domingo, 13 de abril de 2008

Hannah Arendt e Crise da Educação

Como já dediquei muitos posts à situação da educação em Portugal, no meu blogue CyberCultura e Democracia Online, vou ser mais sintético nas teses que defendo, confrontando-as com as perspectivas filosóficas de Hannah Arendt e de Theodor W. Adorno. A tese fundamental limita-se a constatar que a educação em Portugal e no Ocidente está em crise profunda e essa crise começa gradualmente a instalar-se após o 25 de Abril de 1974, devido à implementação de políticas erradas da educação. O resultado é visível: a escolas portuguesas são cloacas comportamentais. Aquilo que a educação devia ter evitado instalou-se nas escolas: a barbárie.
Adorno definiu a barbárie como «algo muito simples»: apesar de viverem na civilização que atingiu «o mais elevado nível de desenvolvimento tecnológico, as pessoas encontram-se atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação à sua própria civilização, e não apenas por não terem na sua esmagadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, em terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda a civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza». Diante desta catástrofe civilizacional iminente, a tarefa mais urgente da educação é «desbarbarizar» a escola e reorientar todos os outros objectivos educacionais em função desta tarefa. A filosofia da educação de Adorno gira, portanto, em torno da «educação após Auschwitz», visando um projecto educativo contra o regresso da barbárie. E eis que regressámos efectivamente à barbárie.
Hannah Arendt desenvolveu a noção de crise (periódica) da educação em função da experiência educativa americana, vendo nela um sinal da crise mais geral do desaparecimento do senso comum: o fracasso e a renúncia do juízo humano. Esta crise deve-se fundamentalmente ao impulso irracional «para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre dotados e pouco dotados, entre crianças e adultos, e, particularmente, entre alunos e professores». Este nivelamento por baixo consumou-se «à custa da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado entre estudantes». As políticas e as reformas da educação facilitaram este colapso da educação. Hannah Arendt destaca «três pressupostos básicos»:
1. O Mundo Autónomo das Crianças. O primeiro pressuposto é «o de que existe um mundo autónomo da criança e uma sociedade autónoma formada entre crianças, e que se deve, na medida do possível, permitir que elas governem. Os adultos estão aí apenas para auxiliar esse governo».
Ora, este pressuposto emancipa a criança da autoridade dos adultos e, na escola, mina a autoridade dos professores, ao mesmo tempo que não a liberta da «tirania da maioria», a autoridade do grupo etário de que faz parte. Convém acrescentar que esta autonomia do mundo das crianças é fortemente reforçada e incentivada pelas modernas indústrias culturais juvenis que lucram com esta criação de um universo juvenil à custa da perda da autoridade dos adultos, sejam eles pais ou professores. A tirania do seu próprio grupo compar limita a capacidade de reacção das crianças, a qual «tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil, e frequentemente é uma mistura de ambos».
2. A Pedagogia e a Escola dos Professores. O segundo pressuposto básico está relacionado com o ensino: «Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se numa ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efectiva a ser ensinada». Segundo esta perspectiva, um professor é «um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa; a sua formação é no ensino e não no domínio de qualquer assunto em particular».
Deste pressuposto resulta a grave negligência da «formação dos professores nas suas matérias». Como profissional do ensino, o professor já não precisa conhecer a sua matéria e, por isso, raramente encontra-se «um passo à frente da sua turma em matéria de conhecimento». Numa tal escola dos professores-funcionários do ensino, os estudantes são efectivamente abandonados aos seus próprios recursos, com a bênção das novas metodologias de ensino que dizem fomentar a investigação e o espírito crítico, e os próprios professores perdem a fonte mais legitima da autoridade do professor: «a pessoa que sabe mais e que pode fazer mais que (os alunos)». O pior é que a figura do «professor não-autoritário, que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas na sua própria autoridade, não pode mais existir».
3. A Teoria Moderna da Aprendizagem. Este segundo pressuposto está intimamente ligado ao terceiro pressuposto básico sobre a aprendizagem. Este último pressuposto que encontrou expressão conceptual sistemática no Pragmatismo, é «o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós próprios fizemos, e a sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, a aprendizagem pelo fazer. O motivo pelo qual não foi atribuída nenhuma importância ao domínio que tenha o professor da sua matéria foi o desejo de levá-lo ao exercício contínuo da actividade de aprendizagem, de tal modo que não transmitisse, como se dizia, "conhecimento petrificado", mas, ao invés disso, demonstrasse constantemente como o saber é produzido. A intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos, mas sim inculcar uma habilidade, e o resultado foi uma espécie de transformação de instituições de ensino em instituições vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a utilizar uma máquina de escrever (hoje o computador), ou, o que é mais importante para a "arte" de viver, como ter êxito com outras pessoas e ser popular, quanto foram incapazes de fazer com que a criança adquirisse os pré-requisitos normais de um currículo padrão».
O resultado é, como bem viu Hannah Arendt, a diluição da distinção entre brinquedo e trabalho, a favor do primeiro. Esta dupla-substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar promove a infantilização: «Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância». Daqui resulta que, sob o pretexto de respeitar a independência da criança, esta é infantilizada até à vida adulta avançada e, portanto, «excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo». A relação de ensino e de aprendizagem entre adultos e crianças é extinta, ao mesmo tempo que esta retenção da criança no seu próprio mundo oculta «o facto de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a vida adulta».
Estes três pressupostos destruíram o sistema educativo, porque, «na medida em que procura estabelecer um mundo de crianças, (a educação moderna) destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais», adiando indefinidamente a sua entrada no mundo público dos adultos, sem que ninguém assuma a responsabilidade (colectiva) pelo mundo. Esta perda da autoridade foi iniciada na esfera política e, actualmente, invade a esfera escolar e a esfera privada do lar. Até mesmo os pais recusam-se a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças e a escola deixou de ensinar às crianças como o mundo é. A barbárie instalou-se em todas as esferas da sociedade e, com a perda da autoridade e o não-respeito pela tradição, o poder corre o risco de ser vencido nas ruas pela violência. Desbarbarizar o Ocidente é actualmente a tarefa mais urgente que deve ser levada a cabo pelo poder político esclarecido pela Filosofia e não pela miséria dos modelos oriundos das ciências sociais, em particular da sociologia e da psicologia, os quais contribuíram para a destruição da educação para o conhecimento, a emancipação e a cidadania responsável, contra a barbárie. (Veja este post
Violência Escolar e Barbárie.)
J Francisco Saraiva de Sousa

Tradição e Preconceito: Hermenêutica de Gadamer

«A filosofia de Gadamer completa a teoria ontológico-existencial da compreensão (de Heidegger) e, simultaneamente, constitui a base da sua superação, através da tónica na linguisticidade da compreensão». (Josef Bleicher) (Veja CyberCultura e Democracia Online.)
Na Introdução de "Verdade e Método", Hans-Georg Gadamer define claramente o propósito da sua obra: «A hermenêutica aqui desenvolvida não é, por conseguinte, uma metodologia das ciências humanas, mas uma tentativa de compreender o que as ciências humanas são na verdade, para além da sua auto-consciência metodológica, e o que as liga à totalidade da nossa experiência do mundo». O objectivo de Gadamer não é, pois, negar a necessidade de uma obra metodológica no seio das ciências humanas, ou reavivar a velha disputa sobre o método entre as ciências naturais e as ciências humanas, mas descobrir que tipo de discernimento e que tipo de verdade se podem encontrar nas ciências humanas. Porém, os resultados da sua análise conduziram à descoberta de que a própria teoria das ciências humanas é verdadeiramente filosofia, porque toda a compreensão é hermenêutica. Isto significa que toda a compreensão é linguística e que a compreensão nas ciências humanas deve ser analisada através do meio da linguagem. A análise da natureza da compreensão coincide, portanto, com a análise da «hermenêutica universal». Gadamer mostrou que a experiência hermenêutica «ultrapassa o domínio de controle da metodologia científica» (Habermas).
Para Gadamer, o significado de um texto nunca se esgota nas intenções do seu autor, porque, quando a obra passa de um contexto histórico para outro, novos significados podem ser acrescentados e extraídos desse texto, muitos dos quais provavelmente não foram imaginados pelo seu autor ou pelo seu público contemporâneo. A instabilidade constitui parte integrante do carácter do próprio texto e da sua significação. Toda a interpretação é, portanto, situacional, modelada e limitada pelos critérios historicamente relativos de uma determinada cultura. Isto excluí desde logo a possibilidade de se conhecer o texto «como ele é».
Segundo Gadamer, toda a interpretação de uma obra do passado consiste num diálogo entre o passado e o presente. Isto significa que a experiência hermenêutica não é monológica, como a ciência, mas dialógica ou dialéctica num sentido diferente do da história universal de Hegel: «Tal como uma pessoa procura chegar a acordo com o seu parceiro (de diálogo) em relação a um objecto, também o intérprete compreende o objecto a que o texto se refere (...), ficando ambos em produtiva conversa, sob influência da verdade do objecto e ligados assim um ao outro numa nova comunidade», na qual «deixamos de ser aquilo que éramos». Perante o texto, o intérprete escuta prudentemente a sua voz não familiar, permitindo que ele questione as suas preocupações actuais. Porém, aquilo que o texto nos "diz" depende, por sua vez, do tipo de perguntas que somos capazes de lhe fazer, bem como do nosso ponto de vista na história e da nossa capacidade de reconstituir a "pergunta" para a qual o texto é uma "resposta", uma vez que o texto também é um diálogo com a sua própria história. Compreender um texto é, portanto, compreender a pergunta a que o texto vem dar resposta.
Toda a compreensão é sempre uma "compreensão diferente", isto é, a realização de novas possibilidades de sentido. Na dialéctica da pergunta e da resposta, um texto acaba por ser um acontecimento ao ser actualizado na compreensão, que representa uma possibilidade histórica. O horizonte de sentido é limitado e a abertura, tanto do texto como do intérprete, constitui um elemento estrutural na fusão de horizontes. Isto significa que o presente só é compreensível em função do passado, com o qual forma uma "viva continuidade" histórico-efectiva, e que o passado só pode ser apreendido do nosso ponto de vista parcial dentro do presente. O entendimento (a fusão de horizontes) ocorre quando o nosso "horizonte" de significados e suposições históricas se "funde" com o "horizonte" dentro do qual o próprio texto está situado. Nesse momento de fusão, entramos no mundo estranho do texto, ao mesmo tempo que o situamos no nosso próprio mundo, chegando a uma compreensão mais completa de nós próprios. Como diz Gadamer: o intérprete, em vez de "deixar o lar", "chega ao lar".
Tal como T. S. Eliot, Gadamer considera que todos os textos acabam sempre por voltar a casa, porque, sob toda história, abrangendo silenciosamente o passado, o presente e o futuro, flui uma essência unificadora conhecida como "tradição". Todos os textos pertencem a essa tradição, que nos fala tanto através do texto do passado que lemos, como por nosso intermédio no acto de compreensão. Passado e presente, sujeito e objecto, o estranho e o íntimo, estão assim unidos por um Ser que os abrange a todos. Para Gadamer, os nossos preconceitos ou "compreensões prévias" (Bultmann) não prejudicam a recepção do texto do passado, já que estas pré-compreensões derivam da própria tradição, da qual o texto com que nos confrontamos faz parte integrante. O preconceito é, pois, um factor positivo e não negativo. Esta reabilitação do preconceito e do carácter "preconceituoso" da compreensão (o círculo hermenêutico de Heidegger) levou Gadamer a criticar o Iluminismo, que, ao sonhar com um conhecimento totalmente desinteressado, conduziu ao moderno "preconceito contra o preconceito" e, portanto, à desvalorização do preconceito, da tradição e da autoridade vistos conjuntamente como o oposto da Razão.
Para Gadamer, os preconceitos criativos, que se opõem aos preconceitos efémeros e deformadores, são os que surgem da tradição e que nos colocam em contacto com a tradição. A autoridade da própria tradição, ligada à nossa auto-reflexão permanente, determina quais dos nossos preconceitos são legítimos, e quais dos nossos preconceitos não são legítimos. Por conseguinte, os preconceitos não constituem obstáculos à verdadeira compreensão do mundo, mas possibilitam o seu conhecimento, retirando do texto ou do fragmento de realidade tudo aquilo que tem apenas uma significação passageira e efémera. Cabe à hermenêutica filosófica realçar o momento histórico na compreensão do mundo e determinar a sua produtividade hermenêutica: a tarefa do intérprete não é reproduzir o texto no seu estado primitivo, mas alargar o seu próprio horizonte para que possa integrar o outro. Ora, esta fusão de horizontes na compreensão só é possível quando pomos à prova os nossos preconceitos no encontro com o passado e tentamos compreender partes da nossa tradição, levando em conta o conhecimento da história efectiva, o único capaz de nos ajudar na fusão controlada dos horizontes de sentido. Isto significa que a verdadeira experiência hermenêutica é a da nossa finitude humana, da nossa própria historicidade.
Mas qual a tradição, e a tradição de quem, que Gadamer tem em mente? Evidentemente, trata-se da tradição Ocidental. Esta questão é frequentemente formulada pelos críticos da hermenêutica filosófica de Gadamer, que geralmente alegam que a sua teoria só pode ser válida na suposição de existir apenas uma tradição "principal", da qual participam todos os textos "válidos". Acusa-se Gadamer de supor que a história é um fluxo contínuo, ininterrupto, livre de rupturas decisivas, de conflitos e contradições, da qual herdámos os nossos preconceitos, como se a história fosse um lugar onde podemos estar, sempre e em qualquer momento, à vontade, como se o texto do passado aprofundasse, em vez de dizimar, a nossa presente auto-compreensão e como se o estranho fosse sempre secretamente familiar. Na sua polémica com Habermas, Gadamer procurou mostrar que a sua concepção da história e da tradição reconhece as diferenças históricas. Porém, este reconhecimento é tendencialmente «superado» por uma compreensão que «liga a distância temporal que separa o intérprete do texto». A distância temporal não só «vai deixando desvanecer aqueles preconceitos de natureza particular e limitada, como leva aqueles que ocasionam a compreensão genérica a emergir claramente como tal». Isto significa que a tradição supera a própria distância temporal, dado dispor de uma autoridade a que nos devemos submeter. A tradição, afirma Gadamer, «tem uma justificativa que foge aos argumentos da razão».
Gadamer descreveu a história como «a conversação que somos», isto é, como um diálogo vivo entre o passado, o presente e o futuro, reservando para a hermenêutica a tarefa nobre de procurar eliminar pacientemente os obstáculos que se possam erguer a essa interminável comunicação mútua. Contra os que o acusam de ser tradicionalista, organicista ou anti-moderno, Gadamer responde que «a tradição está em constante mudança» e que a adesão à tradição mais não é do que a integração das «antecipações no material da realidade». A história vista como "diálogo interminável" constitui uma visão de abertura total ao passado, ao presente e ao futuro. (Este post foi editado no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online": Hans-Georg Gadamer e Hermenêutica Filosófica. Devido à falta de tempo, tenho estado mais activo nesse blogue do que neste: ambos partilham a CyberFilosofia.)
J. Francisco Saraiva de Sousa