sábado, 28 de julho de 2007

Poesia do Sem-Abrigo na Era Digital

Cântico da Noite
"Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.
Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.
Somos os viandantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte.
À espera que venham cortá-las".
(Georg Trakl)
"Vivo a minha vida em crescentes anéis,
que vão envolvendo as coisas.
Talvez não chegue a comppletar o último,
mas quero tentá-lo
Giro em volta de Deus, da torre antiquíssima,
e giro há milhares de anos;
e ainda não sei: sou falcão, sou tormenta,
ou uma grande canção?"
(Rainer Maria Rilke)
Pretendemos retomar a nossa interpretação da poesia de Guerra Junqueiro, de modo a elaborar uma grande filosofia em Língua Portuguesa, e, numa hora de ameaça terrorista e de catástrofe natural, ter coragem de pensar contra a corrente do ser metabolicamente reduzido.
O Caminho do Céu e Prometeu Libertado são duas obras formidáveis de Guerra Junqueiro, mas infelizmente estão inacabadas. Mas, mesmo assim, têm uma palavra a dizer, talvez a palavra definitiva e derradeira, juntamente com Os Simples. A peregrinação é movida pela busca da salvação. A peregrinação é a história da salvação — o Caminho do Céu. Regressar ao lar é entrar na morada de Deus. Este é o núcleo irrefutável do pensamento edificante de Guerra Junqueiro. Quem não compreendeu isso não pode compreender nada do que é dito e escrito na poesia e na prosa filosóficas de Guerra Junqueiro.

O regresso ao lar pode ser interpretado de muitas maneiras, mas todas elas reconduzem umas às outras:

— o regresso a casa, nomeadamente à casa paterna;
— o regresso à infância, mas à infância da alma;
— o regresso à natureza;
— o regresso à pátria;
— o regresso à língua materna;
— o regresso a si mesmo;
— o regresso a Deus.

1. O REGRESSO A CASA. A casa é o lugar onde se habita, abrigado e protegido da intromissão de estranhos e até mesmo do mal. A casa é o nosso lar — o lugar onde podemos ser nós mesmos, sem que tenhamos de nos defender do olhar do outro. A casa e a família são o nosso primeiro abrigo: lugar protegido onde nos sentimos amados. A casa é o lugar que nos protege do mal.
A teoria da vinculação de John Bowlby mostra precisamente que o desenvolvimento normal da criança depende da qualidade das primeiras vinculações que estabelece com os membros da sua família, em primeiro lugar com a mãe, a vinculação das vinculações. Contudo, o desenvolvimento caminha na direcção de uma autonomia crescente. A partir de determinado momento, em particular durante a adolescência, a criança que se vai tornando adulta precisa de abandonar o lar e arriscar a sua vida, na tentativa de estabelecer novas vinculações, das quais só uma poderá vir a ser o «substituto» da vinculação primordial: o laço de união com um parceiro permanente. Abandona o lar paterno para se tornar um adulto autónomo, capaz de criar o seu novo lar e de constituir a sua nova família. À medida que o tempo passa e que as novas estruturas se vão consolidando, o novo adulto distancia-se cada vez mais da casa paterna. A família nuclear ocidental é extremamente vulnerável à dissolução: qualquer acontecimento mais dramático coloca-a imediatamente em causa — o crescimento dos filhos, a doença, enfim a morte, sobretudo a morte.

É nessas situações difíceis que se sente «saudade» da casa paterna, do abrigo primordial, mas, quando se tenta regressar ao lar donde se partiu há muito tempo, descobre-se subitamente que ele já não é o mesmo: o afastamento e os efeitos irreversíveis do tempo encarregaram-se de o modificar e de o transfigurar completa e totalmente. A morte visitou o lar paterno: o berço que deu origem à vida foi surpreendido pela morte.

O regresso à casa paterna não é um verdadeiro regresso ao antigo lar e à família que nele habitou originariamente. Quando se abandonou há muito tempo o lar paterno, deixou-se para trás esse mesmo solo originário. Fisicamente, o lugar pode ser o mesmo, mesmo que tenha sofrido os efeitos incontornáveis do tempo, mas, de resto, daquilo que nos lembramos já nada resta, a não ser a própria lembrança — a memória de um tempo que já não é mais, que já não existe. No regresso ao lar paterno, deparamo-nos com o nada da existência. Somos enlevados subitamente por uma forte onda de angústia: o nada que encontramos é o nada que nos aguarda. Confrontamo-nos antecipadamente com a nossa própria morte.

2. O REGRESSO À INFÂNCIA. É, por isso, que Guerra Junqueiro, vendo frustrada a sua tentativa real de regressar à casa paterna, não tem outra via de atingir essa finalidade senão recordar a sua infância, o tempo irremediavelmente perdido de quando ainda era menino que brincava no seio materno.

A bem dizer o Poeta nem sequer precisa sair do seu «lar» para regressar, por algum motivo súbito e inesperado, à casa paterna. Quer continue distante, quer pise de novo o solo da casa paterna, o regresso ao lar é sempre um processo activo que deixa o passado vir à consciência, na forma de lembranças dispersas e ténues da sua infância. Regressar ao lar é acordar e lembrar memórias adormecidas: é uma tarefa dolorosa, independentemente das circunstâncias que a convocaram.

A recordação não é suficiente por si mesma para trazer à vida aquilo que já não pertence à vida ou para tornar presente aquilo que já é passado morto: a flecha do tempo é irreversível e não permite que as coisas que já não são voltem a ser — no presente — aquilo que já foram algures no passado distante, cuja memória só pode ser plena e infinita em Deus.

A infância da alma à qual o Poeta quer regressar é irrecuperável. Resta a saudade como experiência sofrida e triste resultante da impossibilidade de regredir no tempo, de modo a tornar presente o que se perdeu no passado. Do passado já só resta a sua memória que nem sempre lhe é fiel. A memória não nos restitui o tempo perdido e muito menos as alegrias passadas: a memória fere-nos interiormente, confronta-nos connosco mesmo, acorda culpas, mas pode abrir o futuro... A esperança de que os sofrimentos passados podem ser redimidos na e pela memória infinita de Deus.

3. O REGRESSO À NATUREZA. O regresso à natureza tem sido interpretado por certos «puristas» como o regresso a formas de vida simples — à vida do campo ou à paisagem bucólica. Essa é, pelo menos, a interpretação mais comum que se faz de Os Simples de Guerra Junqueiro — gente simples que nunca abandonou a sua terra de origem, o seu estilo de vida arcaico e os seus costumes tradicionais. O próprio Guerra Junqueiro parece, por vezes, aprovar essa interpretação naturalista da sua poesia lírica, mas depressa viu que isso era uma outra terrível ilusão.

Os campos e as suas gentes não resistiram à integração social e cultural imposta pela economia capitalista de mercado. O edifício — a construção — da casa paterna pode ter sido demolido e, em seu lugar, construído na melhor das hipóteses uma área residencial e, na pior delas, um grande centro comercial. Além disso, a conversão da casa paterna numa casa de campo ou numa casa de férias enterra todas as suas memórias, convertendo-a num bem que se usufrui nos chamados tempos de lazer. Todas essas situações mostram até à exaustão que o regresso à natureza não é um verdadeiro regresso à Mãe natureza, mas um regresso à natureza dominada, maltratada, colonizada e instrumentalizada em função dos ritmos delirantes e alienantes da vida da Cidade e da sua economia de mercado global e globalizadora.

Na sociedade moderna, o regresso à natureza é pensado como ocupação dos tempos livres. Esta expressão, recentemente inventada, aponta para uma diferença específica que a distingue do tempo não livre: o tempo que é preenchido pelo trabalho e, por conseguinte, determinado de fora, ou seja, pela sociedade. Há, desde logo, aqui, uma dependência do tempo livre em relação à situação geral da sociedade. Ora, a sociedade, conforme observa Adorno, «mantém as pessoas sob um fascínio. Nem no seu trabalho, nem na sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade». Com efeito, «a existência que a sociedade impõe às pessoas não se identifica com o que as pessoas são ou poderiam ser em si mesmas»[1]. «Numa época de integração sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções»[2] ou papéis socialmente atribuídos. Adorno considera que a questão do tempo livre deve ser reformulada em função dessa situação. As pessoas pensam que são livres quando decidem ocupar os seus tempos livres, quando, na verdade, na ideologia do “hobby”, «se prolongam as formas de vida organizada segundo o regime do lucro». «A própria ironia da expressão negócios do tempo livre está tão profundamente esquecida quanto se leva a sério o “show business”. É bem conhecido, e nem por isso menos verdadeiro, que os fenómenos específicos do tempo livre como o turismo e o “camping” são accionados e organizados em função do lucro»[3]. «Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia, se tornaram heterónomas também para si próprias»[4]. Dado que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre, não se pode colocar de parte a possibilidade de «emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre se transforme em liberdade»[5].

Quem vive no campo quer vir para a cidade e quem vive na cidade quer passar férias no campo, mas sempre na expectativa de regressar o mais rapidamente possível à cidade e ao «cantinho» que nela tem. A cidade nasceu das muralhas que a protegiam da «selva»: a cidade é a negação da natureza. O regresso à natureza é uma enorme ilusão. A natureza assusta o homem civilizado da cidade: afugenta-o para bem longe de si ou, pelo menos, esse deveria ser o seu objectivo, para se proteger do eco-turismo que a destrói.

Cabe aqui comparar a concepção de progresso de Adorno e a concepção de progresso de Guerra Junqueiro, de resto tratado frequentemente como um naturalista. A sua concepção de progresso expõe-na Guerra Junqueiro no seu ensaio sobre Raul Brandão (Carta-Prefácio aos «Pobres»):

«A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada»[6].

Embora num outro âmbito, Adorno avança a sua teoria da dialéctica negativa do progresso em termos muito semelhantes:

«O conceito de progresso é filosófico na medida em que, enquanto articula o movimento social, ao mesmo tempo se lhe contrapõe. Surgido socialmente, ele reclama uma confrontação crítica com a sociedade real. O momento da redenção, por mais secularizado que seja, não pode ser apagado dele. O facto de que não se deixe reduzir nem à facticidade nem à ideia demonstra a sua contradição interna. Pois o momento do esclarecimento, na medida em que se consuma na reconciliação com a natureza ao acalmar os sustos desta, está irmanado ao momento de domínio da mesma. Modelo de progresso, ainda que seja transferido para a divindade, é o controle da natureza externa e interna do homem. A opressão exercida mediante esse controle, cuja suprema forma de reflexão espiritual está no princípio de identidade da razão, reproduz o antagonismo. Quanto maior identidade impõe o espírito dominador, tanto mais injustiça sofre o não-idêntico. A injustiça transmite-se por essa resistência. Ela reforça o princípio opressor, enquanto o oprimido também se arrasta peçonhento. Tudo progride no todo; só não o faz até hoje o todo mesmo»
[7].

O progresso é inegavelmente destruição, mas, como observa M. Horkheimer, o regresso à natureza seria ainda mais terrível:

«Somos os herdeiros, para melhor ou para pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente»
[8].


4. O REGRESSO À PÁTRIA. O certo é que o homem moderno sente uma necessidade inexplicável de regressar a algum lugar donde partiu há muito tempo. Provavelmente, sintoma da sua apatridade: ser-sem-abrigo procura, sem disso ter consciência, abrigo...

Na Carta sobre o Humanismo, Heidegger trata precisamente desta condição do homem moderno numa perspectiva ontológica. «O ser manifesta-se ao homem no projecto ec-stático». Este projecto é essencialmente um projecto jogado: «Aquele que joga no projectar não é o homem, mas o próprio ser que destina o homem para a ec-sistência do ser-aí como sua essência. Este destino acontece como a clareira do ser, forma sob a qual o destino é. Ela garante a proximidade ao ser. Nesta proximidade, na clareira do «aí», mora o homem como o ec-sistente, sem que já hoje seja capaz de experimentar propriamente este morar e assumi-lo»[9]. A partir da elegia Retorno (1943) de Hölderlin, Heidegger observa que esta proximidade do ser «é percebida numa linguagem mais radical [que a de Ser e Tempo] e nomeada a «pátria» a partir da experiência do esquecimento do ser». Pátria «é pensada aqui num sentido mais originário, não com acento patriótico, nem nacionalista, mas de acordo com a história do ser. Mas a essência da pátria é, ao mesmo tempo, nomeada com a intenção de pensar a patridade do homem moderno a partir da história do ser»[10]. Nietzsche, embora tenha sido o último a experimentar a aptricidade, foi incapaz de encontrar, no seio da Metafísica, outra saída a não ser a inversão da Metafísica. Hölderlin, pelo contrário, espera que os seus contemporâneos reencontrem o lugar do seu desbobramento essencial. Não o procura no egoísmo do seu povo, mas encontra-o a partir da condição dos seus contemporâneos fazerem parte do Ocidente. O Ocidente não é pensado regional e geograficamente, enquanto o ocidental se opõe ao oriental, nem sequer é pensado como a Europa. O Ocidente é pensado na perspectiva da história universal, a partir da proximidade com a origem. Não se trata, portanto, de restabelecer o mundo no modo de ser alemão, mas é dito aos alemães que, em verdadeiro universalismo, contribuam para o seu restabelecimento. «A pátria deste morar historial é a proximidade do ser»[11]. Como escreve Heidegger:

«É nesta proximidade que se realiza, — caso isto um dia aconteça — a decisão se e como o Deus e os deuses se recusam e a noite permanece, se e como amanhece o dia do sagrado, se e como, no surgimento do sagrado, pode recomeçar uma manifestação do Deus e dos deuses. O sagrado, porém, que é apenas o espaço essencial para a deidade, — o qual, por sua vez, novamente apenas garante uma dimensão para os deuses e o Deus —, manifesta-se somente, então, em seu brilho, quando antes e após longa preparação, o próprio ser se iluminou e foi experimentado em sua verdade. Só assim começa, a partir do ser, a superação da apatridade, na qual erram perdidos, não apenas os homens, mas também a essência do homem»
[12].

A apatridade reside, conforme diz Heidegger, no abandono ontológico do ente e, como tal, é o sinal do esquecimento do ser. Daqui resulta que a verdade do ser permanece impensada. «O esquecimento do ser manifesta-se indirectamente no facto de o homem sempre considerar e trabalhar só o ente. E, como nisto não pode evitar de ter o ser na representação, também o ser é explicado apenas como o «mais geral» e, por conseguinte, o que engloba o ente ou como criação do ente infinito ou ainda como produção de um sujeito finito. Ao mesmo tempo, «o ser», desde a Antiguidade, situa-se em lugar «do ente». E vice-versa, este em lugar daquele; ambos acossados numa estranha e não pensada confusão»
[13].

«O ser enquanto destino que destina verdade permanece oculto. Mas o destino do mundo se anuncia na poesia, sem que ainda se torne manifesto como a história do ser»[14]. E é na poesia de Hölderlin que se exprime o pensamento universal e radical. «A apatridade torna-se um destino do mundo»[15].

A noção de pátria de Guerra Junqueiro parece não ter nada a ver com a noção de pátria que Heidegger explicita a partir da poesia de Hölderlin. De certo modo, assim é de um ponto de vista substancial, mas se levarmos em conta que para Guerra Junqueiro o ser é Deus, então torna-se possível pensar a apatridade do homem moderno como uma manifestação do esquecimento de Deus como ser absoluto. O homem moderno encontra-se perdido no seio das coisas intramundanas, como se elas fossem as coisas verdadeiramente importantes nesta vida. Ao alienar-se neste mundo do «Deus Milhão», o homem afasta-se da sua própria essência e, por conseguinte, de Deus. A apatridade é pensada em Guerra Junqueiro como afastamento e esquecimento de Deus e da própria essência do homem. Esta noção encontra-se explicitada na obra poética de Guerra Junqueiro — Finis Patriae.

Diz Guerra Junqueiro: «O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar»[16]. Em relação a Camões, diz o Poeta: «Amou a pátria na humanidade, a humanidade no Universo, e o universo em Deus»[17].

Muitos emigrantes, depois de uma longa permanência num país distante e estranho, onde eram tratados como forasteiros, desejam regressar à sua pátria, à sua terra natal, quanto mais não seja para terminar os seus últimos dias de vida e serem enterrados em solo amigável. Mas até mesmo a pátria a que regressam já não é a mesma donde partiram há muito tempo. Dessa pátria velha já nada existe: o que existe é algo que é semelhante em todos os lugares do mundo, devido à globalização económica e tecnológica. O desenraizamento é uma condição generalizada do homem que perdeu a memória. Para onde quer que vá esse homem é sempre um apátrida.

5. O REGRESSO À LÍNGUA. A experiência do regresso à língua foi vivida intensamente por Adorno, quando regressa à Alemanha após o seu exílio:

«A resolução do retorno à Alemanha não foi motivada simplesmente por uma necessidade subjectiva — embora eu não a negue —, por saudades da terra [Heimweh]. Também um factor objectivo se fazia presente: o idioma. Não só porque na língua recém-adquirida nunca conseguimos expressar-nos com todas as nuances e no ritmo do fluxo dos pensamentos; antes porque a língua alemã possui, evidentemente, uma peculiar afinidade electiva com a filosofia e nomeadamente com o momento especulativo que tão facilmente é suspeito de perigosamente obscuro no Ocidente e não sem fundamento»[18].

Guerra Junqueiro escreve: «O canto, matemática viva, eis o revelador da natureza, a língua suprema do Universo»
[19]. A oração é a única fala capaz de escutar o enigma do Ser. Até mesmo a língua materna já não é a mesma: as suas palavras já não dizem as mesmas coisas que diziam quando a abandonaram há muito tempo. A língua(gem) está em perigo.

Em qualquer numa dessas tentativas de regresso a algo que se perdeu há muito tempo, o peregrino sente-se sempre um estranho em terras estranhas. Esta apatridade é, conforme viu Heidegger, a condição fundamental do homem moderno — desse homem que não tem abrigo em parte alguma. Então o que resta ao peregrino que queira regressar realmente ao lar? Restam-lhe apenas memórias adormecidas, recolhidas dentro de si mesmo, que ele procurará relembrar para não as abandonar, também elas, ao esquecimento.

6. O REGRESSO À SI MESMO. Quem queira regressar ao lar deverá contentar-se em acordar memórias adormecidas. O regresso ao lar é uma lembrança que confronta o peregrino consigo mesmo e com o seu destino irremediável — a morte.

O regresso ao lar é acordar lembranças de coisas que se perderam irremediavelmente no passado. Recordar o passado com saudade é confrontar-se com a morte eminente. A recordação é o último caminho que o peregrino percorre no leito da morte. É, durante esse percurso, que ele se lembra de Deus, com esperança. É sobejamente conhecida a tese de Guerra Junqueiro segundo a qual só se atinge a individualidade mediante a experiência da dor e do sofrimento: «A dor é a escada de fogo que nos conduz à vida eterna»[20].

Esta mesma tese foi contemporaneamente retomada por Konrad Lorenz numa perspectiva etológica, para denunciar uma das doenças da civilização técnica moderna. Como resultado da concorrência entre os homens, propulsionada por interesses comerciais e económicos, «a precipitação angustiante e a angústia precipitada contribuem para roubar ao homem as suas propriedades essenciais»[21]. Durante o processo de humanização, o momento decisivo foi talvez «aquele em que o ser, até aí explorador curioso do mundo ambiente, se descobriu a si mesmo como objecto de investigação. [...] Um ser, que ainda não tem noção da própria existência, é incapaz de desenvolver o pensamento conceptual, a linguagem, a consciência moral e responsável. Um ser, que deixa de reflectir, está em perigo de perder todas estas faculdades e funções especificamente humanas»[22]. Ora, na civilização técnica, «um dos piores efeitos da agitação, ou talvez directamente da precipitação geradora da angústia, é a manifesta incapacidade dos homens actuais para estarem a sós consigo mesmo, ainda que seja apenas por breves momentos. Evitam, com aplicação aflitiva, todas as ocasiões de recolhimento e de meditação, como se temessem que a reflexão lhes pudesse apresentar um terrível auto-retrato [...]»[23]. A necessidade de ruído manifestada pelo homem moderno mais não é que a tentativa desesperada de evitar «cair, por um instante, no perigo de se encontrar consigo mesmo»[24]. O tempo perdido a seguir as emissões publicitárias embrutecedoras da televisão ou agarrado ao telemóvel só pode ser explicado como um meio de reprimir a reflexão.

Lorenz mostrou que, devido à progressiva dominação técnica da natureza, o homem moderno, deslocou o mecanismo da economia prazer-desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando. «A crescente intolerância para com o desprazer — conjugada com a atenuação do poder atractivo do prazer — induz os homens a perder a capacidade de empreender trabalhos difíceis, cuja promessa de prazer reside no resultado posterior. Origina-se assim uma exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam»[25], de resto alimentada e incrementada pelos produtores e pelas empresas comerciais. Este esforço imoderado para evitar a todo o custo o menor sentimento de incomodidade impossibilita inevitavelmente certas formas de prazer. Ao reprimir a hipersensibilidade ao sofrimento, o homem moderno vedou a si mesmo o acesso à alegria: «Conhece o gozo, mas não a alegria». «A crescente intolerância actual a respeito do sofrimento transforma os altos e os baixos da vida humana, comandados pela natureza, em superfície artificialmente nivelada; das grandes vagas, com suas cristas e depressões, faz uma vibração a custo perceptível; da luz e da sombra, origina um cinzento uniforme. Numa palavra, prepara um tédio mortal»[26]. Enfim, um homem que foge da sua própria sombra!

Um tal homem já não sabe o que significa verdadeiramente a peregrinação. Sem reflexão não há divagação ou mesmo errância. O homem actual agita-se freneticamente, mas não sabe caminhar. Neste sentido, o peregrino de Guerra Junqueiro é muito mais que um tipo literário; é fundamentalmente a denúncia da neurastenia do homem moderno.

7. O REGRESSO A DEUS. Com a morte a bater à porta, o peregrino descobre Deus e essa descoberta permite-lhe transformar a saudade daquilo que já não é nem pode vir a ser na esperança daquilo que, embora ainda não seja, poderá vir a ser — a morada de Deus.

Foi preciso percorrer um longo caminho cheio de percalços para que o peregrino, nas suas vãs tentativas de regressar ao lar, aqui e agora, na Terra, tenha chegado à conclusão que o melhor caminho é o Caminho do Céu. Libertando-se dos monstros que o perseguem, ele pode vir a entrar na morada de Deus, onde finalmente encontrará tudo aquilo que queria encontrar ainda em vida, aqui na Terra, em comunhão santa com Deus.

Deus é a única memória viva infinita capaz de recuperar e salvar plenamente, na sua eterna morada, tudo aquilo que se perdeu e se sofreu aqui na Terra. Deus é a única esperança — a esperança de uma vida plenamente reconciliada. Os maus momentos serão perdoados e esquecidos e os bons momentos serão glorificados numa vida eterna, na qual Deus recupera plenamente a sua santidade em comunhão santa com a sua criação espiritual.

Pena é que Guerra Junqueiro não tenha encarado seriamente a ressurreição dos corpos! Só nesse caso a redenção poderá ser plena e total no Futuro eterno de Deus...

O ADVENTO DO PENSAMENTO. O regresso ao lar deve converter-se no regresso do lar. Entendemos esse regresso do lar como irrupção no presente de um Pensamento Independente intimamente ligado a uma Experiência Viva. Pensamos o advento do pensamento na linha de Walter Benjamin:

«A consciência de fazer explodir a continuidade da história é própria das classes revolucionárias no momento da acção. A grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia em que começa o novo calendário funciona como um compilador histórico do tempo. E é, no fundo, o mesmo dia que volta sempre sob a forma dos dias de festa, os quais são dias de comemoração. Pode por isso dizer-se que os calendários não contam o tempo como os relógios. São monumentos de uma consciência da história cujo menor traço parece ter desaparecido na Europa desde há cem anos. A revolução de Julho comportou ainda um incidente em que uma tal consciência pôde afirmar os seus direitos. Na tarde do primeiro dia de combate, verificou-se que em vários locais de Paris, independentemente e no mesmo momento, se tinha disparado tiros contra os relógios murais»[27].

Parodiando uma figura nacional — o regresso de Dom Sebastião, diremos simplesmente que esse «regresso» é o advento do pensamento independente pensado em Língua Portuguesa. Inversão total: o Quinto Império aguardado pelos que já não escutam o pensamento há muito tempo é o advento universal do Pensamento. Fernando Pessoa é esquecido em nome daquilo que há de mais autêntico: conduzir a língua portuguesa à clareira onde se torna possível pensar novamente. A memória viva do passado deixa-se banhar pela luz que irradia do novo tempo: o tempo do advento do pensamento abrigado e resgatado na língua portuguesa. As Descobertas Ultramarinas testemunham o potencial vivo da língua portuguesa, em especial aquilo que há de mais autêntico numa língua: traduzir o pensamento universal. E, nesta tarefa, é necessário resgatar Guerra Junqueiro da prisão em que o esconderam aqueles que nunca souberam o que é pensar sem cair no ardil nacionalista da mitologia mais grosseira: o primitivismo pátrio!

Contra Adorno, e levando em conta a teoria da linguagem de Steiner, mostraremos que a língua portuguesa é tanto ou mesmo mais especulativa que a língua alemã. Nesta tentativa procuraremos salvaguardar a Filosofia dos nacionalismos primários, devolvendo-a ao seu solo pátrio: a universalidade da Civilização Ocidental.

Auschwitz é mais que o holocausto: é a experiência universal do sofrimento que nos recorda a tarefa do pensamento independente, tal como a estabeleceu Adorno: «Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação»[28]. Estas palavras fazem eco de outras, não menos enfáticas, pronunciadas por Walter Benjamin: «O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer»[29].

Horkheimer reforça esta necessidade de manter viva a memória dos que não tiveram uma morte digna, atribuindo à filosofia a tarefa de traduzir o seu sofrimento numa linguagem da resistência:

«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania»[30].

Há uma estrofe do poema Falam Estátuas D’Heróis de Guerra Junqueiro que nos convoca para a tarefa de pensar e salvar o mundo contra o Deus Milhão:

«Mas nem no túmulo cativos,
dormimos bem!... Repouso atroz!...
Porque, ante os lances aflitivos,
Nós afinal somos os vivos, E os mortos pútridos sois vós!»
[31]

E, no poema Uma Voz na Treva, lança o desafio:

«Calou-se tudo. A terra é torva... o céu vulcânico...
E a alma, pálida, à luz verde-negra do luar,
Pressente, na mudez cavernosa do pânico,
Que a boca dos trovões profundos vai falar...»
[32]

Num poema simplesmente intitulado Os Mortos, Hölderlin diz simplesmente isto:

«Um dia fugaz eu vivi e cresci entre os meus,
Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe
E no entanto, vós que dormis, ‘stais-me acordados cá dentro do peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce»
[33].

E o poema Recordação de Hölderlin termina assim:

«O rio acaba. Mas o mar tira
E dá memória,
E o amor também prende diligente o olhar.
Mas o que fica, os poetas o fundam»
[34].

“A boca dos trovões profundos vai falar”. “Mas o que fica, os poetas o fundam”. Dois versos enigmáticos de dois poetas: o primeiro de Guerra Junqueiro, o segundo de Hölderlin. Quem é a boca dos trovões profundos que vai falar? O Poeta? Deus? A Morte? Os poetas fundam o que fica. Mas o que é que fica? A Recordação? Ou simplesmente o nada aniquilador? O esquecimento cósmico.

[1] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.70.
[2] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.71.
[3] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.73.
[4] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.79.
[5] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.82.
[6] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.40.
[7] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, pp.44-45.
[8] HORKHEIMER, Max – Eclipse da Razão, p.138.
[9] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.78.
[10] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.78.
[11] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.80.
[12] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.80.
[13] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.80-81.
[14] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.81.
[15] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.81.
[16] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (Raul Brandão). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.42.
[17] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (A Festa de Camões). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.94.
[18] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.133-134.
[19] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (O Cantador). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.26.
[20] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (Justino de Montalvão). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.70.
[21] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.34.
[22] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.34.
[23] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.34.
[24] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.35.
[25] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.42.
[26] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.43.
[27] BENJAMIN, Walter — Teses sobre a Filosofia da História. In BENJAMIN, Walter — Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p.167.
[28] Citado por WOLIN, Richard — Labirintos: Em torno a Benjamin, Habermas, Schmitt, Arendt, Derrida, Marx, Heidegger e outros. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p.142.
[29] BENJAMIN, Walter — Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’Água, p.160.
[30] HORKHEIMER, Max — Eclipse da Razão. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976, p.172.
[31] JUNQUEIRO, Guerra — Finis Patriae. Porto: Lello & Irmão Editores, 1967, p.30.
[32] JUNQUEIRO, Guerra — Finis Patriae. Porto: Lello & Irmão Editores, 1967, p.35.
[33] HÖLDERLIN — Poemas. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1991, p.292-293.
[34] HÖLDERLIN — Poemas. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1991, p.428-429.
(Leitura interrompida devido à nulidade da alma lusitana, sempre invejosa e pronta a matar...)
J Francisco Saraiva de Sousa

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