quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Estética e Barbárie Cultural

Nas suas "Teses sobre a Filosofia da História", Walter Benjamin escreveu: «Não há nenhum documento da cultura que não seja também documento de barbárie». Ora, no nosso tempo, a cultura oficializada é a própria barbárie. A teoria crítica é obrigada a rever profundamente a sua estética.
A teoria estética de Marcuse procura mostrar que a arte pode contribuir para a luta desesperada pela transformação do mundo, uma vez que representa o objectivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a autonomia do indivíduo. Deste modo, a teoria estética de Marcuse continua ligada à teoria marxista da sociedade, que «compreende a sociedade estabelecida como uma realidade que deve ser mudada». Após o colapso do sistema soviético, as chamadas "sociedades livres" revelam o seu verdadeiro rosto: a corrupção das suas pretensas elites que abusaram do reforço do poder do Estado e das suas tarefas sociais para enriquecer em termos privados. É esta sociedade mais cleptocrática do que democrática que urge transformar, de modo a garantir a qualidade da democracia. A "cultura" destas pseudo-elites é a barbárie. A linguagem política é, actualmente, mentirosa e abusa dos cálculos "falsificados" para credibilizar a mentira. A barbárie também é política: esta geração de políticos sem ideias é o horror.
Contudo, na actual sociedade de consumidores (Hannah Arendt), «os seres humanos administrados reproduzem […] a própria repressão e renunciam à ruptura com a realidade». Nesta situação de integração social e cultural total, tanto a teoria crítica como o seu projecto político são forçadas a mudar teoricamente de rumo. Neste contexto social de ofuscamento e de paralisia da crítica, Marcuse procurou pensar a afinidade e a oposição entre a arte e a praxis radical: «Ambas visionam um universo que, embora provenha das relações sociais existentes, também liberta os indivíduos destas relações». A arte e a política visam a libertação e, nesse sentido, a arte como negação da realidade estabelecida antecipa ilusoriamente um outro princípio de realidade que guia a praxis revolucionária. Para Marcuse, a "sociedade socialista" não resolve todos os conflitos entre o universal e o particular, entre os seres humanos e a natureza, entre os indivíduos uns com os outros: «O socialismo não liberta Eros de Thanatos, nem poderia fazê-lo». Esta incapacidade de vencer definitivamente as forças da morte impele «a revolução para além de todo o estado de liberdade conseguido». Isto significa que a revolução nunca é definitiva, mas sempre permanente. É sempre «a luta pelo impossível, contra o inconquistável cujo domínio talvez possa, no entanto, ser reduzido». Como escreve Marcuse:
«A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na realidade social, sendo, no entanto, a sua outra face. A arte abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária».
A arte antecipa um outro princípio da realidade mais livre e pleno, que a praxis radical deve procurar realizar: «A autonomia da arte reflecte a ausência de liberdade dos indivíduos na sociedade sem liberdade». A arte mostra a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva: «Se as pessoas fossem livres, então a arte seria a forma e a expressão da sua liberdade». Mas, como as pessoas não são livres e autónomas, «a arte continua marcada pela ausência de liberdade; ao contradizê-la, adquire a sua autonomia. O nomos a que a arte obedece não é o do princípio da realidade estabelecida, mas a sua negação».
A arte antecipa, no seio da sociedade repressiva, a sua negação, isto é, a sociedade livre, embora de forma necessariamente sublimada e alienada. O que a praxis radical procura realizar é o que já está esboçado na forma estética, embora de forma sublimada e irreal. A arte é, de certo modo, transcendência, portanto, utopia. Mas «a utopia na grande arte nunca é simples negação do princípio de realidade (senão seria abstracta, má-utopia), mas a sua preservação transcendente em que o passado e o presente projectam a sua sombra na realização. A autêntica utopia baseia-se na memória».
Se «toda a reificação é, como afirmaram Adorno & Horkheimer, um esquecimento», então a arte é o contrário de toda a reificação: a arte é memória: memória do sofrimento e do terror. «A arte combate a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada. (...) O esquecer os sofrimentos do passado e as alegrias passadas torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva. Pelo contrário, a lembrança estimula o impulso pela conquista do sofrimento e da permanência da alegria».
Porém, sob o princípio de realidade estabelecida, «a força da lembrança é frustrada: a própria alegria é eclipsada pela dor» e pela gratificação. A inexorabilidade deste eclipse da lembrança é uma questão aberta, porque «o horizonte da história ainda está aberto. Se a lembrança das coisas passadas se tornasse um motivo poderoso na luta pela mudança do mundo, a luta seria empreendida para uma revolução até aqui suprimida nas revoluções históricas anteriores».
Nos seus escritos de juventude, Marcuse tinha elaborado o conceito do carácter afirmativo da cultura e, muito mais tarde, reconheceu que uma civilização do prazer pode constituir um obstáculo à tarefa da libertação. Embora não tenha sido sempre claro a este propósito, Marcuse sabia que a gratificação imediata e a educação sem esforço paralisam a crítica e a preparação subjectiva para a Grande Recusa. Ora, este reconhecimento inviabiliza a «dimensão estétca» pensada na sua verdade como a vitória de Eros sobre Thanatos, a qual mais não é do que o próprio domínio de Thanatos. Eros é domesticado e a sexualidade plástica torna-se um obstáculo à luta pela autonomia.
Esta observação crítica aponta para uma outra leitura do pensamento estético e político de Herbert Marcuse, num confronto com as estéticas pós-modernas, levando em conta a estética da recepção de W. Iser e de H.R. Jauss, a teoria da vanguarda de Peter Bürger e a sua crítica da estética idealista, o conceito de soberania da arte de C. Menke, a ideologia estética de Paul de Man e o contributo fresco de Marshall Berman. A noção marcuseana de subjectividade rebelde pode funcionar como fio condutor, desde que reformulada em função dos modelos relacionais do Self, sem cair na tentação sofista do consenso universal de Habermas. Também no domínio estético a teoria crítica precisa mudar de rumo: a arte contemporânea tornou-se um feitiço! A Grande Recusa exige o resgate do Ocidente e a sua libertação de elementos estranhos! (Publicado em CyberCultura e Democracia Online.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Homo Religiosus e Habitação

«Entre os indígenas, nunca o lugar sagrado se apresenta isoladamente ao espírito. Ele faz parte de um complexo em que entram também as espécies vegetais ou animais que aí abundam em certas estações, os heróis míticos que aí viveram, vaguearam, criaram e frequentemente foram incorporados no solo, as cerimónias que aí se celebraram periodicamente e, enfim, as emoções suscitadas por este conjunto». (Lucien Lévy-Bruhl)
A filosofia do habitar confronta-se com diversos inimigos, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo político e o inimigo sociológico.
Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa a colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria cultura, acabou por conduzir à perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram a liturgia cósmica e, por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismo para melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estáveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e os seus valores intrínsecos: a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invasão alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidade e parece ser mais um fantasma sociológico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo, bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.
HOMO RELIGIOSUS. A consciência mítica foi alvo da atenção de Rudolf Otto, Ernst Cassirer, James G. Frazer, Van der Leeuw, Lucien Lévy-Bruhl, Roger Callois e Mircea Eliade. O homem primitivo ou mesmo o homem pré-moderno é um homo religiosus, e a religião é, segundo a definição feliz de Peter Berger, "o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado", ou seja, "a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada". Como expoente máximo da auto-exteriorização do homem, a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro, a totalidade do ser, como humanamente significativo. O homem religioso é "sedento do ser" e o ser é, para ele, o próprio sagrado, tudo aquilo que se manifesta e se nos mostra por oposição ao profano. Quando tentou descrever "o algo inteiramente outro" (ganz andere) e totalmente diferente do mundo da vida diário e da natureza, Rudolf Otto acentuou que o numinoso impressiona o homem como um poder (majestas) esmagador e terrível (mysterium tremendum) e estranhamente fascinante (mysterium fascinans), diante do qual o homem tem o sentimento da sua profunda nulidade. Apesar desta ambivalência do sagrado, o homem primitivo só sabe viver no sagrado e, portanto, num Cosmos que o protege do Caos, num Nomos que o salvaguarda da Anomia. Por isso, a função principal do mito é revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: "o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos «começos»", ou seja, "o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer seja apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição". O homem primitivo é obrigado a recordar a história mítica da sua tribo, a iniciar-se nos seus mistérios e a reactualizar periodicamente grande parte daquilo que se passou ab origine, de modo a manter a ordem consagrada pelos Deuses no fabuloso tempo dos "começos", quando o Cosmos emergiu do Caos que continua a enfrentar como o seu terrível arqui-adversário. Refundar ritualmente o Cosmos é reerguer constantemente o escudo protector que defende o homem e o "nosso mundo" do terror da anomia e do Caos.
Neste universo religioso, Mircea Eliade soube destacar, no seu estado puro, o comportamento religioso em relação à habitação, e esclarecer a concepção do mundo que ele implica. A experiência religiosa pressupõe uma bipartição do mundo no sagrado e no profano, mas este dualismo ontológico não é um dualismo embriológico, porque o profano pode ser transfigurado e transmutado no sagrado pela dialéctica da hierofania e o sagrado transformado no profano pelos inúmeros processos de dessacralização. Toda a vida do homem arcaico é uma repetição ininterrupta de gestos inaugurados por outros que não eram homens. Isto significa que tudo o que ele faz, incluindo a construção de edifícios, já foi feito pelos deuses, antepassados e heróis míticos in illo tempore, aquando da criação do mundo.
Ora, esta repetição ritual ou reactualização de gestos paradigmáticos feitos ab origine revela uma "ontologia original" e, neste sentido, a concepção do mundo subjacente ao comportamento religioso em relação à habitação pode ser vista como uma ontologia (religiosa) do habitar. A noção de História, com o devir e a irreversibilidade do tempo, é absolutamente alheia a esta ontologia do habitar. Como escreve Mircea Eliade: "«Situar-se» num lugar, organizá-lo, habitá-lo, são acções que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Cosmos que se está pronto a assumir «criando-o»". Mas, de acordo com a ontologia arcaica, este Cosmos é sempre a repetição e reactualização ritual do Cosmos exemplar criado e habitado pelos Deuses in illo tempore. O Cosmos fabricado pelos homens participa da santidade da obra primordial dos Deuses. O "nosso mundo" é construído mediante uma repetição ritual da Cosmogonia.
1. O Espaço Sagrado. Para o homem religioso, o espaço é heterogéneo e, por isso, apresenta roturas e fissuras que possibilitam experienciar partes e sectores de espaço qualitativamente diferentes. Esta heterogeneidade espacial permite a experiência de um espaço sagrado, "forte e significativo", distinta da experiência de outros espaços não-sagrados, absolutamente amorfos, e constitui uma experiência primordial, homologável à fundação do mundo. A rotura operada no espaço pela manifestação de qualquer hierofania permite a constituição do mundo, no sentido de descobrir o ponto fixo, o eixo central de toda a orientação futura. A manifestação da hierofania rompe a homogeneidade do espaço, ao mesmo tempo que revela uma realidade absoluta: "A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo". Para o homem religioso, nada pode começar sem esta orientação prévia que implica a aquisição de um ponto fixo, o Centro do Cosmos, no qual procura estabelecer-se. Isto significa que, "para viver no mundo, é preciso fundá-lo": a descoberta e a projecção do Centro equivale à criação do mundo.
Em contrapartida, para o homem profano, como o homem das sociedades modernas, o espaço é homogéneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes e sectores do espaço. Apesar de ser um espaço homogéneo e carente de estrutura e, portanto, de diferenciação qualitativa, o espaço geométrico não deve ser confundido com a experiência do espaço profano que se opõe à experiência do espaço sagrado. A manifestação da hierofania revela um espaço sagrado, ao mesmo tempo que permite obter um ponto fixo e, portanto, a orientação futura na homogeneidade espacial caótica: o fundar o mundo e viver realmente no mundo. Ora, a experiência do espaço profano conserva a homogeneidade e a relatividade do espaço. Sem a obtenção de um ponto fixo, não é possível adquirir uma verdadeira orientação: o Cosmos estilhaça-se em "fragmentos de um Cosmos fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de "lugares" mais ou menos neutros onde o homem (profano) se move, forçado pelas obrigações de toda a existência integrada de uma sociedade industrial".
2. A Casa. Toda a construção ou edificação humana tem como modelo exemplar a Cosmogonia. A instalação num território desconhecido e a construção de uma morada exigem uma decisão vital: assumir a criação do mundo que se «deliberou» habitar, imitando a obra dos Deuses. Para o homem religioso, "a casa é sempre santificada", porque constitui uma imago mundi e o mundo é uma criação divina. A homologação da morada ao Cosmos é feita ritualmente através de dois processos: 1) pela projecção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, no caso de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis Mundi, no caso de uma habitação familiar; e 2) pela repetição, através de um ritual de construção, do acto exemplar dos Deuses. O primeiro processo "cosmifica" um espaço pela projecção dos horizontes ou pela instalação do Axis Mundi. Toda a habitação humana comporta um "aspecto sagrado pelo facto de reflectir o mundo" e, na sua estrutura, revela-se um simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi e, como tal, situa-se simbolicamente no "Centro do Mundo".
Assim, por exemplo, como mostrou Eliade, a morada das populações primitivas árcticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis Mundi, isto é, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo que ligam a Terra ao Céu. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: "a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e são designados por este nome". Na base deste poste central, têm lugar os sacrifícios em honra do Ser Supremo celeste. Toda a morada humana repete a cosmogonia, situa-se perto do Axis Mundi e, por tudo isso, representa e reflecte o Cosmos: o seu habitante vive implantado na realidade absoluta.
A construção de uma casa é sempre a fundação de um cosmos num caos e, por isso, a casa é uma imagem do mundo na sua totalidade, uma imago mundi. A sua construção é a repetição da criação do mundo, uma realização constantemente renovada e reiterada da obra primigénia dos Deuses. A organização humana do espaço é, pois, a repetição de um acto dos tempos primitivos: "a transformação do caos em cosmos por meio do acto divino da criação". A morada humana é o microcosmos que o homem constrói imitando a criação-arquétipo dos Deuses. Para o homem arcaico, há uma homologia entre a criação do mundo e a construção da casa, porque, "organizando um espaço, se reitera a obra exemplar dos Deuses". Cosmificar é consagrar e consagrar é repetir ritualmente a cosmogonia. Mas o homem arcaico vai mais longe e "cosmisa" o próprio corpo: "«Habita-se» o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si mesmo". O território habitado, o Templo, a Casa e o Corpo são Cosmos dotados de uma "abertura superior" que lhes possibilita comunicar com o outro nível transcendente, o sagrado.
3. O Templo. O Templo é o lugar santo por excelência, a casa dos Deuses. Nas grandes civilizações asiáticas e judaico-cristãs, o Templo é simultaneamente uma imago mundi e uma reprodução terrestre de um modelo transcendente. O Templo constitui uma imago mundi, porque o mundo é obra dos deuses e, como tal, é sagrado. Porém, como lugar sagrado por excelência, o Templo "re-santifica continuamente o Mundo, porque o representa e contém ao mesmo tempo". Graças ao Templo, o mundo é re-santificado na sua totalidade e, deste modo, é continuamente purificado pela "santidade dos santuários". Desta diferença ontológica entre o Cosmos e a sua imagem santificada que é o Templo resulta a concepção de que a santidade do Templo "está ao abrigo de toda a corrupção terrestre", por causa do seu plano arquitectural ser obra dos Deuses e, por consequência, se encontrar muito perto dos Deuses no Céu.
Mircea Eliade recorre a textos bíblicos para mostrar que, para o povo de Israel, os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo, foram criados por Jeová desde a eternidade e foi Ele que os revelou aos seus eleitos, em especial Moisés, David e Salomão, para que fossem reproduzidos sobre a terra. A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso e a cidade de Jerusalém é a reprodução aproximada do modelo transcendente: a cidade pode ser maculada pelo homem, mas o seu modelo goza de uma existência espiritual, incorruptível e celeste. A basílica cristã e, mais tarde, a catedral, retomaram e prolongaram estes simbolismos da "geometria celeste" e a Igreja foi concebida como imitação de Jerusalém celeste. A arquitectura sacra retoma e desenvolve o simbolismo cosmológico e todos os rituais relativos aos Templos, às cidades e às casas derivam, em última análise, da "experiência primária do espaço sagrado".
4. A Cidade. Tal como o Templo ou a casa, a cidade que mais não é do que uma "grande casa" resulta de um acto consciente de fundação. O exemplo mais conhecido é o da fundação de Roma, que nos foi transmitido pela narrativa de Plutarco: "Segundo inúmeras tradições, a criação do mundo começou num centro e, por esta razão, a construção da cidade deve também desenrolar-se em volta de um centro. Depois de ter aberto um fosso profundo (fossa), Rómulo encheu-o de frutos, cobriu-o de terra, erigiu por cima dele um altar (ara) e traçou com o arado o sulco dos limites de protecção (designat moenia sulco). O fosso era um mundus e, como observa Plutarco, «deu-se a este fosso, como ao próprio universo, o nome de "mundo" (mundus). Este mundus era o lugar da intersecção dos três níveis cósmicos (a Terra, o Céu e o Inferno)». É provável que o modelo primitivo de Roma tenha sido um quadrado inscrito num círculo: a difusão extremamente extensa da tradição gémea do círculo e do quadrado leva a essa suposição" (M. Eliade).
A cidade é, portanto, uma cópia do cosmos, ou melhor, uma reconstrução do mundo, projectada, por meio do ritual de construção, no centro do cosmos e, tal como o Cosmos exemplar que se origina a partir do seu Centro, a cidade estende-se a partir de um ponto central que é como que o seu "umbigo", donde se projectam os quatro horizontes nas quatro direcções cardeais. A cidade é, portanto, a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Como já vimos, o "nosso mundo" é um mundo total e organizado num Cosmos, fundado pela imitação da obra exemplar dos Deuses. A cidade é precisamente o "nosso mundo" e, como tal, está sujeita a sofrer um ataque exterior que ameaça transformá-la num Caos. Os seus adversários são assimilados aos inimigos dos Deuses, os demónios, e sobretudo ao arquidemónio, o Dragão primordial vencido pelos Deuses nos começos dos tempos: "O ataque do «nosso mundo» equivale a uma desforra do Dragão mítico, que se rebela contra a obra dos Deuses, o Cosmos, e se esforça por reduzi-la ao nada. Os inimigos enfileiram entre as potências do Caos. Toda a destruição de uma cidade equivale a uma regressão ao Caos. Toda a vitória contra o atacante reitera a vitória exemplar do Deus contra o Dragão, isto é, contra o Caos" (M. Eliade).
Toda a habitação humana é consagrada pelo teofania (Robertson Smith) e, como espaço sagrado, está encerrada e protegida por um muro ou vedação. Este muro visa não só garantir a presença contínua de uma cratofania ou de uma hierofania no interior do recinto, como também preservar o próprio profano do perigo a que se exporia se ali penetrasse sem os devidos cuidados, porque o sagrado é perigoso. De modo similar, as muralhas da cidade, antes de serem defesa militar, são defesa mágica, porque garantem a manutenção, no meio de um espaço caótico, povoado de demónios e de larvas, de um espaço organizado, cosmicizado e, portanto, provido de um Centro. Segundo Eliade, o simbolismo do labirinto incluía também a ideia de defesa de um Centro: entrar num labirinto tinha o valor de uma iniciação. Em termos militares, o labirinto impedia ou, pelo menos, dificultava a penetração do inimigo no centro da cidade, cuja configuração reproduzia o próprio Cosmos, mas, em termos religiosos, a sua função era impedir o acesso da cidade aos espíritos de fora, aos demónios do deserto e à morte e, muitas vezes, a sua finalidade era defender um "centro". Neste caso, o labirinto representava o acesso iniciático à sacralidade, à imortalidade e à realidade absoluta: "O acesso ao "centro" equivale a uma consagração, a uma iniciação", cujo objectivo é produzir uma modificação radical do estatuto religioso e social da pessoa que vai ser iniciada, isto é, uma mutação ontológica da condição existencial do neófito que, deste modo, abandona uma existência profana e ilusória e adquire uma existência real, durável e eficaz.
5. Conclusões Provisórias. Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser estudadas pela antropologia filosófica. A dessacralização do mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente nos universos imaginários". Ora, como mostrou Bachelard, as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o "traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são os seguintes:
1) A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referência e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.
2) A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.
3) A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4) A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família. Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensação humana de amparo. O lar é um espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma uma noção antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa terra devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo "habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude de esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 5 de outubro de 2008

Degradação da Universidade

«Baudelaire possui pouco daquilo que se podem considerar as condições materiais do trabalho intelectual: da biblioteca à casa própria, não houve nada a que não tivesse de renunciar no decurso da sua existência instável, dentro e fora de Paris. Em 26 de Dezembro de 1853 escreve à mãe: "Estou tão acostumado ao sofrimento físico, sei tão bem o que é ter de viver com umas calças rotas, um casaco que deixa passar o vento e duas camisas, tenho tanta prática a atamancar sapatos furados com palha ou mesmo com papel, que já quase só sinto como sofrimentos os que são de ordem moral. De qualquer modo, tenho de confessar que cheguei a um ponto em que, por receio de rasgar ainda mais as minhas coisas, deixei de fazer movimentos bruscos e de andar muito a pé"». (Walter Benjamin, A Modernidade)
As diversas versões conhecidas do Curriculum Vitae de Walter Benjamin são documentos literários que abordam os seus projectos de pesquisa, com referência a alguns dos seus trabalhos publicados mas sobretudo aos trabalhos em curso ou meramente projectados. Como qualquer estudante recém-licenciado, Benjamin não tinha "experiência profissional" ou, como se diria hoje, não tinha "emprego": Benjamin foi um eterno desempregado, um "deserdado" no sentido de Baudelaire, até à sua estranha morte, coberta de mistério, dependente dos seus amigos e das "mesadas" do pai, como confessa numa carta dirigida a Scholem. E como qualquer verdadeiro universitário, Benjamin sonhava com uma "carreira" universitária, ser eternamente professor e aluno, que lhe garantisse a estabilidade material necessária para levar a cabo os seus projectos de pesquisa, no seio de uma comunidade universitária vista como "lugar da revolução espiritual permanente". Esse lugar no seio da comunidade universitária foi-lhe negado por homens cinzentos, pardacentos e invejosos e o nazismo consumou essa negação, roubando-lhe a vida. De certo modo, Benjamin sabia desde muito cedo que a universidade já não obedecia à lógica da sua "verdadeira autonomia", mas que estava ao serviço do "espírito profissional" que tomou conta das próprias associações livres de estudantes. Benjamin não tinha um curriculum vitae, no sentido burocrático (Weber) e burguês da expressão, porque não tinha nem desejava ter experiência profissional; era a promessa de um projecto curricular de pesquisa permanente que deveria desabrochar no seio de uma comunidade unida pela Filosofia: a Universidade como "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade", liberta da "ideologia da profissão" que algema a "consciência intelectual", a única capaz de "abandonar a segurança burguesa" e dedicar-se ao conhecimento genuíno, elevando-o à "universalidade", sob "a forma de filosofia".
No ensaio Das Leben der Studenten, Benjamin elabora a antítese entre o "espírito criativo" e o "espírito profissional", a qual permite pensar a oposição entre a verdadeira universidade e a falsa universidade, como lhe chamo, a noção ideológica e catastrófica da ciência como "escola profissional" e o destino da Universidade na nossa época metabolicamente reduzida. Nesta dialéctica sem compromissos, em que os elementos da contradição se excluem mutuamente, o espírito profissional deforma e ameaça aniquilar definitivamente o espírito criador, convertendo a universidade no lugar privilegiado em que se opera "a deformação do espírito criador em espírito profissional", levada a cabo quer no interesse do Estado quer no interesse das empresas, mas sempre contra a "ideia de saber" que funda originariamente a universidade. Isto significa que o processo de degradação do ensino universitário se funda na metamorfose perversa da noção de ciência, aplaudida pelo positivismo lógico e pela filosofia analítica e tematizada por Thomas S. Kuhn, sem disso ter consciência, na sua teoria da estrutura das revoluções científicas, onde converte a epistemologia em "sociologia da ciência": a apologia envergonhada da organização social da ciência e da pesquisa científica. Ao chamar a atenção para esta oposição, a crítica redentora limita-se a "apontar para a crise que, instalada na essência das coisas, leva a uma decisão (política) à qual os cobardes sucumbem e os corajosos se subordinam" e, deste modo, liberta "o futuro da sua forma presente desfigurada, através de um acto de conhecimento".
1. Missão da Universidade: o Espírito Criador. Para elaborar o conceito de verdadeira universidade, cujos vestígios recuam e se perdem cada vez mais no passado, é necessário descontextualizar o texto orientador de Benjamin, dando-lhe a "actualidade" que ele merece, isto é, resgatando-o do passado. A universidade funda-se originariamente na "ideia de saber", associada ao ideal de uma "vida justa". Pela sua própria essência, a ciência livre, no seu sentido não-positivista, "não admite que o pesquisador se desligue dela": a prática científica obriga-o a "ser sempre professor" e, simultaneamente, aluno. Sócrates já professava que saber é ser capaz de ensinar e Bachelard acrescenta que ensinar é ser capaz de aprender. Isto significa que o professor universitário é, simultaneamente, professor perante os seus estudantes que deve iniciar nas "coisas do conhecimento" e aluno face à realidade em processo de devir constante: o conhecimento não pode petrificar e perder-se num "amontoado de conhecimentos" não articulados pela filosofia, mas deve acompanhar ou até mesmo antecipar-se aos desafios reais.
A comunidade académica que é uma comunidade de homens criativos "eleva todo o estudo à universalidade, sob a forma de filosofia". Esta universalidade é alcançada quando a comunidade académica, articulando professores e estudantes, se compromete em ser, ela própria, "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade, não nos termos limitados da filosofia de uma determinada ciência, mas em relação às grandes questões metafísicas" da tradição ocidental. Só deste modo pode a ciência livre estabelecer uma relação privilegiada da "profissão" com a vida: não uma vida profissional tout court, mas uma "vida aprofundada" aberta à cidadania mundial. Como lugar da "revolução espiritual permanente", a universidade fornece e difunde um "acervo teórico e metodológico" de conhecimentos, bem como uma "experimentação cautelosa", que possibilita colocar, de modo abrangente e profundo, os novos questionamentos da realidade em devir, e fornecer uma "orientação" de vida num mundo cada vez mais global. A universidade tem como missão incentivar, galvanizar e fomentar o espírito criativo nos seus membros, porque este espírito constitui o "grande transformador" que traduz em "questões científicas", a partir de uma abordagem filosófica mais abrangente, as novas ideias que costumam "despertar mais cedo na arte e na vida social do que na ciência".
Salvaguardar este núcleo de sabedoria significa reconquistar e garantir a autonomia. Na sua obra "La Trahison des Clercs", Julien Benda afirma formalmente uma dupla moral: "a do poder para os Estados e povos, a do humanismo cristão para os intelectuais". Para Benda, a função dos intelectuais no âmbito da história universal sempre foi a de "propagar os valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo". A traição dos intelectuais reside, segundo Benda, no facto de se terem passado para o lado do poder, a sua "paixão política". Ora, como recorda Benjamin na peugada de Berl, o "homem do espírito" de Benda mais não é do que a "aparição invocada do anacoreta, do clérigo medieval na sua cela", porque a paixão política esteve sempre presente na actividade filosófica: a função do intelectual é precisamente fazer a "crítica radical da ordem estabelecida" e é, nessa actividade, que se revela a sua autonomia, o seu compromisso com o mundo. A filosofia de Marx mais não é do que a filosofia do e no mundo e para o mundo: ela é a promessa sempre renovada de um mundo melhor. Numa sociedade que dispensa o pensamento e se entrega ao consumismo voraz, como a actual sociedade, compete ao Estado renovado zelar pela autonomia dos seus intelectuais e não permitir que os restantes poderes, nomeadamente os económicos e os partidários, interfiram no funcionamento das universidades, o lugar onde o espírito criativo e crítico se abriga, garantindo a base económica do exercício livre do pensamento.
2. Espírito Profissional e Destruição da Universidade. A falsa universidade instalou-se paulatinamente em nome de um novo princípio que não tem nada de inocente: a universidade deve ajudar a preparar as pessoas para uma profissão. No «princípio», era o Estado/Nação, o Estado Moderno, que, no seu processo gigantesco de burocratização, precisava de recrutar e formar os seus funcionários públicos: "a administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada, que é caracteristicamente moderna, pressupõe habitualmente um treino especializado e completo" (Max Weber). Para alcançar esse objectivo, o Estado Moderno retirou o poder eclesiástico das universidades e subordinou-as ao governo e ao Ministro que tutela o ensino superior, convertendo-as, como disse Althusser, em "aparelhos ideológicos de Estado": os professores, bem como potencialmente os estudantes, foram transformados em funcionários públicos que, em nome da eficácia do princípio burocrático, se esquivam das consequências de uma "vida intelectual crítica", com a qual deviam estar comprometidos, para ajudar a perpetuar o sistema de dominação burocrática vigente, através da aprendizagem técnica especial que envolve basicamente jurisprudência ou administração pública ou privada e muita "treta". A universidade começa assim a ser vista como uma "corporação de funcionários públicos e de portadores de diploma académico", deixando para trás a ideia de uma "comunidade de investigadores".
Como diz Weber, "a ocupação de um cargo é uma profissão" e, por conseguinte, para desempenhar qualquer cargo público ou privado, as pessoas precisam obter um diploma que garanta que foram submetidas a uma aprendizagem técnica especializada, isto é, que conhecem e dominam um conjunto de procedimentos ou de regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, que certificam as suas competências. O "medo do futuro" e da solidão leva os estudantes a pactuar com o inevitável espírito filisteu predominante, personificado na figura do "velho", e a comunidade académica rende-se à "segurança burguesa" e não resiste ao estado de coisas estabelecido: a universidade converte-se numa fábrica que distribui diplomas académicos. E, tal como sucedia no tempo de Benjamin, "os professores e os estudantes passam uns pelos outros sem nunca se verem", e actualmente os estudantes passam pela universidade sem frequentar as aulas e sem terem uma vida académica de esforço: a universidade é, no presente, uma instituição que passa arbitrariamente diplomas, enquanto os seus supostos estudantes se divertem nas praxes pseudo-académicas do vício. O estudo esforçado foi substituído pelo consumo de droga, álcool, sexo e comportamentos impróprios. Retomando uma ideia de Baudelaire, poderíamos dizer que a actual comunidade social de estudantes que parasita ocasionalmente os espaços universitários para fins recreativos está "infectada" de pseudo-democracia e de sífilis. A sua ideia obsessiva de "aproveitar" a juventude traduz na prática a deformação e o despedaçamento do "eros espiritual" e a sua conversão em eros sexual: as "prostitutas" viciadas em sexo e drogas estão sempre já presentes, não nas ruas, mas no novo estilo de vida estudantil, internacionalizado pelo Programa Erasmus.
Para a esmagadora maioria dos estudantes, "a ciência é uma escola profissional". Eles frequentam a universidade não para estudar mas para conquistar um diploma sem esforço que lhes garanta, de algum modo, um futuro emprego. Ora, como mostra Benjamin, "onde a ideia dominante da vida estudantil é a profissão e o emprego, não há lugar para a ciência", porque a ciência é uma actividade alheia ao espírito profissional. A ciência ensina a ser professor e não a exercer as "profissões públicas (ou privadas) de médico, jurista ou docente universitário": as "ciências actuais, através do desenvolvimento do seu aparato profissionalizante (e do seu know how) foram desviadas da sua origem comum, fundada na ideia do saber, a qual agora se transformou num mistério ou mesmo numa ficção". O que está aqui em questão não é o estatuto público ou privado das universidades, embora a concepção da universidade como empresa seja a consumação da má universidade, mas a degradação da própria noção de ciência e, neste aspecto, Benjamin antecipa um dos traços essenciais da teoria crítica: o seu antipositivismo e a sua aversão à pesquisa administrativa (Adorno). A ciência que se pratica actualmente nas universidades desmente o seu próprio pressuposto positivista de "uma ciência livre de pressupostos": quer esteja ao serviço de um Estado burocrático ou dos interesses comerciais das empresas, a ciência tende a ser reduzida a um conjunto de algoritmos que se "aprendem" e se aplicam de modo mecânico, não-criativo, sem verdadeiro conhecimento e na ausência total de pensamento. Isto significa que a própria ciência perdeu o contacto com a experiência, dispensou o pensamento e tornou-se uma espécie de autómato: a pesquisa científica tornou-se "trabalho de equipa", organizado socialmente em função do modelo burocrático predominante, cuja finalidade não é aprofundar o conhecimento e muito menos a "busca cooperativa da verdade" (Peirce), mas produzir "soluções" economicamente rentáveis ou resolver problemas que lhe são profundamente alheios. O "científico" reduzido ao "rentável", isto é, a instrumentalização da ciência por parte do sistema económico capitalista, significa que a ciência livre está morta: qualquer pessoa com treino prático pode fazer a ciência que hoje é feita nos laboratórios que usam as tecnologias mais avançadas, porque fazer este tipo de ciência não exige conhecimentos científicos; basta seguir os procedimentos padronizados e aguardar que a sua aplicação mecânica produza os efeitos esperados.
A burocratização do ensino, posteriormente protagonizada pelas chamadas "ciências da educação" e as suas pedagogias do "atrasado mental", produz necessariamente automatização. Os professores profissionalizados criados nesta má universidade são autómatos: uma cadeia de procedimentos reflexos montada por um engenheiro da burocracia do Estado e das empresas e do seu Ministério da Educação ou da Ciência; carecem de experiência e de conhecimentos; preenchem reflexamente papéis e são incapazes de imaginar (e muito menos de viver) uma "vida não regulamentada". São um reflexo da grande cadeia de reflexos que é o sistema social total e comportam-se como os cães de Pavlov: submetem-se acritica e passivamente aos comandos do posto hierarquicamente superior, submissão manifesta desde logo na facilidade com que um "subalterno" se sujeita aos caprichos sexuais de um qualquer superior hierárquico, sem tematizar uma tal submissão sexual como assédio sexual. Afinal, possuem diplomas e um curriculum vitae que certificam a sua conformidade, isto é, a sua incompetência. A unidade de vida encarada como "unidade de criação, eros e juventude" foi completamente esquecida. Precisamos rejuvenescer de modo sóbrio e ascético e criticar todas as figuras da má universidade que corrompem o espírito da ciência, através das burocracias do Estado e das empresas, e eros, através da "puta" viciada em vida fácil. Só deste modo podemos ter esperança na futura restauração da verdadeira universidade. (Post editado originariamente aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Walter Benjamin: Filosofia da História

«O único modo que ainda resta à filosofia de se responsabilizar perante o desespero seria tentar ver as coisas como aparecem do ponto de vista da redenção. O conhecimento não tem outra luz, excepto a que brilha sobre o mundo a partir da redenção: tudo o mais se esgota na reconstrução e não passa de elemento técnico. Há que estabelecer perspectivas em que o mundo surja deslocado, alienado, em que se mostrem as suas fissuras e fracturas, tal como indigente e deformado aparecerá um dia à luz da redenção. Situar-se em tais perspectivas sem arbitrariedade e violência, a partir do contacto com os objectos, só é dado ao pensamento». (Theodor W. Adorno)

«A teologia significa aqui a consciência de que o mundo é um fenómeno, de que não é a verdade absoluta nem o último. A teologia é (...) a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra. (A teologia é a) expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente». (Max Horkheimer)

Em 1940, Benjamin ditou, pouco tempo antes de morrer, à sua irmã Dora, o último texto que concluiu em vida: dezoito teses numeradas e mais duas acrescentadas como apêndice sobre a filosofia da história, com o título Über den Begriff der Geschichte. Estas teses foram concebidas como uma espécie de introdução metodológica à obra em que estava a trabalhar e que nunca chegou a concluir, O Livro das Passagens. Michael Löwy chamou a atenção para "a qualidade subversiva única" destas teses que faz delas "um dos documentos mais radicais, inovadores e visionários do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach de Marx". Porém, o carácter revolucionário destas teses não reside tanto na dialéctica entre o teológico e o político tout court, aquilo a que Löwy chama abusivamente o "messianismo histórico", mas sobretudo na nova concepção da história e da temporalidade que emerge dessa dialéctica e que tem por alvo a crítica de um certo "materialismo histórico" impregnado pela excessiva e tranquila confiança nas vantagens do desenvolvimento tecnológico, como se este só por si mesmo conduzisse a humanidade à emancipação. Para os social-democratas e os "comunistas", bem como para os "liberais", a emancipação estava assegurada pelo progresso que fazia a humanidade avançar como um todo, no seio de um tempo vazio e homogéneo, em direcção a uma infinita perfectibilidade do género homo, conquistada paulatinamente através da "exploração e destruição da natureza": "Desde o início o vício secreto da social-democracia, o conformismo, não afecta apenas a sua táctica política, mas também as suas perspectivas económicas. Nada foi mais corruptor para o movimento operário alemão que a convicção de nadar no sentido da corrente. Ele considerou o desenvolvimento técnico como o sentido da corrente, o sentido em que ele pensava estar a nadar. A partir daí bastava dar um passo mais para imaginar que o trabalho industrial apresentava uma conquista política" (Tese XI).

Na 11ª Tese sobre Feuerbach, Marx escreve: "Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie zu verändern". E, curiosamente na tese com a mesma numeração, Benjamin mostra que a tarefa de transformação do mundo levada a cabo pelo social-democracia e pelo "comunismo" estalinista não só traia o verdadeiro pensamento de Marx, sendo homologável à ideologia burguesa do iluminismo, como também conduzia às catástrofes da modernidade, tais como as duas Guerras Mundiais, Auschwitz e Hiroshima, as guerras imperialistas, a destruição do meio ambiente ou a ameaça de uma guerra nuclear, as quais não são meros "acidentes de percurso" ou "estados de excepção", mas decorrem do próprio progresso e das suas ilusões: a modernidade é catástrofe ou, em hebraico, Shoah. Uma tal concepção da história "só é capaz de considerar os progressos no domínio sobre a natureza, não as regressões da sociedade", prefigurando assim "já os traços dessa tecnocracia" que Benjamin reencontra no fascismo e nós na sociedade metabolicamente reduzida. A transformação do mundo implica, portanto, um novo conceito, isto é, um novo rumo político: a interrupção da história, a Unterbrechung messiânica ou a paralisação (Stillstand) historiográfica.

1. Mito do Progresso, Erros da Social-Democracia Europeia. A 13ª Tese sobre a Filosofia da História clarifica a crítica que Benjamin dirige à social-democracia, acusada de trair "a sua própria causa" (Tese 10), na figura dos seus políticos derrotados pelo fascismo e ligados ao "mito do progresso", confiantes "na «massa» que lhe servia de «base»" e sujeitos "a um aparelho incontornável": "Na sua teoria, e mais ainda na sua prática, a social-democracia determinou-se como uma concepção do progresso" que, longe de se relacionar com a realidade, se apresenta com uma pretensão dogmática. Nesta perspectiva social-democrata, o progresso era encarado sob três aspectos: em primeiro lugar, era o progresso da própria humanidade e não apenas das suas aptidões e dos seus conhecimentos; em segundo lugar, era "um progresso ilimitado" que corresponde ao carácter infinitamente aperfeiçoável da humanidade; e, em terceiro lugar, o progresso "era considerado (como um processo) essencialmente contínuo", automático e seguindo uma linha recta ou uma espiral. O facto de todos os políticos social-democratas, "comunistas" ou liberais, estarem convictos de que «a História estava do seu lado» revela até que ponto estavam comprometidos com a concepção iluminista do progresso, centrada exclusivamente na promoção tecnocrática dos progressos no domínio sobre a natureza, sem ter em consideração as regressões da sociedade e da própria humanidade que emergiam como resultado das suas práticas económicas. Como escreve Horkheimer: "Se as ontologias essencializam indirectamente as forças da natureza por meio de conceitos objectivados e, assim, favorecem a dominação da natureza, a doutrina do progresso essencializa directamente o ideal da dominação da natureza e, finalmente, deriva, ela própria, numa mitologia estática e derivada". A popularidade da teoria da evolução por selecção natural no seio de certos sectores da social-democracia justifica-se pelo facto de Darwin ter procurado mostrar que a selecção natural faz com que "as qualidades materiais e corporais" progridem para "a perfeição", o elemento moralista que Darwin foi buscar à ideologia económica (C. Lewontin). O "vício secreto" da social-democracia" é efectivamente o "conformismo", ou, em linguagem darwiniana, o adaptacionismo, em nome do qual a mente do engenheiro, isto é, a mente do industrial em forma tecnológica, transforma gradualmente "os homens num conjunto de instrumentos sem objectivos próprios".

A filosofia de Benjamin é movida por uma poderosa força política revolucionária. No texto sobre Moscovo, Benjamin afirma que, "mais rapidamente do que Moscovo propriamente dita, é Berlim que aprendemos a ver de Moscovo". E o que aprendemos a ver? Benjamin responde apontando para o fenómeno da corrupção: "Sob o capitalismo, o poder e o dinheiro tornaram-se grandezas comensuráveis. Uma determinada quantia em dinheiro é convertível numa determinada forma de poder, e é possível calcular o valor de troca de qualquer poder. Em termos gerais, é assim que as coisas se passam. Neste contexto só se pode falar de corrupção quando este procedimento é aplicado de forma demasiado expedita, como que em curto-circuito. No âmbito do dispositivo seguro da imprensa, da administração e dos trusts, ele dispõe do seu próprio sistema de distribuição, adentro de cujos limites se mantém legal. O Estado soviético pôs fim a esta comunicação entre dinheiro e poder. O partido reserva para si o poder, o dinheiro entrega-o aos homens da NEP (Nova Política Económica)". Com esta descrição, Benjamin está a denunciar o aburguesamento, alcançado através do mecanismo de corrupção em curto-circuito, dos dirigentes partidários da social-democracia que, no texto sobre Kracauer, são nomeados como "empregados" ou "colarinhos-brancos" (Angestellte), os assalariados bem remunerados da classe média e das classes dirigentes, cuja "adaptação ao lado humanamente indigno da ordem actual está mais desenvolvida do que no operário". Os dirigentes da social-democracia corromperam-se e traíram a causa da libertação e da emancipação: em vez de implementarem a mudança social qualitativa, criaram as condições necessárias para integrar social e politicamente as forças de oposição, promovendo aquilo a que Marcuse chamará mais tarde uma "sociedade sem oposição" assente num falso consenso.

2. Revisão da Noção de Progresso. A ideia de progresso é mais do que um idolum saeculi, no sentido de substituir a fé na providência como a "mão invisível" (Adam Smith) que orienta o desenvolvimento da humanidade (Hegel), porque, como mostrou John Bury, foi usada para dirigir e impulsionar toda a civilização ocidental desde as suas origens mais remotas que Max Weber descobre já no Antigo Testamento e sobretudo no Novo Testamento até aos nossos dias. "A ideia de progresso humano é, como diz Bury, uma teoria que contém uma síntese do passado e uma profecia do futuro", fundada numa interpretação da história que visualiza o homem a caminhar lentamente, pedetentim progredientes, numa direcção definida e desejável, de resto uma concepção inseparável da noção de que o tempo flui de modo linear, como uma flecha em direcção sempre ascendente, desde um passado primitivo ou bárbaro remoto até à realização de uma sociedade perfeita e feliz no futuro. Se saber é pecar ou, pelo menos, lançar as sementes do pecado, como já ensinava a narração javista da Criação ou o mito da Caixa de Pandora, então a história do ocidente pode ser vista como o desejo irreprimível consumado de conhecer o conteúdo da caixa que, por ordem divina, não devia ser aberta. O resultado da violação da proibição divina foi, como mostrou Robert Nisbet, a libertação de diversos males que têm afligido a humanidade, a nossa teodiceia, mas também a fomentação da criatividade nos mais diversos domínios da cultura e da sociedade humanas e a estimulação da esperança e da confiança da humanidade e dos indivíduos na possibilidade de mudar e melhorar o mundo. Benjamin acentua mais os aspectos negativos do progresso do que os seus aspectos positivos, enquanto Ernst Bloch faz precisamente o contrário, embora ambos sonhem com um mundo melhor na perspectiva mais profunda da restitutio ou da apokatastasis: o primeiro a partir do resgate do "paraíso perdido", a "origem matinal" ou "início imaculado", o segundo, sonhando o futuro utópico da humanidade que se abriga no interior quente e ígneo da "matéria proto-utópica". Esta aparente aporia é «superada» pelo facto de o marxismo não ser uma filosofia tecnofóbica e permanecer uma filosofia aberta, isto é, não-concluída: Benjamin reconhece n' O Livro das Passagens que o conceito de progresso teve uma função crítica na sua origem, estreitamente ligada ao nascimento da ciência moderna, que desaparece a partir do século XIX quando a burguesia conquista posições de poder, donde resulta a tarefa urgente de submeter um tal conceito a uma crítica imanente levada a efeito através do materialismo histórico, cujo "conceito fundamental não é o progresso mas a actualização". O progresso científico e técnico, cujos efeitos na arte entusiasmaram Benjamin, parece ser mais ou menos óbvio, mas o progresso da humanidade, mais precisamente a ideia da perfectibilidade moral e social do homem, não é de todo evidente e, a avaliar pelas catástrofes recentes da modernidade, parece indicar fenómenos preocupantes de regressão da sociedade e da cultura que, nos nossos tempos, se manifestam na escalada de violência verdadeiramente patológica dos tempos metabolicamente reduzidos. Por isso, no seu texto Parque Central, a propósito de Baudelaire, Benjamin escreve que "o spleen é o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência", sentimento de melancolia que contrasta com a esperança militante de Ernst Bloch.

«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)

«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)

«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrolam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)

Apesar de ser hoje em dia uma ideia desacreditada, devido em grande parte à crítica demolidora que lhe foi dirigida por Tocqueville, Burckhardt, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Max Weber, Ernest Renan, Max Nordan, Georges Sorel, Henry & Brooks Adams, John Bury, W.R. Inge, Austin Freeman, Oswald Spengler, Frederick Teggart, T.S. Eliot, James Joyce, Ezra Pound, Yeats e Aldous Huxley, o progresso é uma ideia enraizada na tradição ocidental que implica o avanço de toda a humanidade num processo gradual, por etapas, que se iniciou num passado primitivo remoto e que se dirige inexoravelmente para um futuro distante e glorioso, de acordo com o plano inicial traçado pela Providência ou pela necessidade histórica. Esta ideia é inseparável de outra ideia: a de um tempo vazio e homogéneo que flui de modo linear, automático, contínuo e infinito. Presente implicitamente no teorema do estoicismo médio sobre o Estado Universal, a ideia de progresso atinge o seu esplendor protótipo na obra de Santo Agostinho, onde a história se converte imediatamente em história da salvação, e consuma-se no conceito kantiano de uma História Universal ou cosmopolita.

Progresso, tempo homogéneo e vazio e História Universal são conceitos que se articulam numa mesma concepção da história: a marcha triunfal dos vencedores e dos opressores. Ciente disso, Benjamin é peremptório: "A ideia de um progresso da espécie humana através da história é inseparável da sua marcha através de um tempo homogéneo e vazio. A crítica à ideia de uma tal marcha é o fundamento necessário da que é dirigida contra a ideia do progresso em geral" (Tese XIII). Num só e mesmo movimento, Benjamin elabora uma nova concepção do tempo e da história, na perspectiva dos vencidos, que opõe à ideologia do progresso que glorifica a história dos vencedores.

3. A Nova Concepção de Tempo. Desde muito cedo, Benjamin procurou superar a concepção homogénea, vazia, puramente quantitativa do tempo. Assim, nos seus estudos sobre o drama barroco (Trauerspiel) e sobre a tragédia, opõe o tempo da história ao tempo mecânico e vazio dos relógios que se manifesta na regularidade das transformações espaciais, e, no seu texto sobre o romantismo alemão, opõe a concepção qualitativa do tempo, o infinito temporal qualitativo (qualitative zeitliche Unendlichkeit) do messianismo romântico, para o qual a vida da humanidade é um processo de realização (Erfüllung), à concepção vazia e infinita do tempo, o infinito temporal vazio (leeren Unendlichkeit der Zeit), das ideologias do progresso (Ideologie des Fortschritts). Já Georg Lukács tinha recusado a quantificação abstracta do tempo, com o recurso a citações d'O Capital onde Marx denunciava o trabalho maquinal do operário reduzido a "carcaça do tempo": "O tempo perde assim o seu carácter qualitativo, mutável, fluído: fixa-se num continuum exactamente delimitado, quantitativamente mensurável, cheio de «coisas» quantitativamente mensuráveis (os «trabalhos realizados» pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objectivados, separados com precisão do conjunto da personalidade humana), num espaço". Na Tese XV, Benjamin opõe o tempo dos calendários, "monumentos de uma consciência da história cujo menor traço parece ter desaparecido na Europa desde há cem anos", ao tempo dos relógios: "Fazer coincidir o reconhecimento de uma qualidade com a medição de uma quantidade foi obra dos calendários, que, com os dias feriados, como que deixam livres os espaços da rememoração". E, ainda a propósito de Baudelaire, Benjamin tira uma ilação: "Os sinos, que outrora acompanhavam os dias festivos, foram, como os homens, expulsos do calendário. Parecem-se com as pobres almas que andam de um lado para o outro, mas não têm história".

Benjamin elabora, portanto, uma concepção qualitativa do tempo, fundada sobre a descontinuidade do tempo histórico, que lhe permite levar a cabo a crítica do progresso e da sua concepção meramente quantitativa do devir da história como um continuum de aperfeiçoamento constante e de modernização benéfica, cujo motor reside no progresso científico e técnico. Benjamin rompe com esta filosofia do progresso e defende uma concepção qualitativa do tempo histórico. Em vez de destacar o futuro, Benjamin procura actualizar o passado, inspirando-se directamente na concepção messiânica judaica da temporalidade: "É sabido que era proibido aos Judeus predizer o futuro. Pelo contrário, a Tora e a oração ensinam-se na comemoração. Para eles a comemoração desencantava o futuro ao qual sucumbiam os que procuram instrução junto dos adivinhos. Mas nem por isso o futuro se tornava um tempo homogéneo e vazio para os judeus. Porque nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia passar o Messias" (Tese XVIII, B). Uns versos de T.S. Eliot ajudam a compreender a necessidade de rever o conceito filosófico de progresso: "Parece, à medida que envelhecemos,/ Que o passado tem outro padrão e deixa de ser uma simples/ sequência -/ Ou sequer um desenvolvimento: este último em parte uma/ falácia/ encorajada por superficiais noções de evolução, / Que se torna, no espírito popular, uma forma de repúdio do/ passado". No nosso tempo, as pessoas repudiam ou renegam o passado, que, como sabemos, constitui o alicerce sagrado sobre o qual cresce a civilização ocidental com autenticidade, criatividade e liberdade. Sem um passado representado pelos ritos, tradições e memória, não pode haver raízes, e sem raízes os mortais estão condenados a permanecer isolados no tempo, como almas que já não têm história. Para as classes oprimidas, o tempo não é homogéneo como o dos relógios, mas qualitativamente diferenciado e descontínuo, e também não é vazio, mas preenchido com o tempo actual ou o agora (Jetztzeit), que faz explodir e interromper a continuidade da história, introduzindo "estilhaços messiânicos" (Tese XVIII, A). Só esta concepção do tempo permite rasgar o campo da história às classes oprimidas e abri-lo activa e politicamente à novidade utópica irredutível à sequência ou desenvolvimento mecânico, repetitivo e quantitativo.

4. A Nova Concepção de História. A Tese VII ajuda a compreender a concepção de história proposta por Benjamin. "Reviver uma dada época", esquecendo "tudo aquilo que se passou em seguida", tal como recomendavam Fustel de Coulanges ou Ranke ao historiador, constitui o método historiográfico derrotado pelo materialismo histórico: o método da intropatia. O investigador historicista entra em intropatia com o vencedor: "Ora todo aquele que domina é sempre herdeiro dos vencedores. A intropatia com o vencedor beneficia sempre, por consequência, aqueles que dominam. (...) Todos aqueles que até agora conseguiram a vitória participaram desse cortejo triunfal em que os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje. A este cortejo triunfal pertencem também os despojos como sempre foi uso". A esta perspectiva da "história dos vencedores", comprometida com a ideologia do progresso, Benjamin opõe a perspectiva de uma "história dos vencidos", inspirada na gravura do anjo de Paul Klee (Tese IX). O materialismo histórico tem como missão "fazer explodir a continuidade da história", cujo tempo flui sempre igual a si mesmo, nivelando tudo: "A grande Revolução introduziu um novo calendário. (...) Na tarde do primeiro dia de combate (da revolução de Julho), verificou-se que em vários locais de Paris, independentemente e no mesmo momento, se tinha disparado contra os relógios" (Tese XV). A paragem ou interrupção do tempo rompe a continuidade da história, ao mesmo tempo que permite emergir uma outra história, a do "salto dialéctico, a revolução tal qual a concebeu Marx" (Tese XIV). Isto significa que a interrupção funciona em Benjamin a dois níveis: ao nível teórico, a tarefa do historiador marxista é produzir rupturas eficazes na continuidade da história, e, ao nível prático, cabe às classes oprimidas levar a cabo a revolução. Não distinguir entre estes dois níveis conduz à apatia e ao conformismo: a rememoração é insuficiente para realizar a grande interrupção histórica, a "obra da libertação" (Tese XII).

Para Benjamin, compete à "revolução do proletariado" ou das classes vencidas da História operar a interrupção messiânica do curso do mundo. Alimentada e estimulada pelas forças da rememoração, esta revolução será capaz de restaurar a experiência perdida, abolir o inferno e a fantasmagoria da mercadoria, quebrar e rasgar o círculo maléfico do sempre-igual e libertar a humanidade da angústia mítica e os indivíduos da condição de autómatos. Isto significa que, na perspectiva de Benjamin, a revolução não é uma continuação do progresso ou mesmo um aprofundamento da revolução francesa, mas a interrupção destruidora e redentora da história dos vencedores: a actualização da Erfahrung histórica perdida. Na sua obra O Livro das Passagens, Benjamin afirma que "a concepção autêntica do tempo histórico repousa completamente sobre a imagem da redenção (Erlösung)" e, na Tese II, é dito que "a imagem de felicidade é inseparável da de redenção". Isto significa que a revolução é simultaneamente utopia do futuro e redenção messiânica. Embora voltada para a recuperação e salvação do passado, a busca pela experiência perdida orienta-se na direcção do futuro messiânico: "O Messias não vem apenas como redentor; ele vem como vencedor do anticristo" (Tese III).

Para Benjamin, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento cronológico prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la (Tese VII). Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origínes), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch), aquilo a que a mística judaica chama "Tikkoun".

Ora, o messianismo que orienta a filosofia da história de Benjamin, o seu elemento teológico, não representa uma espécie de compensação ou de atitude passiva e resignada que aguarda a vinda do Messias, mas visa primordialmente intensificar a luta política emancipadora. Sem o elemento teológico, o materialismo histórico não pode conduzir a revolução/redenção (Tese I), isto é, forçar a chegada do "Reino da Liberdade" (Marx). Hegel e Marx estavam cientes da necessidade de submeter a visão dialéctica do progresso a uma revisão crítica: a noção social-democrata de que o progresso envolvia a própria humanidade e não apenas as suas habilidades e competências cognitivas mostrou ser falsa, a partir do momento em que a cronologia linear da história produziu o fascismo e o totalitarismo e aprisionou os homens nos campos de concentração. Em última análise, liberto desse momento falso, o progresso está presente na noção benjaminiana de que a felicidade das gerações vindouras implica inevitavelmente a ideia de redenção. Ou dito de modo enfático: o progresso é redenção, conceito perfeitamente vislumbrado por Guerra Junqueiro, ou, pelo menos, o progresso pode ser associado à luta constante que visa paralisar e impedir o triunfo do mal radical. (Publicado aqui.)

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 16 de agosto de 2008

Ernst Bloch: Antropologia e Ontologia

«O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis». (Ernst Bloch)
Coube a Ernst Bloch elaborar não só um "princípio esperança" para o homem, mas também uma ontologia da possibilidade para o mundo. A consciência antecipante é uma forma de ruptura com o nosso tempo metabolicamente reduzido. A consciência humana é socialmente utópica quando não se refere a um estado social passado ou presente, mas quando considera uma vida social futura ainda-não-existente. As utopias são antecipações de um estado futuro, desejado, que, por comparação com a situação de miséria presente, oferece uma vida melhor, mais livre e mais humana. Bloch distingue dois tipos de utopias: as utopias abstractas, cujo projecto é completamente desligado da realidade presente e das possibilidades oferecidas pelo princípio de realidade, para construir em espírito os castelos de areia de um "outro mundo", e as utopias concretas, cujo espírito ultrapassa a realidade presente e considera o futuro, relacionando esse projecto com as contradições e os sofrimentos do presente, a fim de os vencer. Estas últimas utopias não jogam com possibilidades irreais, mas com possibilidades dialécticas de uma realidade objectiva, procurando novas alternativas sociais na esfera do que é realmente possível e motivando assim mudanças concretas. Só desejando o que parece impossível é que se atinge realmente as fronteiras do possível. A transformação qualitativa do mundo deve manter a visão utópica de um outro mundo, de um outro princípio de realidade. Sem a utopia não é possível mudar o mundo.
1. Antropologia e Fenomenologia. A esperança tem sido classificada entre os afectos e as disposições anímicas do homem e descrita exclusivamente do ponto de vista psicológico. Espinoza associava a esperança com o medo e via nestas duas disposições a impotência da nossa alma. A esperança representava o ópio dos homens que desejavam evadir-se da realidade. Contudo, Dostoiévski entendeu a esperança de um modo diferente: A formiga conhece a estrutura do seu formigueiro e a abelha, da sua colmeia, enquanto o homem desconhece a sua própria estrutura. Isto significa que o homem não é um ser acabado, como a formiga ou a abelha: o seu ser não lhe foi dado, mas recomendado como uma tarefa a realizar. O homem permanece oculto a si mesmo e, por isso, procura sempre o seu verdadeiro ser. O homem é, para si mesmo, uma questão aberta, um enigma e frequentemente um espectro. É forçado a dar a si mesmo a resposta da sua humanidade, sem poder continuar e permanecer na história com nenhuma dessas respostas. O homem é, na sua mera existência factual, uma experiência aberta.
Esperar não significa ter todas as esperanças que se desejam, mas estar aberto, em atitude expectante. Desespero não significa sepultar certas esperanças ou destruir certas ilusões, mas desistir da sua própria latência, o que ainda não é mas deveria ser, e, portanto, renunciar a si mesmo. Estar expectante significa estar em estado de disponibilidade, não estar vinculado nem ao passado nem a sonhos dourados, mas consentir a experiência aberta que somos. Neste sentido, a esperança não é algo que uns possuem e outros não possuem, mas uma situação fundamental ou simplesmente o mais importante elemento constitutivo da existência humana. O homem espera enquanto vive e vice-versa, vive enquanto espera.
Os animais têm o seu próprio meio vital específico da sua classe, o qual lhes pertence intrinsecamente como a parte exterior dos seus instintos. O homem é o único ser que não está sujeito a nenhum meio ambiente determinado. É um ser aberto ao mundo, que tem necessidade e capacidade para construir em qualquer local o seu mundo cultural, o seu próprio meio vital. Porém, existe um elemento e um meio ambiente sem os quais o homem não pode viver de modo humano: é a esperança que constitui o seu hábito de vida. Neste contexto, a esperança designa uma peculiaridade do ser especificamente humano e o meio, elemento ou fluído, exigido pela existência especificamente humana. Afirmar que o homem é um ser escatológico é superar todas as antropologias que tratam o homem como ser da palavra, ser político ou ser instrumental, sem levar em conta a sua abertura ao tempo. Na esperança, o homem não conhece experiências definitivas, mas capta novos obstáculos, impulsos e ocasiões para evidenciar a sua vitalidade. É um ser descobridor, um conquistador, um criador de símbolos e de obras, um jogador. É um ser que se olha a si mesmo por cima do homem e que projecta o seu olhar para o futuro para além do presente: a sua manifestação vital é um compromisso com o futuro para o qual caminha.
Como não está essencialmente determinado, o homem revela sempre um novo rosto através das suas culturas e da sua longa história. Porém, é possível assinalar a direcção em que o homem se move. A essência do homem consiste mais numa orientação e perspectiva do que num traço definível. Na esperança, o homem reconhece cada situação em que se encontra como uma estação no caminho que tem de superar e deixar para trás de si, afim de realizar o seu ser humano. Esta direcção domina o espírito e o corpo do homem, porque, nesta orientação, o homem sofre e actua como um todo. Quando resiste a esta orientação da sua conduta total, o homem adoece e o seu comportamento torna-se retrógrado: os homens morrem na e para a vida, como se se movessem numa rua sem saída, quais seres autofóbicos. Este desespero que tomou conta do homem metabolicamente reduzido induz a delinquência e a criminalidade. A morte por desespero e a criminalidade por falta de esperança revelam que o homem, como ser temporal, está orientado para o futuro e que a esta orientação corresponde a esperança. Ao contrário do animal, o homem pode errar e equivocar-se de maneira total e absoluta. A sua esperança representa o risco da sua vida e, neste jogo arriscado da vida, o homem pode conquistar-se ou perder-se: a sua pessoa está sempre em jogo, portanto,
em risco.
O esclarecimento entendido como desencantamento do mundo (Weber) procurou explicar racionalmente a relação entre o homem e a fantasia e a relação fantástica do homem com o mundo, recorrendo ao caminho que parte dos mitos e das utopias e termina na ciência ou, mais precisamente, na glorificação ideológica do que é: a realidade estabelecida. A fantasia foi considerada como um processo anímico primitivo, que prescinde do princípio de realidade. O resultado desta desvalorização e concomitante abandono da fantasia e do seu poder para formular desejos sensatos foi a hipertrofia do entendimento técnico. Hoje vivemos na situação de realizar muitas coisas que não queremos, sem saber o que realmente queremos. Ernst Bloch recuperou o poder da fantasia utópica, com o objectivo de mostrar que aquilo que é não pode ser verdadeiro. Se "a necessidade (privação) ensina a pensar", como diz Bloch, então a abundância metabolicamente reduzida produz regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais, portanto, o homem metabolicamente reduzido de hoje que conserva a sua vida sem procurar a auto-expansão.
A concepção blochiana do homem começa no limiar do fundo vital, onde entre o ser e o ter se abre o mundo: "a necessidade ensina a pensar". Na escala composta pelo impulso, ainda obscuro e amorfo, o afã, o impulso já sentido, a ânsia, o impulso ainda sem meta, o instinto, o impulso que busca já o específico, o desejo, o impulso passivo mas com uma prefiguração, e o querer, que inclui uma actividade diferenciada, é o instinto o primeiro nível da dinâmica teleológica. A esperança é o ponto onde a consciência e o ser se encaixam, isto é, onde o elemento subjectivo e o elemento objectivo do processo do mundo convergem. No homem, os impulsos atravessam a temporalidade da vida anímica e mostram quase sempre um pré-conhecimento do fim. Por isso, em vez de instintos, Bloch prefere falar de tendências, cujos elementos são: um défice, uma meta e uma antecipação ou ainda-não, formando um arco que se estende do presente para o futuro. A tendência básica e primária não é o instinto sexual, como em Freud, mas a fome, a tendência a suum esse conservare, isto é, a tendência que impulsiona simplesmente a conservar-se vivo, da qual procedem os instintos imediatos e os movimentos do sentimento ou emoções. A esperança é algo biologicamente constitutivo da existência: a privação converte a fome em docta fames, em fome informada e instruída, inclusive esclarecida. O si mesmo é levado para além da conservação da sua vida: explode e a autoconservação transforma-se em auto-expansão. Da fome economicamente esclarecida nasce a decisão alimentada pelos sonhos diurnos de suprimir todas as circunstâncias em que o homem é um ser oprimido, ofendido e humilhado.
2. Fenomenologia da Consciência Antecipante. Ao analisar o mundo onírico de certos pacientes, Freud estudou aquilo a que Bloch chamou o já-não-consciente: a fantasia produtiva do homem ocupa-se das vivências que não pôde dominar e que, por isso, reprimiu. Nos sonhos nocturnos, aflora à consciência o passado reprimido e os impulsos reprimidos buscam a sua libertação nos sonhos. Esta fantasia produtiva que actua sobre o passado insuperado manifesta-se primordialmente nos sonhos nocturnos dos homens. Porém, como mostrou Bloch, não são só os pacientes que sonham: as pessoas saudáveis e felizes também sonham e estes sonhos não são desencadeados somente por vivências desagradáveis mas também por vivências felizes. No sonhar acordado, desperto, revela-se um ainda-não-consciente, isto é, uma antecipação do futuro que ainda-não-existe. Esta fantasia que se manifesta no limiar do presente que se conhece é uma fantasia fascinada pela novidade possível. É uma imaginação poética que não pretende modificar o passado insuportável, mas que penetra no futuro ainda-não-realizado, para o antecipar mediante formas simbólicas e ideais. Os sonhos diurnos têm a sua origem num défice e tendem a superá-lo. São sonhos de uma vida melhor que resultam do jogo da fantasia criadora: o sonhador encontra-se quase sempre no centro dos acontecimentos. Bloch analisa a sua estrutura sub specie utopica, isto é, a partir da fantasia criadora voltada para o futuro: os sonhos diurnos são voluntários (1), o eu do sonhador é conservado, embora não tenha nada a ver com os paraísos artificiais de Baudelaire (2), visam uma vida melhor e, devido à sua amplitude, podem abarcar outros eus com os quais procura melhorar a vida da comunidade (3), e tendem a ir até ao fim, sem satisfação fictícia, abstinência ou resignação (4). O sonho nocturno nutre-se da regressão, enquanto o sonho diurno prefigura e antecipa um outro princípio de realidade e, por isso, projecta-se no futuro. Os sonhos acordados têm um carácter intencional e projectam-se, quando visam um futuro autêntico, para o não-cumprido, o ainda-não-consciente, de modo a descrever um arco utópico que vai da fantasia antecipativa até ao futuro entrevisto. Como determinação fundamental do sonho diurno, o ainda-não-consciente constitui a única pré-consciência do futuro. O sonho diurno encerra na sua latência uma tendência para a claridade e, quando o presságio quer ser razoável, começa a florescer a esperança esclarecida, a docta spes. A partir do momento em que entra em jogo a razão, a esperança como afecto expectativo do sonhar para a frente deixa de ser mero estado de ânimo e converte-se em actuação consciente-sapiente: a função utópica como forma interna do acto da esperança abandona o passado e os seus conteúdos apoiam-se nas futuras possibilidades do ser de outro modo, ou seja, do ser melhor. A forma interna histórica da esperança é a cultura humana considerada no seu horizonte utópico-concreto. A simbiose de ambas constitui a docta spes, a atitude adoptada pela filosofia num mundo ainda-não-concluído.
3. Ontologia. A antropologia da esperança exige necessariamente uma ontologia do mundo aberto ao futuro e à história: a esperança humana encontra-se fundada nas infinitas possibilidades abertas do processo cósmico. Sem estas possibilidades reais, a esperança seria um absurdo, porque, segundo Kierkegaard, a esperança é precisamente a "paixão pelo possível". Bloch valoriza muito mais o conceito de possibilidade do que o conceito de realidade: a realidade mais não é do que a realização da possibilidade. Por isso, Bloch elaborou uma ontologia do que ainda-não-é mas que é possível ou susceptível de vir a ser. Ao sentido de realidade do homem corresponde logicamente o sentido de possibilidade. O mundo em que vivemos e esperamos não é um edifício acabado e concluído, mas uma combinação de realidades e de possibilidades, isto é, um processo aberto. Não é um sistema de estruturas eternamente repetíveis e reproduzíveis, mas uma história aberta, onde acontecem e podem ser realizadas coisas novas. O mundo é, segundo a expressão feliz de Bloch, um laboratorium possibilis salutis: não é um céu da perfeição nem um inferno do aniquilamento, mas simplesmente uma terra imperfeita, cujas possibilidades estão abertas ao bem e ao mal. Isto significa que o futuro do mundo pode ser ou a morte do universo e o nada ou a pátria da identidade.
Com exclusão das possibilidades irreais, existem diversos tipos de possibilidades: a possibilidade formal, na qual se baseia o optimismo ingénuo das utopias abstractas; a possibilidade epistemológica, que, apesar de constituir o fundamento da liberdade da razão humana, é demasiado subjectiva; a possibilidade objectiva que reside na raiz das próprias coisas; e a possibilidade dialéctica, que permite captar a relação entre utopia e «matéria», porque, "sem matéria não existe um suporte para a antecipação" e sem antecipação "não há horizonte para a matéria". Esta última categoria de possibilidade permite superar a oposição entre uma utopia que reflecte o movimento da realidade (o possível objecto) e uma utopia que é fonte da liberdade humana. A categoria de possibilidade dialéctica rompe com uma ontologia acabada do ser já existente e avança com uma ontologia do ser ainda-não-existente: a utopia exige a insatisfação permanente com o que existe, a exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que procura explicitar as possibilidades concretas das quais a realidade está grávida. Constitui o eixo da perfectibilidade da mais absoluta de todas as utopias sociais: a naturalização do homem e a humanização da natureza (Marx).
Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo. Graças à possibilidade real e dialéctica, os sonhos utópicos, que são diurnos, acordados e contagiosos, não degeneram em ilusões ocas, mas ajudam a conservar o optimismo militante. Este optimismo está fundado sobre a utopia concreta, que o liberta do quietismo e lhe atribui o seu próprio lugar à frente do processo do mundo, onde se produz o novum. A produção da frente e do novum ao longo da história humana desemboca numa nova realidade que capta uma terceira categoria: ultimum. O ultimum deverá ser a pátria da identidade. Assim, a utopia concreta constitui "o ponto de intersecção entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho seria mera utopia abstracta e a vida pura trivialidade". A utopia concreta faz da esperança subjectiva uma esperança comunitária, uma docta spes, uma esperança esclarecida, que critica o mundo existente, com a sua capacidade de se erguer por cima do imediato e do fáctico e inventar novos possíveis a partir da "obscuridade do momento vivido". A utopia concreta visa eliminar a miséria humana e o direito natural visa suprimir a humilhação do homem. Segundo Marx, o imperativo categórico é "subverter todas as condições em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado e desvalorizado». (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 3 de agosto de 2008

Adorno e Fetichização da Música

«A liquidação do indivíduo é a autêntica assinatura da nova condição musical». (Theodor W. Adorno)
A maior parte da música contemporânea exibe características de um "bem de consumo", dominado mais pelo valor de troca do que pelo valor de uso. A dicotomia real não é entre "música séria" e "música ligeira", mas entre "música comercial" e "música não orientada para o mercado". Um dos resultados desta mercadorização da música e da sua massificação é a desintegração actual da educação: os consumidores da arte são incapazes de considerar e de conhecer a distinção entre a "arte superior autónoma" e a "arte comercial ligeira". Em Portugal, como nos restantes países do mundo globalizado, a "música comercial" integra diversos tipos musicais, entre os quais a "música popular" ou mesmo a "música erudita", no grande sistema da "indústria cultural" atemporal cuja missão é impedir "a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões". Este sistema da indústria cultural constitui o âmago da cultura capitalista alienada tardia, na qual os homens veneram cega e obedientemente os seus próprios produtos como objectos reificados. Destituída da sua transcendência e da sua negatividade, a cultura torna-se "cultura afirmativa": Cultura afirmativa é um conceito forjado por Marcuse para designar a "cultura da época burguesa que, no decurso do seu próprio desenvolvimento, levou à segregação entre a civilização e o mundo espiritual e mental que é considerado como superior à civilização. A sua característica decisiva é a afirmação de um mundo eternamente melhor, universalmente obrigatório e mais valioso, que deve ser incondicionalmente afirmado: um mundo essencialmente distinto do mundo concreto da luta quotidiana pela existência, e, não obstante, realizável interiormente por cada indivíduo para si mesmo, sem nenhuma transformação do estado de facto".
Adorno "localizou" o "pecado original" da separação entre o sujeito e o objecto e da dominação do objecto pelo sujeito na divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual: o pensamento abstracto aparece como uma função da abstracção do mercado (Alfred Sohn-Rethel). Por isso, mostrou-se hostil ao marxismo vulgar que atribuía a primazia à produção, condenando-se a repetir a dominação do objecto pelo sujeito, bem como ao uso do conceito de reificação feito por Lukács. Na filosofia de Adorno, a reificação não é equivalente à objectivação alienada da subjectividade, isto é, à redução de um processo fluído a uma "coisa morta". Na "dialéctica negativa", a reificação significa a supressão repressiva da heterogeneidade, do não-idêntico, da diferença, em nome da identidade: o domínio do mundo natural exterior levou ao controle da natureza interior do homem e, em última análise, ao controle do mundo social.
A "sociedade administrada" transformou o "progresso" na sua antítese: a barbárie mais brutal, em função da utilização das modernas técnicas de controle e de vigilância, e a indústria cultural na sua função mistificadora manipulou de tal modo a consciência dos consumidores que conseguiu vencer a sua resistência e, portanto, anular e neutralizar o "pensamento crítico", promovendo a adaptação em detrimento da mudança qualitativa e o conformismo. "Toda a reificação é um esquecimento": esta frase de Adorno não significa que a superação da reificação decorra da recuperação anamnética de um sentido original, a reunificação de um sujeito com a sua objectivação perdida. A reversão do esquecimento não é equivalente a um re-lembrar de algo desmembrado, a recuperação de uma totalidade perfeita ou plenitude original, como sucede em Hegel e Marcuse: significa, sim, a restauração da diferença e da não-identidade no seu lugar adequado, na constelação não-hierárquica das forças subjectivas e objectivas, enfaticamente cognominada "paz".
A fetichização da música não é somente uma categoria psicológica, mas também e fundamentalmente uma categoria económica, enraizada no carácter fetichista da mercadoria, produzida por sociedade dominada pelo princípio de troca: "Marx define o carácter fetichista da mercadoria como a veneração da coisa auto-produzida e que como valor de troca se aliena dos produtores e dos consumidores, dos "seres humanos". Este destaque do papel do fetichismo na indústria cultural revela, pois, a dívida de Adorno para com a obra de Marx. A música foi invadida pelo "ethos capitalista" e, por isso, a sua fetichização é tendencialmente total: a produção e a recepção musicais são dominadas pelos valores de troca da comercialização contemporânea, a qual serve a música como um objecto culinário de fácil digestão. O entendimento estrutural do conjunto musical, no seu desenvolvimento temporal, é sacrificado nos altares de diversos estratagemas usados para vender as obras como mercadorias a vastos auditórios que aprenderam a desejá-las. Adorno analisou o carácter fetichista na música em dois níveis: o da produção e o da recepção musical.
1. Ao nível da produção, o fetichismo musical reflecte-se no predomínio excessivo dos "arranjos" e das "execuções" sobre as "verdadeiras composições", na introdução frequente de "efeitos coloridos" impressionistas, na estandardização das obras musicais, a estandardização do êxito, e na ressurreição nostálgica de estilos musicais passados de moda pelo seu valor evocativo.
2. Ao nível da recepção musical, o fetichismo musical manifesta-se na ênfase dada às "estrelas", tanto na música clássica (Toscanini, por exemplo) como na música popular, no culto do instrumento, como no caso dos violinos Amati e Stradivarius, na necessidade de ir ver o concerto "correcto", em vez de ir escutar a própria música, na audição atomizada dos clímax românticos ou de melodias separadas dos seus contextos construtivos, e no êxtase vazio do entusiasta do Jazz que escuta pelo simples desejo de escutar.
A experiência adquirida por Adorno no "Princeton Radio Research Project" mostrou-lhe que os questionários e as entrevistas não eram suficientes para verificar a fetichização da música, através de técnicas científicas normais, porque as opiniões dos próprios ouvintes não mereciam confiança. Os ouvintes eram incapazes de superar a conformidade das normas culturais, e a sua competência para escutar revelou-se degenerada. Tinham regredido, não fisiologicamente, mas psicologicamente: o sentido da regressão da audição não se dirigia para uma música epocalmente anterior, mas para um "estado infantil" em que o ouvinte era dócil e passivo e temia tudo o que fosse "novo" ou "não-familiar". Este estado de infantilização já tinha sido descrito por Erich Fromm como um "sentimento de impotência". Tal como as crianças que só pedem alimentos que lhes agradaram no passado, o ouvinte cujo ouvido tinha regredido só era capaz de reagir perante uma repetição daquilo que tinha escutado anteriormente. Isto significa que o ouvinte revela uma crescente incapacidade de concentração em qualquer coisa, excepto nos aspectos banais e truncados de uma composição. Na música popular, os ouvintes são programados para aceitar uma música que rejeita todo o desenvolvimento coerente e que exibe, em vez disso, uma temporalidade espacializada do "sempre-igual", a qual ajuda a reforçar subtilmente o status quo como destino inescapável. E, como as crianças que reagem perante as cores brilhantes, o ouvinte sentia-se fascinado pela utilização de recursos coloridos que lhe davam a impressão de excitação e de individualidade. Quando a consciência capitula perante o poder superior da "coisa anunciada" pela publicidade, o auditório acaba por comprar "paz espiritual", fazendo literalmente coisa sua as mercadorias impostas. Ao chamar-se a isto "gosto" individual, nega-se claramente a dependência passiva envolvida na identificação do ouvinte com o que lhe foi "servido" pela indústria musical: o que se prepara e se desfruta musicalmente é uma dieta infantil de sons encurtados, cujo sinal seguro é a recusa arrogantemente ignorante de tudo o que não seja familiar, em prol da repetição interminável das resoluções açucaradas mais cómodas e fluídas.
O comportamento do consumidor de cultura combina os traços masoquistas e, ao mesmo tempo, uma indignação sádica intensa: "O masoquismo da audição define-se não apenas como o auto-sacrifício e o pseudo-prazer pela identificação com o poder. Subjaz-lhe a experiência de que a segurança do abrigo protector nas condições de dominação é meramente provisória, é apenas uma folga, e que no fim tudo há-de acabar por ruir. Mesmo no auto-sacrifício, uma pessoa não se sente bem: ao fruir, sente que trai os possíveis e, ao mesmo tempo, é traído pelo existente. A audição regressiva está sempre pronta a degenerar em raiva". Isto significa que a abnegação masoquista dos ouvintes despolitizados e passivos pode converter-se em raiva destrutiva dirigida para o exterior. A sexualidade frustrada dos "jitterbugs", isto é, dos "percevejos que executam movimentos reflexos, espectadores do seu próprio êxtase", que, no caso de serem mulheres, costumam "desmaiar (ou gritar) quando ouvem a voz de um crooner ou de um cantor de jazz", exprime esta agressividade reprimida. Contudo, esta cólera reprimida parece ser insuficiente para dar um sentido construtivo à "arte popular", embora Walter Benjamin acreditasse no seu "potencial revolucionário".
Anexo: Veja o site da "
Casa da Música" da cidade do Porto. A autoria do edifício é do prestigiado arquitecto e urbanista holandês Rem Koolhaas, e foi concebido para servir um projecto cultural inovador do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura.
J Francisco Saraiva de Sousa