A iconografia homossexual sempre esteve presente nas mais diversas manifestações da arte ocidental, a começar desde logo com a pintura da cerâmica e a poesia gregas. É provável que, desde as suas primeiras manifestações, esta iconografia tenha tido uma função ideológica, pelo menos no que diz respeito à iniciação homossexual.
Não pretendemos elaborar uma estética da arte homossexual ocidental e, muito menos, fazer a sua história. Em vez disso, pretendemos analisar a função ideológica desempenhada pela arte na formação da comunidade homossexual, assim como no seu estilo de vida predominante, recorrendo para isso à fotografia e ao desenho homossexuais contemporâneos. Dado que não se pretende esgotar todo o «material» disponível, procedeu-se a uma selecção: o «material» seleccionado foi e é produzido por homossexuais e o seu público alvo é constituído fundamentalmente por homossexuais.
No desenho homossexual destacaremos, pelo menos, dois nomes: Tom of Finland e Florenz Ziegfeld, e, na fotografia homossexual, quatro importantes artistas homossexuais: Robert Mapplethorpe, Reed Massengill, Craig Cowan e Tom Bianchi. Entre estes últimos daremos especial relevo a Mapplethorpe, do qual se possui uma biografia escrita por um dos seus inúmeros amantes, e Tom Bianchi, devido ao carácter «interactivo» das suas fotografias. Todos os artistas referidos e muitos outros são indivíduos de orientação homossexual e a sua arte consiste em fotografar, em estúdio ou fora de estúdio, homens nus. Arte do nu homossexual: é a sua iconografia que iremos analisar, de modo a mostrar como ela interveio na reestruturação psicológica, social, física, estética e cultural do gay.
TOM OF FINLAND. Tom of Finland nasceu em 1920 na costa sul da Finlândia. De facto, o seu nome verdadeiro é Touko que, em finlandês, significa «maio». Aos cinco anos, já desenha bandas-desenhadas e interessa-se muito particularmente pela literatura e pela música. Em 1939, parte para Helsínquia, onde se inscreve na Faculdade de Belas-Artes. Após ter concluído os seus estudos universitários, começa a trabalhar, de modo independente, na publicidade. Ao mesmo tempo, ganha a sua vida tocando piano nos bares e em saraus nocturnos e desenha durante os seus tempos livres. Nos fins de 1956, envia alguns desenhos para uma magazine americana especializada. Mas, como nessa época era necessária muita prudência, esses desenhos são assinados com o nome «Tom of Finland», nome que se tornará rapidamente célebre.
Os desenhos agradaram de tal modo ao editor que, um ano mais tarde, foi um desenho de Tom — um lenhador a rir às gargalhadas — escolhido para ornamentar a capa de «Physique Pictorial». Este teve muito sucesso e os trabalhos de Tom, os seus «desenhos indecentes» segundo as suas próprias palavras, vão adquirir uma grande popularidade. Na época em que Tom começa a publicar os seus desenhos, os homossexuais masculinos pensavam que devia imitar: eles eram os seres da escuridão. A obra de Tom contribuiu decisivamente para que os homossexuais encontrassem uma nova identidade, mais compatível com a sua condição masculina, no decurso dos últimos vinte anos. Como escreve Tom: «Eu trabalhei duramente para afirmar que os homens que tenho desenhado em vias de fazer amor são homens altivos e fazem-no na alegria!». Gravemente doente, Tom morre de um ataque de apoplexia a 7 de Novembro de 1991.
A iconografia homossexual dos desenhos de Tom inclui homens extremamente masculinos e musculosos, dotados de pénis muito desenvolvidos, bem como de potentes erecções, geralmente interagindo sexualmente, de modo altivo, seguro, confiante e sorridente. Estas interacções homossexuais, que vão desde uma simples troca de olhares até à prática de diversos actos sexuais, passando fundamentalmente pelas exibições fálicas, de cunho implicitamente sado-masoquista e fetichista, ocorrem habitualmente em bares e nas praias, incluindo sobretudo lenhadores, marinheiros e motoqueiros como personagens intervenientes. Ambientes promíscuos onde os homossexuais exageradamente masculinos se entregam confiante e orgulhosamente às práticas homossexuais! É certo que as figuras desenhadas por Tom contribuíram decisivamente para libertar os homossexuais do estigma social de que eram e ainda continuam a ser alvo: os homossexuais assumiram a sua masculinidade, rejeitando a representação social que os identifica com as mulheres, mas esta nova identidade hiper-masculinizada aparece fatalmente associada a um estilo de vida nocturno e sexualmente promíscuo. A libertação foi apenas parcial: o homossexual caricatural é, no seio da própria comunidade homossexual, o fomentador de desavenças e de novos estigmas sociais.
FLORENZ ZIEGFELD. Em 1893, Florenz Ziegfeld inicia aquilo a que se convencionou chamar a «mania dos músculos», com «Sandow o Magnífico». A primeira magazine de body-building foi lançada em 1908. Mas a Idade de Ouro de Beefcake começou verdadeiramente em 1952, com a publicação de um pequeno magazine intitulado «Physique Pictorial». Pouco depois apareceram uma dezena de outros magazines do mesmo género. Cerca de 1955, as vendas do conjunto destas magazines atingiram provavelmente um milhão de exemplares por ano.
Nestas magazines, pela primeira vez depois da queda do Império Romano, jovens homens sedutores mostram-se na sua nudez, somente para serem admirados e para darem prazer ao admirador. Isto já era extremamente ousado para a época, mas a verdadeira razão pela qual se considerava estes magazines perigosos era outra: efectivamente, eram as primeiras revistas homossexuais a serem publicadas e divulgadas. Até meados dos anos sessenta, estas pequenas «physique magazines» representaram praticamente toda a cultura gay emergente. Foi preciso uma série de processos iniciados pela censura até que, finalmente, em 1968, a representação de um homem completamente nu fosse declarada não-pornográfica.
Assim, o campo da «arte física» transforma-se rapidamente numa indústria cultural, com múltiplas facetas, que representava um mercado de um mil milhões de dólares. Contudo, nenhumas dessas pequenas «revistas do músculo» sobreviveu às mudanças profundas que se verificaram depois da legalização de obras gráficas de carácter erótico. «Physique Pictorial» de Bob Mizer foi a primeira e também a última dessas revistas a ser publicada. Com efeito, fechou as suas portas a 31 de Dezembro de 1993.
Beefkake inclui não só desenhos mas também fotografias. A representação de homens musculosos, nus ou praticamente nus, é dirigida fundamentalmente a um público homossexual. A musculomania impõe uma nova identidade homossexual, mais de acordo com a sua identidade de género: a virilidade com traços marcadamente exagerados. A arte física está associada ao aparecimento das primeiras revistas homossexuais, nas quais o gay — o novo homossexual — se afirma como um homem extremamente viril e másculo. Esta auto-afirmação gay é acompanhada de perto pelo surgimento de uma nova cultura gay, marcadamente fetichista e promíscua, da qual se destaca a cultura do couro. A iconografia homossexual de Beefcake reflecte todas essas mudanças que promovem a coesão de uma comunidade homossexual verdadeiramente internacional, urbana e cosmopolita.
CRAIG COWAN. Craig Cowan era um fotógrafo desconhecido em Los Angeles quando começou a ser admirado pelos seus estudos sobre homens nus (male nude studies). Morreu em Outubro de 1993, devido a complicações relacionadas com a Sida.
REED MASSENGILL. Reed Massengill é um escritor e fotógrafo que divide o seu tempo entre Knoxville (Tennessee), onde restaurou uma pequena casa vitoriana, e um apartamento em New York City. O seu primeiro livro — Portrait of a Racist (SMP, 1994), foi aclamado pela crítica e, por isso, Massengill foi nomeado para o Pulitzer Price.
TOM BIANCHI. Tom Bianchi é autor de mais de sete livros de fotografia. É vice-presidente de CytoDyn, uma empresa biotecnológica empenhada no desenvolvimento de uma terapia contra o HIV. Vive actualmente com o seu companheiro de vida, Mark Prunty, em Los Angeles.
ROBERT MAPPLETHORPE. Robert Mapplethorpe nasceu em Queens, New York, em 1946. Adoeceu com Sida em 1986 e morreu em 1989. As suas fotografias são objecto de culto em todo o mundo. Susan Sontag admira imenso a obra de Mapplethorpe que, de resto, seduziu nos anos setenta as grandes senhoras da sociedade americana.
A iconologia das fotografias e dos desenhos destes artistas homossexuais poderia ser ilustrada através de textos de Jean Genet, outro literato de orientação homossexual. A obra de Jean Genet gira em torno do teatro do mal e da morte. O seu mundo imaginário é o reverso do nosso mundo e o nosso inferno é o seu paraíso. É nesse mundo, iluminado pela luz da sua arte e pelo lirismo da sua poesia, que Genet apresenta os seus personagens — assassinos, ladrões, prostitutas e homossexuais, que celebram os ritos da religião do crime: as festas do sexo, o ritual da traição ou a cerimónia do homicídio.
Da sua vasta obra, destacaremos apenas Querelle: Amar e Matar. O protagonista deste romance, Querelle, o marinheiro de Brest, é nimbado por Genet com todos os esplendores que acompanham os santos e as virgens das nossas igrejas barrocas. Com Querelle, assistimos a toda a estranha sedução do mal, à beleza da traição, ao encanto do homicídio, vestidos com as pompas de uma transformação poética que dá ao mundo subterrâneo dos marginais a aura gloriosa de uma procura do absoluto através dos abismos da depravação.
Esta obra de Genet deu origem ao filme de R. W. Fassbinder, com o mesmo nome — Querelle de Brest. A obscuridade dos seus cenários capta, de modo excelente, a transfiguração poética do mundo subterrâneo dos marginais realizada por Genet.
Situações deste romance de Genet são autênticas legendas de algumas das fotografias dos artistas homossexuais referidos. Assim, por exemplo, a descrição da interacção sexual entre o polícia (Mário) e Querelle pode servir de legenda a algumas fotografias: «Com a mão livre enfiada na algibeira — a outra estava no ombro do marinheiro —, o polícia fez irromper da braguilha a verga (…)» (p.139). Irrupção da verga ou, como preferem dizer os homossexuais portugueses, «apologia da verga»: eis aqui a moderna ideologia gay reduzida ao seu lema fundamental, a partir do qual podem ser inferidas todas as suas outras determinações teórico-práticas.
A iconografia da arte física e erótica homossexual deixa transparecer todo um universo imaginário homossexual bastante real, como se, na arte produzida por homossexuais, houvesse uma espécie de «fusão» entre o artista e a sua obra. Tal «fusão» lança um sério desafio à estética crítica: a forma da arte gay permanece, apesar de todas as transfigurações estéticas operadas, plasmada ou mesmo indistinta do mundo da vida quotidiana dos seus «criadores» e dos seus «objectos».
A iconografia homossexual revela um mundo onde não há lugar para as mulheres: a beleza da sua forma identifica-se com «o Masculino», numa fusão total, confiante e única. O amor entre homens aparece como a única forma autêntica de amor. O mundo transforma-se num mundo masculino, iluminado por uma paixão gloriosa, radiante e confiante. O homem é o único ser digno de ser amado e de amar. A virilidade e a agressividade que transparecem no culto do músculo e do falo são neutralizadas pela fusão amorosa dos homens. A agressividade converte-se assim no seu contrário — em amor. No universo imaginário homossexual, o homem aparece liberto, quer da sociedade e dos seus sistemas repressivos, quer da natureza e da sua lógica reprodutiva. Ora, este imaginário contrasta com a realidade do mundo homossexual: a libertação e o amor prometidos pela forma estética são aparentes e ilusórios. Até mesmo os seus criadores adoptaram um estilo de vida sexualmente promíscuo e a Sida foi a causa da morte de alguns deles.
A obra fotográfica de Tom Bianchi é idílica, no sentido de apresentar os seus homens musculosos nus em harmonia com a natureza — interior, exterior e social. É essencialmente uma fotografia interactiva: os homens nus, sem que se veja o pénis, pelo menos em algumas obras, brincam e amam-se aos pares ou inseridos em pequenos grupos. Nestas interacções transparece tranquilidade, paz, harmonia, confiança, alegria e, acima de tudo, amor. Os gestos e os movimentos captados pela objectiva são meigos, carinhosos, carregados de afectividade e vinculativos: as interacções são vínculos afectivos. O pénis que nunca se vê está «ausente» precisamente para reforçar a natureza afectiva e lúdica das relações. A agressividade que pode estar associada ao desenvolvimento muscular é assim neutralizada pela natureza afectiva dos vínculos e das brincadeiras em que participam os homens fotografados. As fotografias de Tom Bianchi constituem uma espécie de hino ao amor entre homens. Tal hino rejeita completamente o estilo de vida sexualmente promíscuo dos homossexuais, apontando para outra possibilidade de uniões: as uniões afectivas entre homens adultos e musculosos, das quais não está ausente o jogo lúdico e, de certo modo, «infantil». Como disse um homossexual do Porto: «Os homens foram feitos para se amarem e não para se matarem uns aos outros!». Estas palavras de um homossexual, também ele musculoso, são provavelmente a legenda mais apropriada para a maior parte das obras de Bianchi. Neste sentido, a obra de Bianchi obedece ao imperativo categórico de toda a arte autêntica: «Temos de mudar qualitativamente o mundo!».
A beleza das fotografias de Mapplethorpe ainda aparece maculada pelo princípio de realidade estabelecido: a visibilidade dos pénis, alguns dos quais erectos, as exibições fálicas de indivíduos negros, a obsessão pelo couro ou mesmo a solidão e o enclausuramento no estúdio dos seus personagens são aspectos claramente afirmativos e, portanto, ideológicos, da sua obra. Só no entrosamento entre estes aspectos afirmativos e as flores é que se dá a negação do princípio de realidade estabelecido: a beleza das flores fotografadas por Mapplethorpe neutraliza os elementos ideológicos presentes nas suas obras de arte. Além de homens e flores, Mapplethorpe também fotografou mulheres. O seu álbum mais conhecido é, sem dúvida, Lady: Lisa Lyon. A sua qualidade estética é comparável à de qualquer outra das suas obras. Fotografia de estúdio: os movimentos e as poses são bem pensados. Corpo musculoso: a mulher é igualada ao homem, como se no imaginário de Mapplethorpe as homossexualidades masculinas e femininas encontrassem o seu denominador comum na «masculinidade visível». Apesar disso, há um toque «feminino» contrastante, particularmente visível nos Auto-Retratos, nalguns dos quais Mapplethorpe aparece travestido — uma mulher vulgar, com toque de prostituta. Não é por acaso que Mapplethorpe tenha confessado a um dos seus amantes: «Se eu fosse mulher, seria uma puta…». Com esta confissão, Mapplethorpe teve a coragem de nomear o travestismo ou mesmo o transsexualismo pelo seu verdadeiro nome: Prostituição.
A obra de Bianchi é, quase toda ela, negativa: ao mundo triste opõe um mundo alegre, onde os homens musculosos e adultos, em vez de se matarem entre si, amam-se e brincam, como se fossem crianças. Mas, em qualquer obra de um desses artistas, a homossexualidade, ou melhor, o amor entre homens é visto de modo alegre e confiante, liberto dos preconceitos sociais. O modelo de masculinidade que propõem está para além de qualquer modelo social real: a agressividade e o amor fundem-se numa síntese harmoniosa, na qual o amor triunfa alegremente. Tomado como fundamento da coesão social, o amor opõe-se completamente à reprodução social do sistema social dominante.
As diferenças iconográficas existentes entre as obras dos artistas mencionados tornam-se irrelevantes quando se apreende este momento de negatividade que as atravessa, o qual se torna mais evidente à medida que nos afastamos da obra de Tom of Finland e nos aproximamos da obra de Tom Bianchi. Se o universo poético de Jean Genet pode servir de legenda para alguns dos desenhos de Tom of Finland, o mesmo já não pode ser dito no que se refere às obras de Bianchi, já que nestas a luz (o dia) predomina sobre as trevas (a noite). O homossexual de Bianchi é um homem plenamente emancipado que já não precisa viver escondido, qual ladrão ou assassino, no mundo subterrâneo dos marginais. O universo poético de Genet fecha e enclausura a homossexualidade num «ghetto», onde coexiste e se confunde com diversas outras figuras marginais, desde o ladrão à prostituta, passando pelo assassino e pela polícia. Bill Costa aprecia de tal modo a obra de Genet que deu como título a muitas das suas fotografias passagens dessa obra.
As fotografias produzidas por homossexuais são obras de arte e, como tais, são objecto de estudo da estética. Na perspectiva da teoria crítica da arte, as obras de arte são «analisadas» como negação da realidade estabelecida e, ao mesmo tempo, como promessa de um outro princípio de realidade reconciliado. A obra de arte cria um mundo reconciliado que recusa o mundo em que vivemos. Neste sentido, a obra de arte é autónoma e a fotografia enquanto obra de arte partilha essa autonomia. Esta autonomia «mede-se» pelas possibilidades intrínsecas à forma estética de transcender a realidade estabelecida: uma fotografia absolutamente afirmativa não é uma obra de arte; pelo contrário, é ideologia pura e simples. A arte produzida por homossexuais tem afirmado a sua autonomia, desde a arte do músculo até às fotografias artísticas de Mapplethorpe e Bianchi. E, apesar disso, o desenho e a fotografia homossexuais sempre estiveram ao serviço da libertação gay. Assim, por exemplo, a arte beefcake criticou severamente a definição social do maricas, opondo-lhe um modelo extremamente masculino de homossexualidade. A definição social do maricas é desmistificada e recusada e a homossexualidade masculina é radicalmente redefinida: o homossexual masculino não é o indivíduo que se identifica com o modelo cultural atribuído à mulher, mas o indivíduo que se identifica, assumindo-a objectiva e subjectivamente, com a sua própria «natureza masculina», de resto evidenciada de modo exagerado pelo porte atlético (o culto do músculo) e pelo culto fálico.
Uma tal redefinição da homossexualidade masculina reflecte-se e implica novas redefinições, em particular dos papéis sexuais e das práticas sexuais. O coito anal já não pode ser visto em função do modelo cultural da relação heterossexual. A masculinidade é actividade: assumir o papel de receptor anal não significa assumir a passividade feminina e assumir o papel de introdutor anal não significa assumir o papel de «macho». Afinal, todos os homossexuais masculinos são machos e, nas suas interacções sexuais, devem assumir-se como tais, independentemente do papel sexual desempenhado numa determinada relação e num determinado acto sexual. A arte beefcake afirma a independência sexual dos homossexuais, ao mesmo tempo que redefine a sua masculinidade.
A resposta da fotografia artística homossexual à definição social do maricas continua a reafirmar a masculinidade, sem no entanto exagerar o culto do músculo e o culto fálico. No livro Bob and Rod, Bianchi revela a beleza do nu masculino sem mostrar o pénis. O pénis está ausente nas fotografias desta obra. Esta ausência é claramente a rejeição do culto fálico. A sexualidade instrumentalizada é denunciada: a relação entre homens, em vez de ser reduzida a uma transacção sexual, é mostrada como uma relação amorosa, assente no vínculo afectivo, e não, como sucede na pornografia homossexual, na instrumentalidade falocrática. A condição masculina do homossexual não é reduzida ao tamanho do seu pénis e à potência das suas erecções: o homossexual é representado, na sua masculinidade, como um ser afectivo, pacífico e lúdico.
Ao contrário das fotografias de Bianchi, as fotografias de Mapplethorpe participam numa dialéctica mais ambígua entre afirmação e negação: o travestismo, o fetichismo sexual, as práticas sado-masoquistas e o falocratismo são temas frequentes na sua obra. Além disso, o nu negro é explorado de um modo quase obsessivo. Como se sabe, no imaginário homossexual, o indivíduo negro está associado intimamente ao pénis grande. As fotografias de Mapplethorpe revelam as ambiguidades do mundo homossexual: a exaltação da musculatura e do couro contrasta com a figura física de Mapplethorpe e com os seus auto-retratos travestidos. Ao se auto-retratar, Mapplethorpe retrata a degradação do mundo homossexual, usando o seu próprio corpo até mesmo quando atingido pela doença que o levará à morte. A fotografia de Mapplethorpe pretende captar a própria «realidade», chamando as coisas pelos seus próprios nomes. Quando aparece travestido, parece querer dizer que, em todo o homossexual, habita um «desejo não desejado de ser mulher». O culto do músculo e o culto fálico contrastam vivamente quer com este «desejo secreto», quer com a estatura física do próprio Mapplethorpe. O couro simula o que se não é e se pretende ser — um indivíduo musculoso e viril. É, neste contraste, que descobrimos a denúncia do couro e do sado-masoquismo: o couro funciona como um simulador de masculinidade, mas, por detrás desta simulação, está um indivíduo solitário e afectivamente carente. A ideologia da hiper-masculinidade denega-se diante dessa revelação: a solidão e a dor falam mais alto que a ilusão ideológica.
O carácter afirmativo da fotografia de Mapplethorpe não resiste à força da sua negatividade. Embora seja muitíssimo tensa, a reconciliação adquire o seu pleno sentido na obra Fleurs. De facto, um indivíduo negro nu com flores brancas na mão é a negação do status quo. O falo denuncia-se a si mesmo — a sua impotência para libertar o homem da sua solidão e da sua carência afectiva essencial. A impotência do sexo pelo sexo: eis onde reside a negatividade da fotografia de Mapplethorpe, que se torna particularmente inteligível nos Les Autoportraits de Mapplethorpe. Aí apreendemos plenamente a degradação do culto sexual. Tal degradação sexual é, ao mesmo tempo, a auto-degradação de Mapplethorpe, que termina com a Sida. O sexo pelo sexo é visto como um suicídio: Mapplethorpe consuma-se no suicídio deliberado. Nesta consumação reside a verdade das suas fotografias: a reificação sexual é morte! Só as «flores» guardam a promessa de uma vida feliz.
Contudo, a arte beefcake aparece desde logo associada ao mercado, mais precisamente ao lançamento das primeiras revistas homossexuais no mercado. A sua comercialização transformou-a num bem-de-consumo que é vendido no mercado como pornografia. Deste modo, o desenho homossexual, bem como a fotografia homossexual, não escapou aos efeitos perversos do fetichismo da mercadoria. Convertidos em bens-de-consumo pornográficos, o erotismo e o nu masculinos engolfam-se na ideologia do mercado. A sua verdade é esquecida. No contexto de recepção, os consumidores adquirem-nos para reforçar o seu imaginário sexual reificado: o que interessa é ver muitos, muitos, muitíssimos pénis.
(Etnografia das homossexualidades portuguesas)
J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA
J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA
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