domingo, 14 de junho de 2009

Morte e Sentido da Vida (1)

«Os sábios experimentados da ciência da morte sabem que os moribundos têm de ser mantidos despertos e em plena consciência dos sintomas do seu fim. Doutro modo, eles não poderiam reconhecer a Luz Fundamental na sua realidade. A vida dos poetas assemelha-se a esse estado de confrontação em que o espírito se equilibra como uma agulha sobre um delgado fio; movida pelo sopro dos desejos egoístas e a força do eu, a agulha cai e a vida é arrastada de novo para a sua roda de padecimentos. (...) A arte de morrer é a operação do poeta». (Agustina Bessa-Luís)
A meditatio mortis tem sido entendida como a reflexão sobre a finitude radical da existência humana e, como tal, foi sempre uma das grandes constantes da actividade filosófica. Nas tanatologias contemporâneas, a morte não é abordada como uma questão marginal, mas como a questão fundamental da hermenêutica da condição humana. A experiência da morte coloca o homem perante um limite concreto: a finitude da própria existência humana. A liberdade e a iniciativa humanas são impotentes diante do significado fundamental da própria existência: não fomos interpelados para vir ao mundo e não podemos fazer nada para permanecer no mundo. Parece que o nada está na raiz da nossa própria existência e que, por isso, somos incapazes de realizar o seu sentido, contando apenas com as nossas forças e com as relações históricas. O homem enfrenta esta alternativa concreta: agarrar-se à existência que lhe escapa irremediavelmente, sem poder ser o fundamento do seu significado (1), ou reconhecer a existência como um dom que lhe foi doado por Deus e confiar nessa misteriosa realidade que está na origem da existência (2). B. Pascal e S. Kierkegaard optaram pela segunda via desta alternativa. Segundo Pascal, "o homem excede infinitamente o homem", no sentido de ter sido criado para a infinidade: todo o seu ser é polarizado para Deus, o Ser que preenche o vazio que o homem encontra em si e ao seu redor no mundo. Precisamos, como disse Bergson, "sentir alguém acima de nós para sermos verdadeiramente nós". Atormentado pela impotência da razão e pela sua incapacidade de apreender a vida, Kierkegaard entrega-se à busca da salvação na fé e no abandono a Deus. Dado ser incapaz de conhecer, o homem enquanto indivíduo deve resolver-se a crer. O pessimismo da razão termina na confiança religiosa.
Dado a morte ser uma questão fundamentalmente antropológica (M. Scheler, P. Landsberg, E. Morin, T. Dobzhansky, K. Jaspers, Ivan Illich, V. Jankélévitch, E. Levinas, H. Jonas, P. Ricoeur, M. Buber, F. Rosenzweig, J. Moltmann, E. Bloch, H. Marcuse, T. W. Adorno), todas as antropologias filosóficas são confrontadas com a problemática da morte (P. Ariès, E. Kübler-Ross): "Eu não só estou vivo, como também consciente de estar vivo. Além disso, sei que não ficarei vivo para sempre, que a morte é inevitável. Possuo os atributos da autoconsciência e da consciência da morte" (Theodosius Dobzhansky). A análise filosófica da morte confronta-se com dois preconceitos: o preconceito de que todos sabem o que é a morte, dispensando assim uma análise profunda da mesma (1), e o preconceito de que o problema da morte foi completamente explicitado pela afirmação da imortalidade pessoal depois da morte (2). A filosofia não pretende fornecer uma fórmula que revele a natureza da morte, mas apenas clarificar o seu sentido para um ser que precisa realizar-se com os outros num mundo partilhado. A morte revela-se como ameaça que paira permanentemente sobre a vida de cada ser humano. No entanto, a morte manifesta-se na sua verdadeira realidade de morte na experiência da morte alheia, mais precisamente na experiência da morte da pessoa amada (Santo Agostinho, A. Schaff, L. Brunschvicg, G. Marcel). Isto significa que não temos uma experiência directa da nossa própria morte e que não podemos obter um conhecimento concreto da morte mediante a assistência, neutra e impessoal, prestada às pessoas que morrem: a percepção da realidade da morte é determinada ou, pelo menos, mediada pela estrutura intersubjectiva da existência (A. Schutz). A distinção conceptual que Jankélévitch faz entre a morte na terceira pessoa (morte anónima), a morte na segunda pessoa (morte dos entes queridos na relação dialógica eu/tu) e a morte na primeira pessoa (morte própria) é fundamental para a compreensão da dimensão intersubjectiva da morte e da finitude da existência.
A filosofia contemporânea analisou, com maior ou menor profundidade, todas as dimensões da morte, articulando e ligando o problema da morte às perguntas do sentido da vida (1), do sentido da história (2), da validade dos imperativos éticos absolutos (3), da dialéctica presente-futuro (4), da possibilidade da esperança (5), e da delimitação do sujeito e da pessoa humana (6).
1. A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sentido da vida. A problemática filosófica contemporânea da morte gira em torno das análises da morte feitas por Heidegger, as quais procuraram estabelecer a autenticidade da existência humana e descobrir o acesso ao Ser, sem levar em conta o problema da imortalidade pessoal depois da morte (Scheler). Para Heidegger, a morte não é um facto puramente extrínseco que advenha a uma existência já realizada e cumprida: a inevitabilidade da morte inscreve-se desde o princípio na estrutura ontológica da existência. Todos os seres humanos nascem, vivem e morrem. Isto significa que a existência humana pode ser definida essencialmente como Sein-zum-Tode, ser-para-a-morte. Sendo ser-para-a-morte no duplo sentido, biológico e ontológico, a vida do homem terá sentido na medida em que tenha sentido a sua morte, e, inversamente, uma morte sem sentido degrada retrospectivamente a vida com a sua insensatez. A pergunta pelo sentido da vida exige o esclarecimento do sentido da morte. Para Heidegger, a morte integra-se na vida, constituindo o seu ponto final. Sartre viu no esforço de Heidegger uma tentativa para humanizar a morte, atenuando o seu carácter irracional e absurdo: a morte não confere sentido à vida, mas corta-lhe brutalmente um futuro que teria dado ao passado e ao presente a sua significação. A morte é, para Sartre, despojamento total que se impõe ao homem como facto puro ou acidente banal: "é absurdo termos nascido, é absurdo morrermos", porque a morte é não só o termo do nosso destino, mas também o aniquilamento de todas as nossas possibilidades. O carácter absurdo da morte fatal foi particularmente explicitado por A. Camus: o absurdo é entendido como uma relação entre o homem e o mundo, isto é, como um confronto entre o apelo humano e a opacidade do cosmos, ao qual a morte fatal imprime um cunho definitivo. Consciente do seu envelhecimento irremediável, o homem revoltado sabe que o tempo escapa ao seu controle: o horário da existência conduz inexoravelmente à noite do túmulo. A condição humana é uma aventura absurda, porque a morte faz da vida um fracasso e uma mentira. A prática filosófica de Thomas Nagel recapitula, numa linguagem sucinta e pretensamente analítica, as posições do existencialismo ateu francês: "Pensar na minha morte como um acontecimento no mundo é fácil; difícil é pensar no fim do meu mundo". A contingência do nosso nascimento e a inevitabilidade da nossa morte podem ser compreendidas do ponto de vista objectivo, mas dificilmente são apreendidas internamente, porque a morte aniquila o nosso mundo, as nossas experiências, os nossos pensamentos e as nossas possibilidades: a morte é, do ponto de vista subjectivo, um absurdo que contamina a própria vida.
Para Heidegger, a existência é fundamentalmente preocupação e angústia da morte. Esta angústia fundamental é distinta do medo sentido diante de algum perigo localizável: a angústia refere-se aqui ao possível ocaso do meu ser e, portanto, à perda total da minha existência. A angústia é o horror do nada, que, a qualquer momento, irrompe na existência humana. Nem todos os homens enfrentam friamente a irreversível necessidade da morte. A maioria procura fugir à angústia, entregando-se a todos os tipos de distracções, de modo a fazer da morte um mero facto quotidiano e neutro. A banalização da morte levada a cabo por esta atitude impessoal constitui um expediente para impedir o pensamento da morte como dimensão da existência autêntica. A morte não é, de forma alguma, o cumprimento ou a culminação da maturidade da existência, mas o ser no seu fim radical. Embora seja a suprema possibilidade do homem, a morte é a impossibilidade de todas as possibilidades humanas. A autenticidade exige a confrontação fria com a necessidade da morte, mediante a qual o homem participa da verdade e se converte em homem livre e autêntico. Ninguém pode morrer no lugar ou em vez do outro: cada um de nós morre por conta própria submerso numa solidão profunda e completa. Encarar de frente e de modo vertical (H. Plessner) esta possibilidade permanente constitui o único caminho aberto ao mortal para atingir a autenticidade. Heidegger não vê a vida como algo absurdo e recusa o suicídio: o homem deve aguardar e esperar a morte, antecipando mentalmente a morte inevitável e compreendendo à sua luz as possibilidades de momento. Este "esperar" (erwarten) significa "ausência de esperança", o contrário do princípio esperança de Ernst Bloch: os projectos e as possibilidades do homem estão revestidos por um véu de nulidade e de vanidade. O próprio homem é nada e vanidade que confronta lucidamente durante toda a sua vida o nada da morte, e o mundo que habita não é o seu verdadeiro lar. Vivendo num mundo inóspito, o homem mais não é do que ser-no-mundo e ser-para-a-morte, cuja liberdade é liberdade para a morte (Freiheit-zum-Tode).
Na peugada de Heidegger, K. Rahner (teólogo) pensa que a vida, dado alcançar o seu fim com a morte, atinge com ela a sua totalidade. A vida do homem alcança a sua totalidade na morte. Porém, para compreender este pressuposto, é necessário distinguir entre a morte natural, que nada tem a ver com o pecado, e a morte da fuga ou do juízo, pela qual a morte natural se converte em separação de Deus. A vida só alcança a sua totalidade na morte quando esta ocorre no modo de abertura a Deus, como no morrer de Jesus. Caso contrário, a morte advém como afastamento de Deus, sob o signo do pecado. A abertura a Deus permite conduzir a vida à sua totalidade, a qual não se rompe com a morte pelo facto da fé cristã esperar pela ressurreição, isto é, pela vitória sobre o "último inimigo" (S. Paulo). Com esta concepção teológica da morte, Rahner evitou encará-la como uma sequela do pecado universal: S. Paulo via na morte e no seu domínio sobre a vida o índice decisivo da difusão universal do pecado, obrigando a teologia posterior a encarar a finitude da vida como pecado. O recurso a Heidegger possibilitou à teologia moderna evitar esse escolho (P. Tillich, G. Schumack, L. Boros, E. Jünger, H. Küng).
«D'une certaine manière pourtant, il n'est peut-être pas défendu de parler de l' "a priori" létal: le mortel, bien avant d'être moribond, est moriturus, c'est-à-dire destiné à mourir; dès l'instant de sa naissance, le vivant est tel qu'il doit mourir; dès l'origine, sa constitution et le rytheme même de son existence, la succession des âges de la vie et les grandes transformations biologiques de l'organisme sont accordés sur la durée limitée impartie à l'espèce humaine». (Jankélévitch)
2. A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sentido da história. Ao colocar a morte no território exclusivo dos assuntos que dizem respeito aos indivíduos, a tanatologia do marxismo ortodoxo (G. Lukács, M. Verret, G. Mury, G. Martelet, R. Garaudy, A. Schaff) considera que a pergunta sobre a morte é filosoficamente irrelevante, no sentido da morte inevitável não comprometer o próprio sentido da existência humana e da missão histórico-social do homem no mundo. O marxismo é, nas palavras de Merleau-Ponty, "o único humanismo que ousa desenvolver as suas consequências": "O marxismo é, no essencial, essa ideia de que a história tem um sentido, isto é, que a história é inteligível e é orientada, que vai em direcção ao poder do proletariado que é capaz, como factor essencial da produção, de ultrapassar as contradições do capitalismo e de organizar a apropriação humana da natureza, como classe universal, de ultrapassar os antagonismos sociais e nacionais e o conflito do homem com o homem. Ser marxista é pensar que as questões económicas e as questões culturais ou humanas são uma só questão e que o proletariado, tal como a história o fez, detém a solução desse único problema. Para falar uma linguagem moderna, é pensar que a história é uma Gestalt, no sentido que os autores alemães dão a essa palavra, um processo total em movimento para um estado de equilíbrio, a sociedade sem classes, que não pode ser atingida sem esforço e sem a acção dos homens, mas que se manifesta no seio das crises presentes como solução dessas crises, como poder do homem sobre a natureza e reconciliação do homem com o homem" (Merleau-Ponty). Ora, dado a história ser essencialmente luta, luta pelo reconhecimento (Hegel) e luta de classes (Marx), a revolução do humanismo socialista (E. Fromm) protagonizada pelas classes humilhadas e ofendidas "assume e dirige uma violência que a sociedade burguesa tolera no desemprego e na guerra e disfarça sob o nome de fatalidade". As revoluções não derramam mais sangue do que os impérios e a exploração hipercapitalista e, por isso, entre as diversas violências, a violência revolucionária deve ser preferida pelo facto de ser o futuro do humanismo realizado: ao contrário da violência retrógrada, a violência revolucionária tem um sentido, aquele que se supera no futuro humano. No horizonte mais vasto do sentido da história e da luta pela reconciliação universal do homem com o homem e do homem com a natureza, a morte, apesar da sua dureza psicológica, não constitui um problema humano, como defendem as "filosofias burguesas" da existência (G. Lukács, A. Heller, K. Kosic, A. Schaff, G. Petrovic, M. Markovic, S. Stojanovic): a problematicidade da morte é superada na e pela luta a favor da construção de uma sociedade mais justa, uma sociedade que ultrapasse as condições sociais que tornam, nas actuais circunstâncias de alienação e de exploração hipercapitalista, a morte problemática para os mortais (M. Verret).
Para F. Engels, a morte do indivíduo é índice da mortalidade da espécie, isto é, a mortalidade microscópica é um reflexo localizado de uma mortalidade macroscópica que constitui a atmosfera em que se movem e respiram todos os seres vivos. A morte individual deve ser situada no horizonte da "morte total". A filosofia de Marx move-se no horizonte da finitude radical do ser humano e do próprio cosmos. A perspectiva de Engels encontra eco nos Manuscritos de 1844 do Jovem-Marx: "A morte parece ser uma dura vitória do género sobre o indivíduo e contradizer a unidade de ambos; mas o indivíduo determinado é apenas um ser genérico determinado e, enquanto tal, mortal". A recusa de toda a transcendência religiosa implica necessariamente uma interpretação da morte: a problematicidade pessoal da morte está ligada ao actual estado de alienação, mas, quando esse estado da sociedade for substancialmente alterado, a morte perderá o seu sentido negativo. Numa sociedade reconciliada, os indivíduos poderão morrer em paz depois de terem vivido e desfrutado de todas as possibilidades de uma existência humana profunda e sem alienações, incluindo a crença na imortalidade da alma ou da pessoa. O marxismo minimiza, de algum modo, a morte. Ao nível biológico, a morte é vista como um facto fisiológico incontornável: depois de terem cumprido as suas funções e missões, os indivíduos mais velhos e mais gastos devem ser substituídos por novos seres dotados de energia e de dinamismo. E, ao nível humano, dado o homem ser o "conjunto das relações sociais" (Marx), a morte individual deixa de ser morte alienada quando se morre a lutar contra toda a alienação social e económica (morte heróica versus morte trágica), sem alimentar a esperança no paraíso ou na imortalidade pessoal. Lutar por um futuro melhor é a tarefa prioritária do homem (G. Mury).
Garaudy destacou o valor educativo da morte: dado burlar toda a propriedade privada, todos os bens e todas as desigualdades sociais, nivelando todos os mortais, e mostrar a insuficiência do amor em circuito fechado entre dois seres humanos, a morte ensina-nos, respectivamente, que a verdadeira dimensão do homem não reside no ter, possuir e consumir vorazmente, mas sim no ser (1), e que devemos ser receptivos à fraternidade universal (2), a única que sobrevive à morte do indivíduo. O homem deve perpetuar-se na humanidade futura, contribuindo para a realização de uma sociedade liberta da opressão e da miséria, onde cada indivíduo possa ser verdadeiramente homem. Somente realizando "feitos imortais" no sentido da construção de uma sociedade livre e justa pode o homem naturalmente mortal atingir o seu próprio tipo de imortalidade. Entre Marx e Heidegger, H. Arendt opta claramente pela perspectiva do primeiro quando afirma que a questão política fundamental não é a mortalidade, mas sim a natalidade, exorcizando, ao mesmo tempo, a relevância da vida como valor supremo. Em virtude da acção estar intimamente relacionada com a condição humana da natalidade, a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico, é a da natalidade e não a de mortalidade: "o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir" (Arendt). Na sua meditação sobre a dimensão pessoal do homem doente e moribundo, J. Moltmann (teólogo) conclui que a vida e a mera sobrevivência, a saúde e a capacidade funcional, não constituem o sentido da vida: a mera vida biológica deve estar ao serviço da humanidade do homem e a saúde, ao serviço do sentido. A medicina não deve, na sua luta contra a doença e a morte prematura, reprimir os sofrimentos e os padecimentos humanos, a arte de morrer e a aflição humana: o sentido da humanidade do homem só pode ser descoberto numa existência vivida plenamente com todos estes padecimentos. O sofrimento e a punição ajudam o homem a crescer de modo saudável e responsável: a própria ideia de uma existência não-repressiva exige a erotização de toda a personalidade e a libertação das sexualidades polimórficas, mas não a abolição dos padecimentos e das aflições humanas. A libertação irrestrita dos instintos reproduz a estrutura repressiva da sociedade estabelecida, sem conduzir a uma existência autêntica; pelo contrário, conduz, como podemos verificar diariamente, "a uma sociedade de maníacos sexuais" (Marcuse) e de agressividade destrutiva.
No entanto, Marx e Engels podem ser lidos à luz de outra chave hermenêutica: Se a finitude do homem singular reflecte e antecipa a finitude do humano, isto é, da humanidade e do mundo humanizado pelo homem, a tarefa de humanizar a natureza e de naturalizar o homem como meta da história e sentido da vida activa humana (Marx) torna-se questionável, sendo constantemente confrontada com a angústia da aproximação do fim (Marcuse): o triunfo da matéria opaca e viscosa sobre a racionalidade dialéctica, mediante a absorção dos restos mortais humanos e a sua incorporação na cadeia trófica. A aventura humana parece estar irremediavelmente condenada ao fracasso: o logos é sempre vencido pela força da matéria. H. Marcuse reconheceu claramente a "morte natural" ou a "necessidade suprema" como emblema da existência humana: a mortalidade inevitável dos homens reside, como viu H. Arendt, no facto da vida individual, dotada de uma história vital identificável desde o nascimento até à morte, provir da vida biológica. O curso rectílineo do movimento da vida individual intercepta o movimento circular da vida biológica: a mortalidade é, portanto, "mover-se ao longo de uma linha recta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico" (Arendt). Na luta entre Eros e o instinto de morte (metapsicologia freudiana), o fluxo do tempo é, segundo Marcuse, o maior aliado natural da sociedade repressiva na manutenção da Lei e da Ordem: "O facto brutal da morte nega completamente a realidade de uma existência não-repressiva" e, neste aspecto, "a morte é a negatividade final do tempo". A previsão do "fim inevitável", presente a cada instante da vida individual, introduz um elemento repressivo nas relações libidinais, tornando o próprio prazer doloroso e forçando o homem à prática metódica da resignação. Esta frustração primária na estrutura instintiva do homem alimenta todas as outras frustrações e, na sua efectividade social repressiva, relega a liberdade para os domínios de uma "perpétua utopia": "o fluxo do tempo ajuda os homens a esquecer o que foi e o que pode ser", isto é, "fá-los esquecer o melhor passado e o melhor futuro".
Como disse Adorno numa carta dirigida a Walter Benjamin: a reificação é esquecimento. Valendo-se de Hegel, Nietzsche e Marx, Marcuse explicita a concepção adorniana da reificação, encarando a capacidade de esquecer como a faculdade mental que sustenta a submissão e a renúncia e que, ao mesmo tempo, perdoa o que não deveria ser perdoado numa situação de prevalecimento da justiça e da liberdade, sarando e cicatrizando as feridas que contêm e reproduzem o veneno, sem no entanto derrotar as forças que as causam. Para Marcuse, bem como para Benjamin, somente a recordação investida nos seus direitos pode ser o "veículo da libertação". Como tarefa nobre do pensamento, a memória deve ser liberta dos deveres, da má-consciência, da culpa e do pecado, convertendo-se em recordação do seu conteúdo reprimido: a recuperação do temps perdu (Proust), o tempo da gratificação e da plena realização, da felicidade e da liberdade. Deste modo, Eros penetra na consciência e, movido pela recordação, "protesta contra a ordem da renúncia", derrotando "o tempo num mundo dominado pelo tempo". O temps retrouvé resgata a alegria passada e propicia a sua duração: "O tempo perde o seu poder quando a recordação redime o passado". Porém, esta derrota artística do tempo deve ser traduzida em acção histórica: a luta contra o tempo deve ser luta contra a dominação e a corrupção. A aliança entre o tempo e a ordem estabelecida deve ser dissolvida, de modo a impossibilitar que a infelicidade social organizada se apoie sobre a infelicidade privada natural e que a morte seja usada como um instrumento de repressão.
De acordo com Marcuse, a hipótese do instinto de morte possibilita lutar pela "preservação do tempo no tempo", isto é, paralisar o tempo e conquistar a morte. O recurso a esta hipótese para resolver, no plano da acção histórica, o problema da morte dolorosa é, de certo modo, paradoxal. O organismo desenvolve-se sob a acção de dois instintos básicos: os instintos de vida que tendem para a criação e a composição da substância da vida em unidades cada vez maiores, e o instinto de morte que luta pela regressão ao estado isento de necessidades e de dor anterior ao nascimento, impelindo para a destruição da vida e para o regresso à matéria inorgânica. Dotado de uma estrutural pulsional antagónica, o organismo encontra-se num ambiente hostil à satisfação imediata dos impulsos da vida: a luta de Eros pela vida sob o princípio do prazer é constantemente frustrada pelo mundo ambiente que procura modificar os instintos, desviando-os das suas finalidades originais. Os instintos de vida são subjugados pelos instintos de morte e a satisfação é recalcada, adiada e substituída. Às três forças básicas da dinâmica psíquica (Eros, instinto de morte e mundo exterior) correspondem os três princípios fundamentais que determinam, segundo Freud, a estrutura psíquica: o princípio do prazer, o princípio do Nirvana e o princípio da realidade. O princípio do prazer exige a satisfação ilimitada dos impulsos de vida, o princípio do Nirvana impele para a regressão ao estado indolor pré-natal e o princípio da realidade refere-se à totalidade das modificações dos instintos logradas pelo mundo exterior. Por detrás desta tríade, opera a luta entre Eros e Tanatos, os quais partilham uma natureza conservadora comum que define a própria vida. Operando segundo o princípio do Nirvana, o instinto da morte tende para um estado de gratificação constante, isto é, para um estado sem carências e sem tensões e, neste sentido, aproxima-se de Eros: ambos anseiam pela neutralização e pela eternização do prazer, resistindo contra a perda de equilíbrio e o aparecimento de tensões. A tendência do impulso de morte para a ausência de tensão implica, segundo Marcuse, a redução gradual das suas manifestações destrutivas. À medida que o impulso de morte se aproxima desse estado, o conflito entre a vida e a morte torna-se cada vez mais reduzido, até que a vida se aproxima do estado de gratificação. A convergência do princípio do prazer e do princípio do Nirvana alcançada nesse estado de gratificação reforça Eros, libertando-o da sobre-repressão e levando-o a absorver o objectivo destrutivo de Tanatos. O retrocesso do sofrimento e da carência permite reconciliar o princípio do Nirvana e o princípio da realidade: os instintos procuram e alcançam a sua realização numa ordem não-repressiva, na qual a regressão ao estado indolor pré-natal pode ser neutralizada pela desejabilidade do estado de vida atingido e os instintos podem repousar num "presente realizado na sua plenitude". Apesar de continuar a ser um "facto" ou uma "necessidade suprema", a morte deixará de ser, na nova ordem não-repressiva (novo princípio de realidade), uma finalidade dos instintos.
Deste modo, embora de modo não tão radical quanto E. Bloch, Marcuse distancia-se claramente das teologias e das filosofias que celebram a morte como uma categoria existencial. A conversão perversa de um "facto biológico" numa essência ontológica é denunciada como uma traição da promessa de utopia e, portanto, como uma capitulação do pensamento filosófico diante da culpa da humanidade. Fiel à teoria de Marx, a filosofia negativa de Marcuse reage ao facto da morte com a Grande Recusa: a recusa de Orfeu, o libertador. Em vez de ser um instrumento de repressão, a morte pode tornar-se um "símbolo de liberdade", no sentido da "necessidade de morte" não refutar a "possibilidade de libertação final". A distinção entre "sucumbir à doença" e "morrer de uma morte natural depois de uma vida plenamente realizada" permite a Marcuse usar o morrer em agonia e dor como arma política da luta pela libertação da opressão, da corrupção e da exploração: "Não os que morrem, mas os que morrem antes de querer e dever morrer, os que morrem em agonia e dor, são a grande acusação lavrada contra a civilização repressiva". Tal como a usa Marcuse, a noção de morte natural não refere uma morte que sobrevém em seres humanos medicamente vigiados, sãos e de idade avançada, a morte medicalizada e hospitalar, cuja história é a história da medicalização da luta contra a morte. Marcuse sabe que o "acordo profissional" a propósito da morte e da doença é expressão do instinto de morte e da sua utilidade social numa ordem repressiva: a morte clínica é, nesta sociedade promotora da abdicação e da submissão, manifestação da profunda ligação entre o instinto de morte e o sentimento de culpa. A sociedade estabelecida e os seus poderes vigentes têm profundas afinidades com a morte: a noção de morte como "símbolo de escravidão e de derrota" reconduz, de certo modo, ao carácter necrófilo, tal como foi tematizado por E. Fromm. No sentido caracteriológico, a necrofilia é usada para descrever "a apaixonante atracção por tudo o que é morto, pútrido, doentio, a paixão de transformar o que é vivo em algo sem vida e de destruir pelo prazer de destruir, o interesse exclusivo em tudo o que seja puramente mecânico, enfim a paixão de despedaçar estruturas vivas". O tráfico de cadáveres, de órgãos e de seres humanos, bem como a "doação involuntária" dos corpos e dos órgãos e a estetização da morte, é a manifestação mais visível da sociedade necrófila, a qual prolonga criminosamente a vida dos ricos à custa do assassinato planeado dos pobres e da apropriação ilícita dos seus cadáveres. Em Marcuse, a morte natural é sinónimo de suicídio (não-depressivo) e de eutanásia. Tal como as outras necessidades, a morte pode tornar-se racional e indolor: "Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que eles amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte, num momento da sua própria escolha". Marcuse é muito menos radical do que Benjamin e Bloch, os quais pretendem resgatar e redimir todos os sofrimentos passados: o advento do reino da liberdade não redime aqueles que morreram em dor. A sua recordação e a culpa acumulada devem levar-nos a lutar contra a actual opressão e corrupção. (CONTINUA com o título "Morte e Sentido da Vida 2". Foi publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa