STEINER E A PRESENÇA TEOLÓGICA
Steiner procura recuperar a presença num contexto absolutamente teológico. Para isso, submete a desconstrução derridiana a uma crítica severa mas justa, ao mesmo tempo que elabora uma teoria das presenças reais como presenças teológicas num domínio inequivocamente estético.
Logo, no início da sua obra Presenças Reais[1], formula explicitamente a tese que preside a toda a sua investigação: «Qualquer compreensão coerente do que a linguagem é e do modo como funciona, […] qualquer exame coerente da capacidade que a linguagem humana possui de comunicar sentido e sentimento assenta, em última análise, na suposição da presença de Deus»[2]. A partir desta tese simples mas profunda, Steiner sustenta que «a aposta no sentido do sentido, o potencial de compreensão e de resposta que existe quando uma voz humana se dirige a outra, quando nos confrontamos com o texto e com a obra de arte ou a forma musical, quer dizer, quando encontramos o outro na sua condição de liberdade, é uma aposta na transcendência»[3]. No âmbito das obras de arte e das diversas manifestações artísticas, a experiência do sentido aparece intimamente ligada à possibilidade necessária da presença de Deus.
A análise de Steiner dá uma atenção especial à crise da palavra, cujos momentos iniciais estão manifestos no afastamento operado por Mallarmé da linguagem relativamente aos seus referentes exteriores e na desconstrução operada por Rimbaud da primeira pessoa do singular. Contra estas duas teses, Steiner quer recuperar a ordem do Logos, a qual implica «uma hipótese nuclear de «presença real». O repúdio por Mallarmé do pacto da referência, e a sua insistência em que a não-referência constitui o verdadeiro génio e a verdadeira pureza da linguagem, implica uma hipótese nuclear de «ausência real». A consequência é num sentido filosófico-semântico (...) um nihilismo ontológico (como o que Heidegger explorará na sua exposição do «Nada» ou Nichtigkeit). Entre os quatro signos arbitrários que fabricam – com todas as conotações de ficção deste «fabricam» – o objecto gráfico ou verbal rosa, entre as regras sintácticas do jogo de linguagem particular em que este objecto assume a sua legitimidade relacional (em relação com outros marcadores verbais e gráficos) e a flor putativa, passa a existir agora uma distância, em sentido estrito, infinita. A verdade da palavra é a ausência do mundo»[4]. É neste momento de epílego da palavra que Steiner dirige uma crítica à desconstrução da metafísica ocidental operada por Derrida. Como escreve Steiner:
«A formulação de Derrida é de uma beleza incisiva: “a face inteligível do signo continua voltada para o lado do verbo e da face de Deus”. Uma semântica, uma poética da correspondência, da possibilidade de decifração e de valores de verdade obtidos ao longo do tempo e através do consenso, é estritamente inseparável do postulado de uma transcendência teológico-metafísica. Assim a origem do axioma do sentido é comum à da ideia de Deus. O signo semântico, quando se supunha dotado de sentido, e a divindade “tem o mesmo lugar e data de nascimento” (Derrida). Constituem a cópula helénico-hebraica em que assentaram a nossa histórica e a nossa prática do Logos. “A idade do signo”, diz Derrida, “e é essencialmente teológica”»[5].
«A força de Derrida está em ter visto tão precisamente que a questão não é aqui nem estético-linguística nem filosófica em qualquer acepção tradicional e como tal sujeita a debate – pois a tradição e o seu debate encarnam e perpetuam o próprio fantasma que se trata de exorcizar. O que está aqui em jogo é, muito simplesmente, o sentido dos sentidos tal como o reitera o postulado da existência de Deus. “No princípio era o Verbo”. Esse princípio, porém, não existiu, diz a desconstrução; tudo o que há é um jogo de sons e marcadores por entre as mutações do tempo»[6].
«A teologia ocidental e a metafísica, a epistemologia e a estética que formaram as suas notas de pé de página principais, são “logocentricas”. Quer dizer que axiomatizam como fundamental e preeminente a ideia de uma “presença”. Pode tratar-se da ideia de Deus (e em última análise deve ser dela que se trata); das ideias platónicas, da essência aristotélica ou tomista. Pode tratar-se da consciência de si cartesiana; da lógica transcendental de Kant ou do “Ser” de Heidegger. É a estes eixos que os raios do sentido acabam por ligar-se. São eles que garantem a sua plenitude. E a presença, teológica, ontológica ou metafísica, que torna crível a afirmação segundo ao qual há “alguma coisa dentro do que dizemos”»[7].
Contestando o pressuposto de um conteúdo garantido, a desconstrução pode ser definida
«como uma elaboração da bondade de Gertrude Stein: “there is no there there” (não há aí do ser-aí). A idolatria, o animismo teológico-filosófico implícitos em qualquer ambição de plenitude devem ser desmascarados. Os signos não veiculam presenças. Sua, num sentido consequente com o de Mellarmé, mas muito mais radical, é l’absence de toute rose. É precisamente esta ausência que o signo representa, que torna o signo funcional. Os instrumentos do signo, como nos ensinou Saussure, são os da “diferença”: os signos tornam-se identificáveis e significantes apenas em virtude das suas diferenças, chamadas “diacríticas”, em relação a outros signos. “Diferença” é igualmente o acto de diferir: os signos não se “assemelham” aos objectos a que se referem ou aos quais supomos por convenção que se referem. Numa terceira acepção, significa também “suspender”, suspensão ou adiamento de um sentido declarado, persistência do movimento entrecortado que adia a ilusão, a fixidez estéril da definição. Eco da Aufhebung, ou “elevação acima” de Hegel, o célebre neologismo de Derrida, a différance, torna-se fundamental para antiteologia da ausência desconstrucionista e pós-estruturalista»[8].
Sem pretender refutar o discurso desconstrucionista, em textos clássicos da desconstrução, em Derrida ou Paul De Man[9], Steiner considera que o seu dogma central, «segundo o qual todas as leituras são leitura erróneas e não há garantias da inteligibilidade do signo, tem precisamente o mesmo estatuto paradoxal e autodestruidor que a célebre aporia em que um cretense declara que todos oscretenses são mentirosos. Emparedadas no interior da linguagem natural, as proposições da desconstrução refutam-se a si próprias»[10]. A desconstrução do «logocentrismo» (Derrida), sendo exposta em termos inteiramente logocêntricos, não escapa, ela mesma, ao logocentrismo. Segundo Steiner o mais cruel dos paradoxos da desconstrução é o seguinte: «não houve nunca “ponto de partida”, mas há, no que se refere à nossa habitação inocente, facticia e oportunista do sentido, um lugar de fim. O que parece evidente é que o desafio não pode ser iludido. Aquele que lê – ou treslê – por cima do nosso ombro pode ser ou um Roland Barthes ou um Karl Barth. Para os actuais mestres do vazio, o que está em jogo é apenas o jogo»[11]. E é, neste ponto, que Steiner diverge deles.
À desconstrução Steiner começa por opor a alteridade: «A linguagem existe, a arte existe, porque existe “o outro”. Falamos de nós para nós num solilóquio constante. Mas o medium deste solilóquio é o da linguagem partilhada – condensada, tornada privada e críptica talvez por meio de referências e associações veladas, mas enraizando-se, em todo o caso, e até aos limites incertos da consciência, num vocabulário e numa gramática herdados, determinados histórica e socialmente».[12]. As invenções autistas ou os artefactos solipsistas são concebíveis, mas, de uma maneira ou de outra, estão fundadas em actos de comunicação e em experiências de confronto. Tal como em Levinas[13], o encontro com a alteridade comporta uma ética, desenvolvida como uma fenomenologia da cortesia. A criação – em particular artística – tem prioridade sobre o acto de recepção, de comentário ou de valorização, num duplo sentido:
– temporal, já que «o poema vem antes do comentário. A construção precede a desconstrução»[14];
– e ontológica, na medida em que «o poema, a tela, a composição é a razão de ser, no sentido mais forte, das interpretações e juízos a que dá ensejo. (…) A obra de criação é a origem do ser de tudo o que se lhe segue. O movimento temporal-ontológico do primário para o secundário é uma passagem da autonomia – no quadro obrigatório das potencialidades humanas – à dependência»[15]. Dado que «o texto primeiro – o poema, o quadro, o trecho musical – é um fenómeno de liberdade»[16], «a experiência de uma forma devida à criação é um encontro entre liberdades»[17]. Nesta linha de pensamento, Steiner desenvolve uma teoria estética, de acordo com a qual «há criação estética porque há criação. Há construção de formas porque fomos feitos forma»[18]. Steiner considera «o acto estético, a concepção e o trazer ao ser do que, em todo o rigor, poderia não ter sido concebido ou trazido ao ser, como uma imitatio, uma repetição à sua escala própria, do inacessível primeiro fiat»[19]. O acto de dar ao ser do poeta, do artista ou mesmo do compositor é, segundo Steiner, contra-criação. «O pulsar do motivo que religa o engendrar de formas dotadas de sentido ao primeiro acto de criação, ao vir ao ser do ser» é «radicalmente agonístico»: «O criador humano enfurece-se com o seu vir depois, com o facto de, para sempre, ser segundo em relação ao mistério original e originário da formação da forma»[20]. O auto-retrato ocupa o lugar axial na poiesis, uma vez que «nos surge como a modalidade mais agonística da criação»[21], na qual o artista procura «conseguir o domínio das formas e dos sentidos do seu próprio ser»[22].
«Pelo nosso lado, nós, como leitores, auditores, espectadores, fazemos a experiência da estética, respondemos à prova da liberdade que penetra no nosso ser, reconhecendo no interior das formas os contornos da própria criação. Ao respondermos ao poema, à composição musical, ao quadro do pintor, reassumimos, dentro dos limites da nossa capacidade criadora menor, os dois movimentos que definem a nossa presença existencial no mundo: o da vinda ao ser onde antes nada havia ou era, e quando era possível que o nada tivesse continuado a ser, e o da desmesura da morte»[23].
É a experiência estética que, além de nos permitir negar a mortalidade, nos permite voltarmos «a criar a criação»[24]. «Quando lemos bem, quando fazemos nossa a luz das presenças concretas que habitam o quadro, quando ouvimos as relações dinâmicas da articulação tonal, engendramos de novo, desterramos do silêncio, da ausência potencial, a actividade do artista»[25]. Contudo, não há leitura que englobe em termos finais os sentidos, a vida do sentido no poema, na medida em que a alteridade é sempre irredutível. A alteridade – segundo a formulação de Steiner – é «como um vestígio sempre renovado do momento original, nunca inteiramente acessível, da criação»[26]. Diante deste salto no escuro do indemonstrável, Steiner sustenta que
«há no acto de arte e na recepção da arte, que há na experiência da forma portadora de sentido, um pressuposto de presença […]. Há sempre, haverá sempre, um sentido em que não sabemos o que é aquilo de que fazemos a experiência e de que falamos, quando fazemos a experiência e falamos daquilo que é. Há um sentido em que nenhum discurso humano, por mais analítico que seja, pode fixar um sentido final ao sentido»[27].
Esta aposta steiniana na transcendência é uma aposta no sentido. Nesta medida,
«a relação de uma leitura plena, do acto de recepção e de interiorização de formas dotadas de sentido, é um acto metafísico e, em última análise, um acto teológico. A atribuição de beleza à verdade e ao sentido ou é uma flor de retórica ou uma declaração teológica. É uma teologia, explícita ou recalcada, mascarada ou confessa, substantiva ou figurada, que garante o pressuposto da criação e do sentido nos nossos encontros com os textos, com a música e com a arte. O sentido do sentido é um postulado transcendente»[28].
Para Steiner, a música e a metafísica são inseparáveis: «A música é o que nomeia aquilo que nomeia a vida. Trata-se, para além de qualquer concretização litúrgica ou teológica, de um movimento sacramental»[29], que põe o nosso ser em contacto com algo que transcende o dizível, com algo que ultrapassa o analisável. Dado que a arte adere à metafísica e à religião, «a estética é um dar forma a uma epifania»[30]. Embora comece na imanência, a arte não se detém nela. A estética torna presença luminosa a continuidade entre a temporalidade e a eternidade, entre a matéria e o espírito, entre o homem e o «outro» e a poiesis abre-se à ordem do religioso e do metafísico que a sustenta. Se nas leituras de Derrida habita uma «teologia zero» do «sempre ausente», na metafísica de Steiner certas dimensões do pensamento e da criação só se tornam atingíveis mediante a presença de Deus. Ao esquecimento da questão de Deus e do sentido Steiner opõe uma metafísica teológica: «Foi a intuição hebraica segundo a qual Deus é capaz de todos os actos de discurso, excepto do monólogo, que gerou as nossas artes de resposta, de interrogação e de contra interrogação»[31].
[1] STEINER, George – Presenças Reais: As artes do Sentido. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
[2] STEINER, George – Presenças Reais, p.15.
[3] STEINER, George – Presenças Reais, p. 16.
[4] STEINER, George – Presenças Reais, p.92.
[5] STEINER, George – Presenças Reais,p. 111.
[6] STEINER, George – Presenças Reais,p. 111.
[7] STEINER, George – Presenças Reais, p. 112.
[8] STEINER, George – Presenças Reais, p.112-113.
[9] Cf. DE MAN, Paul – A Resistência à Teoria. Lisboa: Edições 70, 1989.
[10] STEINER, George – Presenças Reais, p. 119.
[11] STEINER, George – Presenças Reais, p. 123.
[12] STEINER, George – Presenças Reais, p.127.
[13] Cf. LEVINAS, Emamanuel – Totalidad e Infinito: Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977.
[14] STEINER, George – Presenças Reais, p. 138.
[15] STEINER, George – Presenças Reais, p. 138.
[16] STEINER, George – Presenças Reais, p. 139.
[17] STEINER, George – Presenças Reais, p. 140.
[18] STEINER, George – Presenças Reais, p. 180.
[19] STEINER, George – Presenças Reais, p. 180.
[20] STEINER, George – Presenças Reais, p. 182.
[21] STEINER, George – Presenças Reais, p. 184.
[22] STEINER, George – Presenças Reais, p. 183.
[23] STEINER, George – Presenças Reais, p. 187.
[24] Ibidem.
[25] Ibidem.
[26] Ibidem, p. 188.
[27] Ibidem, p. 190-191.
[28] Ibidem, p. 192.
[29] Ibidem, p. 193.
[30] Ibidem, p. 200.
[31] Ibidem.
Steiner procura recuperar a presença num contexto absolutamente teológico. Para isso, submete a desconstrução derridiana a uma crítica severa mas justa, ao mesmo tempo que elabora uma teoria das presenças reais como presenças teológicas num domínio inequivocamente estético.
Logo, no início da sua obra Presenças Reais[1], formula explicitamente a tese que preside a toda a sua investigação: «Qualquer compreensão coerente do que a linguagem é e do modo como funciona, […] qualquer exame coerente da capacidade que a linguagem humana possui de comunicar sentido e sentimento assenta, em última análise, na suposição da presença de Deus»[2]. A partir desta tese simples mas profunda, Steiner sustenta que «a aposta no sentido do sentido, o potencial de compreensão e de resposta que existe quando uma voz humana se dirige a outra, quando nos confrontamos com o texto e com a obra de arte ou a forma musical, quer dizer, quando encontramos o outro na sua condição de liberdade, é uma aposta na transcendência»[3]. No âmbito das obras de arte e das diversas manifestações artísticas, a experiência do sentido aparece intimamente ligada à possibilidade necessária da presença de Deus.
A análise de Steiner dá uma atenção especial à crise da palavra, cujos momentos iniciais estão manifestos no afastamento operado por Mallarmé da linguagem relativamente aos seus referentes exteriores e na desconstrução operada por Rimbaud da primeira pessoa do singular. Contra estas duas teses, Steiner quer recuperar a ordem do Logos, a qual implica «uma hipótese nuclear de «presença real». O repúdio por Mallarmé do pacto da referência, e a sua insistência em que a não-referência constitui o verdadeiro génio e a verdadeira pureza da linguagem, implica uma hipótese nuclear de «ausência real». A consequência é num sentido filosófico-semântico (...) um nihilismo ontológico (como o que Heidegger explorará na sua exposição do «Nada» ou Nichtigkeit). Entre os quatro signos arbitrários que fabricam – com todas as conotações de ficção deste «fabricam» – o objecto gráfico ou verbal rosa, entre as regras sintácticas do jogo de linguagem particular em que este objecto assume a sua legitimidade relacional (em relação com outros marcadores verbais e gráficos) e a flor putativa, passa a existir agora uma distância, em sentido estrito, infinita. A verdade da palavra é a ausência do mundo»[4]. É neste momento de epílego da palavra que Steiner dirige uma crítica à desconstrução da metafísica ocidental operada por Derrida. Como escreve Steiner:
«A formulação de Derrida é de uma beleza incisiva: “a face inteligível do signo continua voltada para o lado do verbo e da face de Deus”. Uma semântica, uma poética da correspondência, da possibilidade de decifração e de valores de verdade obtidos ao longo do tempo e através do consenso, é estritamente inseparável do postulado de uma transcendência teológico-metafísica. Assim a origem do axioma do sentido é comum à da ideia de Deus. O signo semântico, quando se supunha dotado de sentido, e a divindade “tem o mesmo lugar e data de nascimento” (Derrida). Constituem a cópula helénico-hebraica em que assentaram a nossa histórica e a nossa prática do Logos. “A idade do signo”, diz Derrida, “e é essencialmente teológica”»[5].
«A força de Derrida está em ter visto tão precisamente que a questão não é aqui nem estético-linguística nem filosófica em qualquer acepção tradicional e como tal sujeita a debate – pois a tradição e o seu debate encarnam e perpetuam o próprio fantasma que se trata de exorcizar. O que está aqui em jogo é, muito simplesmente, o sentido dos sentidos tal como o reitera o postulado da existência de Deus. “No princípio era o Verbo”. Esse princípio, porém, não existiu, diz a desconstrução; tudo o que há é um jogo de sons e marcadores por entre as mutações do tempo»[6].
«A teologia ocidental e a metafísica, a epistemologia e a estética que formaram as suas notas de pé de página principais, são “logocentricas”. Quer dizer que axiomatizam como fundamental e preeminente a ideia de uma “presença”. Pode tratar-se da ideia de Deus (e em última análise deve ser dela que se trata); das ideias platónicas, da essência aristotélica ou tomista. Pode tratar-se da consciência de si cartesiana; da lógica transcendental de Kant ou do “Ser” de Heidegger. É a estes eixos que os raios do sentido acabam por ligar-se. São eles que garantem a sua plenitude. E a presença, teológica, ontológica ou metafísica, que torna crível a afirmação segundo ao qual há “alguma coisa dentro do que dizemos”»[7].
Contestando o pressuposto de um conteúdo garantido, a desconstrução pode ser definida
«como uma elaboração da bondade de Gertrude Stein: “there is no there there” (não há aí do ser-aí). A idolatria, o animismo teológico-filosófico implícitos em qualquer ambição de plenitude devem ser desmascarados. Os signos não veiculam presenças. Sua, num sentido consequente com o de Mellarmé, mas muito mais radical, é l’absence de toute rose. É precisamente esta ausência que o signo representa, que torna o signo funcional. Os instrumentos do signo, como nos ensinou Saussure, são os da “diferença”: os signos tornam-se identificáveis e significantes apenas em virtude das suas diferenças, chamadas “diacríticas”, em relação a outros signos. “Diferença” é igualmente o acto de diferir: os signos não se “assemelham” aos objectos a que se referem ou aos quais supomos por convenção que se referem. Numa terceira acepção, significa também “suspender”, suspensão ou adiamento de um sentido declarado, persistência do movimento entrecortado que adia a ilusão, a fixidez estéril da definição. Eco da Aufhebung, ou “elevação acima” de Hegel, o célebre neologismo de Derrida, a différance, torna-se fundamental para antiteologia da ausência desconstrucionista e pós-estruturalista»[8].
Sem pretender refutar o discurso desconstrucionista, em textos clássicos da desconstrução, em Derrida ou Paul De Man[9], Steiner considera que o seu dogma central, «segundo o qual todas as leituras são leitura erróneas e não há garantias da inteligibilidade do signo, tem precisamente o mesmo estatuto paradoxal e autodestruidor que a célebre aporia em que um cretense declara que todos oscretenses são mentirosos. Emparedadas no interior da linguagem natural, as proposições da desconstrução refutam-se a si próprias»[10]. A desconstrução do «logocentrismo» (Derrida), sendo exposta em termos inteiramente logocêntricos, não escapa, ela mesma, ao logocentrismo. Segundo Steiner o mais cruel dos paradoxos da desconstrução é o seguinte: «não houve nunca “ponto de partida”, mas há, no que se refere à nossa habitação inocente, facticia e oportunista do sentido, um lugar de fim. O que parece evidente é que o desafio não pode ser iludido. Aquele que lê – ou treslê – por cima do nosso ombro pode ser ou um Roland Barthes ou um Karl Barth. Para os actuais mestres do vazio, o que está em jogo é apenas o jogo»[11]. E é, neste ponto, que Steiner diverge deles.
À desconstrução Steiner começa por opor a alteridade: «A linguagem existe, a arte existe, porque existe “o outro”. Falamos de nós para nós num solilóquio constante. Mas o medium deste solilóquio é o da linguagem partilhada – condensada, tornada privada e críptica talvez por meio de referências e associações veladas, mas enraizando-se, em todo o caso, e até aos limites incertos da consciência, num vocabulário e numa gramática herdados, determinados histórica e socialmente».[12]. As invenções autistas ou os artefactos solipsistas são concebíveis, mas, de uma maneira ou de outra, estão fundadas em actos de comunicação e em experiências de confronto. Tal como em Levinas[13], o encontro com a alteridade comporta uma ética, desenvolvida como uma fenomenologia da cortesia. A criação – em particular artística – tem prioridade sobre o acto de recepção, de comentário ou de valorização, num duplo sentido:
– temporal, já que «o poema vem antes do comentário. A construção precede a desconstrução»[14];
– e ontológica, na medida em que «o poema, a tela, a composição é a razão de ser, no sentido mais forte, das interpretações e juízos a que dá ensejo. (…) A obra de criação é a origem do ser de tudo o que se lhe segue. O movimento temporal-ontológico do primário para o secundário é uma passagem da autonomia – no quadro obrigatório das potencialidades humanas – à dependência»[15]. Dado que «o texto primeiro – o poema, o quadro, o trecho musical – é um fenómeno de liberdade»[16], «a experiência de uma forma devida à criação é um encontro entre liberdades»[17]. Nesta linha de pensamento, Steiner desenvolve uma teoria estética, de acordo com a qual «há criação estética porque há criação. Há construção de formas porque fomos feitos forma»[18]. Steiner considera «o acto estético, a concepção e o trazer ao ser do que, em todo o rigor, poderia não ter sido concebido ou trazido ao ser, como uma imitatio, uma repetição à sua escala própria, do inacessível primeiro fiat»[19]. O acto de dar ao ser do poeta, do artista ou mesmo do compositor é, segundo Steiner, contra-criação. «O pulsar do motivo que religa o engendrar de formas dotadas de sentido ao primeiro acto de criação, ao vir ao ser do ser» é «radicalmente agonístico»: «O criador humano enfurece-se com o seu vir depois, com o facto de, para sempre, ser segundo em relação ao mistério original e originário da formação da forma»[20]. O auto-retrato ocupa o lugar axial na poiesis, uma vez que «nos surge como a modalidade mais agonística da criação»[21], na qual o artista procura «conseguir o domínio das formas e dos sentidos do seu próprio ser»[22].
«Pelo nosso lado, nós, como leitores, auditores, espectadores, fazemos a experiência da estética, respondemos à prova da liberdade que penetra no nosso ser, reconhecendo no interior das formas os contornos da própria criação. Ao respondermos ao poema, à composição musical, ao quadro do pintor, reassumimos, dentro dos limites da nossa capacidade criadora menor, os dois movimentos que definem a nossa presença existencial no mundo: o da vinda ao ser onde antes nada havia ou era, e quando era possível que o nada tivesse continuado a ser, e o da desmesura da morte»[23].
É a experiência estética que, além de nos permitir negar a mortalidade, nos permite voltarmos «a criar a criação»[24]. «Quando lemos bem, quando fazemos nossa a luz das presenças concretas que habitam o quadro, quando ouvimos as relações dinâmicas da articulação tonal, engendramos de novo, desterramos do silêncio, da ausência potencial, a actividade do artista»[25]. Contudo, não há leitura que englobe em termos finais os sentidos, a vida do sentido no poema, na medida em que a alteridade é sempre irredutível. A alteridade – segundo a formulação de Steiner – é «como um vestígio sempre renovado do momento original, nunca inteiramente acessível, da criação»[26]. Diante deste salto no escuro do indemonstrável, Steiner sustenta que
«há no acto de arte e na recepção da arte, que há na experiência da forma portadora de sentido, um pressuposto de presença […]. Há sempre, haverá sempre, um sentido em que não sabemos o que é aquilo de que fazemos a experiência e de que falamos, quando fazemos a experiência e falamos daquilo que é. Há um sentido em que nenhum discurso humano, por mais analítico que seja, pode fixar um sentido final ao sentido»[27].
Esta aposta steiniana na transcendência é uma aposta no sentido. Nesta medida,
«a relação de uma leitura plena, do acto de recepção e de interiorização de formas dotadas de sentido, é um acto metafísico e, em última análise, um acto teológico. A atribuição de beleza à verdade e ao sentido ou é uma flor de retórica ou uma declaração teológica. É uma teologia, explícita ou recalcada, mascarada ou confessa, substantiva ou figurada, que garante o pressuposto da criação e do sentido nos nossos encontros com os textos, com a música e com a arte. O sentido do sentido é um postulado transcendente»[28].
Para Steiner, a música e a metafísica são inseparáveis: «A música é o que nomeia aquilo que nomeia a vida. Trata-se, para além de qualquer concretização litúrgica ou teológica, de um movimento sacramental»[29], que põe o nosso ser em contacto com algo que transcende o dizível, com algo que ultrapassa o analisável. Dado que a arte adere à metafísica e à religião, «a estética é um dar forma a uma epifania»[30]. Embora comece na imanência, a arte não se detém nela. A estética torna presença luminosa a continuidade entre a temporalidade e a eternidade, entre a matéria e o espírito, entre o homem e o «outro» e a poiesis abre-se à ordem do religioso e do metafísico que a sustenta. Se nas leituras de Derrida habita uma «teologia zero» do «sempre ausente», na metafísica de Steiner certas dimensões do pensamento e da criação só se tornam atingíveis mediante a presença de Deus. Ao esquecimento da questão de Deus e do sentido Steiner opõe uma metafísica teológica: «Foi a intuição hebraica segundo a qual Deus é capaz de todos os actos de discurso, excepto do monólogo, que gerou as nossas artes de resposta, de interrogação e de contra interrogação»[31].
[1] STEINER, George – Presenças Reais: As artes do Sentido. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
[2] STEINER, George – Presenças Reais, p.15.
[3] STEINER, George – Presenças Reais, p. 16.
[4] STEINER, George – Presenças Reais, p.92.
[5] STEINER, George – Presenças Reais,p. 111.
[6] STEINER, George – Presenças Reais,p. 111.
[7] STEINER, George – Presenças Reais, p. 112.
[8] STEINER, George – Presenças Reais, p.112-113.
[9] Cf. DE MAN, Paul – A Resistência à Teoria. Lisboa: Edições 70, 1989.
[10] STEINER, George – Presenças Reais, p. 119.
[11] STEINER, George – Presenças Reais, p. 123.
[12] STEINER, George – Presenças Reais, p.127.
[13] Cf. LEVINAS, Emamanuel – Totalidad e Infinito: Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977.
[14] STEINER, George – Presenças Reais, p. 138.
[15] STEINER, George – Presenças Reais, p. 138.
[16] STEINER, George – Presenças Reais, p. 139.
[17] STEINER, George – Presenças Reais, p. 140.
[18] STEINER, George – Presenças Reais, p. 180.
[19] STEINER, George – Presenças Reais, p. 180.
[20] STEINER, George – Presenças Reais, p. 182.
[21] STEINER, George – Presenças Reais, p. 184.
[22] STEINER, George – Presenças Reais, p. 183.
[23] STEINER, George – Presenças Reais, p. 187.
[24] Ibidem.
[25] Ibidem.
[26] Ibidem, p. 188.
[27] Ibidem, p. 190-191.
[28] Ibidem, p. 192.
[29] Ibidem, p. 193.
[30] Ibidem, p. 200.
[31] Ibidem.
J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA
1 comentário:
Ao procurar o livro de Steiner encontrei o seu blog que poderá ser uma óptima ajuda pois estou em Estudos Artísticos e preciso deste livro. Aqui posso pelo menos tomar contacto com ele, obrigada por isso
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