«Baudelaire possui pouco daquilo que se podem considerar as condições materiais do trabalho intelectual: da biblioteca à casa própria, não houve nada a que não tivesse de renunciar no decurso da sua existência instável, dentro e fora de Paris. Em 26 de Dezembro de 1853 escreve à mãe: "Estou tão acostumado ao sofrimento físico, sei tão bem o que é ter de viver com umas calças rotas, um casaco que deixa passar o vento e duas camisas, tenho tanta prática a atamancar sapatos furados com palha ou mesmo com papel, que já quase só sinto como sofrimentos os que são de ordem moral. De qualquer modo, tenho de confessar que cheguei a um ponto em que, por receio de rasgar ainda mais as minhas coisas, deixei de fazer movimentos bruscos e de andar muito a pé"». (Walter Benjamin, A Modernidade) As diversas versões conhecidas do Curriculum Vitae de Walter Benjamin são documentos literários que abordam os seus projectos de pesquisa, com referência a alguns dos seus trabalhos publicados mas sobretudo aos trabalhos em curso ou meramente projectados. Como qualquer estudante recém-licenciado, Benjamin não tinha "experiência profissional" ou, como se diria hoje, não tinha "emprego": Benjamin foi um eterno desempregado, um "deserdado" no sentido de Baudelaire, até à sua estranha morte, coberta de mistério, dependente dos seus amigos e das "mesadas" do pai, como confessa numa carta dirigida a Scholem. E como qualquer verdadeiro universitário, Benjamin sonhava com uma "carreira" universitária, ser eternamente professor e aluno, que lhe garantisse a estabilidade material necessária para levar a cabo os seus projectos de pesquisa, no seio de uma comunidade universitária vista como "lugar da revolução espiritual permanente". Esse lugar no seio da comunidade universitária foi-lhe negado por homens cinzentos, pardacentos e invejosos e o nazismo consumou essa negação, roubando-lhe a vida. De certo modo, Benjamin sabia desde muito cedo que a universidade já não obedecia à lógica da sua "verdadeira autonomia", mas que estava ao serviço do "espírito profissional" que tomou conta das próprias associações livres de estudantes. Benjamin não tinha um curriculum vitae, no sentido burocrático (Weber) e burguês da expressão, porque não tinha nem desejava ter experiência profissional; era a promessa de um projecto curricular de pesquisa permanente que deveria desabrochar no seio de uma comunidade unida pela Filosofia: a Universidade como "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade", liberta da "ideologia da profissão" que algema a "consciência intelectual", a única capaz de "abandonar a segurança burguesa" e dedicar-se ao conhecimento genuíno, elevando-o à "universalidade", sob "a forma de filosofia". No ensaio Das Leben der Studenten, Benjamin elabora a antítese entre o "espírito criativo" e o "espírito profissional", a qual permite pensar a oposição entre a verdadeira universidade e a falsa universidade, como lhe chamo, a noção ideológica e catastrófica da ciência como "escola profissional" e o destino da Universidade na nossa época metabolicamente reduzida. Nesta dialéctica sem compromissos, em que os elementos da contradição se excluem mutuamente, o espírito profissional deforma e ameaça aniquilar definitivamente o espírito criador, convertendo a universidade no lugar privilegiado em que se opera "a deformação do espírito criador em espírito profissional", levada a cabo quer no interesse do Estado quer no interesse das empresas, mas sempre contra a "ideia de saber" que funda originariamente a universidade. Isto significa que o processo de degradação do ensino universitário se funda na metamorfose perversa da noção de ciência, aplaudida pelo positivismo lógico e pela filosofia analítica e tematizada por Thomas S. Kuhn, sem disso ter consciência, na sua teoria da estrutura das revoluções científicas, onde converte a epistemologia em "sociologia da ciência": a apologia envergonhada da organização social da ciência e da pesquisa científica. Ao chamar a atenção para esta oposição, a crítica redentora limita-se a "apontar para a crise que, instalada na essência das coisas, leva a uma decisão (política) à qual os cobardes sucumbem e os corajosos se subordinam" e, deste modo, liberta "o futuro da sua forma presente desfigurada, através de um acto de conhecimento". 1. Missão da Universidade: o Espírito Criador. Para elaborar o conceito de verdadeira universidade, cujos vestígios recuam e se perdem cada vez mais no passado, é necessário descontextualizar o texto orientador de Benjamin, dando-lhe a "actualidade" que ele merece, isto é, resgatando-o do passado. A universidade funda-se originariamente na "ideia de saber", associada ao ideal de uma "vida justa". Pela sua própria essência, a ciência livre, no seu sentido não-positivista, "não admite que o pesquisador se desligue dela": a prática científica obriga-o a "ser sempre professor" e, simultaneamente, aluno. Sócrates já professava que saber é ser capaz de ensinar e Bachelard acrescenta que ensinar é ser capaz de aprender. Isto significa que o professor universitário é, simultaneamente, professor perante os seus estudantes que deve iniciar nas "coisas do conhecimento" e aluno face à realidade em processo de devir constante: o conhecimento não pode petrificar e perder-se num "amontoado de conhecimentos" não articulados pela filosofia, mas deve acompanhar ou até mesmo antecipar-se aos desafios reais. A comunidade académica que é uma comunidade de homens criativos "eleva todo o estudo à universalidade, sob a forma de filosofia". Esta universalidade é alcançada quando a comunidade académica, articulando professores e estudantes, se compromete em ser, ela própria, "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade, não nos termos limitados da filosofia de uma determinada ciência, mas em relação às grandes questões metafísicas" da tradição ocidental. Só deste modo pode a ciência livre estabelecer uma relação privilegiada da "profissão" com a vida: não uma vida profissional tout court, mas uma "vida aprofundada" aberta à cidadania mundial. Como lugar da "revolução espiritual permanente", a universidade fornece e difunde um "acervo teórico e metodológico" de conhecimentos, bem como uma "experimentação cautelosa", que possibilita colocar, de modo abrangente e profundo, os novos questionamentos da realidade em devir, e fornecer uma "orientação" de vida num mundo cada vez mais global. A universidade tem como missão incentivar, galvanizar e fomentar o espírito criativo nos seus membros, porque este espírito constitui o "grande transformador" que traduz em "questões científicas", a partir de uma abordagem filosófica mais abrangente, as novas ideias que costumam "despertar mais cedo na arte e na vida social do que na ciência". Salvaguardar este núcleo de sabedoria significa reconquistar e garantir a autonomia. Na sua obra "La Trahison des Clercs", Julien Benda afirma formalmente uma dupla moral: "a do poder para os Estados e povos, a do humanismo cristão para os intelectuais". Para Benda, a função dos intelectuais no âmbito da história universal sempre foi a de "propagar os valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo". A traição dos intelectuais reside, segundo Benda, no facto de se terem passado para o lado do poder, a sua "paixão política". Ora, como recorda Benjamin na peugada de Berl, o "homem do espírito" de Benda mais não é do que a "aparição invocada do anacoreta, do clérigo medieval na sua cela", porque a paixão política esteve sempre presente na actividade filosófica: a função do intelectual é precisamente fazer a "crítica radical da ordem estabelecida" e é, nessa actividade, que se revela a sua autonomia, o seu compromisso com o mundo. A filosofia de Marx mais não é do que a filosofia do e no mundo e para o mundo: ela é a promessa sempre renovada de um mundo melhor. Numa sociedade que dispensa o pensamento e se entrega ao consumismo voraz, como a actual sociedade, compete ao Estado renovado zelar pela autonomia dos seus intelectuais e não permitir que os restantes poderes, nomeadamente os económicos e os partidários, interfiram no funcionamento das universidades, o lugar onde o espírito criativo e crítico se abriga, garantindo a base económica do exercício livre do pensamento. 2. Espírito Profissional e Destruição da Universidade. A falsa universidade instalou-se paulatinamente em nome de um novo princípio que não tem nada de inocente: a universidade deve ajudar a preparar as pessoas para uma profissão. No «princípio», era o Estado/Nação, o Estado Moderno, que, no seu processo gigantesco de burocratização, precisava de recrutar e formar os seus funcionários públicos: "a administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada, que é caracteristicamente moderna, pressupõe habitualmente um treino especializado e completo" (Max Weber). Para alcançar esse objectivo, o Estado Moderno retirou o poder eclesiástico das universidades e subordinou-as ao governo e ao Ministro que tutela o ensino superior, convertendo-as, como disse Althusser, em "aparelhos ideológicos de Estado": os professores, bem como potencialmente os estudantes, foram transformados em funcionários públicos que, em nome da eficácia do princípio burocrático, se esquivam das consequências de uma "vida intelectual crítica", com a qual deviam estar comprometidos, para ajudar a perpetuar o sistema de dominação burocrática vigente, através da aprendizagem técnica especial que envolve basicamente jurisprudência ou administração pública ou privada e muita "treta". A universidade começa assim a ser vista como uma "corporação de funcionários públicos e de portadores de diploma académico", deixando para trás a ideia de uma "comunidade de investigadores". Como diz Weber, "a ocupação de um cargo é uma profissão" e, por conseguinte, para desempenhar qualquer cargo público ou privado, as pessoas precisam obter um diploma que garanta que foram submetidas a uma aprendizagem técnica especializada, isto é, que conhecem e dominam um conjunto de procedimentos ou de regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, que certificam as suas competências. O "medo do futuro" e da solidão leva os estudantes a pactuar com o inevitável espírito filisteu predominante, personificado na figura do "velho", e a comunidade académica rende-se à "segurança burguesa" e não resiste ao estado de coisas estabelecido: a universidade converte-se numa fábrica que distribui diplomas académicos. E, tal como sucedia no tempo de Benjamin, "os professores e os estudantes passam uns pelos outros sem nunca se verem", e actualmente os estudantes passam pela universidade sem frequentar as aulas e sem terem uma vida académica de esforço: a universidade é, no presente, uma instituição que passa arbitrariamente diplomas, enquanto os seus supostos estudantes se divertem nas praxes pseudo-académicas do vício. O estudo esforçado foi substituído pelo consumo de droga, álcool, sexo e comportamentos impróprios. Retomando uma ideia de Baudelaire, poderíamos dizer que a actual comunidade social de estudantes que parasita ocasionalmente os espaços universitários para fins recreativos está "infectada" de pseudo-democracia e de sífilis. A sua ideia obsessiva de "aproveitar" a juventude traduz na prática a deformação e o despedaçamento do "eros espiritual" e a sua conversão em eros sexual: as "prostitutas" viciadas em sexo e drogas estão sempre já presentes, não nas ruas, mas no novo estilo de vida estudantil, internacionalizado pelo Programa Erasmus. Para a esmagadora maioria dos estudantes, "a ciência é uma escola profissional". Eles frequentam a universidade não para estudar mas para conquistar um diploma sem esforço que lhes garanta, de algum modo, um futuro emprego. Ora, como mostra Benjamin, "onde a ideia dominante da vida estudantil é a profissão e o emprego, não há lugar para a ciência", porque a ciência é uma actividade alheia ao espírito profissional. A ciência ensina a ser professor e não a exercer as "profissões públicas (ou privadas) de médico, jurista ou docente universitário": as "ciências actuais, através do desenvolvimento do seu aparato profissionalizante (e do seu know how) foram desviadas da sua origem comum, fundada na ideia do saber, a qual agora se transformou num mistério ou mesmo numa ficção". O que está aqui em questão não é o estatuto público ou privado das universidades, embora a concepção da universidade como empresa seja a consumação da má universidade, mas a degradação da própria noção de ciência e, neste aspecto, Benjamin antecipa um dos traços essenciais da teoria crítica: o seu antipositivismo e a sua aversão à pesquisa administrativa (Adorno). A ciência que se pratica actualmente nas universidades desmente o seu próprio pressuposto positivista de "uma ciência livre de pressupostos": quer esteja ao serviço de um Estado burocrático ou dos interesses comerciais das empresas, a ciência tende a ser reduzida a um conjunto de algoritmos que se "aprendem" e se aplicam de modo mecânico, não-criativo, sem verdadeiro conhecimento e na ausência total de pensamento. Isto significa que a própria ciência perdeu o contacto com a experiência, dispensou o pensamento e tornou-se uma espécie de autómato: a pesquisa científica tornou-se "trabalho de equipa", organizado socialmente em função do modelo burocrático predominante, cuja finalidade não é aprofundar o conhecimento e muito menos a "busca cooperativa da verdade" (Peirce), mas produzir "soluções" economicamente rentáveis ou resolver problemas que lhe são profundamente alheios. O "científico" reduzido ao "rentável", isto é, a instrumentalização da ciência por parte do sistema económico capitalista, significa que a ciência livre está morta: qualquer pessoa com treino prático pode fazer a ciência que hoje é feita nos laboratórios que usam as tecnologias mais avançadas, porque fazer este tipo de ciência não exige conhecimentos científicos; basta seguir os procedimentos padronizados e aguardar que a sua aplicação mecânica produza os efeitos esperados. A burocratização do ensino, posteriormente protagonizada pelas chamadas "ciências da educação" e as suas pedagogias do "atrasado mental", produz necessariamente automatização. Os professores profissionalizados criados nesta má universidade são autómatos: uma cadeia de procedimentos reflexos montada por um engenheiro da burocracia do Estado e das empresas e do seu Ministério da Educação ou da Ciência; carecem de experiência e de conhecimentos; preenchem reflexamente papéis e são incapazes de imaginar (e muito menos de viver) uma "vida não regulamentada". São um reflexo da grande cadeia de reflexos que é o sistema social total e comportam-se como os cães de Pavlov: submetem-se acritica e passivamente aos comandos do posto hierarquicamente superior, submissão manifesta desde logo na facilidade com que um "subalterno" se sujeita aos caprichos sexuais de um qualquer superior hierárquico, sem tematizar uma tal submissão sexual como assédio sexual. Afinal, possuem diplomas e um curriculum vitae que certificam a sua conformidade, isto é, a sua incompetência. A unidade de vida encarada como "unidade de criação, eros e juventude" foi completamente esquecida. Precisamos rejuvenescer de modo sóbrio e ascético e criticar todas as figuras da má universidade que corrompem o espírito da ciência, através das burocracias do Estado e das empresas, e eros, através da "puta" viciada em vida fácil. Só deste modo podemos ter esperança na futura restauração da verdadeira universidade. (Post editado originariamente aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
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