sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Ernst Bloch: Utopia Arquitectónica

Ernst Bloch analisou as utopias arquitectónicas em chave utópica: os edifícios e as cidades que figuram um mundo melhor. A grande arquitectura visa antecipadamente a "edificação do reino da liberdade", através da "humanização da natureza": a morada, a terra natal, a casa, o lar, enfim a pátria, edificadas antecipadamente que revelam, na sua execução na arquitectura, os sonhos de um mundo melhor. Para Bloch, a arquitectura é a "arte do espaço" e o espaço arquitectónico é visto como "a representação de um espaço imaginário no próprio seio do espaço empírico". Embora a arquitectura moderna estivesse inicialmente orientada para o exterior, para o sol e o espaço aberto, as suas concretizações funcionais e urbanísticas traíram a sua ambição utópica, bem como o espírito das utopias arquitectónicas do Egipto e do Gótico, tornando a sua síntese impossível.
No período entre as duas Guerras Mundiais, esta abertura ao exterior e ao sol foi dominada e suplantada pela construção de conjuntos transformados em "edifícios blindados", que ressurgem nos nossos dias sob a forma de condomínios fechados, como se a vida estivesse em perigo e necessitasse de segurança autoritária. Esta necessidade de segurança reflecte actualmente o abismo das desigualdades sociais. Os condomínios fechados reflectem as actuais relações sociais de produção capitalistas que dilaceram a sociedade em dois grupos sociais: o reduzido número dos muito ricos e o exército dos muito pobres. Os ricos auto-excluem-se refugiando-se em condomínios fechados de luxo e apropriando-se privadamente da natureza embelezada, mas o que fazem deveras é concentrar a riqueza e produzir exclusão social. O edifício fechado em si mesmo revela, como viu Fredric Jameson, a face oculta da exclusão social plasmada na pedra e no cimento das cidades modernas tardias.
A era das massas e a sua arquitectura funcional produziram uma "máquina desumanizada" e a correspondente casa privada de aura, a imagem de uma cidade sem vida, absolutamente estranha ao homem e aceite como tal, feita de feixes de luz ou de outras imitações de uma geometria projectiva. Os arquitectos que visavam a reforma social, em especial Le Corbusier, Walter Gropius e, em menor grau, Frank Lloyd Wright, foram precipitados e muito pouco críticos: em vez de edificar a casa da comunidade dos homens, criaram uma arquitectura que reflecte o carácter glacial do mundo da automação, da sociedade de consumo, da sua alienação, dos seus homens divididos pelo trabalho e pelos lazeres programados, e da sua técnica abstracta. A "sociedade" visada pela arquitectura moderna converteu-se actualmente numa megacidade em que os mais ricos se apropriam do espaço público e o vedam de modo a impedir a livre circulação: cidades de riqueza amuralhada emergem num tecido urbano decadente, pouco seguro e miserável. A democracia tornou-se cleptocracia, o urbanismo fala a linguagem do poder instituído e dos grandes interesses económicos, e, na dialéctica do poder e da liberdade, a grande derrotada é a liberdade de movimento.
A síntese entre as utopias arquitectónicas do Egipto, a do cristal da morte, e do Gótico, a da árvore da vida, é impossível. Bloch não defende uma arquitectura de epígono, mas uma terceira via, o renascimento da arquitectura, capaz de oferecer o espectáculo directo de uma "Arcádia construída": o edifício giratório e a noção de "casa dinâmica" lançada pelo arquitecto David Fisher prometem um novo renascimento arquitectónico. O marxismo sintetiza a liberdade do sujeito (More) e a edificação da ordem (Campanella) numa relação produtiva na qual emerge a "edificação do reino da liberdade". Embora a utopia arquitectónica seja o começo e o fim da utopia geográfica, a tendência não é a da "integração no cosmos", mas a da "humanização da natureza". A missão da grande arquitectura é dispor ou arranjar a natureza inorgânica de modo a torná-la "parente do espírito" (Hegel), sob a forma de um mundo exterior regido pela arte, isto é, de um mundo melhor, traduzido na proporção e no ornamento. Os grandes edifícios são, à sua maneira, a antecipação da utopia de um espaço feito para o homem, um espaço tal que é projectado na utopia. Aqui reside o núcleo da estética da arquitectura: o edifício é o espaço feito para o homem, absolutamente aberto ao futuro do homem novo. A utopia do espaço arquitectónico é, na sua própria qualidade, uma "utopia da terra": os corpos e as casas estão integrados na totalidade terrestre e infiltram-se com a sua própria utopia na utopia geográfica: "O Eldorado-Éden engloba, com diz Bloch, todas as outras utopias do fundamento de um mundo melhor". (Veja mais aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

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