sexta-feira, 27 de julho de 2007

DESCARTES: Dominação e Revolta da Natureza


«O Grande Espírito, ao pôr os homens sobre a terra, quis que eles dela tomassem conta muito bem, e que não se prejudicassem uns aos outros …»

Young Chief

«A árvore diz: “Pára, estou ferida, não me faças mal” Mas [o homem branco] abate-a e serra-a. O espírito da terra tem-lhe ódio. […] Os Índios nunca fazem mal, ao passo que o homem branco dá cabo de tudo. […] Como poderia o espírito da terra gostar do homem branco? … Onde quer que ele lhe toque, nela há-de deixar uma chaga.»

Velha sábia wintu
[1]

«Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”»

Génesis 1, 26

«A filosofia está escrita nesse livro imenso que está sempre aberto diante dos nossos olhos, quero dizer, o Universo, mas só podemos compreendê-lo se nos dedicarmos primeiro a compreender a sua língua e a conhecer os caracteres com que está escrito. Está escrito na linguagem matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem o recurso aos quais é humanamente impossível compreender uma palavra. Sem eles, é uma divagação vã num labirinto obscuro»

Galileu Galilei
[2]



O conceito de ecologia – que convém distinguir do ecologismo – foi proposto, pela primeira vez, em 1866, por Ernst Haeckel, para designar «o corpo do conhecimento relativo à economia da natureza – a investigação de todas as relações do animal tanto com o seu ambiente orgânico quanto com o seu ambiente inorgânico; incluindo acima de tudo as suas relações amigáveis e não amigáveis com aqueles animais e plantas com os quais ele entra em contacto directo ou indirecto – em outras palavras, a ecologia é o estudo de todas as complexas relações referidas por Darwin como as condições da luta pela existência»
[3].
A ecologia define-se usualmente como a ciência que estuda as condições de existência dos seres vivos e as interacções, de qualquer natureza, existentes entre esses seres vivos e o seu ambiente. Contudo, Eugene P. Odum, querendo acentuar o seu carácter unificador, prefere defini-la como «o estudo da estrutura e do funcionamento da natureza, considerando que a humanidade é uma parte dela», ou, simplesmente, como «biologia do ambiente»
[4].
Dado o seu vasto campo de estudo, a ecologia surge, desde logo, como uma ciência de síntese. Tentando ultrapassar a compartimentação disciplinar que caracteriza as ciências biológicas, a ecologia esforça-se por adquirir uma visão global do mundo vivo e natural. O ecossistema é o conceito que estrutura esta visão e define-se, geralmente, como o conjunto relativamente homogéneo e organizado das relações recíprocas que ligam os seres vivos entre si (biocenose) e ao meio em que vivem (biótopo). Os factores abióticos que caracterizam o biótopo influem não só na biologia de cada espécie, como também na estrutura e na dinâmica da biocenose. Por sua vez, as alterações que intervêm na composição e nas estruturas da biocenose ou no equilíbrio dos povoamentos podem modificar, por vezes radicalmente, os biótopos. Existe, portanto, uma interacção contínua entre biocenose e biótopo, donde resultam as transformações sofridas pelos ecossistemas ao longo do tempo. Os diversos ecossistemas que compõem a ecosfera (floresta tropical húmida, pradaria ou estuário) encaixam-se uns dentro dos outros como as bonecas russas, sendo englobados pela biosfera – a parte do meio ambiente planetário onde reina a vida. Os ecossistemas funcionam graças à energia solar, que, sendo transformada em energia química pelas plantas (autotróficas), é transferida ao longo de toda a cadeia trófica. Os diferentes elementos (oxigénio, hidrogénio, azoto, carbono...) completam ciclos biogeoquímicos entre os diferentes sistemas naturais, no curso dos quais formam as moléculas biológicas que constituem a substância de cada organismo. Estas circulam no interior dos ecossistemas, nas cadeias tróficas de nível para nível, nos diversos compartimentos do meio e, por fim, entre as cadeias e o meio.
Nesta concepção económica da natureza, os ecossistemas produzem, consomem e reciclam. Os vegetais (produtores) fabricam matérias orgânicas para a fotossíntese; os animais são consumidores e as bactérias e os microrganismos (decompositores) retiram as substâncias minerais contidas nos organismos mortos para as reintroduzir nos ciclos. Todos estes processos são regulados por mecanismos homeostáticos.
A energia solar que permite a fotossíntese é indispensável ao funcionamento das cadeias alimentares: em cada elo, a energia que o organismo recebe dos alimentos é utilizada para o seu funcionamento e desenvolvimento e degrada-se em calor rejeitado pela respiração. Na sua forma calórica, a energia perde a capacidade de fornecer trabalho (entropia). Nas cadeias alimentares, a morte alimenta a vida. Esta dualidade da natureza garante a estabilidade necessária à vida.
O estudo ecológico do funcionamento da natureza dissocia-se claramente das concepções mecanicistas e exige uma nova metodologia científica: Jöel de Rosnay chamou-lhe abordagem sistémica
[5], mas seria preferível designá-la por abordagem ecológica. Esta difere do método analítico, na medida em que não isola o fenómeno em estudo mas procura examinar as interacções do sistema em que se encontra, o qual é sempre concebido como uma entidade complexa e organizada, formada de elementos e de relações. A interacção circular entre as partes e o todo ultrapassa a simples análise das causas e efeitos e permite antecipar e simular num modelo as consequências de uma acção a fim de melhor a conhecer. Nesta perspectiva, a natureza – sendo vista de cima para baixo, como o cosmonauta vê a Terra – aparece como um sistema complexo, hierarquizado, estável, auto-organizado e auto-regulável[6].

1. A civilização técnico-científica está mergulhada numa crise ecológica que, não só ameaça a biodiversidade e a estabilidade dos processos funcionais gaiacos, como também põe em perigo a própria sobrevivência do homem. E. Goldsmith caracterizou-a lapidarmente nestes termos:

«A sociedade moderna está a destruir a uma velocidade assombrosa o mundo natural do qual depende a sobrevivência humana. Em toda a parte do planeta lavra a mesma destruição. As florestas são abatidas, os pântanos drenados, os bancos de coral arrancados, as terras agrícolas erodidas, salinizadas, desertificadas, cobertas de betão. A poluição generalizou-se – fontes, ribeiros, rios, estuários, mares e oceanos, o ar que respiramos, os alimentos que comemos, nada é poupado. Quase todas as criaturas da Terra apresentam hoje nos seus tecidos marcas de produtos químicos industriais ou agrícolas, bom número dos quais suspeitos de serem cancerígenos ou mutagénicos, quando não comprovadamente cancerígenos.
«As nossas actividades provocam sem dúvida a extinção anual de dezenas de milhares de espécies. Destas, só uma parte é cientificamente reconhecida. O campo magnético terrestre é alterado e ninguém sabe que consequências daí poderão advir. A camada de ozone que protege os seres vivos das radiações ultravioletas diminui rapidamente. O próprio clima modifica-se e desestabiliza a tal ponto que, dentro de 40 anos, viveremos em condições climáticas desconhecidas da humanidade.
«Destruindo deste modo o mundo natural, estamos, em termos de vida, a tornar cada vez menos viável o planeta. Se as coisas continuarem assim, dentro de alguns anos, a terra tornar-se-á incapaz de manter formas de vida complexas»
[7].

Diante desta ameaça de destruição da natureza e da biodiversidade, os ecólogos, bem como os ecologistas, foram obrigados a colocar o seguinte problema: Porquê esta destruição massiva da natureza? A actual crise ecológica é o resultado do uso irracional da natureza feito pelo homem ao longo do tempo, desde o aparecimento de uma economia de mercado que não olha a meios para crescer e atingir os seus próprios fins.

«A economia de mercado encorajou e exacerbou muito mais a procura da riqueza individual e familiar do que todas as relações mercantis que, ao longo de milénios, sustentaram as dinâmicas de subsistência e de tributação. Aliás, foi neste âmbito que surgiu e se desenvolveu a lógica capitalista: fabricar mercadorias para obter lucros que, por sua vez, permitem investir e produzir ainda mais mercadorias, conquistando os mercados e, se necessário, criando-os, respondendo com mercadorias às necessidades passíveis de pagamento. Ao fomentar e exacerbar as carências já criadas, em particular através da publicidade, o capitalismo torna as desigualdades inevitáveis. A regra capitalista é produzir mais e a uma escala cada vez mais alargada, logo, consumir mais recursos, desenvolver técnicas cada vez mais poderosas e lançar mais gases e resíduos de matérias não recicláveis nos processos naturais, especialmente substâncias tóxicas e radioactivas. Quanto ao sistema de controlo estatal, que tinha por objectivo vencer as economias de mercado e o capitalismo, acarretou desequilíbrios idênticos e, por vezes, piores.
«Crescimento demográfico, procura incessante e desenfreada de bem-estar, multiplicação artificial de necessidades, utilização de procedimentos técnicos cada vez mais poderosos: as capacidades de predação e de destruição de que os homens de hoje dispõem não têm comparação com aquilo que eram há um século. Consumir e deitar fora são os processos básicos da degradação das condições milenares de sobrevivência da biosfera, localmente primeiro, depois a nível regional e, por fim, a uma escala planetária. Em suma, a actual e crescente dinâmica de sobrevivência das sociedades atingiu uma tal dimensão, que provoca atentados cada vez mais graves contra as próprias condições de sobrevivência do nosso bom e idoso planeta, desta Terra que continua com o mesmo tamanho»
[8].

A análise ecológica da doença profunda que afecta as sociedades ocidentais foi sintetizada por D. Simonnet num só enunciado: «a crise económica é uma crise da economia»
[9]. Neste sentido, a síntese ecológica vai ao encontro da teoria crítica: «a violação da natureza é inseparável da economia do capitalismo»[10]. Nesta articulação reside o espírito de uma nova filosofia da natureza. A ecofilosofia ou, como preferimos denominá-la, a síntese ecológica é fundamentalmente uma crítica do sistema capitalista, da sua economia de crescimento infinito e da sua racionalidade instrumental.

2. Conforme demonstrou H. Marcuse, a ciência moderna, fundada por Galileu, Descartes e Newton, move-se num horizonte instrumental, graças ao qual pode ser perspectivada como «uma tecnologia a priori e o a priori de uma tecnologia específica – uma tecnologia como forma de controle social e de dominação»
[11]. Com efeito, nas sociedades modernas, o poder converteu-se no interesse que guia o conhecimento das ciências da natureza e, mais tarde, das ciências sociais e humanas[12]. O conhecimento científico molda o poder, não só na sua aplicação técnica, mas até mesmo nos seus princípios metodológicos fundamentais. O método de análise e de objectivação dos sistemas naturais e psicossociais é usado para os submeter aos imperativos do crescimento económico e do controle social da sociedade burocrática e administrada. O homem divide para imperar e, através deste método, contrapõe-se à natureza como o seu sujeito, isto é, como o seu senhor e proprietário. Converte-se, assim, em sujeito exclusivo do conhecimento e da vontade. Esta subjectivação do homem implica necessariamente a coisificação e, consequentemente, a instrumentalização do meio natural.

3. A Dominação da Natureza persegue o Homem desde, provavelmente, as suas origens filogenéticas mais remotas. A narrativa do Génesis já apresenta a dominação da natureza como uma tarefa imposta por Deus ao homem. Depois de ter criado o homem e a mulher à sua imagem, «Deus abençoou-os e disse-lhes: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra”»
[13]. Contudo, como demonstrou Heidegger, coube a Descartes tematizar este horizonte instrumental[14].
Com efeito, na metafísica de Descartes, o ente é determinado, pela primeira vez, como objectividade da representação e a verdade como certeza da representação
[15]. Segundo Descartes, o ente é o que é certo – aquilo de que temos uma ideia clara e distinta. A realidade da coisa é a certeza indubitável que o sujeito dela tem. Descartes usa a palavra sujeito para designar, não a substância de um ente qualquer, mas o eu do homem. Este converte-se no fundamento absoluto e indubitável da realidade. O ser das coisas que só é reconhecido como ser apenas na medida em que é certo deve ser legitimado perante o eu. A noção de objectividade é sempre correlativa ao sujeito. A realidade objectiva é aquela que se mostra e se demonstra como tal ao sujeito. O que a constitui é precisamente a certeza que o sujeito dela tem.
Esta identificação do ser das coisas com a certeza de que o eu dele tem é realizada efectivamente, nos Tempos Modernos, pela tecnificação do mundo. Dado que é cada vez mais completamente um produto técnico, o mundo é, no seu próprio ser, produto do homem. A ciência moderna implica a redução do ser verdadeiro à objectividade. Como resultado que se obtém no laboratório do cientista, a objectividade é um produto da actividade do sujeito. A redução cartesiana do ser verdadeiro à certeza é, no fundo, a redução do ser à vontade do sujeito, a qual culmina com a vontade de poder de Nietzsche. Concebido como vontade, o eu reduz a totalidade do ente a si mesmo. O eu toma posse da totalidade do ente.
Mas, como recorda frequentes vezes Heidegger, «o próprio facto de que o homem se torne sujeito e o mundo objecto mais não é que uma consequência da essência da técnica em vias de se instalar, e não inversamente»
[16]. Ao concretizar-se efectivamente como ordem do mundo, a técnica abole toda a diferença ontológica. Do ser já nada resta: apenas ficaram os entes, cujo ser é total e exclusivamente o ser imposto pela vontade do homem produtor e organizador. A técnica e a instrumentalização total do mundo é, para Heidegger, a metafísica cumprida – o esquecimento total do ser.
Na Sexta Parte do Discurso do Método, Descartes explicita claramente o interesse que guia o seu programa racionalista:

«Com efeito, [as noções gerais sobre física que adquiri] mostraram-me que é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida e que, em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artífices, os poderíamos utilizar de igual modo em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que senhores e possuidores da natureza»
[17].

A redução do ser verdadeiro à vontade do sujeito tem o carácter de uma tomada de posse. A conquista do mundo enquanto imagem concebida coincide inteiramente com a sua exploração técnica. Ao reduzir o ser à certeza, Descartes converteu a natureza num ser objectivo, susceptível de ser instrumentalizado. Nesta perspectiva, a filosofia da natureza de Descartes explicita-se melhor como uma lógica da dominação, fundada numa concepção instrumental da natureza e da racionalidade científica.

4. Até ao Renascimento, a natureza era encarada como um imenso organismo, cujas leis nada tinham a ver com o destino do homem. Contudo, na Modernidade, mais precisamente em 1632, quando Galileu publica os Diálogos sobre os dois principais sistemas do Mundo, a natureza é desencantada. Destituída de «subjectividade», de finalidade, de espontaneidade e de valor intrínseco – qualidades que lhe eram atribuídas, a “deusa universal” transforma-se simplesmente numa máquina. Com Galileu, Descartes, Gassendi e seus discípulos, o engenheiro é elevado à dignidade de sábio. A arte de fabricar torna-se modelo da ciência, que deixa de ser contemplação para se converter em utilização. O homem moderno adopta uma nova atitude perante a natureza desencantada. Se até ao Renascimento olhava para a natureza como uma criança olha a sua mãe, tomando-a por modelo, doravante o homem quer conquistá-la e tornar-se seu «dono e senhor». Mas não é só o engenheiro que é elevado à dignidade de sábio. Quando afirma que «o grande livro da Natureza está escrito em linguagem matemática», Galileu, mais tarde seguido por Descartes, eleva também o matemático à dignidade de depositário do segredo divino. Ao reduzir a matéria à extensão, privando-a de todas as suas qualidades não susceptíveis de serem quantificadas, Descartes transforma a física em geometria aplicada
[18]. A quantificação é, portanto, a linguagem da lógica da dominação sobre a natureza. O cálculo, inicialmente a geometria descritiva, permite imitar Deus: o cogito cartesiano simula ser um deus criador, não só ao nível do entendimento e da vontade, na qual, de resto, o homem é igual a Deus, mas também ao nível do agir instrumental. Como escreve R. Lenoble:

«Mecanizada, a Natureza torna-se uma simples possibilidade de exploração técnica, em breve levada ao máximo pela indústria nascente e logo invasora. O homem trocou o seu modelo, a sua senhora, por uma ferramenta. Esta ferramenta é-lhe entregue sem uma nota a explicar o seu modo de emprego. O homem, a princípio divertido, não vai tardar a apavorar-se com o seu poder e com o vazio que criou desta forma em redor dele»
[19].

5. Ora, se a natureza é uma máquina, a ciência moderna apenas podia ser encarada como a sua «técnica de exploração». Esta redefinição do conhecimento exige uma fundamentação metafísica sólida. Descartes assume, precisamente, a tarefa de fundamentar a ciência moderna – a sua física mecanicista – numa nova metafísica. M. Kobayashi mostrou que a metafísica dualista e a teoria das verdades eternas constituem «os eixos da metafísica de Descartes e contribuíram, efectivamente, para a fundação da sua física»
[20]. A filosofia da natureza de Descartes aparece assim edificada sobre a teoria das verdades eternas. Esta nova leitura de Descartes pode contribuir para esclarecer a interpretação de Heidegger, sem lhe fazer muita violência. Enunciada em cartas que Descartes dirigiu, em 1630, ao P.e Mersenne, a tese das verdades eternas defende que as verdades matemáticas (eternas) foram estabelecidas por Deus e, tal como todas as restantes criaturas, dependem inteiramente d’Ele. As ideias das leis da natureza foram impressas por Deus no nosso espírito. A subordinação comum a Deus das leis e das ideias matemáticas gravadas em nós garante uma correspondência entre ambas. Cada um de nós pode reflectir sobre uma determinada lei, com a certeza porém de a poder compreender. Assim, «as verdades matemáticas que concebemos em nós mesmos podem ser realizadas na natureza que nos é exterior como seus correlatos materiais»[21]. Quando afirma que, «no geral, podemos garantir que Deus pode fazer tudo aquilo que nós podemos compreender», Descartes revela o seu propósito de fundamentar a sua física mecanicista nesta «metafísica criacionista»[22].

6. O homem moderno acredita que Deus lhe confiou «a missão de trabalhar à sua imagem, de construir o mundo no nosso pensamento como ele o criou no seu, fornecendo as suas leis»
[23]. Descartes assume esta missão e, colocando-se no lugar do Engenheiro divino[24], procura desvendar o modo como o mundo foi criado, a partir do seu pensamento e das ideias nele depositadas por Deus[25]. Confiando apenas no seu entendimento, sem o concurso dos sentidos e da imaginação, cria uma nova fábula do mundo[26]: o mecanicismo, que, ao reduzir a natureza, os animais e o próprio corpo humano a «máquinas», possibilita a sua instrumentalização, em função dos interesses sociais do sistema dominante. Roubando-lhes a «alma», converte-os em «autómatos», susceptíveis de serem usadas por um «maquinista» – o cogito. Com efeito, «a alma serve-se do corpo como o piloto do seu navio, para o dirigir; e a bordo da nave do mundo, por si vazio de intenção e de finalidade, o homem é o piloto através do qual o mundo pode […] louvar o Criador: edificar uma ciência verdadeira é […] trabalhar para a causa de Deus»[27]. Até mesmo o P.e Mersenne acreditava que a visão mecanicista do mundo era uma aliada leal da teologia[28].

7. A teologia cartesiana fundamenta assim a dominação da natureza
[29]. Se Deus criou, por um lado, o mundo e as suas leis, e, por outro lado, o homem à sua imagem e semelhança, este pode imitar a criação divina, desde que aprenda a manipular as leis que a governam. Só a ciência verdadeira nos permite compreender a obra criadora e nos possibilita o acesso ao segredo divino. De facto, a teoria das verdades eternas mostra que, em Descartes, a metafísica criacionista aparece associada ao tecnicismo. Mais uma vez o cogito cartesiano abdica da sua autonomia para se entregar voluntariamente à heteronomia divina, ou seja, à tecnonomia: Deus – como garante da verdade – garante simplesmente o domínio da natureza. A teologia legitima assim a destruição da natureza operada em nome do Engenheiro Divino, quando, na realidade, Deus – destituído de Santidade – se transforma numa mera palavra para referir uma outra realidade que comanda todo este projecto cognitivo: o sistema de economia de mercado e a sua racionalidade instrumental. Por isso, as filosofias pós-racionalistas não precisam de Deus para garantir a conquista da natureza: no sistema de Hobbes, a ética é mecanizada contra a vontade de Descartes e, no sistema de Laplace, Deus é dispensado, ficando no seu lugar um determinismo rígido.

8. Na metafísica dualista de Descartes, a identificação do homem como res cogitans justifica a subjugação da natureza à ideia geométrica da extensão. O homem desvincula-se da natureza para a submeter. A objectivação científica da natureza conduz à sua exploração tecnológica. Com efeito, o cogito é, em última análise, um «eu posso»: o ego pensa para dominar a natureza exterior. Pensar é dominar ou, como dizia Francis Bacon, «saber é poder»
[30], na medida em que o conhecimento científico das leis da natureza possibilita ao homem o poder de a dominar. Neste aspecto, o racionalismo e o empirismo coincidem. O racionalismo cartesiano é essencialmente um método que, fornecendo as regras para bem conduzir a nossa razão na vida e no conhecimento do mundo, nos ensina a tornarmo-nos «donos e senhores» da natureza. O método é uma técnica de domínio: a natureza é metodicamente colocada ao dispor de um sistema económico que só pode crescer à custa da sua destruição. Apesas de se afirmar infinitamente livre e autónomo, o cogito deixa-se pensar pelo sistema tecno-económico que o sobredetermina e o condena ao silêncio: ele mais não é que um cogito totalmente socializado no seio de uma sociedade que se instalou no seu interior.

9. O horizonte instrumental que Descartes tematiza e legitima nas suas obras, desde as Regras para a direcção do Espírito até aos Princípios da Filosofia, passando pelo Discurso do Método e pelas Meditações sobre a Filosofia Primeira, é inseparável da expansão da economia de mercado. O cogito cartesiano afasta-se da natureza para a dominar e, neste acto em que afirma a sua infinita liberdade na solidão, mergulha, enquanto ser-sem-abrigo, no abismo, onde impera o sistema que sempre o dominou. A dúvida hiperbólica é inconsequente: o cogito não é livre diante do sistema económico emergente. O génio maligno engana Descartes, insinuando-se no seu pensamento, sem que ele se aperceba disso, como uma certeza indubitável, isto é, clara e distinta. Forçando um pouco as palavras de E. Husserl
[31], seria fácil encarar o cogito cartesiano como um resíduo do horizonte instrumental, cuja presença não é detectada pela dúvida. O génio maligno que enganou Descartes era a maldade inerente ao sistema capitalista que iniciava então a sua conquista do mundo.
Embora tenha triunfado sobre a cultura tradicional, a razão cartesiana não consegue transcender, mantendo a sua autonomia, a racionalização económica levada a cabo pelo sistema capitalista: a sua racionalidade é, pois, a racionalidade funcional do novo sistema económico
[32]. O cogito cartesiano é uma auto-ilusão, na medida em que se engana sempre que se julga infinitamente livre e autónomo, à imagem de Deus, quando, na verdade, mais não é que uma criação de uma sociedade, cuja reprodução social exige a mecanização da natureza, encarada, desde o início, como uma fonte inesgotável de matérias-primas para a indústria nascente. Assim, a filosofia de Descartes, como a caracterizou F. Borkenau, é a «filosofia da era da manufactura»[33].

10. O mecanicismo cartesiano supõe a existência de leis absolutas no mundo criado por Deus, susceptíveis de serem apreendidas clara e distintamente pelo entendimento humano. Ora, conforme mostraram as ciências biomédicas e, em particular, a ecologia, as leis da ecosfera não são absolutas. Com efeito, o homem pode infringir as leis gaiaicas, mas, ao fazê-lo, paga um preço demasiado elevado – a perda de estabilidade, quer de maneira directa ao nível da organização propriamente dita, quer de maneira indirecta nos outros escalões da hierarquia gaiaica, incluindo o da própria biosfera.
A transformação total de todos os domínios do ser à condição de meios leva à liquidação do sujeito que presumivelmente deveria usá-los, ou, como escreve Max Horkheimer, «a subjectivação, que exalta o sujeito, também o condena»
[34]. A dominação da natureza implica necessariamente a dominação de si mesmo. Dominar a natureza é também dominar o próprio homem. O dualismo cartesiano não consegue salvaguardar o «espírito» da lógica da dominação. Ao despojar a natureza de todo o valor ou significado intrínseco, o homem despoja-se a sí mesmo de todos os objectivos, excepto o da auto-conservação.

11. O racionalismo aceita que a natureza tenha os seus mecanismos e as suas leis próprias, sem qualquer relação com os nossos desejos afectivos. A natureza torna-se, assim, plenamente autónoma, para que o homem a possa possuir e subjugar. No entanto, há um excesso infinito de objecto que não se deixa capturar pelo conceito e que, quando manipulado tecnicamente, responde regularmente de uma maneira imprevista. A actual crise ecológica é a revolta da natureza contra a sua instrumentalização. Querendo dominar a natureza para se proteger da sua acção, o homem acabou por ser dominado, não só pela natureza exterior, mas também pela natureza interior e social. A síndrome da desertificação afectiva e a atrofia cognitiva
[35] que atormentam o homem pós-moderno resultam da dominação tecnológica e social. Ao destruir a natureza, o homem destrói-se a si mesmo. A filosofia cartesiana legitima a destruição da natureza levada a cabo pelo processo de industrialização.

12. O racionalismo cartesiano é alvo da animosidade do discurso ecológico contemporâneo, em particular da Ecologia Profunda elaborada por E. Goldsmith. A ecologia profunda considera que o paradigma económico e o paradigma científico reflectem a mesma concepção do mundo: a concepção modernista do mundo, tematizada, pela primeira vez, de um modo explicíto e teoricamente elaborado, por Descartes. A metafísica cartesiana estabelece uma «distinção totalmente artificial» entre duas substâncias – a res cogitans e a res extensa, com o propósito de «proporcionar à ciência uma esfera de influência» crescente, liberta «dos grilhões com que a teologia a mantinha aprisionada». Reconhecer a substancialidade do corpo significa, em primeiro lugar, para Descartes, tornar possível a consideração e o estudo do corpo como tal, sem qualquer referência à alma ou aos seus atributos. A substância corpórea, quer seja o corpo humano, quer seja o corpo natural, tem um único atributo fundamental – a extensão em comprimento, largura e profundidade, que Descartes identifica com o espaço geométrico. Este é o resultado da abstracção pela qual se eliminam da natureza todas as suas qualidades e propriedades, reduzindo-as à extensão, o único atributo susceptível de ser inteiramente quantificado. Muito antes de Descartes, Galileu tinha estabelecido como princípio que «só era real o que era quantificável, sendo assim o não quantificável excluído do domínio da ciência. A nova filosofia da natureza concebida por Descartes e por Galileu anunciava a ideia newtoniana segundo a qual a natureza consiste em átomos de matéria em movimento no tempo e no espaço. Isolar as características da matéria em movimento, que podem ser medidas e ligadas entre si por leis matemáticas, era compreender o funcionamento da natureza. O próprio Descartes dizia que se lhe dessem a extensão e o tempo, poderia construir o universo»
[36]. A redução da natureza à extensão permitiu que Descartes pudesse «ver o mundo como uma imensa máquina – tese mecanicista que ainda hoje justifica a ciência moderna e que constitui a base racionalizadora do desenvolvimento económico e da industrialização»[37].
A ecologia profunda capta um aspecto fundamental da teoria crítica da natureza: a crítica da racionalidade instrumental é inseparável da crítica da economia de mercado generalizada, do seu sistema burocrático e da sua ideologia do crescimento económico infinito. O programa racionalista é denunciado, a partir deste princípio, como uma legitimação ideológica do sistema económico capitalista, responsável pela degradação e destruição da natureza, levadas a efeito em nome do progresso e do bem-estar do homem
[38]. A concepção modernista do mundo que corporifica assenta em duas crenças fundamentais:

· a crença «de que todos os benefícios e, por conseguinte, os nossos bem-estar e riqueza verdadeira são antropogénicos; por outras palavras: produtos das ciências, da técnica e da indústria e, por isso, também do desenvolvimento económico que as alimenta: os benefícios inestimáveis proporcionados em tempo normal pela ecosfera – um clima estável e clemente, solos férteis e água pura, coisas sem as quais não há vida possível – são totalmente silenciados ou considerados como sem valor»;
· a crença de que, «para a maximização de qualquer benefício, e portanto dos nossos bem-estar e riqueza, é preciso maximizarmos o desenvolvimento económico»
[39].

Ao impedir a compreensão das nossas relações com a natureza e a nossa adaptação a ela de maneira a aumentarmos ao máximo o nosso bem-estar e as nossas verdadeiras riquezas, a concepção modernista serve para «legitimar o desenvolvimento económico ou “progresso” – comportamento que, precisamente, nos leva à destruição do mundo natural, com as conhecidas consequências: pobreza, desnutrição, infelicidade humana generalizada»
[40].
A Ecologia Profunda de E. Goldsmith é, em última análise, uma crítica da economia de mercado generalizada e da sua racionalidade funcional, que, rejeitando a abordagem mecanicista e tecnomorfa dos diversos ecossistemas que constituem a ecoesfera, procura libertar a natureza da exploração técnica e económica a que tem sido submetida, de modo a conservar a sua ordem específica e a sua estabilidade. Para isso, propõe uma visão ecológica do mundo, assente em dois princípios fundamentais:

· «O primeiro afirma que o mundo vivo, ou ecosfera, é a fonte original de todos os benefícios e de toda a riqueza, mas que só nos dispensará os seus benefícios na condição de preservarmos a sua ordem específica».
· O segundo princípio diz que «o alvo supremo do comportamento numa sociedade ecológica deve ser a preservação da ordem do mundo natural ou do cosmos»
[41], tal como este surge aos olhos dos povos vernaculares.

A hipótese Gaia – elaborada por James Lovelock, com a preciosa colaboração de Lynn Margulis – é essencial para a construção desta nova visão ecológica do mundo, na medida em que, ao desmentir cabalmente o mecanicismo cartesiano, recupera uma velha noção de natureza incompatível com a sua dominação. De acordo com esta hipótese, «toda a variedade de matéria viva na Terra, das baleias aos vírus, dos carvalhos às algas, poderia ser encarada como constituindo uma única entidade viva, capaz de levar a atmosfera da Terra a adequar-se às necessidades gerais e dotada de faculdades e poderes superiores aos das suas partes constituintes»
[42]. Assim, Lovelock define «Gaia como uma entidade complexa que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo da Terra; na sua totalidade, constituem um sistema cibernético ou de realimentação que procura um meio físico e químico óptimo para a vida neste planeta»[43]. A concepção da natureza como um organismo vivo é assim a negação do mecanicismo e da sua lógica da dominação.
Condenando o crescimento económico e a ideia de progresso infinito que lhe é subjacente, E. Goldsmith profetiza um Novo Caminho: o regresso à natureza, à harmonia e à co-adaptação entre homem e natureza, tal como se verifica nas sociedades vernaculares. O Caminho é o contrário do Progresso: segui-lo é conservar e manter a ordem específica e a estabilidade da ecosfera. O Progresso é, pelo contrário, o falso Caminho, na medida em que perturba a ordem específica e reduz a estabilidade dos diversos sistemas naturais que compõem a ecosfera. O progresso é inegavelmente destruição, mas, como observa M. Horkheimer, o regresso à natureza seria ainda mais terrível:

«Somos os herdeiros, para melhor ou para pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente»
[44]

13. A visão ecológica do mundo não se conforma «com o paradigma das ciências»
[45]. Ao conhecimento científico opõe uma nova ecologia, definida, de modo provocante, como uma ecologia holística, una, qualitativa, subjectiva, teleológica, inata, inefável, enfim, como uma fé – «uma fé na sabedoria das forças que criaram o mundo natural e o cosmos de que fazemos parte; uma fé na sua capacidade de nos proporcionar benefícios […] vitais para a satisfação das nossas necessidades decisivas; uma fé na nossa capacidade para desenvolvermos esquemas culturais que nos permitam preservar o que resta da integridade e da estabilidade do mundo natural»[46].
Minar a fé no programa racionalista e substituí-la por uma fé no prjecto ecológico é uma tarefa eminentemente prática, só possível a sedução de indivíduos rebeldes que desejam alternar entre sistemas de significado logica e cognitivamente contraditórios. Ciente desta dificuldade, J. Lovelock define, desde logo, o perfil psicológico e cognitivo dos seus «destinatários»:

«A hipótese de Gaia destina-se a quem gostar de caminhar ou simplesmente ficar a observar, a magicar sobre as consequências da nossa experiência nela. É como um alternativa àquela perspectiva pessimista que vê a natureza como uma força primitiva a subjugar e a conquistar. É também uma alternativa àquela imagem igualmente deprimente no nosso planeta como uma nave espacial demente em viagem contínua, sem condutor nem objectivo, em torno de um círculo interior do Sol»
[47].

De um modo mais radical e desesperado, a aceitação da ecologia profunda de E. Goldsmith exige «o abandono do próprio paradigma científico e da concepção modernista do mundo que é o seu fiel reflexo: ambos devem ser substituídos pela concepção ecológica do mundo»
[48]. Esta substituição implica uma conversão, de cariz religioso, na medida em que «acarreta uma profunda reorganização do saber que forma a nossa visão do mundo»[49]. Diante da catástrofe ecológica que se adivinha, o homem terá que escolher, sob pena de morrer juntamente com o planeta, entre a utopia ou a morte, para usar os tremos de R. Dumont[50].

«Eis que hoje ponho diante de ti vida e felicidade, morte e desgraça. […] Se o teu coração se desvia e não escutas, […] eu vos declaro hoje que perecereis sem remédio e que não vivereis muitos dias nesta terra […]. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência»
[51].

14. Em face desta revolta da natureza contra a sua instrumentalização, as ciências biomédicas e a eco-filosofia respondem com uma nova concepção da natureza, da ciência e do homem, fundada em novos presupostos metafísicos, éticos e estéticos. Mergulhada num horizonte instrumental que a usa como instrumento para garantir o crescimento económico e o controle social, a ciência moderna tem sido até hoje um saber de dominação. De acordo com o «procedimento normal» instituído pelas grandes empresas capitalistas, conhecemos algo na medida em que podemos dominá-lo e compreendemos algo quando o «apreendemos». Definimos os objectos mediante conceitos científicos e, com o recurso às definições operacionais, determinamos objectos e fazemo-los identificáveis, em função dos imperativos das grandes empresas económicas que subsidíam os projectos de investigação científica. Tendo como objectivo reconciliar o homem com a natureza, a síntese ecológica moderna não quer conhecer para dominar; em vez disso, deseja conhecer para participar na conservação da natureza maltratada pelo agir instrumental. O conhecimento ecológico cria comunhão, coopreração e convivencialidade
[52]. A designação mais adequada a dár-lhe seria, talvez, por oposição ao saber de domínio, saber de comunhão.
A biologia conservacionista, tal como a estabelace E. Wilson, aliando-se à nova consciência ecológica que emerge por todas as partes do planeta e querendo reforçá-la, não se inibe em propor uma ética do ambiente, na qual a natureza, além de ser amada como se ama a uma Mãe (biofilia), passa a ser perspectivada como Sujeito: «Uma ética ambiental duradoura almejará preservar não apenas a saúde, o bem-estar e a liberdade da nossa espécie, mas também o acesso ao mundo em que o espírito humano nasceu»
[53]. Se a comunhão ecológica planetária conseguir inverter o crescimento económico capitalista, então a natureza estará aí, não para ser dominada, mas sim para ser conservada, amada e glorificada como a Terra sem a qual não seríamos nada.

15. No início deste século, Edward Münch escreveu:

«Eu ia pela estrada fora com dois amigos. Era o pôr do Sol. Invadia-me a melancolia. De súbito o Sol ficou vermelho de sangue. Parei e encostei-me à sebe, morto de cansaço, e olhei para as nuvens chamejantes que pendiam como sangue e uma espada sobre o fiorde azul escuro e sobre a cidade. Os meus amigos continuavam a caminhar. Eu fiquei ali tremendo de medo. E ouvi um grito alto e prolongado que atravessava a natureza»
[54].

Tal como Edward Münch, também nós devemos estar a interrogar-nos: De quem seria aquele grito que ainda hoje se ouve? É o grito de uma parturiente que está a ser devorada por dentro pelos seus próprios filhos. Gaia não é um mecanismo: Gaia é a matriz da biodiversidade e da vida, cujo sofrimento é colocado em linguagem pela teoria crítica da natureza.


BIBLIOGRAFIA

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Observações dispersas:

O sistema cardiovascular cartesiano. De acordo com a fisiologia mecanicista de Descartes, o quilo é transformado em sangue pelo fígado. O sangue recém-formado passa lentamente para a aurícula e o ventrículo direitos e, sob a influência da «enigmática faísca» do ventrículo, expande-se de forma explosiva e penetra nos pulmões. Aí reage com o ar e é «activado». O sangue activado serve de combustível ao forno do ventrículo esquerdo. Finalmente, as partes mais activadas do sangue ascendem pelas artérias carótidas até ao cérebro. À medida que o sangue penetra através das substâncias do cérebro, os «espíritos animais» são filtrados. Estes partem da glândula pineal para o ventrículo cerebral e escapam dos ventrículos através dos nervos.

Acto reflexo. Um diagrama de L’Homme ilustra a teoria de Descartes do acto reflexo. O cordão c-c-c, referido por Descartes, é assinalado na base dos dedos dos pés, no músculo e no ombro.

Imagem pineal. Outro diagrama de L’Homme mostra como é traçada desde a glândula pineal, H, a forma de um objecto. A glândula pineal é representada a flutuar sobre um éfluvio de espíritos animais.
Resposta automática a uma imagem visual. Mais outro diagrama de Descartes: a imagem de um objecto traçada desde a glândula pineal conduz automaticamente a uma resposta corporalmente adequada. Os espíritos animais que escapam da glândula pineal penetram no nervo 8 e inflam o músculo bíceps, flexionando assim o braço.


[1] McLUHAN, Teri C. – A Fala do Índio. Auto-retrato da vida dos Índios da América do Norte. Lisboa: Fenda Edições, 1988, p.15. 19.
[2] Citado por RUSS, Jacqueline – A Aventura do Pensamento Europeu: Uma história das ideias ocidentais. Lisboa: Terramar Editores, 1997, p.114.
[3] Citado por RICKLEFS, Robert E. – A Economia da Natureza. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1996, p. 1.
[4] ODUM, Eugene P. – Fundamentos de Ecologia, 4ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p.4.
[5] ROSNAY, Joël de – O Macroscópio: Para uma visão global. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas, 1995.
[6] Uma abordagem sistémica não exclui a abordagem reducionista: ambas são complementares.
[7] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.7.
[8] BEAUD, Michel; BEAUD, Calliope; BOUGUERRA, Mohamed Larbi, dir. – Estado do Ambiente no Mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.18.
[9] SIMONNET, Dominique – O Ecologismo. Lisboa: Moraes editores, 1981, p.33.
[10] MARCUSE, Herbert – Contra-revolução e Revolta, 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.65.
[11] MARCUSE, Herbert – El Hombre Unidimensional: Ensayo sobre la ideología de la sociedad industrial avanzada. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1972, p.185.
[12] Cf. FOUCAULT, Michel – As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Portugália Editora, s.d..
[13] Génesis, 1, 28.
[14] Cf. HEIDEGGER, Martin – Chemins que ne mènent nulle part. Paris: Éditions Gallimard, 1980. IDEM – Essais et Conférences. Paris: Éditions Gallimard, 1980.
[15] Cf. IDEM – Chemins que ne mènent nulle part, p.114.
[16] Ibidem, p.349.
[17] DESCARTES, René – Discurso do Método/As Paixões da Alma, 10ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1981, p.49.
[18] «Agradam-me sobretudo as matemáticas, por causa da certeza e da evidência das suas razões; mas não notara ainda a sua verdadeira utilidade, e, pensando que apenas serviam para as artes mecânicas, admirava-me de que, sendo os seus fundamentos tão firmes e sólidos, nada de mais elevado sobre eles se tivesse construído». Ibidem, p.9.
[19] LENOBLE, Robert – História da Ideia de Natureza. Lisboa: Edições 70, 1990, p.279.
[20] KOBAYASHI, Michio – A Filosofia da Natureza de Descartes. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.14.
[21] Ibidem, p.39.
[22]Ibidem.
[23] LENOBLE, Robert – História da Ideia de Natureza, p.260.
[24] «Resolvi deixar este mundo em que vivemos para objecto das suas disputas e falar unicamente do que aconteceria num outro, se Deus agora criasse em qualquer parte, nos espaços imaginários, bastante matéria para o compor e agitasse as suas muitas partículas tão diversa e desordenadamente que com elas formasse um caos tão confuso como o saído da imaginação dos poetas, e se limitasse, depois disso, a prestar apenas o seu concurso habitual à natureza e a deixá-la agir segundo as leis por ele estabelecidas». DESCARTES, René – Discurso do Método/As Paixões da Alma, p.35.
[25] «E, contudo, ouso dizer que encontrei maneira não só de, em pouco tempo, triunfar de todas as principais dificuldades que costumam ser tratadas na filosofia, mas também de descobrir certas leis, que Deus de tal modo estabeleceu na natureza e das quais imprimiu tais noções em nossa alma que, depois de bem reflectir sobre elas, não poderíamos duvidar de que sejam exactamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo». Ibidem, p.34.
[26] Cf. CAVAILLÉ, Jean-Pierre – Descartes: A Fábula do Mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
[27] LENOBLE, Robert – História da Ideia de Natureza, p.267.
[28] Cf. IDEM – Mersenne ou la naissance du mécanisme. Paris: Vrin, 1943.
[29] Cf. MARION, Jean-Luc – Sur la Théologie Blanche de Descartes. Paris: PUF, 1991.
[30] «O homem, servidor e intérprete da natureza, não trabalha nem compreende senão na proporção das suas descobertas experimentais e racionais sobre a leis desta natureza; para além disso, nada sabe e nada pode. […] A ciência do homem é a medida do seu poder, porque ignorar a causa é não poder produzir o efeito. Só se triunfa sobre a natureza obedecendo-lhe, e o que na especulação vale como causa converte-se em regra na prática». BACON, Francis – Novum Organum: Aforismos sobre la interpretación de la naturaleza y el reino del hombre. Barcelona: Editorial Fontanella, 1979, p.33.
[31] Cf. HUSSERL, Edmund – La Crisis de las Ciencias Europeas y la Fenomenología Transcendental. Barcelona: Editorial Crítica, 1991. IDEM – Meditaciones Cartesianas. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1985.
[32] Cf. GELLNER, Ernest – Razão e Cultura: Papel histórico da racionalidade e do racionalismo. Lisboa: Editorial Teorema, 1995.
[33] BORKENAU, Franz – Vom feudalen zum bürgerlichen Weltbild: Studien zur Geshichte der Philosophie der Manufakturperiode. Darmstadt, 1971.
[34] HORKHEIMER, Max – Eclipse da Razão. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976, p.104.
[35] Cf. SOUSA, Joaquim F. Saraiva de – Razão e Sofrimento: Contra os relativismos contemporâneos. Humanística e Teologia 17 (1996) 47-102.
[36] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.86.
[37] Ibidem, p.23.
[38] «Mas logo que adquiri algumas noções gerais sobre física e que, tendo-as posto à prova em diversas dificuldades particulares, notei até onde elas podem conduzir e quanto diferem dos princípios até agora aceites, convenci-me de que não poderia guardá-las só para mim sem pecar muito contra a lei que nos obriga a contribuir tanto quanto possível para o bem geral». DESCARTES, René – Discurso do Método/As Paixões da Alma, p.49.
[39] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico, p.10.
[40] Ibidem.
[41] Ibidem, p.13.
[42] LOVELOCK, James E. – Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra. Lisboa: Edições 70, 1989, p.25.
[43] Ibidem, p.27.
[44] HORKHEIMER, Max – Eclipse da Razão, p.138.
[45] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico, p.12.
[46] Ibidem, p.122.
[47] LOVELOCK, James E. – Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra, pp.27-28.
[48] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico, p.489.
[49] Ibidem.
[50] Cf. DUMONT, René – Utopia ou Morte! Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1975.
[51] Deuteronómio 30, 15-20.
[52] Cf. ILLICH, Ivan – A Convivencialidade. Lisboa: Publicações Europa-América, 1976.
[53] WILSON, Edward O. – Diversidade da Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.377.
[54] Citado por BLAKEMORE, Colin – Os Mecanismos da Mente. Lisboa: Editorial Presença, 1986, p.171.
[55] Citado por RICKLEFS, Robert E. – A Economia da Natureza. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1996, p. 1.
[56] ODUM, Eugene P. – Fundamentos de Ecologia, 4ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p.4.
[57] ROSNAY, Joël de – O Macroscópio: Para uma visão global. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas, 1995.
[58] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.7.
[59] BEAUD, Michel; BEAUD, Calliope; BOUGUERRA, Mohamed Larbi, dir. – Estado do Ambiente no Mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.18.
[60] SIMONNET, Dominique – O Ecologismo. Lisboa: Moraes editores, 1981, p.33.
[61] MARCUSE, Herbert – Contra-revolução e Revolta, 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.65.
[62] MARCUSE, Herbert – El Hombre Unidimensional: Ensayo sobre la ideología de la sociedad industrial avanzada. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1972, p.185.
[63] HEIDEGGER, Martin – Chemins que ne mènent nulle part. Paris: Éditions Gallimard, 1980. Vide HEIDEGGER, Martin – Essais et Conférences. Paris: Éditions Gallimard, 1980.
[64] DESCARTES, René – Discurso do Método/As Paixões da Alma, 10ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1981, p.49.
[65] LENOBLE, Robert – História da Ideia de Natureza. Lisboa: Edições 70, 1990, p.260.
[66] Cf. CAVAILLÉ, Jean-Pierre – Descartes: A Fábula do Mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
[67] Cf. BACON, Francis – Novum Organum: Aforismos sobre la interpretación de la naturaleza y el reino del hombre. Barcelona: Editorial Fontanella, 1979.
[68] LENOBLE, Robert – História da Ideia de Natureza. Lisboa: Edições 70, 1990, p.267.
[69] BORKENAU, Franz – Vom feudalen zum bürgerlichen Weltbild: Studien zur Geshichte der Philosophie der Manufakturperiode. Darmstadt, 1971.
[70] Cottingham destaca quatro aspectos do uso que Descartes faz de máquinas ou mecanismos:
1. O mecanicismo cartesiano faz apelo a um reducionismo radical: o funcionamento dos macro-fenómenos é explicado através das interacções das micro-partículas que os constituem.
2. Relacionado com este reducionismo encontra-se a firme rejeição cartesiana da necessidade de se postular poderes e forças ocultas: os efeitos normalmente atribuídos a propriedades ocultas devem ser explicados mediante a figura e o movimento das partes constituintes da matéria.
3. A abordagem cartesiana é simplificadora: as complexidades perceptíveis devem ser reduzidas aos mecanismos subjacentes que são simples e não problemáticos.
4. Todos os mecanismos da natureza exibem uma total homogeneidade, na medida em que os mesmos tipos de operações funcionam em todos os casos. Cf. COTTINGHAM, John – Dicionário Descartes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, pp.103-104.
[71] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.86.
[72] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.23.
[73] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.10.
[74] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.10.
[75] GOLDSMITH, Edouard – O Desafio Ecológico. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.13.
[76] HORKHEIMER, Max – Eclipse da Razão. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976, p.104.
[77] LOVELOCK, James E. – Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra. Lisboa: Edições 70, 1989, p.25.
[78] LOVELOCK, James E. – Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra. Lisboa: Edições 70, 1989, p.27.
[79] LOVELOCK, James E. – Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra. Lisboa: Edições 70, 1989, pp.27-28.
[80] WILSON, Edward O. – Diversidade da Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.377.
(Publicado em Descartes: reflexão sobre a modernidade. Porto:1998)
J Francisco Saraiva de Sousa

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