy e G. H. Mead:
«O mero facto de que envelhecemos, de que novas experiências surjam de modo contínuo dentro da nossa corrente de pensamento, de que experiências anteriores recebam permanentemente significados interpretativos adicionais à luz dessas novas experiências que têm modificado, em maior ou menor grau, o nosso estado de ânimo, todas estas características básicas da nossa vida mental impedem que o mesmo se repita. Ao ser recorrente, o recorrente já não é mais o mesmo. Ainda que se procure e anseie a repetição, o que pertence ao passado nunca pode ser reinstaurado em outro presente exactamente tal como era antes. Num começo, coadjuvava antecipações vazias, horizontes de processos futuros e referências a probabilidades e possibilidades; agora a visão retrospectiva comprova se essas antecipações se têm concretizado ou não; as perspectivas têm mudado; o que somente estava no horizonte tem-se deslocado para o centro da atenção ou tem desaparecido por completo; as que antes eram probabilidades têm-se convertido em realidades ou têm mostrado ser impossibilidades; em resumo, a experiência anterior tem agora outro sentido»[27].
Schutz reconhece que a análise fenomenológica do regresso ao lar envolve três complicados problemas filosóficos — o tempo, a memória e o significado, sem no entanto os analisar. Alega apenas duas razões para os mencionar:
1. A análise de um problema sociológico concreto conduz inevitavelmente a determinadas questões filosóficas básicas que não podem ser elucidadas mediante a utilização de termos «abstractos» cujo significado não tenha sido clarificado pelos especialistas em ciências sociais. Sem essa clarificação, termos tais como «adaptação», «ajustamento», «ambiente» ou «padrão cultural» funcionam mais como conceitos-tampão do que como conceitos «explicativos».
2. Estes problemas determinam a forma e até mesmo o conteúdo da atitude do indivíduo que regressa ao lar.
Embora não observe mudanças substanciais na vida do endogrupo ou nas suas relações com ele, «o lar a que retorna não é, de modo algum, o lar que deixou ou o lar que recordava e ansiava durante a sua ausência. E, pela mesma razão, o (indivíduo) que volta ao lar não é o mesmo homem que o abandonou. Não é o mesmo nem para ele nem para aqueles que esperam o seu retorno»[28]. Este enunciado é, conforme acentua Schutz, válido para qualquer tipo de regresso ao lar, inclusive para aqueles que regressam ao lar depois de umas breves férias:
«Ainda ao regressar ao lar depois de umas breves férias, comprovamos que o antigo ambiente habitual tem para nós um significado adicional, que deriva das nossas experiências durante a nossa ausência e baseia-se nelas. Seja qual for a avaliação concomitante, as coisas e os homens, pelos menos no começo, terão outro rosto. Será necessário certo esforço para retransformar as nossas actividades em tarefas de rotina e reactivar as nossas relações recorrentes com os homens e com as coisas. E isto não é de estranhar, já que nos propusemos que as nossas férias fossem uma interrupção da nossa rotina quotidiana»[29].
Quebrar a rotina e retomar a rotina são dois momentos do mesmo fenómeno: a ida e a volta.
«Em certa medida, todo aquele que volta ao lar tem experimentado o fruto mágico do estranho, quer seja doce ou amargo. Por mais que nos domine a saudade do lar, sempre desejamos transplantar ao velho esquema algo dos novos objectivos, dos meios recém-descobertos para os concretizar e experiências obtidas no exterior»[30]. Daqui Schutz deduz uma conclusão prática: «Num primeiro momento, não só o que regressa à sua terra natal descobre nela um aspecto desusado. Também ele parece estranho para aqueles que o esperam e a névoa que o rodeia faz dele um desconhecido. Tanto o que retorna ao lar como os que o esperam necessitarão da ajuda de um Mentor que “lhes diga o que ocorre”»[31].
A nostalgia do lar é sintoma do desenraizamento que caracteriza estruturalmente o homem moderno. Este sente-se estranho a si mesmo em qualquer lugar onde quer que se encontre. Nenhum desses lugares constitui o seu vero lar. Como diz P. Berger, vivemos num mundo sem lar. Daí que sinta a necessidade de regressar ao lar, ao lugar donde partiu há muito tempo. Ora, um lar desse tipo só pode ser a casa paterna. É aí que o retornado irá procurar as suas raízes, mas, quando lá chega, observa que nem ele é o mesmo homem, nem o lar é o mesmo lar. Tudo se modificou de modo irreversível. A nostalgia do lar transforma-se numa tremenda desilusão: a anomia encontra-se espalhada por todos os lugares da Terra e nenhum deles parece ser o nosso verdadeiro lar. Frustrada a saudade resta apenas sondar o último lar — o túmulo. É aqui que entra Guerra Junqueiro. Com Schutz ou mesmo Marcuse, aprendemos que o tempo é o nosso maior inimigo. No esboço do seu Poema (épico) Prometheu Libertado, Guerra Junqueiro não podia ser mais explícito: «O tempo — esse coveiro imortal do universo»[32].
J Francisco Saraiva de Sousa
[1] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.108.
[2] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.108.
[3] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.108.
[4] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.108.
[5] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.109.
[6] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.109.
[7] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.109.
[8] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.110.
[9] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.110.
[10] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.111.
[11] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.111.
[12] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.112.
[13] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.112.
[14] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.112.
[15] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.112.
[16] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.112-113.
[17] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.113.
[18] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.113.
[19] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.113.
[20] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.114.
[21] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.114.
[22] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.114.
[23] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.114.
[24] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.114.
[25] Cf. SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.114-115.
[26] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.115.
[27] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.116.
[28] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.116.
[29] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.116.
[30] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.117.
[31] SCHUTZ, Alfred — La Vuelta al Hogar. In SCHUTZ, Alfred — Estudios sobre Teoría Social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974, p.119.
[32] JUNQUEIRO, Guerra — Prometheu Libertado. Porto: Lello & Irmão Editores, 1926, p.39.
1 comentário:
Ótimo texto!
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