sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Walter Benjamin: Filosofia da História

«O único modo que ainda resta à filosofia de se responsabilizar perante o desespero seria tentar ver as coisas como aparecem do ponto de vista da redenção. O conhecimento não tem outra luz, excepto a que brilha sobre o mundo a partir da redenção: tudo o mais se esgota na reconstrução e não passa de elemento técnico. Há que estabelecer perspectivas em que o mundo surja deslocado, alienado, em que se mostrem as suas fissuras e fracturas, tal como indigente e deformado aparecerá um dia à luz da redenção. Situar-se em tais perspectivas sem arbitrariedade e violência, a partir do contacto com os objectos, só é dado ao pensamento». (Theodor W. Adorno)

«A teologia significa aqui a consciência de que o mundo é um fenómeno, de que não é a verdade absoluta nem o último. A teologia é (...) a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra. (A teologia é a) expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente». (Max Horkheimer)

Em 1940, Benjamin ditou, pouco tempo antes de morrer, à sua irmã Dora, o último texto que concluiu em vida: dezoito teses numeradas e mais duas acrescentadas como apêndice sobre a filosofia da história, com o título Über den Begriff der Geschichte. Estas teses foram concebidas como uma espécie de introdução metodológica à obra em que estava a trabalhar e que nunca chegou a concluir, O Livro das Passagens. Michael Löwy chamou a atenção para "a qualidade subversiva única" destas teses que faz delas "um dos documentos mais radicais, inovadores e visionários do pensamento revolucionário desde as Teses sobre Feuerbach de Marx". Porém, o carácter revolucionário destas teses não reside tanto na dialéctica entre o teológico e o político tout court, aquilo a que Löwy chama abusivamente o "messianismo histórico", mas sobretudo na nova concepção da história e da temporalidade que emerge dessa dialéctica e que tem por alvo a crítica de um certo "materialismo histórico" impregnado pela excessiva e tranquila confiança nas vantagens do desenvolvimento tecnológico, como se este só por si mesmo conduzisse a humanidade à emancipação. Para os social-democratas e os "comunistas", bem como para os "liberais", a emancipação estava assegurada pelo progresso que fazia a humanidade avançar como um todo, no seio de um tempo vazio e homogéneo, em direcção a uma infinita perfectibilidade do género homo, conquistada paulatinamente através da "exploração e destruição da natureza": "Desde o início o vício secreto da social-democracia, o conformismo, não afecta apenas a sua táctica política, mas também as suas perspectivas económicas. Nada foi mais corruptor para o movimento operário alemão que a convicção de nadar no sentido da corrente. Ele considerou o desenvolvimento técnico como o sentido da corrente, o sentido em que ele pensava estar a nadar. A partir daí bastava dar um passo mais para imaginar que o trabalho industrial apresentava uma conquista política" (Tese XI).

Na 11ª Tese sobre Feuerbach, Marx escreve: "Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie zu verändern". E, curiosamente na tese com a mesma numeração, Benjamin mostra que a tarefa de transformação do mundo levada a cabo pelo social-democracia e pelo "comunismo" estalinista não só traia o verdadeiro pensamento de Marx, sendo homologável à ideologia burguesa do iluminismo, como também conduzia às catástrofes da modernidade, tais como as duas Guerras Mundiais, Auschwitz e Hiroshima, as guerras imperialistas, a destruição do meio ambiente ou a ameaça de uma guerra nuclear, as quais não são meros "acidentes de percurso" ou "estados de excepção", mas decorrem do próprio progresso e das suas ilusões: a modernidade é catástrofe ou, em hebraico, Shoah. Uma tal concepção da história "só é capaz de considerar os progressos no domínio sobre a natureza, não as regressões da sociedade", prefigurando assim "já os traços dessa tecnocracia" que Benjamin reencontra no fascismo e nós na sociedade metabolicamente reduzida. A transformação do mundo implica, portanto, um novo conceito, isto é, um novo rumo político: a interrupção da história, a Unterbrechung messiânica ou a paralisação (Stillstand) historiográfica.

1. Mito do Progresso, Erros da Social-Democracia Europeia. A 13ª Tese sobre a Filosofia da História clarifica a crítica que Benjamin dirige à social-democracia, acusada de trair "a sua própria causa" (Tese 10), na figura dos seus políticos derrotados pelo fascismo e ligados ao "mito do progresso", confiantes "na «massa» que lhe servia de «base»" e sujeitos "a um aparelho incontornável": "Na sua teoria, e mais ainda na sua prática, a social-democracia determinou-se como uma concepção do progresso" que, longe de se relacionar com a realidade, se apresenta com uma pretensão dogmática. Nesta perspectiva social-democrata, o progresso era encarado sob três aspectos: em primeiro lugar, era o progresso da própria humanidade e não apenas das suas aptidões e dos seus conhecimentos; em segundo lugar, era "um progresso ilimitado" que corresponde ao carácter infinitamente aperfeiçoável da humanidade; e, em terceiro lugar, o progresso "era considerado (como um processo) essencialmente contínuo", automático e seguindo uma linha recta ou uma espiral. O facto de todos os políticos social-democratas, "comunistas" ou liberais, estarem convictos de que «a História estava do seu lado» revela até que ponto estavam comprometidos com a concepção iluminista do progresso, centrada exclusivamente na promoção tecnocrática dos progressos no domínio sobre a natureza, sem ter em consideração as regressões da sociedade e da própria humanidade que emergiam como resultado das suas práticas económicas. Como escreve Horkheimer: "Se as ontologias essencializam indirectamente as forças da natureza por meio de conceitos objectivados e, assim, favorecem a dominação da natureza, a doutrina do progresso essencializa directamente o ideal da dominação da natureza e, finalmente, deriva, ela própria, numa mitologia estática e derivada". A popularidade da teoria da evolução por selecção natural no seio de certos sectores da social-democracia justifica-se pelo facto de Darwin ter procurado mostrar que a selecção natural faz com que "as qualidades materiais e corporais" progridem para "a perfeição", o elemento moralista que Darwin foi buscar à ideologia económica (C. Lewontin). O "vício secreto" da social-democracia" é efectivamente o "conformismo", ou, em linguagem darwiniana, o adaptacionismo, em nome do qual a mente do engenheiro, isto é, a mente do industrial em forma tecnológica, transforma gradualmente "os homens num conjunto de instrumentos sem objectivos próprios".

A filosofia de Benjamin é movida por uma poderosa força política revolucionária. No texto sobre Moscovo, Benjamin afirma que, "mais rapidamente do que Moscovo propriamente dita, é Berlim que aprendemos a ver de Moscovo". E o que aprendemos a ver? Benjamin responde apontando para o fenómeno da corrupção: "Sob o capitalismo, o poder e o dinheiro tornaram-se grandezas comensuráveis. Uma determinada quantia em dinheiro é convertível numa determinada forma de poder, e é possível calcular o valor de troca de qualquer poder. Em termos gerais, é assim que as coisas se passam. Neste contexto só se pode falar de corrupção quando este procedimento é aplicado de forma demasiado expedita, como que em curto-circuito. No âmbito do dispositivo seguro da imprensa, da administração e dos trusts, ele dispõe do seu próprio sistema de distribuição, adentro de cujos limites se mantém legal. O Estado soviético pôs fim a esta comunicação entre dinheiro e poder. O partido reserva para si o poder, o dinheiro entrega-o aos homens da NEP (Nova Política Económica)". Com esta descrição, Benjamin está a denunciar o aburguesamento, alcançado através do mecanismo de corrupção em curto-circuito, dos dirigentes partidários da social-democracia que, no texto sobre Kracauer, são nomeados como "empregados" ou "colarinhos-brancos" (Angestellte), os assalariados bem remunerados da classe média e das classes dirigentes, cuja "adaptação ao lado humanamente indigno da ordem actual está mais desenvolvida do que no operário". Os dirigentes da social-democracia corromperam-se e traíram a causa da libertação e da emancipação: em vez de implementarem a mudança social qualitativa, criaram as condições necessárias para integrar social e politicamente as forças de oposição, promovendo aquilo a que Marcuse chamará mais tarde uma "sociedade sem oposição" assente num falso consenso.

2. Revisão da Noção de Progresso. A ideia de progresso é mais do que um idolum saeculi, no sentido de substituir a fé na providência como a "mão invisível" (Adam Smith) que orienta o desenvolvimento da humanidade (Hegel), porque, como mostrou John Bury, foi usada para dirigir e impulsionar toda a civilização ocidental desde as suas origens mais remotas que Max Weber descobre já no Antigo Testamento e sobretudo no Novo Testamento até aos nossos dias. "A ideia de progresso humano é, como diz Bury, uma teoria que contém uma síntese do passado e uma profecia do futuro", fundada numa interpretação da história que visualiza o homem a caminhar lentamente, pedetentim progredientes, numa direcção definida e desejável, de resto uma concepção inseparável da noção de que o tempo flui de modo linear, como uma flecha em direcção sempre ascendente, desde um passado primitivo ou bárbaro remoto até à realização de uma sociedade perfeita e feliz no futuro. Se saber é pecar ou, pelo menos, lançar as sementes do pecado, como já ensinava a narração javista da Criação ou o mito da Caixa de Pandora, então a história do ocidente pode ser vista como o desejo irreprimível consumado de conhecer o conteúdo da caixa que, por ordem divina, não devia ser aberta. O resultado da violação da proibição divina foi, como mostrou Robert Nisbet, a libertação de diversos males que têm afligido a humanidade, a nossa teodiceia, mas também a fomentação da criatividade nos mais diversos domínios da cultura e da sociedade humanas e a estimulação da esperança e da confiança da humanidade e dos indivíduos na possibilidade de mudar e melhorar o mundo. Benjamin acentua mais os aspectos negativos do progresso do que os seus aspectos positivos, enquanto Ernst Bloch faz precisamente o contrário, embora ambos sonhem com um mundo melhor na perspectiva mais profunda da restitutio ou da apokatastasis: o primeiro a partir do resgate do "paraíso perdido", a "origem matinal" ou "início imaculado", o segundo, sonhando o futuro utópico da humanidade que se abriga no interior quente e ígneo da "matéria proto-utópica". Esta aparente aporia é «superada» pelo facto de o marxismo não ser uma filosofia tecnofóbica e permanecer uma filosofia aberta, isto é, não-concluída: Benjamin reconhece n' O Livro das Passagens que o conceito de progresso teve uma função crítica na sua origem, estreitamente ligada ao nascimento da ciência moderna, que desaparece a partir do século XIX quando a burguesia conquista posições de poder, donde resulta a tarefa urgente de submeter um tal conceito a uma crítica imanente levada a efeito através do materialismo histórico, cujo "conceito fundamental não é o progresso mas a actualização". O progresso científico e técnico, cujos efeitos na arte entusiasmaram Benjamin, parece ser mais ou menos óbvio, mas o progresso da humanidade, mais precisamente a ideia da perfectibilidade moral e social do homem, não é de todo evidente e, a avaliar pelas catástrofes recentes da modernidade, parece indicar fenómenos preocupantes de regressão da sociedade e da cultura que, nos nossos tempos, se manifestam na escalada de violência verdadeiramente patológica dos tempos metabolicamente reduzidos. Por isso, no seu texto Parque Central, a propósito de Baudelaire, Benjamin escreve que "o spleen é o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência", sentimento de melancolia que contrasta com a esperança militante de Ernst Bloch.

«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)

«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)

«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrolam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)

Apesar de ser hoje em dia uma ideia desacreditada, devido em grande parte à crítica demolidora que lhe foi dirigida por Tocqueville, Burckhardt, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Max Weber, Ernest Renan, Max Nordan, Georges Sorel, Henry & Brooks Adams, John Bury, W.R. Inge, Austin Freeman, Oswald Spengler, Frederick Teggart, T.S. Eliot, James Joyce, Ezra Pound, Yeats e Aldous Huxley, o progresso é uma ideia enraizada na tradição ocidental que implica o avanço de toda a humanidade num processo gradual, por etapas, que se iniciou num passado primitivo remoto e que se dirige inexoravelmente para um futuro distante e glorioso, de acordo com o plano inicial traçado pela Providência ou pela necessidade histórica. Esta ideia é inseparável de outra ideia: a de um tempo vazio e homogéneo que flui de modo linear, automático, contínuo e infinito. Presente implicitamente no teorema do estoicismo médio sobre o Estado Universal, a ideia de progresso atinge o seu esplendor protótipo na obra de Santo Agostinho, onde a história se converte imediatamente em história da salvação, e consuma-se no conceito kantiano de uma História Universal ou cosmopolita.

Progresso, tempo homogéneo e vazio e História Universal são conceitos que se articulam numa mesma concepção da história: a marcha triunfal dos vencedores e dos opressores. Ciente disso, Benjamin é peremptório: "A ideia de um progresso da espécie humana através da história é inseparável da sua marcha através de um tempo homogéneo e vazio. A crítica à ideia de uma tal marcha é o fundamento necessário da que é dirigida contra a ideia do progresso em geral" (Tese XIII). Num só e mesmo movimento, Benjamin elabora uma nova concepção do tempo e da história, na perspectiva dos vencidos, que opõe à ideologia do progresso que glorifica a história dos vencedores.

3. A Nova Concepção de Tempo. Desde muito cedo, Benjamin procurou superar a concepção homogénea, vazia, puramente quantitativa do tempo. Assim, nos seus estudos sobre o drama barroco (Trauerspiel) e sobre a tragédia, opõe o tempo da história ao tempo mecânico e vazio dos relógios que se manifesta na regularidade das transformações espaciais, e, no seu texto sobre o romantismo alemão, opõe a concepção qualitativa do tempo, o infinito temporal qualitativo (qualitative zeitliche Unendlichkeit) do messianismo romântico, para o qual a vida da humanidade é um processo de realização (Erfüllung), à concepção vazia e infinita do tempo, o infinito temporal vazio (leeren Unendlichkeit der Zeit), das ideologias do progresso (Ideologie des Fortschritts). Já Georg Lukács tinha recusado a quantificação abstracta do tempo, com o recurso a citações d'O Capital onde Marx denunciava o trabalho maquinal do operário reduzido a "carcaça do tempo": "O tempo perde assim o seu carácter qualitativo, mutável, fluído: fixa-se num continuum exactamente delimitado, quantitativamente mensurável, cheio de «coisas» quantitativamente mensuráveis (os «trabalhos realizados» pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objectivados, separados com precisão do conjunto da personalidade humana), num espaço". Na Tese XV, Benjamin opõe o tempo dos calendários, "monumentos de uma consciência da história cujo menor traço parece ter desaparecido na Europa desde há cem anos", ao tempo dos relógios: "Fazer coincidir o reconhecimento de uma qualidade com a medição de uma quantidade foi obra dos calendários, que, com os dias feriados, como que deixam livres os espaços da rememoração". E, ainda a propósito de Baudelaire, Benjamin tira uma ilação: "Os sinos, que outrora acompanhavam os dias festivos, foram, como os homens, expulsos do calendário. Parecem-se com as pobres almas que andam de um lado para o outro, mas não têm história".

Benjamin elabora, portanto, uma concepção qualitativa do tempo, fundada sobre a descontinuidade do tempo histórico, que lhe permite levar a cabo a crítica do progresso e da sua concepção meramente quantitativa do devir da história como um continuum de aperfeiçoamento constante e de modernização benéfica, cujo motor reside no progresso científico e técnico. Benjamin rompe com esta filosofia do progresso e defende uma concepção qualitativa do tempo histórico. Em vez de destacar o futuro, Benjamin procura actualizar o passado, inspirando-se directamente na concepção messiânica judaica da temporalidade: "É sabido que era proibido aos Judeus predizer o futuro. Pelo contrário, a Tora e a oração ensinam-se na comemoração. Para eles a comemoração desencantava o futuro ao qual sucumbiam os que procuram instrução junto dos adivinhos. Mas nem por isso o futuro se tornava um tempo homogéneo e vazio para os judeus. Porque nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia passar o Messias" (Tese XVIII, B). Uns versos de T.S. Eliot ajudam a compreender a necessidade de rever o conceito filosófico de progresso: "Parece, à medida que envelhecemos,/ Que o passado tem outro padrão e deixa de ser uma simples/ sequência -/ Ou sequer um desenvolvimento: este último em parte uma/ falácia/ encorajada por superficiais noções de evolução, / Que se torna, no espírito popular, uma forma de repúdio do/ passado". No nosso tempo, as pessoas repudiam ou renegam o passado, que, como sabemos, constitui o alicerce sagrado sobre o qual cresce a civilização ocidental com autenticidade, criatividade e liberdade. Sem um passado representado pelos ritos, tradições e memória, não pode haver raízes, e sem raízes os mortais estão condenados a permanecer isolados no tempo, como almas que já não têm história. Para as classes oprimidas, o tempo não é homogéneo como o dos relógios, mas qualitativamente diferenciado e descontínuo, e também não é vazio, mas preenchido com o tempo actual ou o agora (Jetztzeit), que faz explodir e interromper a continuidade da história, introduzindo "estilhaços messiânicos" (Tese XVIII, A). Só esta concepção do tempo permite rasgar o campo da história às classes oprimidas e abri-lo activa e politicamente à novidade utópica irredutível à sequência ou desenvolvimento mecânico, repetitivo e quantitativo.

4. A Nova Concepção de História. A Tese VII ajuda a compreender a concepção de história proposta por Benjamin. "Reviver uma dada época", esquecendo "tudo aquilo que se passou em seguida", tal como recomendavam Fustel de Coulanges ou Ranke ao historiador, constitui o método historiográfico derrotado pelo materialismo histórico: o método da intropatia. O investigador historicista entra em intropatia com o vencedor: "Ora todo aquele que domina é sempre herdeiro dos vencedores. A intropatia com o vencedor beneficia sempre, por consequência, aqueles que dominam. (...) Todos aqueles que até agora conseguiram a vitória participaram desse cortejo triunfal em que os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje. A este cortejo triunfal pertencem também os despojos como sempre foi uso". A esta perspectiva da "história dos vencedores", comprometida com a ideologia do progresso, Benjamin opõe a perspectiva de uma "história dos vencidos", inspirada na gravura do anjo de Paul Klee (Tese IX). O materialismo histórico tem como missão "fazer explodir a continuidade da história", cujo tempo flui sempre igual a si mesmo, nivelando tudo: "A grande Revolução introduziu um novo calendário. (...) Na tarde do primeiro dia de combate (da revolução de Julho), verificou-se que em vários locais de Paris, independentemente e no mesmo momento, se tinha disparado contra os relógios" (Tese XV). A paragem ou interrupção do tempo rompe a continuidade da história, ao mesmo tempo que permite emergir uma outra história, a do "salto dialéctico, a revolução tal qual a concebeu Marx" (Tese XIV). Isto significa que a interrupção funciona em Benjamin a dois níveis: ao nível teórico, a tarefa do historiador marxista é produzir rupturas eficazes na continuidade da história, e, ao nível prático, cabe às classes oprimidas levar a cabo a revolução. Não distinguir entre estes dois níveis conduz à apatia e ao conformismo: a rememoração é insuficiente para realizar a grande interrupção histórica, a "obra da libertação" (Tese XII).

Para Benjamin, compete à "revolução do proletariado" ou das classes vencidas da História operar a interrupção messiânica do curso do mundo. Alimentada e estimulada pelas forças da rememoração, esta revolução será capaz de restaurar a experiência perdida, abolir o inferno e a fantasmagoria da mercadoria, quebrar e rasgar o círculo maléfico do sempre-igual e libertar a humanidade da angústia mítica e os indivíduos da condição de autómatos. Isto significa que, na perspectiva de Benjamin, a revolução não é uma continuação do progresso ou mesmo um aprofundamento da revolução francesa, mas a interrupção destruidora e redentora da história dos vencedores: a actualização da Erfahrung histórica perdida. Na sua obra O Livro das Passagens, Benjamin afirma que "a concepção autêntica do tempo histórico repousa completamente sobre a imagem da redenção (Erlösung)" e, na Tese II, é dito que "a imagem de felicidade é inseparável da de redenção". Isto significa que a revolução é simultaneamente utopia do futuro e redenção messiânica. Embora voltada para a recuperação e salvação do passado, a busca pela experiência perdida orienta-se na direcção do futuro messiânico: "O Messias não vem apenas como redentor; ele vem como vencedor do anticristo" (Tese III).

Para Benjamin, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento cronológico prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la (Tese VII). Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origínes), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch), aquilo a que a mística judaica chama "Tikkoun".

Ora, o messianismo que orienta a filosofia da história de Benjamin, o seu elemento teológico, não representa uma espécie de compensação ou de atitude passiva e resignada que aguarda a vinda do Messias, mas visa primordialmente intensificar a luta política emancipadora. Sem o elemento teológico, o materialismo histórico não pode conduzir a revolução/redenção (Tese I), isto é, forçar a chegada do "Reino da Liberdade" (Marx). Hegel e Marx estavam cientes da necessidade de submeter a visão dialéctica do progresso a uma revisão crítica: a noção social-democrata de que o progresso envolvia a própria humanidade e não apenas as suas habilidades e competências cognitivas mostrou ser falsa, a partir do momento em que a cronologia linear da história produziu o fascismo e o totalitarismo e aprisionou os homens nos campos de concentração. Em última análise, liberto desse momento falso, o progresso está presente na noção benjaminiana de que a felicidade das gerações vindouras implica inevitavelmente a ideia de redenção. Ou dito de modo enfático: o progresso é redenção, conceito perfeitamente vislumbrado por Guerra Junqueiro, ou, pelo menos, o progresso pode ser associado à luta constante que visa paralisar e impedir o triunfo do mal radical. (Publicado aqui.)

J Francisco Saraiva de Sousa