domingo, 22 de novembro de 2009

Teixeira de Pascoaes: Filosofia e Sentido da Vida

«O sonho do homem actual é ser um esqueleto antecipado, com asas de alumínio, sobre um planeta roído até ao caroço. Ao homem mitológico, escravo dos deuses, sucedeu o (homem) metafísico, escravo dum Deus; e a este, o (homem) industrial, escravo duma deusa de metal, aquela mulher eléctrica, numa barraca de feira, estendendo a vara mágica aos labregos espantados». «O homem é mais moisaico que darwínico, mais antropos que antropóide, o que a ciência não admite». «O orango arrependido de ser homem, eis o drama psicológico moderno». «A finalidade da vida é a definição da existência. E digo finalidade, porque todo o esforço da Natureza se dirigiu e dirige num sentido humano ou consciente». «O destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus». «O homem é ele e o seu habitat. É céu e terra contidos numa definição espiritual ou consciente». «O homem, sonhando, transborda de si mesmo, amplia o mundo, porque ilumina as suas dimensões desconhecidas. O sonho é alta temperatura, um estado térmico da alma, a sua incandescência». «Que seria do mundo sem o homem? Permaneceria como abismado numa absoluta inexistência». «O absoluto é dos poetas e o relativo é da ciência. O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas, a sua própria natureza». «O inimigo da poesia não é o sábio verdadeiro, mas o pseudo-cientista, muito pedante do que imagina saber oficialmente. (...) Ser homem é já ser poeta ou possesso duma grandeza misteriosa». «A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão». «Em todo o poeta verdadeiro existe um filósofo adormecido, como existe um poeta adormecido em todo o verdadeiro filósofo. O poeta filosofa depois de cantar e o filósofo canta depois de filosofar». (Teixeira de Pascoaes)
Se Heidegger conhecesse a poesia portuguesa dita na própria língua portuguesa, o poeta que escolheria para meditar a sua poesia seria Teixeira de Pascoaes, e não Fernando Pessoa, até porque o seu pensamento essencial está na proximidade íntima do pensamento da obra poética do poeta português, tal como este o elucidou, em voz alta, consigo mesmo: "Entre a Humanidade e a Divindade existe aquela região em que habitam os Poetas. São eles que forçam as portas do Cárcere onde o demónio aprisiona as almas divinas. Enquanto os homens admiram as paredes e as férreas grades reforçadas, o poeta entra lá dentro, num gesto libertador... É o Orfeu de todas as Eurídices, o redentor de todas as sombras, o viageiro de todos os desertos que se vestem de flores e searas... (...) O poeta é o enviado. Vem ao mundo afirmar as superiores Potestades que misteriosamente presidem ao drama da vida e lhe dão um sobrenatural sentido. Vem sublimar o vulgar, revelar o grande que as pequenas coisas escondem, converter o ruído em harmonia e a harmonia em melodia. Só ele deu uma alma divina ao corpo bruto da Natura, completando a obra de Jeová... Claro que me refiro aos poetas verdadeiros, integrados no seu primitivo significado. Poeta quer dizer profeta. Não devemos confundir os artistas do verso com os criadores de Poesia. Os primeiros interessam apenas à Literatura, ao passo que os segundos têm um interesse vital e universal, como flores e estrelas. (...) A poesia espontânea surge nos períodos genésicos da Alma. A poesia culta predomina nos seus momentos desfalecidos" (Teixeira de Pascoaes). O abismo do inferno separa Fernando Pessoa de Teixeira de Pascoaes: o primeiro conspira contra a Renascença Portuguesa, a tentativa portuense de "criar um novo Portugal", usando as mentiras de todos os seus heterónimos para fazer esquecer e silenciar a verdadeira mensagem dos "poetas místicos", como lhes chama, em especial Guerra Junqueiro, Jaime Cortesão e Teixeira de Pascoaes, invejados por terem descoberto o parentesco oculto que impera entre o poetar e o pensar: a poesia e o pensamento estão ao serviço da linguagem, pela qual intervêm e se sacrificam.
Em 1907, Teixeira de Pascoaes, o poeta de Portugal, que cantou a uma só voz, mas em correspondência com as falas dos grandes poetas nacionais, a alma lusitana, publicou no semanário "A Vida" um artigo dedicado ao sentido da vida. O objectivo de Pascoaes é responder à pergunta que todo o mortal faz a si próprio: "Para que existo?" No entanto, a resposta que encontramos neste texto de Pascoaes não é a resposta a esta pergunta "existencial", mas a resposta a outra pergunta: a do sentido da vida, não da vida individual de cada um dos mortais, mas da vida humana como manifestação biológica. O sentido da vida é interpretado como a finalidade da vida no âmbito da evolução cósmica. A ideia de finalidade foi varrida do domínio científico: a imagem científica do mundo rejeita a ideia de finalidade, como se o universo tivesse evoluído por acção do mero acaso, "a mais metafísica das entidades": "Atribuir ao acaso todos os fenómenos que se deram a favor do advento da Humanidade, é negar qualquer explicação desses fenómenos; é negar a nossa mais íntima tendência, o poder intelectual definidor. E é negar o próprio homem, não distinguir a ridícula macaca da bela circassiana, o guincho da palavra, a Caverna do Parténon". É certo que Pascoaes prefere "a concepção poética ao conceito científico", mas neste texto pretende reinserir uma noção científica de finalidade no seio da ciência, de modo a explicar o sentido ascendente da evolução sem negar a humanidade do homem e o seu poder intelectual definidor, isto é, a sua faculdade mitopoética.
Pascoaes defende a tese de que "o destino da vida humana resulta fatalmente duma outra vida espiritual superior, que aquela gerou, fazendo que o ser humano inferior, a partir desse momento genésico, tenha como fim aproximar-se dessa vida espiritual mais perfeita". Ao longo da evolução cósmica emergiram, numa ordem de sucessão dinâmica ascencional e, portanto, de complexidade e aperfeiçoamento constantes, quatro reinos ou formas cósmicas - o mineral, o vegetal, o animal e o espiritual, obedecendo a uma única lei, a lei de excedência. A natureza evoluiu no sentido de adquirir "o máximo poder de consciência". Graças ao seu princípio activo, o éter (Haeckel), a estrutura da matéria é intrinsecamente dinâmica: "O éter, princípo activo, nas suas condensações em massa ponderável, depositou nesta grandes reservas de energia latente que, em certos períodos de evolução cósmica, se expande, dando à matéria a faculdade de se exceder e traduzir em formas originais de vida, sempre superiores às antecedentes. Se a evolução universal se fizesse apenas à custa das energias ordinárias, aquelas que estão sempre despertas, (nos períodos intergenésicos) essa evolução não se faria sempre num sentido ascensional. Vê-se que o Universo tem grandes reservas de forças latentes que, de vez em quando (nos períodos genésicos correspondentes ao aparecimento das quatro grandes formas cósmicas) se expande e acorda, fazendo passar a matéria nebulosa a estrela, da estrela a planeta; de pedra e ferro e água, etc., a árvore e flor; de árvore a peixe, a réptil, a ave, a mamífero, a homem; e deste, enfim, ao ser espiritual que, em virtude da sua idêntica estrutura à do éter inicial, fecha o círculo das grandes metamorfoses do Universo". Ou, como sintetiza Pascoaes num outro artigo: "O éter condensou-se em massa ponderável, dando origem à matéria atómica; esta, excedendo-se em virtude da lei de excedência, gerou a fase vegetal, e esta, por sua vez, a fase animal; e esta ainda, graças à mesma lei, deu origem à fase psíquica, alcançando assim a matéria a estrutura e qualidades iniciais, e fechando-se o grande círculo evolutivo do Cosmos". Isto significa que "a matéria principia em dinamismo inconsciente e termina, após os seus aspectos transitórios e dolorosos, em dinamismo consciente ou espírito".
O aspecto mais interessante da teoria do sentido da vida de Pascoaes reside no facto de considerar que os "fenómenos espirituais" formam um mundo distinto e autónomo, - a noosfera na terminologia de Chardin ou de Monod ou o mundo 3 na linguagem de Popper -, do reino animal, isto é, "um novo Reino, o último em que se divide o Universo e para o qual os três Reinos anteriores caminham, realizando os seus respectivos fins". A lei de excedência mediante a qual cada ser ou coisa de um reino procura ir além de si mesmo, excedendo-se, é uma lei finalista ou teleonómica: "a vida mais perfeita atraí a menos perfeita", ou seja, "o fim dum ser resulta da sua tendência para outro ser que lhe é distinto e superior". Embora o denomine Reino Psíquico, identificando-o com o mundo 2 de Popper e atribuindo o seu estudo à Psicologia, Pascoaes acaba por corrigir esse erro quando afirma que o fim da vida humana é aproximar-se constantemente desse reino objectivo dos seres espirituais, que o próprio homem criou, "sobrenaturalizando" e "cultivando" a natureza, transformada e apropriada como a Grande Casa do Espírito, a Pátria, a Terra-Natal, resguardada na quadratura do mundo, graças à sua faculdade apurada de se exceder e de se transcender, aperfeiçoando-se moralmente e objectivando na história a sua liberdade e a sua aspiração divina. Se nesta última metamorfose da matéria que é o "reino do espírito" (Hegel) "Deus ocupa o lugar correspondente ao do homem na escala zoológica", então a divindade é a "medida do homem" (Hölderlin): o homem caminha na direcção de Deus e, nesse sentido, a antropologia liberta-se da zoologia e tende a ser atraída pela teologia no âmbito aberto de um antropoteísmo. A confusão psicologista só surge quando não se leva em conta o interaccionismo: apesar de serem autónomos, os reinos interagem entre si, o que inviabiliza uma análise estritamente reducionista da vida, da mente e dos seres espirituais que vivem no nosso cérebro, porque considerar os fenómenos espirituais como parte integrante do reino animal equivale a considerar os fenómenos orgânicos como parte integrante dos fenómenos inorgânicos: uma ideia não é uma mera função cerebral. O neuroreducionismo constitui um erro: as ideias e o cérebro formam dois reinos distintos, pertencentes a duas fases distintas da evolução cósmica, mas ligam-se de tal modo que o cérebro apenas constitui o meio onde as ideias habitam, e "o nosso eu não é mais do que a harmonia consciente que resulta do conjunto de todas as formas e seres espirituais que vivem no nosso cérebro". Pascoaes cunhou a expressão "Biologia Psíquica" para designar a disciplina que estuda as ligações entre o cérebro e as ideias, bem como a reprodução das ideias e a sua difusão através dos contactos com os cérebros e as suas redes neurais. Pascoaes previu assim o surgimento das neurociências, em especial da psicologia biológica (biopsicologia) e da biologia do espírito (neurociência espiritual). O mundo das sensações de Alberto Caeiro não resiste à solidez da explicação das sensações elaborada por Pascoaes, o que mostra a sua superioridade intelectual em relação a Fernando Pessoa: o homem como "argonauta das sensações" abdica do pensamento e, nesta abdicação, despede-se da sua humanidade, retraindo-se no "animal" desalmado incapaz de dar "um passo para alterar /Aquilo a que chamam a injustiça do mundo" (Alberto Caeiro).
A teoria do sentido da vida de Pascoaes suscita problemas filosóficos intrigantes que ainda não foram pensados. A resposta de Pascoaes à pergunta "Para que existo?" desvia-se da própria pergunta para a recolocar num novo horizonte, recuperando o sentido da existência: a era da técnica, ou melhor, da tecnociência, que construiu "o seu ponto de vista, entrincheirando-se nele, egoísta e intolerante, pretendendo, como os seus inimigos, governar o mundo" através do confinamento depressivo das criaturas dentro da sua existência animal, do materialismo grosseiro e do mercantilismo. Com o reino intolerante do "clericalismo científico" emergiu a "crise moral" que "queima as almas", tal como a Inquisição tinha "queimado os corpos". Este desvio justifica-se pelo facto do homem contemporâneo, o homem da técnica, o "homem industrial", comportar-se como um "antropóide" que se arrepende de ser homem. Não comportar-se como homem humano, isto é, como criador do reino dos seres espirituais, constitui o drama psicológico da humanidade na era da técnica, essa "deusa de metal" ou "mulher eléctrica". Pascoaes atribui a responsabilidade por este arrependimento de ser homem à própria ciência, neste caso particular ao darwinismo, que não admite que o homem seja mais antropos do que antropóide: a ciência teima em reduzir o homem à sua condição animal, negando-lhe a sua dimensão espiritual e a sua capacidade de se transcender e de se realizar como ser espiritual, isto é, como ser livre e criador de cultura. Isto não implica uma desvalorização dos animais ou mesmo da própria animalidade do homem, porque, como escreve Pascoaes, "os animais são pessoas, como nós somos animais". O destino do homem não é ser um mero antropóide, prisioneiro da "actividade vegetal" - "nascer para comer e comer para morrer" - num planeta convertido em "refeitório e cemitério", mas "ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus". A tarefa do homem é compreender a sua existência e superá-la mediante a transição do material para o imaterial: o homem é, para Pascoaes, "um valor absoluto na sua actividade espiritual" e esta actividade cultural é "síntese consciente do Universo", síntese simultaneamente consciente e emotiva, científica e poética. Como valor absoluto, o homem move-se no reino dos seres espirituais que giram na "órbita de Deus" (G. Junqueiro), sonhando a própria essência do mundo, de modo a libertar-se do nada que o aflige na sua condição mortal de suspenso do abismo e a ampliar o mundo através da sua actividade de transcendência, acrescentando-lhe o mundo da cultura. Esta "concepção existencial do homem", a do homem universal, simultaneamente físico e metafísico, sem o qual o mundo permaneceria como abismado numa absoluta inexistência, inconsciente de si mesmo, não se conforma com o "conceito puramente científico da Existência" produzido pela ciência na era da técnica: a noção da existência contida "numa balança ou entre os ponteiros dum compasso", como se pudesse ser objecto de cálculos matemáticos. Ao tratar o homem como um mero antropóide, o darwinismo aliena a existência humana da sua essência e da sua finalidade, impedindo-a de atingir o seu sentido pessoal e colectivo da vida. A concepção existencial do homem, exposta no "Regresso ao Paraíso" (1912), corresponde à verdadeira filosofia, isto é, à filosofia poética, que permite assimilar o mundo a nós, sem no entanto o desnaturar. A recepção portuense de Nietzsche não é alheia a Pascoaes: Zaratustra anunciou à multidão que "o homem é uma corda amarrada entre o animal e o super-homem - uma corda por cima de um abismo. Um perigoso passar para a outra banda, um perigoso estremecer e ficar parado". A grandeza do homem reside no facto de ser uma ponte e não um fim: "aquilo de que se pode gostar no homem é que ele é uma travessia e um afundamento". Pascoaes retém a noção de ponte ou de travessia: o homem é uma ponte entre o antropóide e o Sagrado, uma ponte que se ergue no "abismo sem fundo" e que o homem deve atravessar para encontrar o sentido da sua vida. Ou, nas palavras do poeta Pascoaes: "A alma, em virtude da sua força activa de esperança, visa o Futuro, - o Incriado; e em virtude da sua força passiva de lembrança, apenas encontra o Passado ou a Natureza criada, imenso espectro evidente nas suas formas endurecidas e mortas. O Universo é o cadáver de Deus, a estátua fria e inerte da Esperança. As estrelas gelaram-lhe na face, como antigas lágrimas que já não encerram dor alguma. O sol é um riso de metal caindo sobre um globo de ferro. A alma fulge na escuridão absoluta. Canta no silêncio absoluto. Por baixo dela jaz o fantasma do Passado; por cima a noite silenciosa do Futuro. E ela própria é passado e futuro, invocação e desejo. Ausente de si mesma no que há-de ser e no que foi, ou vê espectros da Morte materializados, ou sombras por encarnar da Vida. O Presente divino, a Realidade em si, a Esperança imaterializável, Deus, excepcionalmente vislumbrados, fogem à sua clara e constante percepção. No mundo sensível só há futuro e passado. O movimento abstracto da esperança (tempo futuro) mal se concretiza, é lembrança, movimento inerte, matéria (tempo passado). A cada acção criadora da esperança (espaço e tempo futuro) corresponde a sua paralisação para trás em formas criadas (tempo e espaço passado)". (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Fernando Pessoa: Poesia e Homossexualidade

«Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,
Trincasse velas, remos, cordame e poleame
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes! (...)
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez - pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!»
(Álvaro de Campos, Ode Marítima)
«A mulher que sou quando me conheço». (Bernardo Soares, Livro do Desassossego)
É muito difícil encontrar actualmente uma definição consensual da psiquiatria, porque são diversas as áreas disciplinares que contribuem para a constituição da psiquiatria como ramo da medicina, fazendo com que se desdobre em diversas problemáticas, e para o diagnóstico e a terapêutica das perturbações mentais. Uma definição vulgar define a psiquiatria como um ramo da medicina que estuda a patologia da "vida de relação" ao nível da integração que assegura a autonomia e a adaptação do homem nas condições da sua existência, mas a tendência é cada vez mais a de a encarar como uma ciência do comportamento e das perturbações de comportamento. A imagem popular da psiquiatria ainda associa-a às "doenças mentais", de resto uma designação que caiu em desuso, e é essa noção que descobrimos em Fernando Pessoa. Num dos seus escritos de crítica literária, Fernando Pessoa afirmou que "o único crítico de arte ou de letras deve ser o psiquiatra". A noção do psiquiatra como o único crítico literário é deveras estranha. Como fingidor nato, Fernando Pessoa simula conhecer a obra de Freud e dos Freudianos e chega mesmo a dizer que não precisava ler Freud para "conhecer, pelo simples estilo literário, o pederasta e o onanista, e, adentro do onanismo, o onanista praticante e o onanista psíquico". E, mais adiante, procura explicar a introversão (autista) de Mário de Sá-Carneiro - a sua falta de calor humano e de ternura humana - pelo facto de ter perdido a mãe quando tinha dois anos. Como nunca conheceu o carinho materno, devido à morte prematura da mãe, Sá-Carneiro vira sobre si-mesmo a ternura própria e, como verificou Joel Serrão, torna-se um onanista compulsivo. Numa carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa utiliza a psiquiatria para explicar a génese dos heterónimos: "A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim". Porém, entre ser simplesmente histérico ou ser um histero-neurasténico, Pessoa opta pela segunda hipótese, "porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico em mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia..."
Fernando Pessoa auto-rotula-se em termos médicos como um "histero-neurasténico" desde a infância, mas, nesta auto-interpretação, não é a sua personalidade, a sua sexualidade real ou a sua enfermidade de alma que interessam: o que deveras interessa é compreender a unidade da sua obra poética, onde o seu eu se despersonaliza. A noção de despersonalização de que fala Pessoa parece aproximá-lo da teoria impessoal da poesia de T.S. Eliot: a concepção de poesia como um "todo vivo de toda a poesia já escrita". Nesta perspectiva, o poeta procura conhecer o passado, a Tradição ou o Espírito Ocidental, do qual o presente é a compreensão, e aperfeiçoar constantemente esse conhecimento, rendendo-se e auto-sacrificando-se a si próprio, numa extinção contínua da sua personalidade. Porém, em Fernando Pessoa, a despersonalização não significa o sacrifício das personalidades e das opiniões dos poetas, dos homens e das mulheres a uma ordem impessoal, a Tradição, mas sim a fragmentação do próprio eu e a sua dispersão - orquestrada pelo "dramaturgo" - em múltiplas identidades poéticas, os seus heterónimos, fragmentação essa que Pessoa, na carta a Armando Cortes-Rodrigues, pensa, talvez de modo precipitado, em termos de "crise psíquica", portanto, em termos psiquiátricos, possibilitando uma leitura psicopatológica da sua obra e da sua "alma enferma" (William James). Mas, como onde há dramaturgo, há uma linha condutora consciente unificadora e controladora da dispersão interior, a despersonalização não significa, em Fernando Pessoa, dissociação e/ou desrealização: Fernando Pessoa não sente que perdeu o controle sobre os seus pensamentos, imaginação ou lembranças, como se o seu corpo - movimentos corporais e comportamentos - e a sua mente - pensamentos e identidades - lhe fossem completamente estranhos, observados por si à distância como algo morto (despersonalização), ou carentes de integração e, portanto, fora do controle consciente e selectivo (dissociação). A auto-interpretação de Pessoa em termos psiquiátricos mais não é do que um recurso retórico para dar conta da sua "tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram": Fernando Pessoa é desde a infância um "dramaturgo".
Usando a obra de Freud e de Nietzsche, Harold Bloom reescreveu a história literária em termos de complexo de Édipo: os poetas vivem angustiados à sombra de um "poeta forte" anterior que, como "pai primordial", o "Pai Poético", os oprime. Todos os poemas podem ser lidos como tentativas de escapar dessa "angústia de influência" mediante a remodelação e a revisão sistemáticas de um poema anterior: "A Influência Poética - quando diz respeito a dois poetas fortes, autênticos -, processa-se sempre através de uma leitura má do poeta anterior, um acto de correcção criativa que é realmente e necessariamente uma interpretação errónea. A história da influência poética frutífera, que o mesmo é dizer a tradição principal da poesia ocidental a partir do Renascimento, é uma história de angústia e de caricatura defensivas, de distorções, de revisionismos perversos e deliberados sem os quais a poesia moderna enquanto tal não poderia existir". Presos nas teias da rivalidade edipiana, filhos e pais travam constantemente batalhas entre si e, quando essas lutas são entre iguais fortes, o poeta forte procura a todo o custo desarmar a força castradora do seu "perseguidor" - o pai -, penetrando-o a partir de dentro e reescrevendo o poema precursor de modo a revê-lo, deslocá-lo, encobri-lo e modificá-lo. É por isso que todos os poemas podem ser lidos como uma reescritura de outros poemas, mais precisamente como a sua "interpretação errónea". Só assim - lendo-se mal uns aos outros - os poetas fortes conseguem abrir espaço à sua própria originalidade imaginativa, isto é, desobstruir um "espaço de imaginação para si próprios". O poeta forte mais não é do que um "atrasado" que, reconhecendo corajosamente esse "atraso", procura enfraquecer a força do precursor. O poema é essa tentativa de enfraquecimento e de encobrimento que visa, através de diversos recursos retóricos, tais como as seis proporções de revisão - clinamen, tessera, kenosis, demonização, askesis e apófrades -, desfazer e superar outro poema-pai, donde resulta que o significado de um poema é outro poema gerado intra- e inter-poeticamente: "O poeta forte não consegue gerar-se a si próprio - deve esperar pelo seu Filho, que o definirá como ele definiu o seu Pai Poético. Gerar quer aqui dizer usurpar, e esse é o trabalho dialéctico do Querubim", isto é, da "angústia criativa".
A utilização da psicanálise para elaborar uma teoria da poesia não é isenta de dificuldades ou mesmo de abusos hermenêuticos. Theodor W. Adorno denunciou todas as interpretações psicanalíticas da arte que erigem abusivamente em critério um psiquismo normal, mesmo quando a qualidade estética é, como nos casos de Baudelaire e de Fernando Pessoa, condicionada pela ausência da mens sana: "As obras de arte são, para a psicanálise, sonhos diurnos; ela confunde-os com documentos, transfere-os para os que sonham enquanto que, por outro lado, os reduz, em compensação da esfera extramental salvaguardada, a elementos materiais brutos, de um modo aliás curiosamente regressivo em relação à teoria freudiana do «trabalho do sonho». (...) As obras de arte são incomparavelmente muito menos reflexo e propriedade do artista do que pensa um médico, que apenas conhece o artista no seu divã. Só os diletantes referem tudo o que se encontra na arte ao inconsciente. A pureza da sua sensibilidade repete clichés decadentes. No processo de produção artístico, as moções inconscientes são impulso e material entre muitos outros. Inserem-se na obra de arte através da mediação da lei formal; o sujeito literal, que compõe a obra, não passaria de um cavalo pintado. As obras de arte não constituem thematic apperception tests do seu autor. Em tal amusia é responsável também o culto que a psicanálise rende ao princípio de realidade: o que não lhe obedece é sempre «fuga» apenas, a adaptação à realidade surge como o summum bonum". Na carta a João Gaspar Simões, Fernando Pessoa denuncia precisamente a "franca paranóia (freudiana) de tipo interpretativo", cujo "critério psicológico original e atraente" de avaliação das obras de arte assenta numa "interpretação sexual". O freudismo conduz à produção de livros de ciência "obscenos" que interpretam os "artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante", "ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizada contemporânea". Ora, para Fernando Pessoa, "o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo". É imperfeito, porque nenhum sistema teórico nos pode dar a chave única da "complexidade indefinida da alma humana". É estreito, porque reduz tudo à sexualidade, esquecendo que "nada se reduz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atómica". E é utilíssimo, porque destacou três elementos importantes da vida da alma e fundamentais para a sua interpretação: o inconsciente e a qualidade irracional dos humanos (1), a importância da sexualidade como força motivacional (2) e aquilo a que Pessoa chama a "translação", isto é, "a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de se determinar a existência de certas qualidades ou defeitos por meio de efeitos aparentemente interrelacionados com elas ou eles" (3). Fernando Pessoa não nega o uso dos conceitos psicanalíticos como "estímulo da argúcia crítica", desde que esta saiba "afiar a faca psicológica (imagem fálica) e limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico (imagem iónica)". Contra os abusos interpretativos de alguns críticos, Pessoa esclarece que a função do crítico é estudar o artista exclusivamente como artista (1), clarificar a explicação central do artista (2), e cercar os seus estudos de uma "leve aura poética de desentendimento" (3). E apresenta o seu exemplo para clarificar o segundo ponto metodológico: "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro - eis tudo. Do ponto de vista humano - em que ao crítico não compete tocar, pois de nada lhe serve que toque - sou um histero-neurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir". A chave hermenêutica apresentada por Pessoa para abrir todas as fechaduras da sua expressão poética reconduz-nos ao célebre poema "Autopsicografia":
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
"E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
"E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração".
Teixeira de Pascoaes, o pai eterno visado no trabalho intra-poético de Fernando Pessoa, deixou-nos estas palavras de cautela hermenêutica: "Ser sincero é ser, é possuir uma presença integral, como as árvores e os penedos. A mentira representa pontos obscuros, falhas da nossa pessoa que pretendemos ocultar. Mas a sinceridade é a própria luz das almas. Por isso, ela seduz e deslumbra os olhos que amam a claridade". Quando analisa a poesia alheia, em especial a dos pais poéticos que urge assassinar, Fernando Pessoa recorre, dito em linguagem hegeliana, à mediação psicológica e à mediação sociológica para compreender as obras de arte e, no caso referido, para interpretar mal os poemas precursores. O recurso abundante à mediação psicológica visa denegrir os chamados "poetas místicos" - Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro e Jaime Cortesão, entre outros - e, como recurso extra-poético, viola o ponto dois da metodologia da crítica literária proposta pelo próprio Fernando Pessoa: explicitar a "explicação central do artista". Os heterónimos ou as máscaras de Pessoa - Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, além do seu semi-heterónimo Bernardo Soares -, cada um dos quais apetrechado com um profundo conceito de vida e marcado pelas suas próprias influências e preferências poéticas, nacionais e estrangeiras, embora todos eles "discípulos de Caeiro", incluindo o próprio Fernando Pessoa, constituem personagens que Pessoa utiliza para interpretar mal esses poetas nacionais, de modo a desbravar um espaço onde pudesse afirmar sem mácula a sua originalidade imaginativa. A dramatização e a criação dessas máscaras acontecem dentro da própria poesia de Pessoa ou, como prefere dizer, dentro de si próprio, o que mostra a intensidade da angústia da influência sofrida continuamente por Pessoa, que precisa usurpar os outros e vivê-los como suas criações internas e privadas dentro de si próprio. A elaboração das biografias de cada um dos heterónimos mostra que, durante a sua viagem, Pessoa acaba por assassinar cada um deles, com o objectivo de descobrir a sua unidade original. Numa atitude de desprezo pelos seus contemporâneos e antecessores, Pessoa afirma que a sua crise psíquica é a crise "de se encontrar só" por se ter adiantado de mais dos "companheiros de viagem". Ora, afirmar que se encontra adiantado em relação aos poetas-pais equivale a reconhecer o sucesso da sua tarefa de os superar ou de os melhorar. Porém, essa superação bem-sucedida não é evidente, até porque Pessoa se limita a substituir o saudosismo de Pascoaes por um futurismo absolutamente místico: a mitologia do Quinto Império, fortemente devedora dos ensinamentos herméticos de Sampaio Bruno, mas privado da sua leitura antropológica do Encoberto. Bernardo Soares acaba por reconhecer esse fracasso poético: "A minha alma é fraca de mais para ter sequer a força do seu próprio entusiasmo. Sou feito de ruínas do inacabado e é uma paisagem de desistência a que definiria o meu ser. /Divago, se me concentro; tudo em mim é decorativo e incerto, como um espectáculo na bruma. /Escrevo com uma grande intensidade de expressão; o que sinto nem sei o que é. Sou metade sonâmbulo e a outra parte nada. /A mulher que sou quando me conheço". Conhecer a mulher que é ou, como diz Prado Coelho, a sua pederastia passiva, é reconhecer que a sua ambição, mesmo a de vir a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, não foi suficiente para fazer dele um poeta forte, tal como Shakespeare, Goethe ou Whitman: o seu super-Camões que parodia o super-homem de Nietzsche foi apenas um sonho diurno que não conseguiu concretizar e completar. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Mário de Sá-Carneiro: Poesia e Jogo de Identidades

«Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
«Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.
«Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
«Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto.
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
«Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...» (Mário de Sá-Carneiro)
A Filosofia que habita a linguagem, juntamente com a poesia, tem sido avessa à meditação da chamada "poesia confessional", talvez por temer dispersar-se nas linguagens plurais dos mais diversos eus singulares e dos seus mundos próprios. No entanto, este receio e pudor filosóficos não se justificam, primeiro, porque, como mostrou Hegel, o indivíduo é mediado pelo universal e vice-versa, e, segundo, porque a lingua(gem) usada pelo poeta é uma objectividade que, a-propriada pelo poeta e pelos seus leitores, serve de mediador entre o indivíduo e a sociedade, configurando as emoções subjectivas e, como meio de expressão dos conceitos, produzindo "a relação indispensável com o colectivo e a realidade social" (Adorno). A essência da poesia não se esgota na mera expressão da subjectividade ou na mera expressão da sociedade: a poesia é a "experiência" do processo dialéctico através do qual o indivíduo e a sociedade se constituem um ao outro e se determinam reciprocamente. Nessa experiência, a lingua(gem) a-propriada cria mundos que falam uma voz própria, a voz do poeta, cujo eu se esquece de si no interior da língua, tornando-se plenamente presente. Toda a poesia abre e instaura uma expansão de sentido no mundo já significado e, como epifania de mundo, consagra um mundo que nos arranca do nosso próprio mundo, oferecendo-nos um novo espaço, bem como a oportunidade de habitar o mundo que fundou. O pensamento filosófico procura elucidar os mundos poéticos, deixando-os falar no seu dizer originário. Mário de Sá-Carneiro quis ser escutado e compreendido: "Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda" ("Caranguejola"). Ou, nas palavras de Paul Celan: "O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo".
O poema de Mário de Sá-Carneiro, citado em epigrafe, intitula-se "Feminina" e, nele, o poeta "confessa" um desejo secreto: Mário de Sá-Carneiro "queria ser uma mulher", não uma mulher qualquer, mas um determinado tipo de mulher, a mulher fatal que excitasse todos os homens que a olhassem e que tivesse muitos amantes, enganando-os a todos, até mesmo o amante predilecto. Porém, o poeta, sendo homem e vivendo numa determinada sociedade, sabe bem que estes seus "enleios" e "fantasmas" não podem ser desculpados num homem: as noções sociais de homem e de masculinidade incorporadas pelo poeta vedam-lhe o acesso público e real a esse desejo secreto, do qual toda a sua poesia é uma bela poetização. Embora não seja nomeada, a sociedade está presente nessa "dispersão" interior do eu poético que revela o conflito interior, o antagonismo entre o desejo de ser mulher e a sociedade incorporada e interiorizada que proíbe a sua manifestação e a sua realização: a grande ausente, a sociedade amputadora, fala do interior do eu, como a sua consciência moral, segredando-lhe: "O teu desejo não pode ser desculpado no homem que és". O conflito do eu consigo mesmo reflecte, no labirinto interior, azul anímico, o antagonismo do indivíduo e da sociedade, em cuja dialéctica se joga a identidade. Se a socialização fosse completamente triunfante e bem sucedida, o problema da identidade, o surgimento na consciência da pergunta "Quem sou eu?", não existiria: a identidade seria dissolvida na simetria completa entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, o eu seria a sociedade e a sociedade, o eu, o que constitui uma impossibilidade antropológica. A socialização nunca é totalmente bem sucedida e, em todas as sociedades, emergem assimetrias e rupturas entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, que permitem às pessoas conceberem-se a si mesmas em termos de "profundidades ocultas" ou de um jogo de identidades, sem o qual o individualismo e a inovação não seriam possíveis. Qualquer humano é potencialmente um traidor de si mesmo, no sentido de poder trair, num determinado momento da vida, um dos seus múltiplos eus, públicos ou privados. Sá-Carneiro pensou esta traição de si mesmo como crime: o crime não é somente o acto de trair o "eu" que lhe é socialmente atribuído pela socialização primária - "Tu és um homem e deves comportar-te como homem em todas as circunstâncias da tua vida" - e confirmado pelos outros significativos e generalizados (G.H. Mead) no decorrer da conversação quotidiana, mas também e fundamentalmente trair o seu "eu mais íntimo", aquele que não se deixa colonizar pelo mundo estabelecido, com o qual discorda. Aceitar o eu socialmente atribuído e agir em conformidade com os papéis adequados é trair o eu secreto, e escutar este último e abrir-lhe as portas da vida é trair o "eu público": em qualquer uma destas circunstâncias e opções de escolha, o homem é sempre um traidor de si mesmo, e, por isso, Mário de Sá-Carneiro é levado, desde os poemas de juventude, a definir o homem como um "criminoso": "Eu quero ser um criminoso, /Se ter amor é um crime". Aos olhos da sociedade heterosexista, ter amor não é um crime, desde que o indivíduo se conforme aos papéis sexuais e de género que lhe são atribuídos, identificando-se com eles, mas, quando não há essa identificação, devido a um acidente biográfico, social ou biológico, o amor que deseja e procura desvia-o da "tirania da normalidade" (Espinosa), tornando-se um crime numa dupla-circunstância: por um lado, no caso desse amor revelar-se, um crime contra os padrões sociais que regularizam as relações sexuais, e, por outro lado, no caso de não se revelar, um crime que o indivíduo comete contra "um Outro que eu não posso acorrentar" ("Ângulo"), a sua identidade subjectivamente real. Os crimes diferenciam-se pela "distância" ("Distante Melodia") em relação a esse "Outro", o mais próximo de si mesmo e o mais escondido dos outros, que, no poema "Abrigo", deseja ser mulher de Paris: "Paris - meu lobo e amigo... /- Quisera dormir contigo, /Ser todo a tua mulher".
Como homem, com uma identidade socialmente atribuída, logo à nascença, e marcada por um acidente anatómico, a visibilidade do falo, que colide com a sua mais secreta identidade subjectivamente real, Mário de Sá-Carneiro é um "fantasma", isto é, um "emigrado" de si mesmo, mais precisamente desse "Outro que não posso acorrentar" por ser demasiado íntimo, próximo e real: a identidade subjectivamente real torna-se uma identidade de fantasia, objectivada não só dentro da sua consciência, mas também, numa forma transfigurada, como desejo de ser mulher, na sua poesia. O poema "Como Eu Não Possuo" revela o confronto interior desses dois mundos discordantes:
«Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
«Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!
«Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu.
Falta-me unção pra me afundar no lodo.
«Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem me estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
«Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
«Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua.
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!...
«Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...
«Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...
«De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo».
Todos os humanos que o rodeiam possuem alguma coisa, mas ele, Mário de Sá-Carneiro, parece ser o único que nada possui, até "mesmo quando enlaço". "Castrado de alma" e sem saber fixar-se e vincular-se a outro humano, homem ou mulher, afunda-se na sua dor: não é como os outros e, no mundo destes outros que possuem, ele é um emigrado, um estranho ou um clandestino num mundo heterosexista, no seio do qual não pode esperar por alguém por causa da sua "delicadeza" ("Caranguejola"). O desejo da mulher que vai na rua é "desejo errado", porque o que o poeta deseja possuir não é a mulher como ser-outro, complemento de si mesmo, mas a sua "carne estilizada" no seu próprio corpo: Mário de Sá-Carneiro só vibraria "se fosse aqueles seios transtornados" e "se fosse aquele sexo aglutinante". Na posse imaginária da mulher, o poeta quer ser e sentir "aquilo que estrebucho e não possuo", isto é, "quer (simplesmente) ser mulher": possuir seios transbordantes e aguçados e possuir, em vez do pénis, uma vagina. A dor em que se afunda, sem conseguir ascender ao céu - ser mulher - ou descer ao lodo - ser homossexual -, é o rasgo da dilaceração ou, como diz o poeta, castração de alma, a alma amputada, no sentido que é dito neste poema: «Eu não sou eu nem sou o outro, /Sou qualquer coisa de intermédio: /Pilar da ponte de tédio /Que vai de mim para o Outro». A dor dilacera e dispersa a alma, diferenciando-a e cortando-a em pedaços, as diversas identidades de Mário de Sá-Carneiro. Mas, ao rasgar a sua unidade anímica e ao diferenciá-la, a dor reúne e articula o que foi separado pelo rasgo e pelo corte. A alma do poeta habita a dor, onde encontra o seu suporte - o "pilar" - no "intermédio": a "ponte", o "labirinto" ou a "escada" entre duas identidades, uma socialmente atribuída, o "desejo errado" - ser homem heterossexual -, e outra - ser mulher heterossexual - poetizada para enfrentar a identidade não-assumida aberta e publicamente: a homossexualidade passiva. Mário de Sá-Carneiro poetiza o entre, o intermédio: o desejo de ser mulher, a identidade transexual como recurso poético e ficcional para resolver a sua dispersão interior. Porém, a identidade ficcionada elaborada para reunir a dispersão interior produz um outro corte mais profundo que não cicatriza: rasga a sua unidade com o corpo que, ao "espelho", a nega como "fantasiada guerra" ou "fantasia alada". Alguns versos de dois poemas revelam o desconforto com o próprio corpo. Nos poemas "Crise Lamentável" e "O Fantasma", o poeta, além de revelar desconforto de género, confessa um desejo de mudança corporal: "Gostava tanto de mexer na vida, /De ser quem sou - mas de poder tocar-lhe... /E não há forma: cada vez perdida /Mais a destreza de saber pegar-lhe. /(...) /"Que tudo em mim é fantasia alada, /Um crime ou bem que nunca se comete: /E sempre o Oiro em chumbo se derrete /Por meu Azar ou minha Zoina suada..." (Crise Lamentável). "O que farei na vida - o Emigrado /Astral após que fantasiada guerra -/Quando este Oiro por fim cair por Terra, /Que ainda é oiro, embora esverdinhado?" (O Fantasma).
O verdadeiro eu do poeta está fechado hermeticamente no armário e, como não conseguiu "estender pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés", entregou-se desesperadamente a uma "fantasiada guerra" que é "resgatada" na poesia: Mário de Sá-Carneiro procurou habitar poeticamente a sua verdadeira identidade, embora numa forma transfigurada, mas não encontrou quietude e serenidade e a sua alma peregrina e "vagabunda", mergulhada e atormentada no "cismar" ("Escala") consigo mesma e na "divagação" ("Manucure"), não se transfigurou em alma azul, capaz de operar a transformação desejada: "E eu que sou o rei de toda esta incoerência, /Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la /E giro até partir... /Mas tudo me resvala /Em bruma e sonolência" ("A Queda"). No poema "Dispersão", fala da perda: "Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, /E hoje, quando me sinto, /É com saudade de mim. /Passei pela minha vida /Um astro doido a sonhar. /Na ânsia de ultrapassar, /Nem dei pela minha vida... /Para mim é sempre ontem, /Não tenho amanhã nem hoje: /O tempo que aos outros foge /Cai sobre mim feito ontem". As "catedrais de Ser-Eu" ruíram todas, quais ilusões lunares e copulares do Mário, e, como nenhuma das suas vidas, a real e a idealizada numa figura de papel, lhe agradavam, Mário de Sá-Carneiro entrou numa profunda crise de angústia, uma "crise lamentável", que o conduziu ao suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Este acto de antecipação voluntária da morte certa, no qual Mário de Sá-Carneiro afirma plenamente a sua liberdade poética, constitui a acusação derradeira da sociedade heterosexista e fechada que nega aos seus membros a possibilidade de viverem de acordo com o seu mais íntimo eu e as suas aspirações a ser mundo na abertura do mundo comum. A ânsia do poeta é a ânsia por uma sociedade (eroticamente) plural, onde cada um possa habitar sem angústia o seu verdadeiro mundo subjectivo e nele encontrar a serenidade e a quietude da alma azul: o início originário de um novo mundo. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Antero de Quental: Poesia e Filosofia

«Fui rocha, em tempos, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...
«Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul glauco pacigo...
«Hoje sou homem - e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...
«Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.» (Antero de Quental)
Este soneto de Antero de Quental intitula-se "Evolução". Nos dois tercetos, Antero diz o que entende por evolução: um processo ascendente que aspira à liberdade. Mas quem aspira à liberdade? O primeiro verso do primeiro terceto responde: o homem que se localiza no topo dessa escada em espiral da evolução. A rocha, o tronco ou ramo, a onda, o granito, a fera ou o monstro primitivo, não aspiram conscientemente à liberdade, e, mesmo que aspirassem de modo consciente, seriam incapazes de a realizar, porque são seres privados da capacidade de interrogar e de agir livremente: o homem é o único ser capaz de interrogar o universo e, por isso, de realizar a aspiração à liberdade no reino da História. Isto significa que o universo «precisa» do homem para realizar a sua aspiração à liberdade e alcançar a sua plenitude de ser, porque o universo sofre, mas não pensa: o homem é o único ser que, lançado na balança constituída pelos três eixos do tempo (passado, presente e futuro), pensa, trazendo para o presente a sinceridade do passado e voltando-se para o futuro como quem aguarda a realização do possível. O universo exprime-se nas categorias da consciência humana: o homem não só conta os factos do universo e do seu tempo histórico, como também se interroga no seu foro íntimo. Lançado na Terra pelo "destino", isto é, pelo ser em evolução, onde o espírito se agita em todas as suas formas inorgânicas e orgânicas, o homem incarna a ideia no seu peito, e, como ser que interroga, procura respostas. O homem enquanto ser que pensa é todo o universo consciente de si mesmo e dotado de inteligibilidade e de sentido. Mas o homem que pensa nem sempre encontra respostas: o choro é o resultado final de uma tentativa de interrogar fracassada, isto é, a existência humana que sofre a falta de respostas a todas as suas perguntas. O homem sem respostas é um ser-dividido e dilacerado, um ser-em-sofrimento, um ser que se perde para a existência plenamente realizada. A dualidade de uma existência trágica: eis o destino de um povo - o povo português - que não consegue encontrar-se consigo mesmo e que Antero procurou pensar sem sucesso. A tragédia portuguesa é claramente antidialéctica e, como tal, autocondena-se ao suicídio: dorme na fatal obscuridade da massa inerte sem conseguir ascender à luz da liberdade. A história de Portugal é anti-história: algo que não emerge da natureza obscura e confusa das forças cegas do caos e da decadência.
O soneto não clarifica completamente a essência da capacidade humana de interrogar, cujo sentido explicitámos com o concurso da tensão essencial que habita entre as "Odes Modernas" e os "Sonetos" de Antero de Quental. No entanto, a sua clarificação é-nos dada na sua obra filosófica: "O universo aspira com efeito à liberdade, mas só no espírito humano a realiza". O espírito humano não é mera sensibilidade, como supõem a ciência mecanicista e a sua filosofia materialista, mas essencialmente espontaneidade e, acima de tudo, força espontânea consciente. E, dado as impressões exteriores o modificarem segundo as suas próprias leis da liberdade, "o espírito percebe o universo, não adaptando-se a ele, mas adaptando-o a si. O universo, tal como ele se nos apresenta, é, no fundo, uma criação do espírito: se existe para nós, é porque o concebemos: aparece-nos, não reflectido na inteligência, mas verdadeiramente visto nela. Todos os factos do universo acumulados não produzem uma ideia. Os factos são o ponto de partida das ideias, cuja virtualidade está no espírito: em si são inertes e inexpressivos. O que lhes dá expressão e verdadeiro ser é a inteligência, em cujas categorias entram, fundidos pela elaboração mental, como em outros tantos moldes, ordenando-se nelas e por elas. O conhecimento é, pois, um facto íntimo e próprio do espírito e o universo conhecido o produto da sua espontânea actividade" (Antero) e, até mesmo, da sua vontade livre. Ou, numa formulação mais hegeliana do que kantiana, "pensar sobre o mundo é já supor nele alguma coisa de fundamentalmente análogo aos princípios da razão, é supô-lo racional. Ora, essa suposição implica a da identidade fundamental do objecto e do sujeito" (Antero). O recurso à linguagem de Kant, o Sócrates da filosofia moderna, e de Hegel, revela a filiação do pensamento filosófico de Antero de Quental e o seu compromisso com o socialismo: "Schelling e Hegel fundaram definitivamente a doutrina da evolução, e fundaram-na na mais alta região das ideias, donde ela domina todo o pensamento do nosso século. A evolução, vista desta altura, (a altura adequada,) não é somente o processo mecânico e obscuro da realidade: é o próprio processo dialéctico do ser, tem as suas raízes, comuns com as raízes da razão, na inconsciente mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano, a consciência de si mesma, a plenitude do ser e a ideal perfeição. A lei suprema das coisas confunde-se com a finalidade e essa finalidade é espiritual. Com Schelling e Hegel, a filosofia da natureza compenetra-se dos seus verdadeiros princípios metafísicos: o mecanismo dissolve-se no dinamismo, cujo tipo último é o espírito". Schelling e Hegel transfiguraram a imagem do universo: "o seu movimento aparece como uma sucessão e encadeamento de ideias e a sua imagem define-se como a da alma infinita das coisas". Ao atingir a sua finalidade com o surgimento do homem sobre a Terra, o peregrino, o universo em evolução torna-se consciente de si mesmo: a razão ilumina-o e adapta-o às leis do espírito, dando-lhe expressão, inteligibilidade e sentido. A natureza passa a ser o palco do "teatro da história" e o homem, o seu agente racional. Encarada como "teatro da liberdade", a história caminha na direcção da realização do "domínio da justiça", mesmo que tropece pelo caminho e o seu agente regresse à animalidade.
Esta visão antropocêntrica da evolução contrasta fortemente com a visão naturalista da evolução, nomeadamente a de Darwin, dominada pelo jogo cego e fatal das forças elementares e destituída de inteligência. A filosofia de Antero de Quental procurou operar e realizar uma "síntese do pensamento moderno", isto é, uma síntese entre ciência e metafísica, a partir de um território comum: o dinamismo da força e a evolução. Cada uma destas formas de conhecimento tem a sua própria visão da evolução: a ciência mecanicista encara a evolução como uma mera "complicação crescente de forças elementares", enquanto a metafísica, oriunda do idealismo alemão, especialmente dos dois grandes sucessores de Kant, Schelling e Hegel, a vê como um processo progressivo que caminha do simples para o complexo, "ajuntando, em cada momento da evolução, ao tipo inferior, para o fazer passar a superior, um elemento novo, um aumento de ser" (Antero). As duas visões compreensivas da evolução não são rivais e, como "colaboradoras na obra do conhecimento" humano, devem ser integradas num "saber total, ao mesmo tempo positivo e metafísico, experimental e especulativo, tomando o ser na sua unidade, da qual o espírito só arbitrária e violentamente pode ser amputado, e na ordem de desenvolvimento dos seus momentos, dos quais o espírito é o superior e típico" (Antero).
À distinção epistemológica entre metafísica e ciência corresponde uma distinção ontológica entre a esfera superior do ser e a esfera inferior do ser: o universo descrito pela ciência é um universo inferior e elementar, construído sobre dados sensoriais primitivos e elementares e, portanto, incapaz de explicar o "mistério do que na consciência está para além da sensibilidade": a "região obscura onde assentam essas explicações" científicas. Tanto a inteligência científica como o universo factual que elabora a partir de impressões sensoriais, revelam aquilo a que Antero chama uma "falta": faltam-lhes os "órgãos mais nobres" da evolução cósmica. "Assim como o movimento, a que tudo reduz, é um movimento sem causa e sem fim, e a necessidade, a que tudo submete, é destituída de razão e incompreensível, assim também a evolução, em cuja espiral faz mover-se esse mundo cego e fatal, privada de verdadeira substância, explicando o concreto pelo simples e reduzindo o superior ao inferior, não tem realidade própria e é, no fundo, uma aparência vã e uma pura ilusão subjectiva" (Antero). O universo da ciência é "um universo que se move nas trevas, sem saber porquê nem para onde. Não o alumia a luz das ideias, não lhe dá vida a circulação do espírito. Paira sobre ele um mudo fatalismo". É, pois, um universo tenebroso, desolado, glacial, morto e amputado: falta-lhe a vida do espírito. A síntese do pensamento moderno consiste em insuflar o espírito na matéria, de modo a explicar a forma inferior do ser pela forma superior do ser, e as forças cegas e passivas pelas forças racionais e espontâneas. Para Antero, o dinamismo psíquico é a chave do dinamismo mecânico: "O espiritualismo dará ao materialismo o que lhe falta, completando-se, por esta insuflação do espírito na matéria, a compreensão ao mesmo tempo positiva e especulativa do universo". O espiritualismo absoluto de Antero de Quental redefine a evolução nos seus próprios termos: "A evolução não é apenas uma complicação crescente de forças elementares: é um alargamento de ideias, isto é, de existência verdadeira. E se o ideal supremo, que a tudo atraí, para que tudo gravita, é razão, vontade pura, plena liberdade, a evolução só será perfeitamente compreendida definindo-se como a espiritualização gradual e sistemática do universo". (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ficção Científica: Filosofia do Cinema

«O cinema de ficção científica trata da estética da destruição com a beleza peculiar que pode ser encontrada ao desencadear a destruição e ao provocar a desordem. E é nas imagens de destruição que se encontra a essência de um bom filme de ficção científica». (Susan Sontag)
O cinema surgiu no seio de uma civilização que diferencia claramente dois mundos, o mundo real e o mundo irreal, relegando o fantástico para o domínio da superstição e da infância. A emergência do cinema universal e do seu produto típico - o filme de ficção - contraria internamente, negando-o, o processo de racionalização e de desencantamento do mundo: o cinema não só abrange o campo do mundo real, como também abarca e integra o campo do mundo imaginário, o que significa que participa simultaneamente da percepção do estado de vigília e da visão do sonho. Como grande matriz arquetípica que compreende, em termos embriológicos, todas as visões do mundo, incluindo a visão primitiva do mundo, o cinema apela e inscreve o fantástico no real e, enquanto abertura ao mágico do qual deriva em última instância toda a arte, define-se como a unidade dialéctica do real e do imaginário. Esta dialéctica é especialmente evidente nos filmes de ficção científica, cuja estética da destruição vamos explicitar como se estivéssemos a realizar o Filme dos filmes de ficção científica. O roteiro típico de um filme de ficção científica compreende basicamente cinco partes, embora possa revelar diversas variações resultantes da supressão de uma ou outra parte ou da sua fusão:
1. A chegada da Coisa. Os monstros, os invasores, máquinas assassinas e exterminadoras, predadores extraterrestres em busca de refeição ou de um hospedeiro que facilite a sua reprodução, algo radioactivo, uma mutação súbita produzida num laboratório, uma doença misteriosa ou uma nave espacial alienígena irrompem e surgem no mundo dos humanos. Alguém - um jovem cientista numa pesquisa de campo - presencia essa chegada ou suspeita de alguma coisa estranha, mas ninguém - incluindo a sua namorada incrédula e/ou as autoridades locais - acredita inicialmente no seu relato. O mundo parece girar na sua própria normalidade, como se nada de estranho estivesse a acontecer. Noutras versões, o herói e a sua namorada ou mulher e filhos repousam nalgum lugar de férias da classe média ou na sua casa situada numa pequena cidade, quando são repentinamente surpreendidos por alguém que se comporta de modo estranho ou por alguma forma de vegetação que começa subitamente a crescer e a mover-se. No caso de estar a dirigir um carro, o herói pode ser surpreendido por alguma coisa hedionda que surge no meio da estrada ou por luzes estranhas que sulcam o céu nocturno. Uma versão muito frequente é a do herói-cientista, que, no seu laboratório, faz experiências: nuns casos, provoca inadvertidamente uma metamorfose nalguma espécie vegetal ou animal que se torna carnívora e frenética; outras vezes, fere-se e é "invadido" e "contaminado", ou então realiza experiências com radiação ou constrói uma máquina para comunicar com seres de outros planetas ou para viajar no tempo. Outra variante mostra uma viagem ao espaço: os astronautas da nave terrestre descobrem que o planeta visitado ou já colonizado por colonos humanos ou por prisioneiros (colónia penal) se encontra ameaçado por invasores alienígenas e, depois de terem lutado contra eles, procuram desesperadamente regressar à Terra, mesmo correndo o risco de trazer na nave ou mesmo no próprio corpo o invasor extraterrestre - incubado ou não - para o berço da humanidade.
2. Cena de destruição visível. Inicialmente, o herói é o único humano que sabe da existência de alguma coisa estranha que pode levar à extinção da vida humana em pouco tempo e, mesmo quando tenta avisar os outros e as autoridades, ninguém acredita que algo anormal está a acontecer. A sua luta contra a Coisa consiste em barricar a casa, caso a Coisa seja material, ou em chamar um amigo, caso a coisa seja um parasita invisível, mas a luta é inglória: todos acabam por ser mortos ou "tomados" pela Coisa. A ameaça só se torna visível quando um número elevado de testemunhas presencia uma grande cena de destruição que confirma o relato do herói. As forças policiais ou militares são chamadas para resolver a situação, mas são massacradas e destruídas pela Coisa. Todos os esforços realizados para repelir a Coisa revelam-se inúteis: a Coisa continua a fazer novas vítimas e a ameaça começa a ultrapassar os limites da cidade, até que se torna potencialmente planetária e global: a vida humana está em perigo.
3. O estado de emergência. Na capital da nação invadida pela Coisa, os cientistas e as forças armadas realizam conferências secretas, durante as quais o herói faz a sua exposição, com recurso a mapas e outros meios tecnológicos sofisticados. O governo decreta o estado de emergência nacional. Os mass media noticiam novos casos de destruição. As notícias percorrem todo o mundo e as autoridades de outros países começam a ficar preocupadas. As tensões internacionais são suspensas e é decretada a emergência planetária: o planeta e a vida humana correm perigo e, por isso, todas as nações aliam-se para elaborar planos que visam destruir o inimigo comum.
4. Novas atrocidades. Mas todas essas tentativas de destruição da Coisa fracassam, enquanto novas atrocidades são difundidas pelos mass media: cidades inteiras são destruídas pelos invasores e/ou evacuadas, as forças policiais ou armadas são dizimadas, geralmente pelo fogo, e todos os ataques dos homens contra a Coisa, usando os armamentos e as tecnologias mais avançados, fracassam. As multidões fogem, atropelam-se, são perseguidas e, nas pontes, empurradas pelas forças de segurança. A Coisa vence, fazendo inúmeras vítimas, e anexa cada vez mais território: o desespero total instala-se entre os humanos confrontados com a sua extrema fragilidade diante dos poderes da Coisa.
5. A vitória final. Os humanos realizam novas conferências: a Coisa tem de ser vulnerável a algo. Geralmente, a estratégia final da qual dependem todas as esperanças da humanidade é traçada pelo herói que trabalhou sozinho, no seu laboratório, nesse sentido: constrói-se uma arma todo-poderosa e o cronómetro inicia a contagem regressiva. Os monstros ou os invasores são finalmente repelidos ou vencidos. Os humanos congratulam-se pela vitória, mas nada garante que algures no espaço cósmico frio e escuro, nas profundezas da Terra ou nas suas regiões geladas ou desconhecidas hajam outros monstros capazes de retomar a invasão e a destruição.
Os filmes de ficção científica não tratam de ciência, mas falam unicamente de catástrofe. Na representação imediata do extraordinário, como o desabamento de arranha-céus ou a guerra nuclear, os filmes de ficção científica proporcionam não um exercício cognitivo, mas sim a elaboração sensorial, permitindo ao público participar da fantasia de sobreviver à nossa própria morte, à destruição das cidades e de planetas e à aniquilação da própria humanidade. A catástrofe é a visão da catástrofe e a catástrofe é vista mais de modo extensivo do que de modo intensivo: a beleza revela-se precisamente na estética da destruição, isto é, nas imagens de destruição. A catástrofe constitui um dos maiores temas da arte, talvez porque na catástrofe está em jogo a própria sobrevivência da humanidade e da sua aventura cósmica e a sua capacidade de saber - ou não - fazer frente à possibilidade da sua própria aniquilação. Os lançamentos das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki, bem como a guerra fria, marcaram fortemente a imaginação da catástrofe: as vítimas da radiação ocuparam um lugar de relevo nos filmes de ficção científica, que ajudaram a difundir a ideia de que todo o mundo pode ser destruído por testes e guerras nucleares, e a canalizar a belicosidade humana para o desejo de paz. Quando a Terra é invadida por forças alienígenas, as potências beligerantes da Terra suspendem os seus conflitos e unem-se para combater o inimigo alienígena. A fantasia da união na guerra foi, durante esse período de guerra fria, a fantasia das Nações Unidas, a qual aparece associada à fantasia utópica: o sonho de um mundo melhor ou, simplesmente, a utopia de uma comunidade mundial totalmente pacificada e regida pelo consenso científico.
O elemento utópico que opera velada ou desveladamente no cinema de ficção científica liga-se intimamente às narrativas milenares do apocalipse. A imaginação da catástrofe é essencialmente a expectativa do apocalipse. Antes de 1500 a.C., diversos povos antigos acreditavam que o mundo tinha sido, no começo dos tempos, organizado e colocado em ordem por um ou mais deuses. A segurança observada no mundo era sinal não só da sua imutabilidade, como também da existência de uma ordem estabelecida nos céus. Apesar dessa imutabilidade atribuída ao mundo, a ordem nunca foi completamente tranquila: forças malignas e destrutivas ameaçavam constantemente o mundo. O mito do combate relata precisamente esse conflito entre a ordem universal e as forças que a ameaçam invadir e destruir. Neste mito do conflito entre o cosmos e o caos, um jovem herói ou guerreiro divino recebeu dos deuses a missão de manter e conservar sob controle as forças do caos. O cumprimento dessa missão era recompensado com a soberania sobre o mundo. Porém, entre 1500 e 1200 a.C., Zoroastro rompeu com a visão estática do mundo, mediante a reinterpretação da versão iraniana do mito do combate: O mundo caminha e aproxima-se gradualmente, através de incessantes conflitos, de um estado final sem conflitos e antagonismos. Este estado será alcançado quando o deus supremo e os seus aliados derrotarem, numa fantástica batalha final, as forças do caos e os seus aliados humanos, aniquilando-os para sempre. Só depois desta batalha final a ordem divinamente estabelecida será absolutamente real e presente. Dado os sofrimentos, as necessidades, as misérias físicas e os inimigos serem definitivamente abolidos, reinará a unanimidade absoluta na comunidade dos redimidos e a ordem do mundo não voltará a ser perturbada ou ameaçada. A doutrina de Zoroastro influenciou não só o judaísmo e o cristianismo, como também muitas ideologias políticas seculares e o próprio cinema de ficção científica. Mas, como vivemos num mundo abandonado pelos deuses, a imaginação da catástrofe transfigurou-se numa tragédia, na textura da qual se joga o destino da humanidade abandonada a si mesma e o fim do mundo tal como o conhecemos. As forças do caos são produzidas pela própria acção humana: o caos que ameaça destruir o homem e a natureza é, em grande medida, antropogénico. Abandonado pelos deuses, o homem torna-se problemático e sente-se completamente só num universo aparentemente despovoado. Esta angústia da solidão leva-o a sondar o universo em busca de seres extraterrestres e de vida fora da Terra, e é precisamente esta busca ansiosa que o cinema de ficção científica retoma para reformular o tema da batalha final como colisão de mundos ou como conflito entre a humanidade e as forças alienígenas que a ameaçam invadir e destruir. Porém, como veremos mais adiante, este confronto final reflecte a problematicidade das relações entre o homem e o mundo tecnoburocrático que criou: as forças alienígenas mais não são do que as projecções imaginárias dos artefactos antropogénicos, tais como a burocracia impessoal, a bomba atómica e as armas nucleares e biológicas, que ameaçam destruir e aniquilar a própria humanidade e a Terra. Os produtos produzidos pelo homem viram-se contra o produtor: o homem perdeu o controle sobre o mundo que criou. Além de estar só, o homem moderno produziu um mundo que lhe aparece como absolutamente estranho e no qual se sente frágil, estranho, alienado e ameaçado.
A concepção da ambivalência da ciência atravessa quase todos os filmes de ficção científica: a ideia predominante é a de que um cientista pode libertar forças que, se não forem controladas ou mesmo destruídas, ameaçam destruir o próprio homem e o seu mundo. O cientista tende a ser visto simultaneamente como um demónio e um salvador e a ciência como uma actividade social dotada de duas faces, tal como o deus Janus: a ciência é sempre uma aventura arriscada, porque tanto pode fornecer uma resposta tecnológica eficaz ao perigo que ameaça a natureza e o próprio homem, como também pode ser usada para os destruir. Um filme de ficção científica não é necessariamente uma apologia cega da ciência e da tecnologia, porque nele se revela quase sempre a possibilidade deste duplo-uso da ciência: o uso humano e a obsessão científica, geralmente atribuída à vontade perversa de um cientista isolado ou aos interesses mesquinhos de grandes corporações económicas e militares. O uso perverso da ciência evidencia-se no caso em que o cientista deserta da sua equipa para se juntar aos invasores extraterrestres, pelo facto da sua ciência ser mais avançada do que a nossa, ou no caso em que o cientista realiza descobertas e experiências arriscadas ou cria monstros sem levar em conta a sua perigosidade para o futuro da humanidade. A ciência feita por cientistas obcecados cultiva forças extremamente perigosas que os cientistas não conseguem controlar, pondo em perigo a vida humana. Porém, a obsessão científica e os monstros que produz podem e devem ser destruídos pela ciência não ambivalente, isto é, pela ciência colocada ao serviço da humanidade e da vida tal como a conhecemos. A figura do cientista louco tende a ser morta não só pelas suas próprias criações monstruosas, como também por si mesma ou pelos heróis que lutam pela preservação da humanidade. O bom cinema de ficção científica critica os abusos da ciência sem no entanto a abandonar ou trocar por qualquer outra forma de conhecimento.
O cinema de ficção científica oculta uma profunda ansiedade no que concerne à vida contemporânea e esta ansiedade não se refere somente à catástrofe física, à perspectiva da mutilação e da aniquilação universal - o trauma da bomba, mas fundamentalmente ao psiquismo individual. A imaginação negativa do impessoal impregna os filmes de ficção científica: os seres do outro mundo que nos tentam dominar são "a Coisa" e não "eles" e, como coisas, são criaturas semelhantes a mortos-vivos, dotadas de movimentos frios, mecânicos e viscosos. Quando não têm forma humana, movem-se com um impulso absolutamente regular e inalterável. Quando têm forma humana, obedecem a uma rígida disciplina militar e não exibem qualquer característica pessoal. A sua presença ameaça a própria humanidade do homem, porque, se eles nos vencessem, seríamos destituídos da nossa humanidade, triunfando o regime da ausência de emoções, da impessoalidade e da arregimentação. Nas cenas de destruição, as criaturas não matam simplesmente os indivíduos humanos; elas aniquilam as pessoas e, mesmo quando preservam os corpos, transformam completamente as pessoas livres em autómatos escravos ou agentes de potências alienígenas e estranhas. Antes de ser colonizada, invadida ou "tomada" pelas forças alienígenas, a pessoa luta para preservar a sua humanidade, mas, quando o facto é consumado, morre como pessoa sem o saber e mostra-se satisfeita com a sua nova condição. A fantasia da "tomada" ou da possessão quase demoníaca retoma alguns elementos da fantasia do vampiro dos filmes de terror, mas a transformação operada pelo contacto é diferente: em vez de se transformar numa criatura "animalesca" sedenta de sangue, onde se manifesta o desejo sexual, o indivíduo "tomado" ou possuído entra num novo estágio de desenvolvimento, tornando-se mais eficiente, isto é, um ser expurgado de emoções, sem volição, tranquilo e obediente a todas as ordens. A angústia em relação à desumanização e à despersonalização reflecte o medo real que o homem tem de ser transformado pela sociedade estabelecida e pela sua tecnologia numa máquina entre outras máquinas, isto é, numa mera peça de uma imensa engrenagem maquínica - a sociedade tecnoburocrática, cujo controle lhe escapa. O cinema de ficção científica retoma este elemento kafkiano: a metamorfose do humano em insecto como a alegoria derradeira da angústia do ser humano entregue a um mundo sem piedade e a uma civilização técnica que lhe escapa ao controle. O homem que obedece à autoridade impessoal, a da Máquina, sem resistir, acaba por tornar-se um insecto - ou um "cão pavloviano", e, sendo sempre tratado como tal, acaba por pensar, sentir e agir como se fosse efectivamente um insecto, refém da sua "rainha", numa sociedade de insectos. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

O Caim de José Saramago: Filosofia e Literatura

«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele». (José Saramago, Caim)
«A história de toda a sociedade até aos nossos dias mais não é do que a história da luta de classes». (Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista)
«A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo uma expressão da miséria real e um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. /A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é uma condição para a sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, a crítica embrionária do vale de lágrimas de que a religião é a auréola. /A crítica colheu das cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem capricho ou consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, actue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si como seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório à volta do qual gira o homem enquanto não circula em torno de si próprio». (Karl Marx)
Este post é constituído pelos comentários que fiz aqui sobre o último romance publicado por José Saramago - Caim - à medida que o lia: vou apresentá-los sem tentar fazer uma análise mais coerente do texto de Saramago. A leitura é um processo activo e em andamento: as perplexidades do leitor também merecem atenção. Os comentários foram agrupados em doze parágrafos numerados, dos quais o sétimo pode ser dispensado por incidir sobre um assunto relativamente marginal à análise da obra de Saramago.
1. O momento de decepção. Estou a ler José Saramago. Tomei a decisão de o ler ontem (21 de Outubro) à noite, vesti-me e fui comprar alguns livros de Saramago. Estou concentrado no Caim e, de momento, estou decepcionado com a obra, como se estivesse a ler uma "historinha" escrita por uma "velha ama" que tem por hábito contar histórias às suas crianças antes de adormecerem. À primeira vista, falta-lhe aparentemente espessura, densidade filosófica; é muito literal, pouco profundo, muito imediatista, muito pobre em termos de pensamento filosófico. Como crítica da religião, a obra parece ser uma regressão total: Saramago escreve como se estivesse do lado de fora da crítica da religião e do seu rigor metodológico. Até agora só encontrei uma frase com valor crítico - aquela que aparece em epígrafe, mas não vejo como a posso fundamentar e explicitar recorrendo ao resto da obra povoada de masturbações, de sexo ardente e de projecções de sémen. Porém, mantenho uma abertura total de espírito, porque acho graça ao modo como o espírito burguês é recuado no tempo ou como o Caim é ainda nosso contemporâneo. Este expediente de fazer Caim viajar no tempo é frutífero como recurso narrativo, mas penso que Saramago não soube tirar proveito integral dele, talvez porque tenha levado Deus muito a sério, como se ele tivesse sido - ou ainda fosse - uma "pessoa" que intervém de modo imoral e cruel na história do homem, sem se preocupar com o seu futuro: Saramago não compreende como funciona a ideologia religiosa ou, pelo menos, parece não estar interessado nesse funcionamento ideológico: Deus não é mau; os homens é que são maus, embora Caim seja o mais honesto e o mais humano dos homens. Como escreve Saramago: «Apesar de assassino, caim é um homem intrinsecamente honesto, os dissolutos dias vividos em contubérnio com lilith, ainda que censuráveis do ponto de vista dos preconceitos burgueses, não foram bastantes para perverter o seu inato sentido moral da existência, haja vista o corajoso enfrentamento que tem mantido com deus, embora, forçoso é dizê-lo, o senhor nem de tal se tenha apercebido até hoje, salvo se se recorda a discussão que ambos travaram diante do cadáver ainda quente de abel».
2. Onde está o marxismo? Não detecto aparentemente nenhuma afinidade estrutural entre Saramago e o marxismo: a sua posição é a de um homem crente que se zangou com Deus, não a de um crítico materialista e ateu da ideologia religiosa. A tal frase que referi colide com a ideia fundamental do marxismo, que, como já mostrei noutros posts, não é um ateísmo, pelo menos do ponto de vista estritamente teórico, mas uma teoria que, na medida em que a religião existe como obstáculo, se vê forçada a lutar contra ela, não para matar as pessoas que têm crenças religiosas ou para as forçar a renunciar a essas crenças, mas para descobrir o que essas crenças encerram de positivo, de modo a procurar novas formas de entendimento e de esclarecimento. Para o marxismo, o ateísmo é uma ideologia religiosa que se articula com uma determinada perspectiva do humanismo. É por isso que Marx não criticou a ideia de Deus, nem negou ou afirmou a sua existência: a redução da história dos homens a um diálogo-confronto dos homens com Deus é uma concepção absolutamente estranha ao marxismo. A ausência ou a fragilidade simulada de conhecimentos filosóficos faz de Saramago um narrador dotado de grande sensibilidade metafísica: a sua aparente ingenuidade, a sua aparente infantilidade, são intelectualmente desconcertantes.
3. "A maligna natureza do sujeito". Eis outra noção desconcertante de Saramago, mas de grande profundidade filosófica. De que sujeito? Do sujeito humano-criatura ou do Sujeito-Deus-criador do mundo e do homem? Trata-se no texto sobre a adoração do bezerro de ouro do sujeito humano, mas também e primordialmente do Sujeito divino. Insinua-se aqui uma ambiguidade que é, à primeira vista, desconcertante, como se Saramago aceitasse a noção de que a história do homem é uma história da maldade depois da queda ou da expulsão do paraíso, mas esta noção não rompe cabalmente com o cristianismo e, a partir dela, Deus pode ser ilibado da crueldade que lhe atribui Saramago. No entanto, no romance de Saramago, surge a crítica da ideia de obediência: Deus testa as suas criaturas para ter a prova da sua obediência, isto é, da sua fé. Mas as criaturas bíblicas revelam alguma resistência, o que significa que Deus - talvez ciente dessa resistência devida à liberdade humana - é forçado a testá-las constantemente. A interpretação literal e irónica dos textos bíblicos justifica-se pelo facto de Saramago pretender indiciar essa resistência dos sujeitos humanos ao domínio de Deus. Seguindo esta via de leitura atenta é possível talvez confiar, isto é, fiar em Saramago.
4. O poder do homem e o "sentido moral da existência". A noção de poder de Saramago aparece representada pelos palácios e pelas exibições de Deus diante dos auditórios dos homens, e revela-se sempre que utiliza uma linguagem mais adequada aos tempos de miséria, usando termos muito modernos, tais como desemprego, crise, operário, ocioso, etc. O poder está muito localizado, como se Saramago desconhecesse a hegemonia. No entanto, nas relações Deus-homens revela-se uma hegemonia. Por enquanto, ainda não descobri todas essas conexões, mas estou com o espírito aberto e medito. Há uma tese interessante que Saramago formula logo no início da sua narrativa: Caim matou Abel por não poder matar Deus. Caim é um herói humano condenado por Deus a errar pelo mundo: a sua luta contra a arbitrariedade e a imoralidade do poder de Deus é permanente. É preciso matar Deus e, deste modo, conquistar definitivamente a emancipação do homem. Começo a entrar no espírito da obra, mas é provável que o resultado final desta análise não coincida com a própria leitura que Saramago faz da sua obra. Mas eu sou filósofo e não escrevo romances. A morte de Abel, em vez da morte do Senhor, permite a Saramago fazer uma incursão metafísica quando se interroga sobre o "objectivo final" ou "razão última" da aventura humana. A Igreja Católica já deu a sua resposta: a reprodução da espécie, isto é, fazer filhos, sem no entanto responder claramente porquê e para quê. A outra resposta - diametralmente oposta - foi dada por Caim e não é nada optimista. Mas não vou revelar já a minha leitura: a surpresa encontra-se revelada nos últimos parágrafos.
5. O segredo de Caim-Deus. Já ganhei avanço crítico na leitura atenta do Caim de José Saramago e estou a gostar do modo como o estou a ler: a história humana de Caim e do pacto secreto estabelecido entre Caim e Deus. A crítica que os padres e os teólogos dirigem a Saramago é simplesmente o resultado de má-fé e de ignorância activa, bem como aquela que lhe é feita pelos pseudo-intelectuais invejosos - os tugas burrecos. O sentido literal não é relevante; o que interessa é o sentido humano da história do homem - a "instrutiva e definitiva história de caim" (Saramago), aliás uma história dialéctica, no sentido de resultar de uma discussão entre Deus e os homens. Adão, Eva, Caim, Abel, Set, Abraão, Isaac e por aí fora são seres humanos que conquistaram "voz própria", isto é, autonomia em relação a Deus. Um país hipócrita como Portugal nunca está preparado para ser confrontado com leituras críticas da Bíblia: o tuga típico é invejoso, ignorante, oportunista, malicioso e mais medroso do que Eva que teve coragem para seduzir o Querubim, provocando-lhe o desejo carnal. Antes de terem comido do fruto da árvore do conhecimento e de conhecerem o bem e o mal, Adão costumava dizer a Eva: "Vamos para a cama". E "os solitários ocupantes do paraíso terrestre", quais "pobres órfãos abandonados na floresta do universo" (Saramago), fornicavam com prazer e gostavam de repetir esse comércio sexual, não para fazer filhos, como desejava o Senhor, mas para desfrutar dos prazeres carnais - a grande marca da humanidade ancestral.
6. A Inflexão hermenêutica. A tensão habita a minha leitura, mas vislumbro na estrutura da narrativa e na temporalidade que a suporta uma via de reconciliação possível entre Saramago e o marxismo. É claro que deveria recorrer a outras obras do Prémio Nobel da Literatura (1998), mas vou resistir a tal tarefa, fazendo a filosofia funcionar na escassez de palavras edificantes do narrador chamado Saramago: a peça, o mecanismo central do funcionamento da ideologia religiosa encontra-se no tirar a prova - a obediência cega a Deus, isto é, à ideologia eterna que, inscrita num aparelho e nas suas práticas, interpela os homens concretos como criaturas sempre-já sujeitas, sujeitadas, subjugadas e submissas ao outro Sujeito, único e central, que é Deus - Aquele que diz ser o senhor, isto é, "eu sou aquele que é". Por enquanto, torna-se evidente que o primado do eterno presente - as mudanças súbitas de presentes por parte de Caim conduzidas a maior parte das vezes pelo jumento - permite a Saramago trazer a história bíblica de Caim até aos nossos tempos modernos, mas suspeito que, em termos filosóficos, não se trata aqui de mera magia do narrador, porque há nesse modo de temporalização uma filosofia da história subjacente e implícita, de cunho marcadamente pessimista. Para Saramago, a história do homem entendida como discussão entre os homens e Deus é uma única e mesma "catástrofe": quer olhe para trás (passado) ou para a frente (futuro), Caim testemunha a mesma catástrofe, a mesma tempestade, da qual Deus é o principal e, em última análise, o único responsável.
7. Contra os críticos de Saramago. Falar de Saramago é quase tabu em Portugal e estou com os ouvidos entupidos, quer pelas falas dos amigos, quer pelos palpites de Lobo Xavier e de Pacheco Pereira na Quadratura do Círculo. Vou fazer algumas observações sumárias:
7.1. A crítica que Saramago faz dos textos bíblicos não é original, pelo menos à luz de uma leitura precipitada, nem sequer é a mais radical. Em Portugal, Guerra Junqueiro foi mais radical, pelo menos em A Velhice do Padre Eterno, mas também ele acabou por regressar ao seio do cristianismo com a sua doutrina do cristianismo eterno ou integral. Porém, uma leitura atenta da obra de Saramago - Caim - revela uma mensagem original.
7.2. Como criador Saramago tem todo o espaço de manobra para criar e recriar as suas figuras bíblicas: um romance não é uma obra de exegese, embora possa utilizar esses conhecimentos, mas uma criação literária autónoma, que deve ser avaliada como tal pela crítica filosófica e literária, até porque Saramago fornece indicações a esse respeito.
7.3. Estranho é o facto dos seus críticos fazerem crítica sem ter lido a obra: as críticas são dirigidas a um nada ideológico - o vazio noológico dos falsos-críticos - que simplesmente não está presente na obra de José Saramago. A própria interpretação de Saramago pode ser descartada, se for a que ele tem difundido através dos mass media.
7.4. Em Portugal, todos pensam que percebem de tudo, mas na hora da verdade são uns burrecos: o país está como está - na miséria e na pobreza - devido à burrice malévola dos tuga-burrecos. As pseudo-elites nacionais são abortos culturais, como se sabe ou devia ser sabido, e muito, muito, muito invejosas. Daí que não haja progresso e crescimento em Portugal, mas regressão pantanosa.
7.5. A leitura que faço de Caim aceita as regras de jogo estipuladas por Saramago como narrador. Vou jogar com essas regras e, se necessário, contra o seu principal jogador - o próprio Saramago, tentando uma reconciliação com o marxismo que, como se sabe, não permite deitar fora o livro que guarda os suspiros dos oprimidos. Este princípio colide com o que Saramago disse ou tem dito sobre Caim. Além da Bíblia imoral dos vencedores, há, como mostraram Ernst Bloch, Jürgen Moltmann, Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez - a Bíblia dos pobres. Herdeira do pensamento utópico de E. Bloch, a teologia da libertação postula a união da escatologia e da política, da fé e da acção política, de modo a construir aqui e agora a sociedade da fraternidade humana através da praxis histórica transformadora. O marxismo é teoria crítica, mas não rompe com a tradição; pelo contrário, exige a sua realização plena através da luta contra a realidade social e política existente: a realização das promessas ainda não cumpridas a favor da emancipação do homem como possibilidade de uma acção antecipadora do reino de Deus, ligada estreitamente à esperança escatológica da Bíblia.
7.6. No mundo ocidental, talvez devido ao triunfo do neoliberalismo e do pensamento único, as pessoas estão a ficar muito pouco receptivas à crítica: querem abolir a crítica, querem silenciar as vozes dissonantes, em nome da trivialidade, da frivolidade e da mediocridade metabólica. A crítica incide basicamente sobre conteúdos objectivos de conhecimento e situações injustas, mas nas actuais circunstâncias de eclipse da crítica os anti-críticos devem ser alvo privilegiado da crítica: os burrecos devem ser silenciados, porque a sua existência é inútil, gratuita e desperdiça energia. Eles não distinguem entre a sua pessoa e as suas opiniões e, quando as últimas são criticadas, reagem brutalmente como se estivessem a ser alvo de um ataque mortal. Ora, isto é sintoma de regressão cognitiva e talvez de perturbações mentais difusas: o animal metabolicamente reduzido não foi talhado para pensar.
8. A noção de tempo, a viagem no tempo. Já fiz referência à noção de temporalidade que estrutura a narrativa de Saramago: as súbitas mudanças de presente permitem a Caim viajar no tempo, ora para a frente - presente por vir - ora para trás - presente passado. A unidade da narrativa é garantida pelo facto de Caim mudar de presente, o que faz dele a figura central do romance - e da história do desentendimento entre Deus e os homens - como testemunha ocular e, em casos importantes, como quando impede que Abraão matasse o seu filho Isaac, participativa, da intervenção de Deus nos assuntos humanos. Ora, os críticos não compreenderam esta estrutura temporal da narrativa e, por isso, dizem disparates, alegando que Saramago fica prisioneiro do sentido literal dos textos bíblicos, descontextualizando a acção das figuras bíblicas e descurando as interpretações simbólicas. Em termos teológicos, Saramago distancia-se claramente da exigência de desmitologização dos textos bíblicos: a hermenêutica existencial de Rudolf Bultmann é-lhe completamente estranha, até porque o seu programa de desmitologização lhe soa talvez a desteocratização da Bíblia. Para Bultmann, a verdade e a novidade do cristianismo reside nesse paradoxo mediante o qual a transcendência de Deus se faz presente, como chamamento de salvação, no homem Jesus Cristo. As religiões místicas introduzem Deus nos acontecimentos ou nos signos objectivos deste mundo, liquidando assim a sua transcendência, enquanto o humanismo religioso liberal o identifica com o âmbito da abertura do homem. Ora, para Bultmann, só o cristianismo, centrado no paradoxo de Cristo, permite que Deus seja transcendente e o homem, puramente humano, postulando a unidade de ambos em Cristo. Assim entendida a novidade do cristianismo, torna-se possível proclamar e realizar a palavra salvadora - como transcendência interior e como libertação do mundo e abertura à esperança - no âmbito da própria vida humana. Saramago não só não acredita na salvação, mesmo na sua forma secularizada como realização de uma sociedade fraterna, como também desconfia do sentido político desta viragem teológica. Na sua perspectiva, desmitologizar a Bíblia significa desteocratizá-la e desteocratizar a Bíblia significa humanizá-la, com o objectivo de apagar todos os vestígios literais da responsabilidade de Deus pela história cruel da humanidade e do seu descuido pelo futuro do homem. Daí que Saramago procure recuperar e reanimar o sentido literal historicizado da Bíblia para acusar e condenar Deus. Isaac detectou a essência da lógica da intervenção divina na história dos homens quando disse a Abraão: «Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto ter eu morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos» (Saramago).
9. O final do romance. O final do romance de José Saramago é desconcertante, mas dotado da grandeza de todo o pensamento original: já sabia que era desconcertante, mas estava com esperança de encontrar no texto uma outra orientação hermenêutica mais positiva. Caim mata um a um - com excepção de Noé - os escolhidos de Deus, contrariando o projecto divino de iniciar uma segunda humanidade. Depois do dilúvio, da humanidade resta apenas Caim que discute com Deus, uma discussão que continua, sem sabermos se terá um fim. No entanto, Deus não mata Caim, condenando-o à morte natural. Matar Deus foi, para Caim, matar os seus escolhidos: engravidou as noras de Noé, como se estivesse a ajudar a aumentar a nova humanidade, mas acabou por matá-las, incluíndo a mulher de Noé. A propagação da espécie, quer seja por imposição do cio, quer seja por simples apetite, é vista como uma compensação dos mortos perdidos na guerra. Quando disse «Crescei e multiplicai-vos», Deus impôs ao homem a necessidade de fazer filhos para alimentar as guerras com novos combatentes e para «suprir as perdas em mortos e feridos que sofriam os exércitos próprios e alheios» (Saramago), mas este pensamento perde-se aparentemente com o final desconcertante. Caim encontrou o sentido da sua vida matando Deus, isto é, contrariando o seu projecto: Matar Deus como sentido último da história? Mas se matar Deus é dizer não à reprodução, então a consumação do ateísmo seria um suicídio colectivo - a morte voluntária da humanidade, tal como fez Noé quando se lançou às águas negras e profundas do dilúvio, mas com esta diferença: Noé suicida-se para não ter de enfrentar a ira de Deus e responder pelo fracasso da missão que lhe fora atribuída, enquanto o homem finalmente liberto se suicida para se livrar de vez do domínio cruel de Deus. Com efeito, homem e Deus pertencem-se um ao outro: a morte de um é a morte do outro. Onde há homens há Deus e onde há Deus há homens: a emancipação humana do domínio de Deus só pode ser consumada na morte voluntária. Esta é a mensagem pessimista de Caim!
10. A morte voluntária do homem é a morte de Deus. O romance de José Saramago termina com este derradeiro diálogo entre Caim e Deus: «Onde estão Noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos Noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face, então a nova humanidade que eu tinha anunciado, houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma, Houve um grande silêncio, Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito, A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuam a discutir e que a discutir estão ainda, A história acabou, não haverá nada mais que contar». No suicídio colectivo da humanidade reside o núcleo essencial da mensagem do Caim de José Saramago. Não haverá nova humanidade: Saramago não acredita na possibilidade de realização plena de uma sociedade fraterna. O fim da história só pode ser consumado com a morte voluntária do homem. A história como desentendimento entre o homem e Deus chegará ao fim com a morte do último homem e o suicídio de Deus. Enquanto essa morte essencial e livre - absolutamente aniquiladora - não ocorrer, a história continuará a ser crime, conflito, guerra, exploração, injustiça, crueldade, enfim violência gratuita. Só podemos matar Deus cometendo o suicídio, porque, sem criaturas subjugadas ao seu domínio, Deus deixa de reinar e também ele será forçado a suicidar-se. Ora, esta não é a ideia marxista do cumprimento da modernidade: a emancipação como morte consciente e voluntariamente enfrentada é de facto uma ideia que colide com o optimismo de Marx e a sua fé num para além da história. Caim é um assassino, Deus é um assassino, e, sendo assim, Caim devia ter saído da barca de Noé e ter-se suicidado perante Deus. Como não o fez, a discussão - a dialéctica teo-antropológica da guerra e da crueldade - continua até aos tempos modernos.
11. Destruição de Sodoma. Até parece ser uma ideia estranha esta que atribuo ao Caim de Saramago, mas não é nada estranha. O jumento leva Caim a viajar no tempo, ora indo para atrás, ora indo para a frente: o homem que matou o irmão com a intenção de matar o pai - Deus - é omnipresente, participando em todos os acontecimentos como testemunha ocular da inveja que Deus sente pelos homens. Mas há um acontecimento marcante: a destruição de Sodoma. Os homens que fazem sexo com outros homens não fazem filhos: os seus prazeres carnais não agradam a Deus, porque este precisa que os homens façam filhos, de modo a garantir a «continuidade biológica» da humanidade e assim a governação divina da «vida íntima dos seus crentes» (Saramago). As gerações que morrem natural ou violentamente para prazer do senhor devem ser substituídas por novas gerações: a diversão do senhor precisa de novas vítimas. Atribuo importância a este episódio, porque ele permite nas suas diversas recapitulações chegar à conclusão exposta nos dois parágrafos anteriores. Para Saramago, não fiar em Deus é, em última análise, não fiar no homem: à liquidação da esperança na chegada de um futuro inteiramente novo que não seja "uma sucessão de cópulas bem sucedidas" (Saramago) corresponde um pessimismo total. A história está condenada a ser um desentendimento entre pai e filho e o comércio sexual entre eles - como sucedeu entre Noé e o seu filho mais novo - conduz a nova maldição, a nova destruição. A humanidade nasceu do comércio sexual entre pai e filho: é incesto, é pacto maligno entre eles, é discussão.
12. Job. Todos os "presentes" visitados por Caim revelam o sentido infame desse pacto entre Deus e os homens, entre Deus e Caim e entre Deus e o diabo: o sentido da aliança que o episódio de Job - que, apesar do sofrimento, continua a ser fiel ao senhor - ajuda a clarificar. Convém relembrar o episódio mais originário: Deus criou o homem e deu-lhe liberdade. Ao matar Abel por ciúme, Caim exerceu plenamente o poder que lhe foi conferido pelo senhor: a liberdade para matar. No último capítulo do romance, Caim mata um a um os membros da família de Noé, escolhida por Deus para repovoar a terra com uma segunda humanidade. Caim que começou por matar o seu irmão por culpa de Deus, mata por fim, mesmo depois de ter impedido que Abraão matasse o seu filho numa das suas viagens no tempo, a família de Noé para impedir a realização do projecto divino. Tal como a força bruta dos seus "anjos-operários", o poder humano de matar e de enfrentar consciente e voluntariamente a sua própria morte assusta Deus, porque escapa ao seu controle. Se o homem e Deus se pertencem um ao outro, não há outra saída - e isto se quisermos eliminar Deus e consumar definitivamente o ateísmo - a não ser matar os homens, fomentando o terror ou, de preferência, enfrentando consciente e voluntariamente a nossa própria morte: a morte de um é a morte do outro. Foi por isso que Deus não matou Caim, pondo-lhe na testa o sinal, não só da sua condenação por ter assassinado Abel, mas também e fundamentalmente da sua protecção: «Então não serei castigado pelo meu crime, perguntou caim, A minha porção de culpa não absolve a tua, terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador a testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação, acrescentou o senhor, mas é também o sinal de que estarás toda a vida sob a minha protecção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas, Aceito, disse caim, Não terias outro remédio» (Saramago). Aqui reside a parte substantiva do pensamento de Saramago, que, nesta lógica teológica e teocrática da história, é ele próprio, tal como Caim, prisioneiro do ciclo infernal e cruel da história do homem, que é também a história de Deus. Só há uma saída para escapar definitivamente ao domínio infame e malvado de Deus: o suicídio. Assumir a incumbência da morte voluntária é dizer não à continuidade do jogo divino-diabólico que move a história. Hegel tinha-nos ensinado que o suicídio era a realização e a manifestação mais autênticas da liberdade individual absoluta, mas Saramago prega uma finta a Hegel quando, recusando que a história tenha chegado ao seu fim com a Revolução Francesa e a realização da liberdade, insinua que a libertação final e derradeira do homem implica a morte conjunta de Deus e do seu duplo - o homem. A leitura está concluída, mas será necessário confrontá-la com outros livros de Saramago para afinar os seus conceitos nucleares.
J Francisco Saraiva de Sousa