domingo, 29 de julho de 2007

Cyberphilosophy: Um bom livro

Esta informação foi retirada da editora online Blackwell e o livro pode ser comprado online.

Description do livro Cyberphilosophy

1. This cutting edge volume provides an overview of the dynamic new field of cyberphilosophy - the intersection of philosophy and computing.
2. Offers an overview of the latest developments in the dynamic new field of cyberphilosophy.
3. Shows how computing is influencing all major areas of philosophy, and vice versa.
4. Comprises a selection of newly written articles by international scholars.
5. Articles are organised around five standard philosophical themes - minds, agency, reality, communication and ethics.
6. Can be used alongside its sister volume, The Digital Phoenix as the basis for a course.


Table of Contents (Índice):

1. Minds and Computers: Synthetic Neuroethology: Pete Mandik. Computer Modeling and the Fate of Folk Psychology: John Barker. Philosophy of Mind, Cognitive Science, and Pedagogical Technique: Marvin Croy. Phenomenology and Artificial Intelligence: Anthony F. Beavers.
2. Agency and Computers: Adaptable Robots: Gene Korienek and William Uzgalis. A Radical Notion of Embeddedness: A Logically Necessary Precondition for Agency and Self-Awareness: Susan Stuart. Building Simple Mechanical Minds: Using LEGO© Robots for Research and Teaching in Philosophy: John P. Sullins.
3. Reality and Computers: What Is the Philosophy of Information?: Luciano Floridi. The Substantive Impact of Computers on Philosophy: Prolegomena Computational and Information-Theoretic Metaphysics: Randall R. Dipert. Computation and Causation: Richard Scheines.
4. Communication and Computers: Philosophy for Computers: Some Explorations in Philosophical Modeling: Patrick Grim. The Stanford Encyclopedia of Philosophy: A Developed Dynamic Reference Work: Colin Allen, Uri Nodelman, and Edward N. Zalta. Cultures in Collision: Philosophical Lessons from Computer-Mediated Communication: Charles Ess.
5. Ethics and Computers: Heuristic Methods for Computer Ethics: Walter Maner. Lilliputian Computer Ethics: John Weckert. Deontic Logic and Computer-Supported Computer Ethics: Jeroen van den Hoven and Gert-Jan Lokhorst.


About the Author (Sobre os autores):

James H. Moor is Professor of Philosophy at Dartmouth College. He developed early computer programs to teach symbolic logic and is the co-author of 'The Logic Book' (1998). He has been Chair of the American Philosophical Association Committee on Philosophy and Computing and a Fellow at the Harvard Information Infrastructure Project. He is co-editor of the journal Minds and Machines and a member of the editorial board for the journal Ethics and Information Technology. He is currently President of the Society for Machines and Mentality.

Terrell Ward Bynum is Director of the Research Center on Computing and Society at Southern Connecticut State University. He has been Chair of the Committee on Professional Ethics of the Association for Computing Machinery and Chair of the Committee on Philosophy and Computing of the American Philosophical Association. For 25 years, he was Editor-in-Chief of the journal, Metaphilosophy. His previous publications include books, articles, video programs and CD-ROMs in applied philosophy, philosophical psychology, artificial intelligence, philosophy of mathematics, metaphilosophy and the teaching of philosophy.
Vale a pena ler o livro e aconselha-se a sua tradução para língua portuguesa. Em vez de ter publicado a porcaria do livro de Carolina Salgado, a Dom Quixote podia ter gasto o seu dinheiro na publicação deste livro revolucionário, sem sujar as mãos com os que não sabem perder com educação.
Apesar de ser um bom livro de iniciação, não aborda assuntos fundamentais para a elaboração da cyberfilosofia, tal como a concebo, talvez porque os organizadores sejam alheios à tradição continental da Filosofia. O artigo "Culturas em colisão" é muito bom e abre a via a novas pesquisas filosóficas.
Com excepção deste meu blog e dalguns trabalhos meus resultantes da pesquisa interactiva que levo a cabo desde 2000, não conheço mais ninguém desta área, talvez porque os professores, ou melhor, as professoras de filosofia serem predominantemente mulheres, velhas e incapazes de se interessar pelos computadores, preferindo garantir o seu posto e sobretudo a remuneração, para financiar a sua vida metabolicamente reduzida. Estas palavras são duras mas verdadeiras e sem verdade não há mudança qualitativa. As Faculdades de Letras ou de Ciências Sociais afundam-se cada vez mais na merda que produzem. Elas aguardam passivamente os ataques terroristas.
J Francisco Saraiva de Sousa

Programa de Antropologia Médica

A pedido da directora da Escola Superior de Enfermagem Santa Maria (Porto), elaborei este programa de ANTROPOLOGIA MÉDICA, para ser leccionado num Curso Livre ou Pós-Graduação, mas, devido à mediocridade e maldade de certas professoras enfermeiras, foi chumbado no Conselho Científico - este e outras propostas de Cursos e de pesquisa, com a criação de uma revista e de três centros de pesquisa, um dos quais ligado ao Hospital.
Este programa foi elaborado a partir de dois tratados de antropologia médica, um dos quais é usado como manual em muitos cursos de medicina nos USA.




1. INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA MÉDICA

1.1. O conceito de cultura
1.2. Métodos de pesquisa em antropologia
1.3. A antropologia médica
1.4. A antropologia médica aplicada

2. DEFINIÇÕES CULTURAIS DE ANATOMIA E FISIOLOGIA

2.1. A imagem do corpo
2.2. Forma, tamanho, vestuário e a parte externa do corpo
2.3. A estrutura interna do corpo
2.4. O funcionamento do corpo
2.5. Equilíbrio e desequilíbrio
2.6. O modelo do corpo como uma «tubulação»
2.7. O organismo visto como uma máquina
2.8. O corpo durante a gravidez
2.9. Crenças sobre o sangue

3. DIETA ALIMENTAR E NUTRIÇÃO

3.1. Classificação dos alimentos
3.2. Alimento versus não-alimento
3.3. Alimento sagrado versus alimento profano
3.4. Classificações paralelas dos alimentos
3.5. O alimento usado como remédio, o remédio usado como alimento
3.6. Alimentos sociais
3.7. Cultura e má nutrição
3.8. Imigrantes e minorias étnicas: alguns problemas de nutrição
3.9. A alimentação dos bebés: uma comparação entre comunidades diferentes
3.10. Mudanças alimentares e doenças da civilização ocidental
3.11. Dieta alimentar e cancro

4. TRATAMENTO E CURA: AS ALTERNATIVAS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE

4.1. Aspectos culturais e sociais do pluralismo médico
4.2. As três alternativas da assistência à saúde

4.2.1. A alternativa informal
4.2.2. A alternativa popular
4.2.3. O sector profissional

4.3. O sistema médico
4.4. Uma comparação entre sistemas médicos
4.5. A profissão médica
4.6. Redes terapêuticas
4.7. Um exemplo de sistema médico
4.8. A actividade de enfermeiro
4.9. A abrangência do termo «curandeiro»

5. RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

5.1. A enfermidade (disease): a perspectiva do médico
5.2. A doença (illness): a perspectiva do paciente
5.3. «Adoecer»
5.4. O modelo explicativo
5.5. Doenças populares
5.6. Metáforas das doenças
5.7. Metáforas da SIDA
5.8. Teorias leigas sobre a causalidade das doenças
5.9. O paciente
5.10. O mundo natural
5.11. O mundo social
5.12. O mundo sobrenatural
5.13. Classificação das etiologias das doenças
5.14. A consulta médico-paciente
5.15. Razões para consultar ou não um médico
5.16. A apresentação da doença
5.17. Problemas da consulta médico-paciente

5.17.1. Diferenças na definição de «paciente»
5.17.2. Interpretação errónea da «linguagem do sofrimento» utilizada pelos pacientes
5.17.3. Incompatibilidade entre os modelos explicativos
5.17.4. Enfermidade sem doença
5.17.5. Doenças sem enfermidade
5.17.6. Problemas de terminologia
5.17.7. Problemas do tratamento
5.17.8. O papel do contexto

5.18. A relação médico-paciente: estratégias para o aperfeiçoamento

5.18.1. Compreender a doença
5.18.2. Melhorar a comunicação
5.18.3. Tratar a doença e a enfermidade
5.18.4. Avaliar o papel do contexto

6. GÉNERO E REPRODUÇÃO

6.1. Género e os seus componentes
6.2. As Culturas de género
6.3. Variações entre as culturas de género
6.4. As culturas de género e o comportamento sexual
6.5. As culturas de género e o tratamento de saúde
6.6. A profissão de enfermeira
6.7. A medicalização
6.8. A mulher e a prescrição de drogas psicotrópicas
6.9. A menstruação
6.10. A menopausa
6.11. As culturas de género e a saúde
6.12. Doenças de género
6.13. Doenças do género social feminino
6.14. Reprodução e parto
6.15. A cultura do nascimento ocidental
6.16. O crescimento da obstetrícia hospitalar
6.17. As origens da cultura do nascimento ocidental
6.18. A medicalização do nascimento
6.19. Culturas do nascimento não-ocidentais
6.20. As assistentes tradicionais de parto
6.21. Fertilidade e infertilidade
6.22. Contracepção, aborto e infanticídio
6.23. Os homens e a gravidez

7. DOR E CULTURA

7.1. O comportamento de dor
7.2. A dor privada
7.3. A dor pública
7.4. A apresentação da dor pública
7.5. Aspectos sociais da dor

8. CULTURA E FARMACOLOGIA

8.1. O «efeito total da droga»
8.2. O efeito placebo
8.3. Dependência e adição à droga
8.4. Uso e abuso do álcool
8.5. O hábito de fumar
8.6. As drogas sacramentais

9. RITUAL E MANIPULAÇÃO DOS INFORTÚNIOS

9.1. O ritual
9.2. Os símbolos do ritual
9.3. Tipos de ritual
9.4. Os rituais caléndricos
9.5. Os rituais de transição social
9.6. Estados de transição social
9.7. Rituais de gravidez e de nascimento
9.8. Rituais de morte e de luto
9.9. Rituais de hospitalização
9.10. Rituais de infortúnio
9.11. Aspectos técnicos do ritual
9.12. Funções do ritual

9.12.1. As funções psicológicas
9.12.2. As funções sociais
9.12.3. As funções protectoras

10. A PSIQUIATRIA TRANSCULTURAL ATRAVÉS DAS CULTURAS

10.1. «Normalidade» versus «anormalidade»
10.2. Comparação das perturbações psicológicas
10.3. A abordagem biológica
10.4. A abordagem da rotulação social
10.5. A abordagem combinada
10.6. Influências culturais sobre o diagnóstico psiquiátrico
10.7. Padrões culturais das perturbações psicológicas
10.8. Somatização
10.9. Perturbações psicológicas delimitadas culturalmente
10.10. Tratamento cultural das perturbações psicológicas
10.11. A antropologia e a terapia familiar
10.12. Emigração e doença mental
10.13. O diagnóstico psiquiátrico transcultural

11. ASPECTOS CULTURAIS DO STRESS

11.1. A natureza do stress
11.2. A relação entre os factores stressantes e a resposta ao stress
11.3. O stress e as mudanças de vidas
11.4. Factores que influenciam a resposta ao stress
11.5. Stress «culturogénico»
11.6. Alguns exemplos
11.7. Stress e emigração
11.8. Modelos leigos de stress

12. OS FACTORES CULTURAIS NA EPIDEMIOLOGIA

12.1. A cultura e a identificação da doença
12.2. Os factores culturais na epidemiologia das doenças
12.3. Variações no tratamento e no diagnóstico médicos
12.4. Cultura e ecologia
J Francisco Saraiva de Sousa

CyberMedicina

A medicina é uma área bem representada na Internet e, devido à globalização e ao relativismo universal da opinião, sofre severa e preocupante concorrência das chamadas medicinas alternativas.
Em Portugal, a antropologia médica nunca fez seriamente parte do currículo académico dos cursos de medicina e, quando está presente, constitui uma disciplina frouxa, leccionada com muita verborreia pseudo-filosófica ou pseudo-humanista. A antropologia que deveria constituir o eixo de abertura da medicina convencional à sociedade abre-se levianamente às etnomedicinas e deixa-se envolver na demolição do chamada modelo médico, tão maltratado pelos feminismos em voga.
Para evitar esta polémica demolidora do espírito da ciência na medicina, desgastada pelas críticas de Thomas S. Szasz, Ivan Illich, David Cooper, R. D. Laing, Géza Róheim e G. Devereux, de resto cérebros brilhantes que merecem a nossa atenção, prefiro avançar com o conceito de cybermedicina que não deve ser confundido com o de telemedicina, embora o possa compreender como área de estudo, e articulá-lo com a filosofia da medicina, uma disciplina ausente dos currículos nacionais, apesar de muitos médicos portugueses terem sido humanistas e excelentes intelectuais, dos quais destacamos evidentemente Jaime Cortesão e Abel Salazar.
Uma abordagem à cybermedicina seria estudar como é que os utentes dos sites médicos se relacionam com a medicina convencional e que tipo de informação procuram mais. Embora nunca tenhamos estudado este assunto, a nossa experiência em pesquisa interactiva parece revelar que muitos desses utentes, sobretudo os da nossa amostra, procuram informação que lhes permita auto-medicar-se e auto-examinar-se, sem recorrer à ajuda médica institucional. De facto, até mesmo no domínio da saúde, a Internet propicia os cuidados de si, em detrimento dos cuidados prestados por outros oficialmente creditados para exercer legalmente os cuidados médicos e de saúde. Os cibernautas mais inteligentes querem cuidar da sua própria saúde, sinal de conquista de autonomia. Neste aspecto, algumas críticas elaboradas por Ivan Illich são pertinentes, porquanto visam autonomizar o «doente» do sistema de saúde e dos seus interesses corporativos, permitindo-lhe cuidar de si.
Daqui resulta ser necessário repensar o modelo médico, de modo a dar lugar, nos cuidados de saúde, aos cuidados de si. O médico deve estar aberto às preocupações manifestadas pelos doentes e, quanto for necessário, ajudá-los nessa tarefa básica que é o cuidar de si. Nesta esfera pessoal ninguém deve ter autoridade e não há moral que possa justificar a intromissão alheia na esfera íntima da pessoa humana, nem Deus que supostamente criou este mundo imperfeito.
A bioética tem aqui uma palavra a dizer: respeitar o outro na sua alteridade radical. Outra palavra diferente desta é pura ideologia que visa legitimar as assimetrias de poder existentes e afastar as pessoas dos seus próprios cuidados de saúde, em nome de um «deus» manipulado por homens metabolicamente reduzidos, portanto sub-humanos.
J Francisco Saraiva de Sousa

A Noção de CyberFilosofia

A comunicação mediada por computador (CMC), usando instrumentos tais como correio elecrónico (e-mail), open virtual discussion groups (isto é, newsgroups), fóruns (geralmente referidos a grupos específicos ou restritos), real-time text correspondence (isto é, chat rooms), voice exchange (telephony), e face-to-face vídeo communications (videoconferencing), tornou-se uma rotina integrada na vida quotidiana da maior parte da população.
O objectivo do presente trabalho é referir as aplicações filosóficas usadas na Internet, especialmente a World Wide Web (WWW), e tentar clarificá-las, à luz do conceito clássico de que cabe ao filósofo profissional zelar pela cultura ocidental e pela saúde da humanidade (Husserl) num tempo indigente e ameaçado pelo terrorismo e pelas catástrofes naturais.
A Internet contém uma rica variedade de serviços filosóficos, dos quais destacamos:
1. Information Resources. Existem online muitas fontes de informação e bancos de dados sobre conceitos filosóficos e assuntos relacionados à filosofia. Estes recursos disponibilizados amigavelmente podem ser usados por todas as pessoas interessadas em aprender filosofia, nomeadamente pelos estudantes. Contudo, torna-se necessário aconselhar o uso honesto e ético desses recursos. Copiá-los e entregá-los aos professores como se fossem trabalhos de pesquisa original é desonesto e denuncia a falta de carácter e de dignidade daqueles que o fazem frequentemente, incluindo professores. As fontes devem ser devidamente referidas na bibliografia consultada e os seus autores citados.
2. Information about specific philosophical services. Numerosas agências, institutos, departamentos e serviços são promovidos através da website. Também eles fornecem informação e dados, mostram as áreas de pesquisa que estão a desenvolver e, por vezes, dão artigos e outros materiais de pesquisa e de ensino.
3. Revistas e editoras online. Existem muitíssimas revistas online editadas por editoras de prestígio (ELSEVIER, SPRINGER, BLACWELL, SAGE, TAYLOR & FRANCIS GROUP, PNAS, SCIENCE, NATURE) que possibilitam o acesso online a estudos sérios, embora mediante assinatura ou pagamento. Apesar disso, fornecem gratuitamente os abstracts e possibilitam a pesquisa, nomeadamente a elaboração de uma bibliografia. Já existem revistas de CyberPhilosophy e de CyberPsychology, para além das grandes revistas já clássicas de filosofia.
4. Pesquisa Interactiva. A Internet não só possibilita a pesquisa de informação, como também, ela própria, pode ser investigada. É neste nó górdio que a cyberfilosofia deve tomar corpo e forma: como um ramo autónomo da investigação filosófica que usa a Internet para estudar os cyberfenómenos, tais como cyberself, cyberspace, relações online, comunidades virtuais, infedilidades online, netadição ou cybersex, nas suas relações com a chamada vida real dos seus utentes. Esta cyberpesquisa pode adoptar várias abordagens e métodos de estudo, incluindo os métodos clássicos, tais como a fenomenologia, a hermenêutica, a lógica da argumentação, a epistemologia, a ética, a estética, a teoria crítica e tantos outros guias teóricos. Mas o desafio é infinitamente maior: Com a Internet a filosofia pode recuperar aquilo que lhe pertence por direito e que lhe foi burocraticamente sacado pelas pseudo-ciências sociais, que, em mais de cem anos, pariram um rato raquítico que faleceu à nascença.
Além disso, já existem na Internet self-help guides, philosophical testing and assessment, single-session philosophical advice through E-Mail or E-Bulletin Board, ongoing personal counseling, real-time counseling through chat, web telephony, and videoconferencing, synchronous and asynchronous support groups, discussion groups and group counseling. Todos estes últimos serviços devem ser substancialmente melhorados, monitorizados e mais utilizados no apoio do ensino da filosofia. A cyberfilosofia deve, pois, destacar a dimensão do ensino da filosofia, com a utilização de novas metodologias e de novas tecnologias, porquanto, de todas as disciplinas ditas sociais, a filosofia é a única capaz de garantir a continuidade da Civilização Ocidental e de contribuir para a formação auto-reflexiva do self.
Um aspecto interessante é constatar a enorme quantidade de não-ocidentais que, nos sites apropriados ou nos blogs, revelam grande apetência para aprender filosofia e estudar os nossos filósofos. A Internet deve ser também vista como o lar da filosofia, dado que, ao contrário da TV ou da Rádio, conjuga texto e imagem e fomenta o diálogo: os utentes da Internet não são meros receptores, os idiotas culturais de Garfinkel, mas fundamentalmente criadores que podem divulgar os seus pensamentos sérios, sem serem castrados por um sistema de filtragem medíocre.
A crise da palavra de que falava Steiner pode tornar-se coisa do passado, da era da televisão de massas: A Internet usa abundantemente a palavra e o texto e, nesse sentido, não pode ser acusada de embutir o espírito crítico e a reflexão. E, como meio da palavra que é, a Internet também pode tornar-se o veículo da democracia participativa e da cidadania responsável, contra as formas degradadas e corrompidas de democracia vigentes.
A Internet permite fazer oposição e formar uma nova inteligência internacional que diga: «Basta! Estamos cansados de tanta incompetência e de tanta corrupção. Queremos uma democracia real e aberta à participação de todos. Abaixo os luso-burricos!».
Também no domínio político e moral, porquanto não concebemos um sem o outro, tal como Sócrates, Platão e Aristóteles, a cyberfilosofia tem a palavra certa a dizer: a origem da cidade-Estado, da democracia e da filosofia coincidem (Jean-Pierre Vernant). Apesar da mediocridade geral dos professores de filosofia, a continuidade e sobretudo o aprofundamento do ensino da filosofia deve estar garantido, a menos que os luso-burricos queiram condenar os portugueses à condição de animais metabolicamente reduzidos e, assim, explorá-los como frangos de aviário. Se esta foi a política da educação do PSD, não devia ser a do PS. Cabe a José Sócrates decidir o tipo de país que deseja para as suas gentes. Mas nós queremos o melhor...
J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA

sábado, 28 de julho de 2007

Observações sobre George Steiner

STEINER E A PRESENÇA TEOLÓGICA

Steiner procura recuperar a presença num contexto absolutamente teológico. Para isso, submete a desconstrução derridiana a uma crítica severa mas justa, ao mesmo tempo que elabora uma teoria das presenças reais como presenças teológicas num domínio inequivocamente estético.
Logo, no início da sua obra Presenças Reais
[1], formula explicitamente a tese que preside a toda a sua investigação: «Qualquer compreensão coerente do que a linguagem é e do modo como funciona, […] qualquer exame coerente da capacidade que a linguagem humana possui de comunicar sentido e sentimento assenta, em última análise, na suposição da presença de Deus»[2]. A partir desta tese simples mas profunda, Steiner sustenta que «a aposta no sentido do sentido, o potencial de compreensão e de resposta que existe quando uma voz humana se dirige a outra, quando nos confrontamos com o texto e com a obra de arte ou a forma musical, quer dizer, quando encontramos o outro na sua condição de liberdade, é uma aposta na transcendência»[3]. No âmbito das obras de arte e das diversas manifestações artísticas, a experiência do sentido aparece intimamente ligada à possibilidade necessária da presença de Deus.
A análise de Steiner dá uma atenção especial à crise da palavra, cujos momentos iniciais estão manifestos no afastamento operado por Mallarmé da linguagem relativamente aos seus referentes exteriores e na desconstrução operada por Rimbaud da primeira pessoa do singular. Contra estas duas teses, Steiner quer recuperar a ordem do Logos, a qual implica «uma hipótese nuclear de «presença real». O repúdio por Mallarmé do pacto da referência, e a sua insistência em que a não-referência constitui o verdadeiro génio e a verdadeira pureza da linguagem, implica uma hipótese nuclear de «ausência real». A consequência é num sentido filosófico-semântico (...) um nihilismo ontológico (como o que Heidegger explorará na sua exposição do «Nada» ou Nichtigkeit). Entre os quatro signos arbitrários que fabricam – com todas as conotações de ficção deste «fabricam» – o objecto gráfico ou verbal rosa, entre as regras sintácticas do jogo de linguagem particular em que este objecto assume a sua legitimidade relacional (em relação com outros marcadores verbais e gráficos) e a flor putativa, passa a existir agora uma distância, em sentido estrito, infinita. A verdade da palavra é a ausência do mundo»
[4]. É neste momento de epílego da palavra que Steiner dirige uma crítica à desconstrução da metafísica ocidental operada por Derrida. Como escreve Steiner:
«A formulação de Derrida é de uma beleza incisiva: “a face inteligível do signo continua voltada para o lado do verbo e da face de Deus”. Uma semântica, uma poética da correspondência, da possibilidade de decifração e de valores de verdade obtidos ao longo do tempo e através do consenso, é estritamente inseparável do postulado de uma transcendência teológico-metafísica. Assim a origem do axioma do sentido é comum à da ideia de Deus. O signo semântico, quando se supunha dotado de sentido, e a divindade “tem o mesmo lugar e data de nascimento” (Derrida). Constituem a cópula helénico-hebraica em que assentaram a nossa histórica e a nossa prática do Logos. “A idade do signo”, diz Derrida, “e é essencialmente teológica”»
[5].
«A força de Derrida está em ter visto tão precisamente que a questão não é aqui nem estético-linguística nem filosófica em qualquer acepção tradicional e como tal sujeita a debate – pois a tradição e o seu debate encarnam e perpetuam o próprio fantasma que se trata de exorcizar. O que está aqui em jogo é, muito simplesmente, o sentido dos sentidos tal como o reitera o postulado da existência de Deus. “No princípio era o Verbo”. Esse princípio, porém, não existiu, diz a desconstrução; tudo o que há é um jogo de sons e marcadores por entre as mutações do tempo»
[6].
«A teologia ocidental e a metafísica, a epistemologia e a estética que formaram as suas notas de pé de página principais, são “logocentricas”. Quer dizer que axiomatizam como fundamental e preeminente a ideia de uma “presença”. Pode tratar-se da ideia de Deus (e em última análise deve ser dela que se trata); das ideias platónicas, da essência aristotélica ou tomista. Pode tratar-se da consciência de si cartesiana; da lógica transcendental de Kant ou do “Ser” de Heidegger. É a estes eixos que os raios do sentido acabam por ligar-se. São eles que garantem a sua plenitude. E a presença, teológica, ontológica ou metafísica, que torna crível a afirmação segundo ao qual há “alguma coisa dentro do que dizemos”»
[7].
Contestando o pressuposto de um conteúdo garantido, a desconstrução pode ser definida
«como uma elaboração da bondade de Gertrude Stein: “there is no there there” (não há aí do ser-aí). A idolatria, o animismo teológico-filosófico implícitos em qualquer ambição de plenitude devem ser desmascarados. Os signos não veiculam presenças. Sua, num sentido consequente com o de Mellarmé, mas muito mais radical, é l’absence de toute rose. É precisamente esta ausência que o signo representa, que torna o signo funcional. Os instrumentos do signo, como nos ensinou Saussure, são os da “diferença”: os signos tornam-se identificáveis e significantes apenas em virtude das suas diferenças, chamadas “diacríticas”, em relação a outros signos. “Diferença” é igualmente o acto de diferir: os signos não se “assemelham” aos objectos a que se referem ou aos quais supomos por convenção que se referem. Numa terceira acepção, significa também “suspender”, suspensão ou adiamento de um sentido declarado, persistência do movimento entrecortado que adia a ilusão, a fixidez estéril da definição. Eco da Aufhebung, ou “elevação acima” de Hegel, o célebre neologismo de Derrida, a différance, torna-se fundamental para antiteologia da ausência desconstrucionista e pós-estruturalista»
[8].
Sem pretender refutar o discurso desconstrucionista, em textos clássicos da desconstrução, em Derrida ou Paul De Man
[9], Steiner considera que o seu dogma central, «segundo o qual todas as leituras são leitura erróneas e não há garantias da inteligibilidade do signo, tem precisamente o mesmo estatuto paradoxal e autodestruidor que a célebre aporia em que um cretense declara que todos oscretenses são mentirosos. Emparedadas no interior da linguagem natural, as proposições da desconstrução refutam-se a si próprias»[10]. A desconstrução do «logocentrismo» (Derrida), sendo exposta em termos inteiramente logocêntricos, não escapa, ela mesma, ao logocentrismo. Segundo Steiner o mais cruel dos paradoxos da desconstrução é o seguinte: «não houve nunca “ponto de partida”, mas há, no que se refere à nossa habitação inocente, facticia e oportunista do sentido, um lugar de fim. O que parece evidente é que o desafio não pode ser iludido. Aquele que lê – ou treslê – por cima do nosso ombro pode ser ou um Roland Barthes ou um Karl Barth. Para os actuais mestres do vazio, o que está em jogo é apenas o jogo»[11]. E é, neste ponto, que Steiner diverge deles.
À desconstrução Steiner começa por opor a alteridade: «A linguagem existe, a arte existe, porque existe “o outro”. Falamos de nós para nós num solilóquio constante. Mas o medium deste solilóquio é o da linguagem partilhada – condensada, tornada privada e críptica talvez por meio de referências e associações veladas, mas enraizando-se, em todo o caso, e até aos limites incertos da consciência, num vocabulário e numa gramática herdados, determinados histórica e socialmente».
[12]. As invenções autistas ou os artefactos solipsistas são concebíveis, mas, de uma maneira ou de outra, estão fundadas em actos de comunicação e em experiências de confronto. Tal como em Levinas[13], o encontro com a alteridade comporta uma ética, desenvolvida como uma fenomenologia da cortesia. A criação – em particular artística – tem prioridade sobre o acto de recepção, de comentário ou de valorização, num duplo sentido:
– temporal, já que «o poema vem antes do comentário. A construção precede a desconstrução»
[14];
– e ontológica, na medida em que «o poema, a tela, a composição é a razão de ser, no sentido mais forte, das interpretações e juízos a que dá ensejo. (…) A obra de criação é a origem do ser de tudo o que se lhe segue. O movimento temporal-ontológico do primário para o secundário é uma passagem da autonomia – no quadro obrigatório das potencialidades humanas – à dependência»
[15]. Dado que «o texto primeiro – o poema, o quadro, o trecho musical – é um fenómeno de liberdade»[16], «a experiência de uma forma devida à criação é um encontro entre liberdades»[17]. Nesta linha de pensamento, Steiner desenvolve uma teoria estética, de acordo com a qual «há criação estética porque há criação. Há construção de formas porque fomos feitos forma»[18]. Steiner considera «o acto estético, a concepção e o trazer ao ser do que, em todo o rigor, poderia não ter sido concebido ou trazido ao ser, como uma imitatio, uma repetição à sua escala própria, do inacessível primeiro fiat»[19]. O acto de dar ao ser do poeta, do artista ou mesmo do compositor é, segundo Steiner, contra-criação. «O pulsar do motivo que religa o engendrar de formas dotadas de sentido ao primeiro acto de criação, ao vir ao ser do ser» é «radicalmente agonístico»: «O criador humano enfurece-se com o seu vir depois, com o facto de, para sempre, ser segundo em relação ao mistério original e originário da formação da forma»[20]. O auto-retrato ocupa o lugar axial na poiesis, uma vez que «nos surge como a modalidade mais agonística da criação»[21], na qual o artista procura «conseguir o domínio das formas e dos sentidos do seu próprio ser»[22].
«Pelo nosso lado, nós, como leitores, auditores, espectadores, fazemos a experiência da estética, respondemos à prova da liberdade que penetra no nosso ser, reconhecendo no interior das formas os contornos da própria criação. Ao respondermos ao poema, à composição musical, ao quadro do pintor, reassumimos, dentro dos limites da nossa capacidade criadora menor, os dois movimentos que definem a nossa presença existencial no mundo: o da vinda ao ser onde antes nada havia ou era, e quando era possível que o nada tivesse continuado a ser, e o da desmesura da morte»
[23].
É a experiência estética que, além de nos permitir negar a mortalidade, nos permite voltarmos «a criar a criação»
[24]. «Quando lemos bem, quando fazemos nossa a luz das presenças concretas que habitam o quadro, quando ouvimos as relações dinâmicas da articulação tonal, engendramos de novo, desterramos do silêncio, da ausência potencial, a actividade do artista»[25]. Contudo, não há leitura que englobe em termos finais os sentidos, a vida do sentido no poema, na medida em que a alteridade é sempre irredutível. A alteridade – segundo a formulação de Steiner – é «como um vestígio sempre renovado do momento original, nunca inteiramente acessível, da criação»[26]. Diante deste salto no escuro do indemonstrável, Steiner sustenta que
«há no acto de arte e na recepção da arte, que há na experiência da forma portadora de sentido, um pressuposto de presença […]. Há sempre, haverá sempre, um sentido em que não sabemos o que é aquilo de que fazemos a experiência e de que falamos, quando fazemos a experiência e falamos daquilo que é. Há um sentido em que nenhum discurso humano, por mais analítico que seja, pode fixar um sentido final ao sentido»
[27].
Esta aposta steiniana na transcendência é uma aposta no sentido. Nesta medida,
«a relação de uma leitura plena, do acto de recepção e de interiorização de formas dotadas de sentido, é um acto metafísico e, em última análise, um acto teológico. A atribuição de beleza à verdade e ao sentido ou é uma flor de retórica ou uma declaração teológica. É uma teologia, explícita ou recalcada, mascarada ou confessa, substantiva ou figurada, que garante o pressuposto da criação e do sentido nos nossos encontros com os textos, com a música e com a arte. O sentido do sentido é um postulado transcendente»
[28].
Para Steiner, a música e a metafísica são inseparáveis: «A música é o que nomeia aquilo que nomeia a vida. Trata-se, para além de qualquer concretização litúrgica ou teológica, de um movimento sacramental»
[29], que põe o nosso ser em contacto com algo que transcende o dizível, com algo que ultrapassa o analisável. Dado que a arte adere à metafísica e à religião, «a estética é um dar forma a uma epifania»[30]. Embora comece na imanência, a arte não se detém nela. A estética torna presença luminosa a continuidade entre a temporalidade e a eternidade, entre a matéria e o espírito, entre o homem e o «outro» e a poiesis abre-se à ordem do religioso e do metafísico que a sustenta. Se nas leituras de Derrida habita uma «teologia zero» do «sempre ausente», na metafísica de Steiner certas dimensões do pensamento e da criação só se tornam atingíveis mediante a presença de Deus. Ao esquecimento da questão de Deus e do sentido Steiner opõe uma metafísica teológica: «Foi a intuição hebraica segundo a qual Deus é capaz de todos os actos de discurso, excepto do monólogo, que gerou as nossas artes de resposta, de interrogação e de contra interrogação»[31].

[1] STEINER, George – Presenças Reais: As artes do Sentido. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
[2] STEINER, George – Presenças Reais, p.15.
[3] STEINER, George – Presenças Reais, p. 16.
[4] STEINER, George – Presenças Reais, p.92.
[5] STEINER, George – Presenças Reais,p. 111.
[6] STEINER, George – Presenças Reais,p. 111.
[7] STEINER, George – Presenças Reais, p. 112.
[8] STEINER, George – Presenças Reais, p.112-113.
[9] Cf. DE MAN, Paul – A Resistência à Teoria. Lisboa: Edições 70, 1989.
[10] STEINER, George – Presenças Reais, p. 119.
[11] STEINER, George – Presenças Reais, p. 123.
[12] STEINER, George – Presenças Reais, p.127.
[13] Cf. LEVINAS, Emamanuel – Totalidad e Infinito: Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977.
[14] STEINER, George – Presenças Reais, p. 138.
[15] STEINER, George – Presenças Reais, p. 138.
[16] STEINER, George – Presenças Reais, p. 139.
[17] STEINER, George – Presenças Reais, p. 140.
[18] STEINER, George – Presenças Reais, p. 180.
[19] STEINER, George – Presenças Reais, p. 180.
[20] STEINER, George – Presenças Reais, p. 182.
[21] STEINER, George – Presenças Reais, p. 184.
[22] STEINER, George – Presenças Reais, p. 183.
[23] STEINER, George – Presenças Reais, p. 187.
[24] Ibidem.
[25] Ibidem.
[26] Ibidem, p. 188.
[27] Ibidem, p. 190-191.
[28] Ibidem, p. 192.
[29] Ibidem, p. 193.
[30] Ibidem, p. 200.
[31] Ibidem.
J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA

Poesia do Sem-Abrigo na Era Digital

Cântico da Noite
"Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.
Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.
Somos os viandantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte.
À espera que venham cortá-las".
(Georg Trakl)
"Vivo a minha vida em crescentes anéis,
que vão envolvendo as coisas.
Talvez não chegue a comppletar o último,
mas quero tentá-lo
Giro em volta de Deus, da torre antiquíssima,
e giro há milhares de anos;
e ainda não sei: sou falcão, sou tormenta,
ou uma grande canção?"
(Rainer Maria Rilke)
Pretendemos retomar a nossa interpretação da poesia de Guerra Junqueiro, de modo a elaborar uma grande filosofia em Língua Portuguesa, e, numa hora de ameaça terrorista e de catástrofe natural, ter coragem de pensar contra a corrente do ser metabolicamente reduzido.
O Caminho do Céu e Prometeu Libertado são duas obras formidáveis de Guerra Junqueiro, mas infelizmente estão inacabadas. Mas, mesmo assim, têm uma palavra a dizer, talvez a palavra definitiva e derradeira, juntamente com Os Simples. A peregrinação é movida pela busca da salvação. A peregrinação é a história da salvação — o Caminho do Céu. Regressar ao lar é entrar na morada de Deus. Este é o núcleo irrefutável do pensamento edificante de Guerra Junqueiro. Quem não compreendeu isso não pode compreender nada do que é dito e escrito na poesia e na prosa filosóficas de Guerra Junqueiro.

O regresso ao lar pode ser interpretado de muitas maneiras, mas todas elas reconduzem umas às outras:

— o regresso a casa, nomeadamente à casa paterna;
— o regresso à infância, mas à infância da alma;
— o regresso à natureza;
— o regresso à pátria;
— o regresso à língua materna;
— o regresso a si mesmo;
— o regresso a Deus.

1. O REGRESSO A CASA. A casa é o lugar onde se habita, abrigado e protegido da intromissão de estranhos e até mesmo do mal. A casa é o nosso lar — o lugar onde podemos ser nós mesmos, sem que tenhamos de nos defender do olhar do outro. A casa e a família são o nosso primeiro abrigo: lugar protegido onde nos sentimos amados. A casa é o lugar que nos protege do mal.
A teoria da vinculação de John Bowlby mostra precisamente que o desenvolvimento normal da criança depende da qualidade das primeiras vinculações que estabelece com os membros da sua família, em primeiro lugar com a mãe, a vinculação das vinculações. Contudo, o desenvolvimento caminha na direcção de uma autonomia crescente. A partir de determinado momento, em particular durante a adolescência, a criança que se vai tornando adulta precisa de abandonar o lar e arriscar a sua vida, na tentativa de estabelecer novas vinculações, das quais só uma poderá vir a ser o «substituto» da vinculação primordial: o laço de união com um parceiro permanente. Abandona o lar paterno para se tornar um adulto autónomo, capaz de criar o seu novo lar e de constituir a sua nova família. À medida que o tempo passa e que as novas estruturas se vão consolidando, o novo adulto distancia-se cada vez mais da casa paterna. A família nuclear ocidental é extremamente vulnerável à dissolução: qualquer acontecimento mais dramático coloca-a imediatamente em causa — o crescimento dos filhos, a doença, enfim a morte, sobretudo a morte.

É nessas situações difíceis que se sente «saudade» da casa paterna, do abrigo primordial, mas, quando se tenta regressar ao lar donde se partiu há muito tempo, descobre-se subitamente que ele já não é o mesmo: o afastamento e os efeitos irreversíveis do tempo encarregaram-se de o modificar e de o transfigurar completa e totalmente. A morte visitou o lar paterno: o berço que deu origem à vida foi surpreendido pela morte.

O regresso à casa paterna não é um verdadeiro regresso ao antigo lar e à família que nele habitou originariamente. Quando se abandonou há muito tempo o lar paterno, deixou-se para trás esse mesmo solo originário. Fisicamente, o lugar pode ser o mesmo, mesmo que tenha sofrido os efeitos incontornáveis do tempo, mas, de resto, daquilo que nos lembramos já nada resta, a não ser a própria lembrança — a memória de um tempo que já não é mais, que já não existe. No regresso ao lar paterno, deparamo-nos com o nada da existência. Somos enlevados subitamente por uma forte onda de angústia: o nada que encontramos é o nada que nos aguarda. Confrontamo-nos antecipadamente com a nossa própria morte.

2. O REGRESSO À INFÂNCIA. É, por isso, que Guerra Junqueiro, vendo frustrada a sua tentativa real de regressar à casa paterna, não tem outra via de atingir essa finalidade senão recordar a sua infância, o tempo irremediavelmente perdido de quando ainda era menino que brincava no seio materno.

A bem dizer o Poeta nem sequer precisa sair do seu «lar» para regressar, por algum motivo súbito e inesperado, à casa paterna. Quer continue distante, quer pise de novo o solo da casa paterna, o regresso ao lar é sempre um processo activo que deixa o passado vir à consciência, na forma de lembranças dispersas e ténues da sua infância. Regressar ao lar é acordar e lembrar memórias adormecidas: é uma tarefa dolorosa, independentemente das circunstâncias que a convocaram.

A recordação não é suficiente por si mesma para trazer à vida aquilo que já não pertence à vida ou para tornar presente aquilo que já é passado morto: a flecha do tempo é irreversível e não permite que as coisas que já não são voltem a ser — no presente — aquilo que já foram algures no passado distante, cuja memória só pode ser plena e infinita em Deus.

A infância da alma à qual o Poeta quer regressar é irrecuperável. Resta a saudade como experiência sofrida e triste resultante da impossibilidade de regredir no tempo, de modo a tornar presente o que se perdeu no passado. Do passado já só resta a sua memória que nem sempre lhe é fiel. A memória não nos restitui o tempo perdido e muito menos as alegrias passadas: a memória fere-nos interiormente, confronta-nos connosco mesmo, acorda culpas, mas pode abrir o futuro... A esperança de que os sofrimentos passados podem ser redimidos na e pela memória infinita de Deus.

3. O REGRESSO À NATUREZA. O regresso à natureza tem sido interpretado por certos «puristas» como o regresso a formas de vida simples — à vida do campo ou à paisagem bucólica. Essa é, pelo menos, a interpretação mais comum que se faz de Os Simples de Guerra Junqueiro — gente simples que nunca abandonou a sua terra de origem, o seu estilo de vida arcaico e os seus costumes tradicionais. O próprio Guerra Junqueiro parece, por vezes, aprovar essa interpretação naturalista da sua poesia lírica, mas depressa viu que isso era uma outra terrível ilusão.

Os campos e as suas gentes não resistiram à integração social e cultural imposta pela economia capitalista de mercado. O edifício — a construção — da casa paterna pode ter sido demolido e, em seu lugar, construído na melhor das hipóteses uma área residencial e, na pior delas, um grande centro comercial. Além disso, a conversão da casa paterna numa casa de campo ou numa casa de férias enterra todas as suas memórias, convertendo-a num bem que se usufrui nos chamados tempos de lazer. Todas essas situações mostram até à exaustão que o regresso à natureza não é um verdadeiro regresso à Mãe natureza, mas um regresso à natureza dominada, maltratada, colonizada e instrumentalizada em função dos ritmos delirantes e alienantes da vida da Cidade e da sua economia de mercado global e globalizadora.

Na sociedade moderna, o regresso à natureza é pensado como ocupação dos tempos livres. Esta expressão, recentemente inventada, aponta para uma diferença específica que a distingue do tempo não livre: o tempo que é preenchido pelo trabalho e, por conseguinte, determinado de fora, ou seja, pela sociedade. Há, desde logo, aqui, uma dependência do tempo livre em relação à situação geral da sociedade. Ora, a sociedade, conforme observa Adorno, «mantém as pessoas sob um fascínio. Nem no seu trabalho, nem na sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade». Com efeito, «a existência que a sociedade impõe às pessoas não se identifica com o que as pessoas são ou poderiam ser em si mesmas»[1]. «Numa época de integração sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções»[2] ou papéis socialmente atribuídos. Adorno considera que a questão do tempo livre deve ser reformulada em função dessa situação. As pessoas pensam que são livres quando decidem ocupar os seus tempos livres, quando, na verdade, na ideologia do “hobby”, «se prolongam as formas de vida organizada segundo o regime do lucro». «A própria ironia da expressão negócios do tempo livre está tão profundamente esquecida quanto se leva a sério o “show business”. É bem conhecido, e nem por isso menos verdadeiro, que os fenómenos específicos do tempo livre como o turismo e o “camping” são accionados e organizados em função do lucro»[3]. «Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia, se tornaram heterónomas também para si próprias»[4]. Dado que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre, não se pode colocar de parte a possibilidade de «emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre se transforme em liberdade»[5].

Quem vive no campo quer vir para a cidade e quem vive na cidade quer passar férias no campo, mas sempre na expectativa de regressar o mais rapidamente possível à cidade e ao «cantinho» que nela tem. A cidade nasceu das muralhas que a protegiam da «selva»: a cidade é a negação da natureza. O regresso à natureza é uma enorme ilusão. A natureza assusta o homem civilizado da cidade: afugenta-o para bem longe de si ou, pelo menos, esse deveria ser o seu objectivo, para se proteger do eco-turismo que a destrói.

Cabe aqui comparar a concepção de progresso de Adorno e a concepção de progresso de Guerra Junqueiro, de resto tratado frequentemente como um naturalista. A sua concepção de progresso expõe-na Guerra Junqueiro no seu ensaio sobre Raul Brandão (Carta-Prefácio aos «Pobres»):

«A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada»[6].

Embora num outro âmbito, Adorno avança a sua teoria da dialéctica negativa do progresso em termos muito semelhantes:

«O conceito de progresso é filosófico na medida em que, enquanto articula o movimento social, ao mesmo tempo se lhe contrapõe. Surgido socialmente, ele reclama uma confrontação crítica com a sociedade real. O momento da redenção, por mais secularizado que seja, não pode ser apagado dele. O facto de que não se deixe reduzir nem à facticidade nem à ideia demonstra a sua contradição interna. Pois o momento do esclarecimento, na medida em que se consuma na reconciliação com a natureza ao acalmar os sustos desta, está irmanado ao momento de domínio da mesma. Modelo de progresso, ainda que seja transferido para a divindade, é o controle da natureza externa e interna do homem. A opressão exercida mediante esse controle, cuja suprema forma de reflexão espiritual está no princípio de identidade da razão, reproduz o antagonismo. Quanto maior identidade impõe o espírito dominador, tanto mais injustiça sofre o não-idêntico. A injustiça transmite-se por essa resistência. Ela reforça o princípio opressor, enquanto o oprimido também se arrasta peçonhento. Tudo progride no todo; só não o faz até hoje o todo mesmo»
[7].

O progresso é inegavelmente destruição, mas, como observa M. Horkheimer, o regresso à natureza seria ainda mais terrível:

«Somos os herdeiros, para melhor ou para pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente»
[8].


4. O REGRESSO À PÁTRIA. O certo é que o homem moderno sente uma necessidade inexplicável de regressar a algum lugar donde partiu há muito tempo. Provavelmente, sintoma da sua apatridade: ser-sem-abrigo procura, sem disso ter consciência, abrigo...

Na Carta sobre o Humanismo, Heidegger trata precisamente desta condição do homem moderno numa perspectiva ontológica. «O ser manifesta-se ao homem no projecto ec-stático». Este projecto é essencialmente um projecto jogado: «Aquele que joga no projectar não é o homem, mas o próprio ser que destina o homem para a ec-sistência do ser-aí como sua essência. Este destino acontece como a clareira do ser, forma sob a qual o destino é. Ela garante a proximidade ao ser. Nesta proximidade, na clareira do «aí», mora o homem como o ec-sistente, sem que já hoje seja capaz de experimentar propriamente este morar e assumi-lo»[9]. A partir da elegia Retorno (1943) de Hölderlin, Heidegger observa que esta proximidade do ser «é percebida numa linguagem mais radical [que a de Ser e Tempo] e nomeada a «pátria» a partir da experiência do esquecimento do ser». Pátria «é pensada aqui num sentido mais originário, não com acento patriótico, nem nacionalista, mas de acordo com a história do ser. Mas a essência da pátria é, ao mesmo tempo, nomeada com a intenção de pensar a patridade do homem moderno a partir da história do ser»[10]. Nietzsche, embora tenha sido o último a experimentar a aptricidade, foi incapaz de encontrar, no seio da Metafísica, outra saída a não ser a inversão da Metafísica. Hölderlin, pelo contrário, espera que os seus contemporâneos reencontrem o lugar do seu desbobramento essencial. Não o procura no egoísmo do seu povo, mas encontra-o a partir da condição dos seus contemporâneos fazerem parte do Ocidente. O Ocidente não é pensado regional e geograficamente, enquanto o ocidental se opõe ao oriental, nem sequer é pensado como a Europa. O Ocidente é pensado na perspectiva da história universal, a partir da proximidade com a origem. Não se trata, portanto, de restabelecer o mundo no modo de ser alemão, mas é dito aos alemães que, em verdadeiro universalismo, contribuam para o seu restabelecimento. «A pátria deste morar historial é a proximidade do ser»[11]. Como escreve Heidegger:

«É nesta proximidade que se realiza, — caso isto um dia aconteça — a decisão se e como o Deus e os deuses se recusam e a noite permanece, se e como amanhece o dia do sagrado, se e como, no surgimento do sagrado, pode recomeçar uma manifestação do Deus e dos deuses. O sagrado, porém, que é apenas o espaço essencial para a deidade, — o qual, por sua vez, novamente apenas garante uma dimensão para os deuses e o Deus —, manifesta-se somente, então, em seu brilho, quando antes e após longa preparação, o próprio ser se iluminou e foi experimentado em sua verdade. Só assim começa, a partir do ser, a superação da apatridade, na qual erram perdidos, não apenas os homens, mas também a essência do homem»
[12].

A apatridade reside, conforme diz Heidegger, no abandono ontológico do ente e, como tal, é o sinal do esquecimento do ser. Daqui resulta que a verdade do ser permanece impensada. «O esquecimento do ser manifesta-se indirectamente no facto de o homem sempre considerar e trabalhar só o ente. E, como nisto não pode evitar de ter o ser na representação, também o ser é explicado apenas como o «mais geral» e, por conseguinte, o que engloba o ente ou como criação do ente infinito ou ainda como produção de um sujeito finito. Ao mesmo tempo, «o ser», desde a Antiguidade, situa-se em lugar «do ente». E vice-versa, este em lugar daquele; ambos acossados numa estranha e não pensada confusão»
[13].

«O ser enquanto destino que destina verdade permanece oculto. Mas o destino do mundo se anuncia na poesia, sem que ainda se torne manifesto como a história do ser»[14]. E é na poesia de Hölderlin que se exprime o pensamento universal e radical. «A apatridade torna-se um destino do mundo»[15].

A noção de pátria de Guerra Junqueiro parece não ter nada a ver com a noção de pátria que Heidegger explicita a partir da poesia de Hölderlin. De certo modo, assim é de um ponto de vista substancial, mas se levarmos em conta que para Guerra Junqueiro o ser é Deus, então torna-se possível pensar a apatridade do homem moderno como uma manifestação do esquecimento de Deus como ser absoluto. O homem moderno encontra-se perdido no seio das coisas intramundanas, como se elas fossem as coisas verdadeiramente importantes nesta vida. Ao alienar-se neste mundo do «Deus Milhão», o homem afasta-se da sua própria essência e, por conseguinte, de Deus. A apatridade é pensada em Guerra Junqueiro como afastamento e esquecimento de Deus e da própria essência do homem. Esta noção encontra-se explicitada na obra poética de Guerra Junqueiro — Finis Patriae.

Diz Guerra Junqueiro: «O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar»[16]. Em relação a Camões, diz o Poeta: «Amou a pátria na humanidade, a humanidade no Universo, e o universo em Deus»[17].

Muitos emigrantes, depois de uma longa permanência num país distante e estranho, onde eram tratados como forasteiros, desejam regressar à sua pátria, à sua terra natal, quanto mais não seja para terminar os seus últimos dias de vida e serem enterrados em solo amigável. Mas até mesmo a pátria a que regressam já não é a mesma donde partiram há muito tempo. Dessa pátria velha já nada existe: o que existe é algo que é semelhante em todos os lugares do mundo, devido à globalização económica e tecnológica. O desenraizamento é uma condição generalizada do homem que perdeu a memória. Para onde quer que vá esse homem é sempre um apátrida.

5. O REGRESSO À LÍNGUA. A experiência do regresso à língua foi vivida intensamente por Adorno, quando regressa à Alemanha após o seu exílio:

«A resolução do retorno à Alemanha não foi motivada simplesmente por uma necessidade subjectiva — embora eu não a negue —, por saudades da terra [Heimweh]. Também um factor objectivo se fazia presente: o idioma. Não só porque na língua recém-adquirida nunca conseguimos expressar-nos com todas as nuances e no ritmo do fluxo dos pensamentos; antes porque a língua alemã possui, evidentemente, uma peculiar afinidade electiva com a filosofia e nomeadamente com o momento especulativo que tão facilmente é suspeito de perigosamente obscuro no Ocidente e não sem fundamento»[18].

Guerra Junqueiro escreve: «O canto, matemática viva, eis o revelador da natureza, a língua suprema do Universo»
[19]. A oração é a única fala capaz de escutar o enigma do Ser. Até mesmo a língua materna já não é a mesma: as suas palavras já não dizem as mesmas coisas que diziam quando a abandonaram há muito tempo. A língua(gem) está em perigo.

Em qualquer numa dessas tentativas de regresso a algo que se perdeu há muito tempo, o peregrino sente-se sempre um estranho em terras estranhas. Esta apatridade é, conforme viu Heidegger, a condição fundamental do homem moderno — desse homem que não tem abrigo em parte alguma. Então o que resta ao peregrino que queira regressar realmente ao lar? Restam-lhe apenas memórias adormecidas, recolhidas dentro de si mesmo, que ele procurará relembrar para não as abandonar, também elas, ao esquecimento.

6. O REGRESSO À SI MESMO. Quem queira regressar ao lar deverá contentar-se em acordar memórias adormecidas. O regresso ao lar é uma lembrança que confronta o peregrino consigo mesmo e com o seu destino irremediável — a morte.

O regresso ao lar é acordar lembranças de coisas que se perderam irremediavelmente no passado. Recordar o passado com saudade é confrontar-se com a morte eminente. A recordação é o último caminho que o peregrino percorre no leito da morte. É, durante esse percurso, que ele se lembra de Deus, com esperança. É sobejamente conhecida a tese de Guerra Junqueiro segundo a qual só se atinge a individualidade mediante a experiência da dor e do sofrimento: «A dor é a escada de fogo que nos conduz à vida eterna»[20].

Esta mesma tese foi contemporaneamente retomada por Konrad Lorenz numa perspectiva etológica, para denunciar uma das doenças da civilização técnica moderna. Como resultado da concorrência entre os homens, propulsionada por interesses comerciais e económicos, «a precipitação angustiante e a angústia precipitada contribuem para roubar ao homem as suas propriedades essenciais»[21]. Durante o processo de humanização, o momento decisivo foi talvez «aquele em que o ser, até aí explorador curioso do mundo ambiente, se descobriu a si mesmo como objecto de investigação. [...] Um ser, que ainda não tem noção da própria existência, é incapaz de desenvolver o pensamento conceptual, a linguagem, a consciência moral e responsável. Um ser, que deixa de reflectir, está em perigo de perder todas estas faculdades e funções especificamente humanas»[22]. Ora, na civilização técnica, «um dos piores efeitos da agitação, ou talvez directamente da precipitação geradora da angústia, é a manifesta incapacidade dos homens actuais para estarem a sós consigo mesmo, ainda que seja apenas por breves momentos. Evitam, com aplicação aflitiva, todas as ocasiões de recolhimento e de meditação, como se temessem que a reflexão lhes pudesse apresentar um terrível auto-retrato [...]»[23]. A necessidade de ruído manifestada pelo homem moderno mais não é que a tentativa desesperada de evitar «cair, por um instante, no perigo de se encontrar consigo mesmo»[24]. O tempo perdido a seguir as emissões publicitárias embrutecedoras da televisão ou agarrado ao telemóvel só pode ser explicado como um meio de reprimir a reflexão.

Lorenz mostrou que, devido à progressiva dominação técnica da natureza, o homem moderno, deslocou o mecanismo da economia prazer-desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando. «A crescente intolerância para com o desprazer — conjugada com a atenuação do poder atractivo do prazer — induz os homens a perder a capacidade de empreender trabalhos difíceis, cuja promessa de prazer reside no resultado posterior. Origina-se assim uma exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam»[25], de resto alimentada e incrementada pelos produtores e pelas empresas comerciais. Este esforço imoderado para evitar a todo o custo o menor sentimento de incomodidade impossibilita inevitavelmente certas formas de prazer. Ao reprimir a hipersensibilidade ao sofrimento, o homem moderno vedou a si mesmo o acesso à alegria: «Conhece o gozo, mas não a alegria». «A crescente intolerância actual a respeito do sofrimento transforma os altos e os baixos da vida humana, comandados pela natureza, em superfície artificialmente nivelada; das grandes vagas, com suas cristas e depressões, faz uma vibração a custo perceptível; da luz e da sombra, origina um cinzento uniforme. Numa palavra, prepara um tédio mortal»[26]. Enfim, um homem que foge da sua própria sombra!

Um tal homem já não sabe o que significa verdadeiramente a peregrinação. Sem reflexão não há divagação ou mesmo errância. O homem actual agita-se freneticamente, mas não sabe caminhar. Neste sentido, o peregrino de Guerra Junqueiro é muito mais que um tipo literário; é fundamentalmente a denúncia da neurastenia do homem moderno.

7. O REGRESSO A DEUS. Com a morte a bater à porta, o peregrino descobre Deus e essa descoberta permite-lhe transformar a saudade daquilo que já não é nem pode vir a ser na esperança daquilo que, embora ainda não seja, poderá vir a ser — a morada de Deus.

Foi preciso percorrer um longo caminho cheio de percalços para que o peregrino, nas suas vãs tentativas de regressar ao lar, aqui e agora, na Terra, tenha chegado à conclusão que o melhor caminho é o Caminho do Céu. Libertando-se dos monstros que o perseguem, ele pode vir a entrar na morada de Deus, onde finalmente encontrará tudo aquilo que queria encontrar ainda em vida, aqui na Terra, em comunhão santa com Deus.

Deus é a única memória viva infinita capaz de recuperar e salvar plenamente, na sua eterna morada, tudo aquilo que se perdeu e se sofreu aqui na Terra. Deus é a única esperança — a esperança de uma vida plenamente reconciliada. Os maus momentos serão perdoados e esquecidos e os bons momentos serão glorificados numa vida eterna, na qual Deus recupera plenamente a sua santidade em comunhão santa com a sua criação espiritual.

Pena é que Guerra Junqueiro não tenha encarado seriamente a ressurreição dos corpos! Só nesse caso a redenção poderá ser plena e total no Futuro eterno de Deus...

O ADVENTO DO PENSAMENTO. O regresso ao lar deve converter-se no regresso do lar. Entendemos esse regresso do lar como irrupção no presente de um Pensamento Independente intimamente ligado a uma Experiência Viva. Pensamos o advento do pensamento na linha de Walter Benjamin:

«A consciência de fazer explodir a continuidade da história é própria das classes revolucionárias no momento da acção. A grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia em que começa o novo calendário funciona como um compilador histórico do tempo. E é, no fundo, o mesmo dia que volta sempre sob a forma dos dias de festa, os quais são dias de comemoração. Pode por isso dizer-se que os calendários não contam o tempo como os relógios. São monumentos de uma consciência da história cujo menor traço parece ter desaparecido na Europa desde há cem anos. A revolução de Julho comportou ainda um incidente em que uma tal consciência pôde afirmar os seus direitos. Na tarde do primeiro dia de combate, verificou-se que em vários locais de Paris, independentemente e no mesmo momento, se tinha disparado tiros contra os relógios murais»[27].

Parodiando uma figura nacional — o regresso de Dom Sebastião, diremos simplesmente que esse «regresso» é o advento do pensamento independente pensado em Língua Portuguesa. Inversão total: o Quinto Império aguardado pelos que já não escutam o pensamento há muito tempo é o advento universal do Pensamento. Fernando Pessoa é esquecido em nome daquilo que há de mais autêntico: conduzir a língua portuguesa à clareira onde se torna possível pensar novamente. A memória viva do passado deixa-se banhar pela luz que irradia do novo tempo: o tempo do advento do pensamento abrigado e resgatado na língua portuguesa. As Descobertas Ultramarinas testemunham o potencial vivo da língua portuguesa, em especial aquilo que há de mais autêntico numa língua: traduzir o pensamento universal. E, nesta tarefa, é necessário resgatar Guerra Junqueiro da prisão em que o esconderam aqueles que nunca souberam o que é pensar sem cair no ardil nacionalista da mitologia mais grosseira: o primitivismo pátrio!

Contra Adorno, e levando em conta a teoria da linguagem de Steiner, mostraremos que a língua portuguesa é tanto ou mesmo mais especulativa que a língua alemã. Nesta tentativa procuraremos salvaguardar a Filosofia dos nacionalismos primários, devolvendo-a ao seu solo pátrio: a universalidade da Civilização Ocidental.

Auschwitz é mais que o holocausto: é a experiência universal do sofrimento que nos recorda a tarefa do pensamento independente, tal como a estabeleceu Adorno: «Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação»[28]. Estas palavras fazem eco de outras, não menos enfáticas, pronunciadas por Walter Benjamin: «O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer»[29].

Horkheimer reforça esta necessidade de manter viva a memória dos que não tiveram uma morte digna, atribuindo à filosofia a tarefa de traduzir o seu sofrimento numa linguagem da resistência:

«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania»[30].

Há uma estrofe do poema Falam Estátuas D’Heróis de Guerra Junqueiro que nos convoca para a tarefa de pensar e salvar o mundo contra o Deus Milhão:

«Mas nem no túmulo cativos,
dormimos bem!... Repouso atroz!...
Porque, ante os lances aflitivos,
Nós afinal somos os vivos, E os mortos pútridos sois vós!»
[31]

E, no poema Uma Voz na Treva, lança o desafio:

«Calou-se tudo. A terra é torva... o céu vulcânico...
E a alma, pálida, à luz verde-negra do luar,
Pressente, na mudez cavernosa do pânico,
Que a boca dos trovões profundos vai falar...»
[32]

Num poema simplesmente intitulado Os Mortos, Hölderlin diz simplesmente isto:

«Um dia fugaz eu vivi e cresci entre os meus,
Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe
E no entanto, vós que dormis, ‘stais-me acordados cá dentro do peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce»
[33].

E o poema Recordação de Hölderlin termina assim:

«O rio acaba. Mas o mar tira
E dá memória,
E o amor também prende diligente o olhar.
Mas o que fica, os poetas o fundam»
[34].

“A boca dos trovões profundos vai falar”. “Mas o que fica, os poetas o fundam”. Dois versos enigmáticos de dois poetas: o primeiro de Guerra Junqueiro, o segundo de Hölderlin. Quem é a boca dos trovões profundos que vai falar? O Poeta? Deus? A Morte? Os poetas fundam o que fica. Mas o que é que fica? A Recordação? Ou simplesmente o nada aniquilador? O esquecimento cósmico.

[1] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.70.
[2] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.71.
[3] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.73.
[4] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.79.
[5] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.82.
[6] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.40.
[7] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, pp.44-45.
[8] HORKHEIMER, Max – Eclipse da Razão, p.138.
[9] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.78.
[10] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.78.
[11] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.80.
[12] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.80.
[13] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.80-81.
[14] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.81.
[15] HEIDEGGER, Martin — Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1973, p.81.
[16] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (Raul Brandão). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.42.
[17] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (A Festa de Camões). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.94.
[18] ADORNO, Theodor W. — Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, p.133-134.
[19] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (O Cantador). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.26.
[20] JUNQUEIRO, Guerra — Prosas Dispersas (Justino de Montalvão). Porto: Lello & Irmão Editores, 1978, p.70.
[21] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.34.
[22] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.34.
[23] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.34.
[24] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.35.
[25] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.42.
[26] LORENZ, Konrad — Os Oito Pecados Mortais da Civilização. Lisboa: Litoral Edições, 1992, p.43.
[27] BENJAMIN, Walter — Teses sobre a Filosofia da História. In BENJAMIN, Walter — Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p.167.
[28] Citado por WOLIN, Richard — Labirintos: Em torno a Benjamin, Habermas, Schmitt, Arendt, Derrida, Marx, Heidegger e outros. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p.142.
[29] BENJAMIN, Walter — Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’Água, p.160.
[30] HORKHEIMER, Max — Eclipse da Razão. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976, p.172.
[31] JUNQUEIRO, Guerra — Finis Patriae. Porto: Lello & Irmão Editores, 1967, p.30.
[32] JUNQUEIRO, Guerra — Finis Patriae. Porto: Lello & Irmão Editores, 1967, p.35.
[33] HÖLDERLIN — Poemas. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1991, p.292-293.
[34] HÖLDERLIN — Poemas. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1991, p.428-429.
(Leitura interrompida devido à nulidade da alma lusitana, sempre invejosa e pronta a matar...)
J Francisco Saraiva de Sousa