sábado, 16 de agosto de 2008

Ernst Bloch: Antropologia e Ontologia

«O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis». (Ernst Bloch)
Coube a Ernst Bloch elaborar não só um "princípio esperança" para o homem, mas também uma ontologia da possibilidade para o mundo. A consciência antecipante é uma forma de ruptura com o nosso tempo metabolicamente reduzido. A consciência humana é socialmente utópica quando não se refere a um estado social passado ou presente, mas quando considera uma vida social futura ainda-não-existente. As utopias são antecipações de um estado futuro, desejado, que, por comparação com a situação de miséria presente, oferece uma vida melhor, mais livre e mais humana. Bloch distingue dois tipos de utopias: as utopias abstractas, cujo projecto é completamente desligado da realidade presente e das possibilidades oferecidas pelo princípio de realidade, para construir em espírito os castelos de areia de um "outro mundo", e as utopias concretas, cujo espírito ultrapassa a realidade presente e considera o futuro, relacionando esse projecto com as contradições e os sofrimentos do presente, a fim de os vencer. Estas últimas utopias não jogam com possibilidades irreais, mas com possibilidades dialécticas de uma realidade objectiva, procurando novas alternativas sociais na esfera do que é realmente possível e motivando assim mudanças concretas. Só desejando o que parece impossível é que se atinge realmente as fronteiras do possível. A transformação qualitativa do mundo deve manter a visão utópica de um outro mundo, de um outro princípio de realidade. Sem a utopia não é possível mudar o mundo.
1. Antropologia e Fenomenologia. A esperança tem sido classificada entre os afectos e as disposições anímicas do homem e descrita exclusivamente do ponto de vista psicológico. Espinoza associava a esperança com o medo e via nestas duas disposições a impotência da nossa alma. A esperança representava o ópio dos homens que desejavam evadir-se da realidade. Contudo, Dostoiévski entendeu a esperança de um modo diferente: A formiga conhece a estrutura do seu formigueiro e a abelha, da sua colmeia, enquanto o homem desconhece a sua própria estrutura. Isto significa que o homem não é um ser acabado, como a formiga ou a abelha: o seu ser não lhe foi dado, mas recomendado como uma tarefa a realizar. O homem permanece oculto a si mesmo e, por isso, procura sempre o seu verdadeiro ser. O homem é, para si mesmo, uma questão aberta, um enigma e frequentemente um espectro. É forçado a dar a si mesmo a resposta da sua humanidade, sem poder continuar e permanecer na história com nenhuma dessas respostas. O homem é, na sua mera existência factual, uma experiência aberta.
Esperar não significa ter todas as esperanças que se desejam, mas estar aberto, em atitude expectante. Desespero não significa sepultar certas esperanças ou destruir certas ilusões, mas desistir da sua própria latência, o que ainda não é mas deveria ser, e, portanto, renunciar a si mesmo. Estar expectante significa estar em estado de disponibilidade, não estar vinculado nem ao passado nem a sonhos dourados, mas consentir a experiência aberta que somos. Neste sentido, a esperança não é algo que uns possuem e outros não possuem, mas uma situação fundamental ou simplesmente o mais importante elemento constitutivo da existência humana. O homem espera enquanto vive e vice-versa, vive enquanto espera.
Os animais têm o seu próprio meio vital específico da sua classe, o qual lhes pertence intrinsecamente como a parte exterior dos seus instintos. O homem é o único ser que não está sujeito a nenhum meio ambiente determinado. É um ser aberto ao mundo, que tem necessidade e capacidade para construir em qualquer local o seu mundo cultural, o seu próprio meio vital. Porém, existe um elemento e um meio ambiente sem os quais o homem não pode viver de modo humano: é a esperança que constitui o seu hábito de vida. Neste contexto, a esperança designa uma peculiaridade do ser especificamente humano e o meio, elemento ou fluído, exigido pela existência especificamente humana. Afirmar que o homem é um ser escatológico é superar todas as antropologias que tratam o homem como ser da palavra, ser político ou ser instrumental, sem levar em conta a sua abertura ao tempo. Na esperança, o homem não conhece experiências definitivas, mas capta novos obstáculos, impulsos e ocasiões para evidenciar a sua vitalidade. É um ser descobridor, um conquistador, um criador de símbolos e de obras, um jogador. É um ser que se olha a si mesmo por cima do homem e que projecta o seu olhar para o futuro para além do presente: a sua manifestação vital é um compromisso com o futuro para o qual caminha.
Como não está essencialmente determinado, o homem revela sempre um novo rosto através das suas culturas e da sua longa história. Porém, é possível assinalar a direcção em que o homem se move. A essência do homem consiste mais numa orientação e perspectiva do que num traço definível. Na esperança, o homem reconhece cada situação em que se encontra como uma estação no caminho que tem de superar e deixar para trás de si, afim de realizar o seu ser humano. Esta direcção domina o espírito e o corpo do homem, porque, nesta orientação, o homem sofre e actua como um todo. Quando resiste a esta orientação da sua conduta total, o homem adoece e o seu comportamento torna-se retrógrado: os homens morrem na e para a vida, como se se movessem numa rua sem saída, quais seres autofóbicos. Este desespero que tomou conta do homem metabolicamente reduzido induz a delinquência e a criminalidade. A morte por desespero e a criminalidade por falta de esperança revelam que o homem, como ser temporal, está orientado para o futuro e que a esta orientação corresponde a esperança. Ao contrário do animal, o homem pode errar e equivocar-se de maneira total e absoluta. A sua esperança representa o risco da sua vida e, neste jogo arriscado da vida, o homem pode conquistar-se ou perder-se: a sua pessoa está sempre em jogo, portanto,
em risco.
O esclarecimento entendido como desencantamento do mundo (Weber) procurou explicar racionalmente a relação entre o homem e a fantasia e a relação fantástica do homem com o mundo, recorrendo ao caminho que parte dos mitos e das utopias e termina na ciência ou, mais precisamente, na glorificação ideológica do que é: a realidade estabelecida. A fantasia foi considerada como um processo anímico primitivo, que prescinde do princípio de realidade. O resultado desta desvalorização e concomitante abandono da fantasia e do seu poder para formular desejos sensatos foi a hipertrofia do entendimento técnico. Hoje vivemos na situação de realizar muitas coisas que não queremos, sem saber o que realmente queremos. Ernst Bloch recuperou o poder da fantasia utópica, com o objectivo de mostrar que aquilo que é não pode ser verdadeiro. Se "a necessidade (privação) ensina a pensar", como diz Bloch, então a abundância metabolicamente reduzida produz regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais, portanto, o homem metabolicamente reduzido de hoje que conserva a sua vida sem procurar a auto-expansão.
A concepção blochiana do homem começa no limiar do fundo vital, onde entre o ser e o ter se abre o mundo: "a necessidade ensina a pensar". Na escala composta pelo impulso, ainda obscuro e amorfo, o afã, o impulso já sentido, a ânsia, o impulso ainda sem meta, o instinto, o impulso que busca já o específico, o desejo, o impulso passivo mas com uma prefiguração, e o querer, que inclui uma actividade diferenciada, é o instinto o primeiro nível da dinâmica teleológica. A esperança é o ponto onde a consciência e o ser se encaixam, isto é, onde o elemento subjectivo e o elemento objectivo do processo do mundo convergem. No homem, os impulsos atravessam a temporalidade da vida anímica e mostram quase sempre um pré-conhecimento do fim. Por isso, em vez de instintos, Bloch prefere falar de tendências, cujos elementos são: um défice, uma meta e uma antecipação ou ainda-não, formando um arco que se estende do presente para o futuro. A tendência básica e primária não é o instinto sexual, como em Freud, mas a fome, a tendência a suum esse conservare, isto é, a tendência que impulsiona simplesmente a conservar-se vivo, da qual procedem os instintos imediatos e os movimentos do sentimento ou emoções. A esperança é algo biologicamente constitutivo da existência: a privação converte a fome em docta fames, em fome informada e instruída, inclusive esclarecida. O si mesmo é levado para além da conservação da sua vida: explode e a autoconservação transforma-se em auto-expansão. Da fome economicamente esclarecida nasce a decisão alimentada pelos sonhos diurnos de suprimir todas as circunstâncias em que o homem é um ser oprimido, ofendido e humilhado.
2. Fenomenologia da Consciência Antecipante. Ao analisar o mundo onírico de certos pacientes, Freud estudou aquilo a que Bloch chamou o já-não-consciente: a fantasia produtiva do homem ocupa-se das vivências que não pôde dominar e que, por isso, reprimiu. Nos sonhos nocturnos, aflora à consciência o passado reprimido e os impulsos reprimidos buscam a sua libertação nos sonhos. Esta fantasia produtiva que actua sobre o passado insuperado manifesta-se primordialmente nos sonhos nocturnos dos homens. Porém, como mostrou Bloch, não são só os pacientes que sonham: as pessoas saudáveis e felizes também sonham e estes sonhos não são desencadeados somente por vivências desagradáveis mas também por vivências felizes. No sonhar acordado, desperto, revela-se um ainda-não-consciente, isto é, uma antecipação do futuro que ainda-não-existe. Esta fantasia que se manifesta no limiar do presente que se conhece é uma fantasia fascinada pela novidade possível. É uma imaginação poética que não pretende modificar o passado insuportável, mas que penetra no futuro ainda-não-realizado, para o antecipar mediante formas simbólicas e ideais. Os sonhos diurnos têm a sua origem num défice e tendem a superá-lo. São sonhos de uma vida melhor que resultam do jogo da fantasia criadora: o sonhador encontra-se quase sempre no centro dos acontecimentos. Bloch analisa a sua estrutura sub specie utopica, isto é, a partir da fantasia criadora voltada para o futuro: os sonhos diurnos são voluntários (1), o eu do sonhador é conservado, embora não tenha nada a ver com os paraísos artificiais de Baudelaire (2), visam uma vida melhor e, devido à sua amplitude, podem abarcar outros eus com os quais procura melhorar a vida da comunidade (3), e tendem a ir até ao fim, sem satisfação fictícia, abstinência ou resignação (4). O sonho nocturno nutre-se da regressão, enquanto o sonho diurno prefigura e antecipa um outro princípio de realidade e, por isso, projecta-se no futuro. Os sonhos acordados têm um carácter intencional e projectam-se, quando visam um futuro autêntico, para o não-cumprido, o ainda-não-consciente, de modo a descrever um arco utópico que vai da fantasia antecipativa até ao futuro entrevisto. Como determinação fundamental do sonho diurno, o ainda-não-consciente constitui a única pré-consciência do futuro. O sonho diurno encerra na sua latência uma tendência para a claridade e, quando o presságio quer ser razoável, começa a florescer a esperança esclarecida, a docta spes. A partir do momento em que entra em jogo a razão, a esperança como afecto expectativo do sonhar para a frente deixa de ser mero estado de ânimo e converte-se em actuação consciente-sapiente: a função utópica como forma interna do acto da esperança abandona o passado e os seus conteúdos apoiam-se nas futuras possibilidades do ser de outro modo, ou seja, do ser melhor. A forma interna histórica da esperança é a cultura humana considerada no seu horizonte utópico-concreto. A simbiose de ambas constitui a docta spes, a atitude adoptada pela filosofia num mundo ainda-não-concluído.
3. Ontologia. A antropologia da esperança exige necessariamente uma ontologia do mundo aberto ao futuro e à história: a esperança humana encontra-se fundada nas infinitas possibilidades abertas do processo cósmico. Sem estas possibilidades reais, a esperança seria um absurdo, porque, segundo Kierkegaard, a esperança é precisamente a "paixão pelo possível". Bloch valoriza muito mais o conceito de possibilidade do que o conceito de realidade: a realidade mais não é do que a realização da possibilidade. Por isso, Bloch elaborou uma ontologia do que ainda-não-é mas que é possível ou susceptível de vir a ser. Ao sentido de realidade do homem corresponde logicamente o sentido de possibilidade. O mundo em que vivemos e esperamos não é um edifício acabado e concluído, mas uma combinação de realidades e de possibilidades, isto é, um processo aberto. Não é um sistema de estruturas eternamente repetíveis e reproduzíveis, mas uma história aberta, onde acontecem e podem ser realizadas coisas novas. O mundo é, segundo a expressão feliz de Bloch, um laboratorium possibilis salutis: não é um céu da perfeição nem um inferno do aniquilamento, mas simplesmente uma terra imperfeita, cujas possibilidades estão abertas ao bem e ao mal. Isto significa que o futuro do mundo pode ser ou a morte do universo e o nada ou a pátria da identidade.
Com exclusão das possibilidades irreais, existem diversos tipos de possibilidades: a possibilidade formal, na qual se baseia o optimismo ingénuo das utopias abstractas; a possibilidade epistemológica, que, apesar de constituir o fundamento da liberdade da razão humana, é demasiado subjectiva; a possibilidade objectiva que reside na raiz das próprias coisas; e a possibilidade dialéctica, que permite captar a relação entre utopia e «matéria», porque, "sem matéria não existe um suporte para a antecipação" e sem antecipação "não há horizonte para a matéria". Esta última categoria de possibilidade permite superar a oposição entre uma utopia que reflecte o movimento da realidade (o possível objecto) e uma utopia que é fonte da liberdade humana. A categoria de possibilidade dialéctica rompe com uma ontologia acabada do ser já existente e avança com uma ontologia do ser ainda-não-existente: a utopia exige a insatisfação permanente com o que existe, a exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que procura explicitar as possibilidades concretas das quais a realidade está grávida. Constitui o eixo da perfectibilidade da mais absoluta de todas as utopias sociais: a naturalização do homem e a humanização da natureza (Marx).
Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo. Graças à possibilidade real e dialéctica, os sonhos utópicos, que são diurnos, acordados e contagiosos, não degeneram em ilusões ocas, mas ajudam a conservar o optimismo militante. Este optimismo está fundado sobre a utopia concreta, que o liberta do quietismo e lhe atribui o seu próprio lugar à frente do processo do mundo, onde se produz o novum. A produção da frente e do novum ao longo da história humana desemboca numa nova realidade que capta uma terceira categoria: ultimum. O ultimum deverá ser a pátria da identidade. Assim, a utopia concreta constitui "o ponto de intersecção entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho seria mera utopia abstracta e a vida pura trivialidade". A utopia concreta faz da esperança subjectiva uma esperança comunitária, uma docta spes, uma esperança esclarecida, que critica o mundo existente, com a sua capacidade de se erguer por cima do imediato e do fáctico e inventar novos possíveis a partir da "obscuridade do momento vivido". A utopia concreta visa eliminar a miséria humana e o direito natural visa suprimir a humilhação do homem. Segundo Marx, o imperativo categórico é "subverter todas as condições em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado e desvalorizado». (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 3 de agosto de 2008

Adorno e Fetichização da Música

«A liquidação do indivíduo é a autêntica assinatura da nova condição musical». (Theodor W. Adorno)
A maior parte da música contemporânea exibe características de um "bem de consumo", dominado mais pelo valor de troca do que pelo valor de uso. A dicotomia real não é entre "música séria" e "música ligeira", mas entre "música comercial" e "música não orientada para o mercado". Um dos resultados desta mercadorização da música e da sua massificação é a desintegração actual da educação: os consumidores da arte são incapazes de considerar e de conhecer a distinção entre a "arte superior autónoma" e a "arte comercial ligeira". Em Portugal, como nos restantes países do mundo globalizado, a "música comercial" integra diversos tipos musicais, entre os quais a "música popular" ou mesmo a "música erudita", no grande sistema da "indústria cultural" atemporal cuja missão é impedir "a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões". Este sistema da indústria cultural constitui o âmago da cultura capitalista alienada tardia, na qual os homens veneram cega e obedientemente os seus próprios produtos como objectos reificados. Destituída da sua transcendência e da sua negatividade, a cultura torna-se "cultura afirmativa": Cultura afirmativa é um conceito forjado por Marcuse para designar a "cultura da época burguesa que, no decurso do seu próprio desenvolvimento, levou à segregação entre a civilização e o mundo espiritual e mental que é considerado como superior à civilização. A sua característica decisiva é a afirmação de um mundo eternamente melhor, universalmente obrigatório e mais valioso, que deve ser incondicionalmente afirmado: um mundo essencialmente distinto do mundo concreto da luta quotidiana pela existência, e, não obstante, realizável interiormente por cada indivíduo para si mesmo, sem nenhuma transformação do estado de facto".
Adorno "localizou" o "pecado original" da separação entre o sujeito e o objecto e da dominação do objecto pelo sujeito na divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual: o pensamento abstracto aparece como uma função da abstracção do mercado (Alfred Sohn-Rethel). Por isso, mostrou-se hostil ao marxismo vulgar que atribuía a primazia à produção, condenando-se a repetir a dominação do objecto pelo sujeito, bem como ao uso do conceito de reificação feito por Lukács. Na filosofia de Adorno, a reificação não é equivalente à objectivação alienada da subjectividade, isto é, à redução de um processo fluído a uma "coisa morta". Na "dialéctica negativa", a reificação significa a supressão repressiva da heterogeneidade, do não-idêntico, da diferença, em nome da identidade: o domínio do mundo natural exterior levou ao controle da natureza interior do homem e, em última análise, ao controle do mundo social.
A "sociedade administrada" transformou o "progresso" na sua antítese: a barbárie mais brutal, em função da utilização das modernas técnicas de controle e de vigilância, e a indústria cultural na sua função mistificadora manipulou de tal modo a consciência dos consumidores que conseguiu vencer a sua resistência e, portanto, anular e neutralizar o "pensamento crítico", promovendo a adaptação em detrimento da mudança qualitativa e o conformismo. "Toda a reificação é um esquecimento": esta frase de Adorno não significa que a superação da reificação decorra da recuperação anamnética de um sentido original, a reunificação de um sujeito com a sua objectivação perdida. A reversão do esquecimento não é equivalente a um re-lembrar de algo desmembrado, a recuperação de uma totalidade perfeita ou plenitude original, como sucede em Hegel e Marcuse: significa, sim, a restauração da diferença e da não-identidade no seu lugar adequado, na constelação não-hierárquica das forças subjectivas e objectivas, enfaticamente cognominada "paz".
A fetichização da música não é somente uma categoria psicológica, mas também e fundamentalmente uma categoria económica, enraizada no carácter fetichista da mercadoria, produzida por sociedade dominada pelo princípio de troca: "Marx define o carácter fetichista da mercadoria como a veneração da coisa auto-produzida e que como valor de troca se aliena dos produtores e dos consumidores, dos "seres humanos". Este destaque do papel do fetichismo na indústria cultural revela, pois, a dívida de Adorno para com a obra de Marx. A música foi invadida pelo "ethos capitalista" e, por isso, a sua fetichização é tendencialmente total: a produção e a recepção musicais são dominadas pelos valores de troca da comercialização contemporânea, a qual serve a música como um objecto culinário de fácil digestão. O entendimento estrutural do conjunto musical, no seu desenvolvimento temporal, é sacrificado nos altares de diversos estratagemas usados para vender as obras como mercadorias a vastos auditórios que aprenderam a desejá-las. Adorno analisou o carácter fetichista na música em dois níveis: o da produção e o da recepção musical.
1. Ao nível da produção, o fetichismo musical reflecte-se no predomínio excessivo dos "arranjos" e das "execuções" sobre as "verdadeiras composições", na introdução frequente de "efeitos coloridos" impressionistas, na estandardização das obras musicais, a estandardização do êxito, e na ressurreição nostálgica de estilos musicais passados de moda pelo seu valor evocativo.
2. Ao nível da recepção musical, o fetichismo musical manifesta-se na ênfase dada às "estrelas", tanto na música clássica (Toscanini, por exemplo) como na música popular, no culto do instrumento, como no caso dos violinos Amati e Stradivarius, na necessidade de ir ver o concerto "correcto", em vez de ir escutar a própria música, na audição atomizada dos clímax românticos ou de melodias separadas dos seus contextos construtivos, e no êxtase vazio do entusiasta do Jazz que escuta pelo simples desejo de escutar.
A experiência adquirida por Adorno no "Princeton Radio Research Project" mostrou-lhe que os questionários e as entrevistas não eram suficientes para verificar a fetichização da música, através de técnicas científicas normais, porque as opiniões dos próprios ouvintes não mereciam confiança. Os ouvintes eram incapazes de superar a conformidade das normas culturais, e a sua competência para escutar revelou-se degenerada. Tinham regredido, não fisiologicamente, mas psicologicamente: o sentido da regressão da audição não se dirigia para uma música epocalmente anterior, mas para um "estado infantil" em que o ouvinte era dócil e passivo e temia tudo o que fosse "novo" ou "não-familiar". Este estado de infantilização já tinha sido descrito por Erich Fromm como um "sentimento de impotência". Tal como as crianças que só pedem alimentos que lhes agradaram no passado, o ouvinte cujo ouvido tinha regredido só era capaz de reagir perante uma repetição daquilo que tinha escutado anteriormente. Isto significa que o ouvinte revela uma crescente incapacidade de concentração em qualquer coisa, excepto nos aspectos banais e truncados de uma composição. Na música popular, os ouvintes são programados para aceitar uma música que rejeita todo o desenvolvimento coerente e que exibe, em vez disso, uma temporalidade espacializada do "sempre-igual", a qual ajuda a reforçar subtilmente o status quo como destino inescapável. E, como as crianças que reagem perante as cores brilhantes, o ouvinte sentia-se fascinado pela utilização de recursos coloridos que lhe davam a impressão de excitação e de individualidade. Quando a consciência capitula perante o poder superior da "coisa anunciada" pela publicidade, o auditório acaba por comprar "paz espiritual", fazendo literalmente coisa sua as mercadorias impostas. Ao chamar-se a isto "gosto" individual, nega-se claramente a dependência passiva envolvida na identificação do ouvinte com o que lhe foi "servido" pela indústria musical: o que se prepara e se desfruta musicalmente é uma dieta infantil de sons encurtados, cujo sinal seguro é a recusa arrogantemente ignorante de tudo o que não seja familiar, em prol da repetição interminável das resoluções açucaradas mais cómodas e fluídas.
O comportamento do consumidor de cultura combina os traços masoquistas e, ao mesmo tempo, uma indignação sádica intensa: "O masoquismo da audição define-se não apenas como o auto-sacrifício e o pseudo-prazer pela identificação com o poder. Subjaz-lhe a experiência de que a segurança do abrigo protector nas condições de dominação é meramente provisória, é apenas uma folga, e que no fim tudo há-de acabar por ruir. Mesmo no auto-sacrifício, uma pessoa não se sente bem: ao fruir, sente que trai os possíveis e, ao mesmo tempo, é traído pelo existente. A audição regressiva está sempre pronta a degenerar em raiva". Isto significa que a abnegação masoquista dos ouvintes despolitizados e passivos pode converter-se em raiva destrutiva dirigida para o exterior. A sexualidade frustrada dos "jitterbugs", isto é, dos "percevejos que executam movimentos reflexos, espectadores do seu próprio êxtase", que, no caso de serem mulheres, costumam "desmaiar (ou gritar) quando ouvem a voz de um crooner ou de um cantor de jazz", exprime esta agressividade reprimida. Contudo, esta cólera reprimida parece ser insuficiente para dar um sentido construtivo à "arte popular", embora Walter Benjamin acreditasse no seu "potencial revolucionário".
Anexo: Veja o site da "
Casa da Música" da cidade do Porto. A autoria do edifício é do prestigiado arquitecto e urbanista holandês Rem Koolhaas, e foi concebido para servir um projecto cultural inovador do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Ernst Bloch: Utopia Arquitectónica

Ernst Bloch analisou as utopias arquitectónicas em chave utópica: os edifícios e as cidades que figuram um mundo melhor. A grande arquitectura visa antecipadamente a "edificação do reino da liberdade", através da "humanização da natureza": a morada, a terra natal, a casa, o lar, enfim a pátria, edificadas antecipadamente que revelam, na sua execução na arquitectura, os sonhos de um mundo melhor. Para Bloch, a arquitectura é a "arte do espaço" e o espaço arquitectónico é visto como "a representação de um espaço imaginário no próprio seio do espaço empírico". Embora a arquitectura moderna estivesse inicialmente orientada para o exterior, para o sol e o espaço aberto, as suas concretizações funcionais e urbanísticas traíram a sua ambição utópica, bem como o espírito das utopias arquitectónicas do Egipto e do Gótico, tornando a sua síntese impossível.
No período entre as duas Guerras Mundiais, esta abertura ao exterior e ao sol foi dominada e suplantada pela construção de conjuntos transformados em "edifícios blindados", que ressurgem nos nossos dias sob a forma de condomínios fechados, como se a vida estivesse em perigo e necessitasse de segurança autoritária. Esta necessidade de segurança reflecte actualmente o abismo das desigualdades sociais. Os condomínios fechados reflectem as actuais relações sociais de produção capitalistas que dilaceram a sociedade em dois grupos sociais: o reduzido número dos muito ricos e o exército dos muito pobres. Os ricos auto-excluem-se refugiando-se em condomínios fechados de luxo e apropriando-se privadamente da natureza embelezada, mas o que fazem deveras é concentrar a riqueza e produzir exclusão social. O edifício fechado em si mesmo revela, como viu Fredric Jameson, a face oculta da exclusão social plasmada na pedra e no cimento das cidades modernas tardias.
A era das massas e a sua arquitectura funcional produziram uma "máquina desumanizada" e a correspondente casa privada de aura, a imagem de uma cidade sem vida, absolutamente estranha ao homem e aceite como tal, feita de feixes de luz ou de outras imitações de uma geometria projectiva. Os arquitectos que visavam a reforma social, em especial Le Corbusier, Walter Gropius e, em menor grau, Frank Lloyd Wright, foram precipitados e muito pouco críticos: em vez de edificar a casa da comunidade dos homens, criaram uma arquitectura que reflecte o carácter glacial do mundo da automação, da sociedade de consumo, da sua alienação, dos seus homens divididos pelo trabalho e pelos lazeres programados, e da sua técnica abstracta. A "sociedade" visada pela arquitectura moderna converteu-se actualmente numa megacidade em que os mais ricos se apropriam do espaço público e o vedam de modo a impedir a livre circulação: cidades de riqueza amuralhada emergem num tecido urbano decadente, pouco seguro e miserável. A democracia tornou-se cleptocracia, o urbanismo fala a linguagem do poder instituído e dos grandes interesses económicos, e, na dialéctica do poder e da liberdade, a grande derrotada é a liberdade de movimento.
A síntese entre as utopias arquitectónicas do Egipto, a do cristal da morte, e do Gótico, a da árvore da vida, é impossível. Bloch não defende uma arquitectura de epígono, mas uma terceira via, o renascimento da arquitectura, capaz de oferecer o espectáculo directo de uma "Arcádia construída": o edifício giratório e a noção de "casa dinâmica" lançada pelo arquitecto David Fisher prometem um novo renascimento arquitectónico. O marxismo sintetiza a liberdade do sujeito (More) e a edificação da ordem (Campanella) numa relação produtiva na qual emerge a "edificação do reino da liberdade". Embora a utopia arquitectónica seja o começo e o fim da utopia geográfica, a tendência não é a da "integração no cosmos", mas a da "humanização da natureza". A missão da grande arquitectura é dispor ou arranjar a natureza inorgânica de modo a torná-la "parente do espírito" (Hegel), sob a forma de um mundo exterior regido pela arte, isto é, de um mundo melhor, traduzido na proporção e no ornamento. Os grandes edifícios são, à sua maneira, a antecipação da utopia de um espaço feito para o homem, um espaço tal que é projectado na utopia. Aqui reside o núcleo da estética da arquitectura: o edifício é o espaço feito para o homem, absolutamente aberto ao futuro do homem novo. A utopia do espaço arquitectónico é, na sua própria qualidade, uma "utopia da terra": os corpos e as casas estão integrados na totalidade terrestre e infiltram-se com a sua própria utopia na utopia geográfica: "O Eldorado-Éden engloba, com diz Bloch, todas as outras utopias do fundamento de um mundo melhor". (Veja mais aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa