domingo, 23 de setembro de 2007

Vidas Electrónicas

John A. Bargh & Katelyn Y.A. McKenna (2004) elaboraram uma teoria social da Internet que, ao contrário da perspectiva mais negativa de Mark Griffiths (2001) ou de Alvin Cooper et al. (1999), acentua os seus efeitos positivos sobre a vida social dos seus utilizadores, sobretudo daqueles cujas identidades são muito estigmatizadas, possibilitando-lhes revelar aspectos das suas vidas íntimas que encobrem na vida offline dos outros com quem convivem diariamente.

Para estas pessoas, a vida on-line é muito mais gratificante que a vida offline e, frequentemente, após terem revelado, no meio virtual, aspectos significativos dos seus «eus verdadeiros», tendem a integrá-los nas suas vidas reais.

Os portugueses, cujos comportamentos on-line estudo desde 2000, de um modo intensivo, não escapam à regra descoberta e, tal como os estrangeiros, usam frequentemente a Internet para revelar aspectos reais dos seus «eus reais» a outros que partilham desses mesmos aspectos e, deste modo, agirem em conformidade com as suas verdadeiras identidades.

Sherry Turkle (1997) interpretou esta tarefa de refazer as suas identidades no meio virtual, levando apenas em conta e sobrevalorizando a experiência dos MUDs (Multi-User Domains), como a emergência da oportunidade das pessoas expressarem múltiplas facetas da sua personalidade, muitas vezes inexploradas, de brincar com a sua identidade ou experimentar novas identidades, donde resulta que «a identidade de uma pessoa no computador é a soma da sua presença distribuída». «A prática vivida nas janelas é a dum eu descentrado que existe em muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo tempo», cabendo aos Muds «oferecerem-nos identidades paralelas, vidas paralelas». Aliando-se ao pós-modernismo, Turkle afirma mesmo que, nos mundos mediados pelo computador, «o eu é múltiplo, fluido e constituído em interacção com uma rede de máquinas».
Embora esta perspectiva capte as aspectos das identidades pós-modernas de muitos utilizadores da Internet, os nossos resultados não confirmam esta generalização. Com efeito, a nossa cyberpesquisa revelou que a maior parte dos utilizadores da Internet não perdeu a noção ou o senso que lhes permite distinguir entre realidade e fantasia e, neste aspecto, os portugueses tendem a exibir uma concepção bastante pragmática da Internet, visto que, com excepção de uns poucos que vivem a vida dentro do ecrã, preferem viver uma vida no ecrã, que encaram como uma nova arena que permite realizar as suas ficções que posteriormente são incorporadas no seu eu na vida quotidiana.

A comissão europeia diz que Portugal é o 3º país melhor classificado no ranking dos serviços electrónicos e, neste aspecto, cabe dizer que os homens utilizam mais a Internet do que as mulheres, cujos usos da Internet restringem-se a um mínimo de «aplicações». Este dado corrobora a nossa ideia de que os portugueses, mais os homens do que as mulheres, mais os jovens do que os mais velhos, integraram rápida e facilmente o computador e a Internet na sua vida quotidiana, sinal de que a Internet tem efeitos sobre a vida real e quotidiana das pessoas, quer ao nível das instituições públicas ou das empresas que melhoram assim a qualidade dos seus serviços e com menores custos e perdas desnecessárias de tempo, quer ao nível do entretenimento.
Se tentarmos clarificar melhor a distinção entre «vida no ecrã» e «vida dentro do ecrã», chegaremos à noção de que existem duas maneiras dos utilizadores se relacionarem com o computador e a Internet: uns usam estas novas tecnologias para enriquecer a sua vida real e o seu eu, enquanto outros se deixam aprisionar na rede, sacrificando a sua vida real às satisfações momentâneas obtidas dos usos compulsivos da Internet. Confrontamo-nos novamente com a concepção dual da Internet (a imagem de Jano): um lado positivo e claro, outro lado negativo e escuro, e a «escolha» de uma das vias em detrimento da outra depende muito do perfil psicológico do utilizador.
Já realizei um cyberestudo sobre os usos sexuais da Internet que foi editado neste blogue, numa versão incompleta, com o título geral «Gay Sex on the Internet», onde apresentei alguns conceitos fundamentais que orientam a nossa abordagem teórica da Internet. Neste momento, é suficiente destacar dois estilos de vida electrónica: uma vida electrónica autónoma e uma vida electrónica heterónoma. Estes conceitos serão posteriormente elaborados e trabalhados.


J Francisco Saraiva de Sousa

Arte Floral Litúrgica

A arte floral, ao serviço da liturgia, deverá traduzir o Mistério Pascal e manifestar a alegria da Ressurreição.
A celebração da Páscoa nunca se esgota, e esconde sempre a novidade da criação.
É na fragilidade que a força se revela.
Que melhor do que uma composição floral para traduzir este mistério?




Composição floral pascal. Nave de Haver 2006

Autoria: António Nabais

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Filosofia da Blogosfera: Uma BlogScience

Dentro de algumas horas, talvez já de madrugada, vou editar aqui, neste blogue, um texto sobre blogscience que será apresentada como um sector importante da cyberfilosofia.
Portanto, todos aqueles que lêem regularmente os meus blogues poderão encontrar nesse texto respostas ou, pelo menos, novas vias de pesquisa, que satisfaçam a sua curiosidade e indiferença em relação ao uso criativo e honesto da Internet.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

CyberAntropologia Filosófica

Edgar Morin tem razão, em termos conjunturais, quando afirmou que o desbloqueio da noção de vida torna possível o desbloqueio da noção de homem, o que significa, entre outras coisas, que a revelação biológica comanda a revolução científica que abre os domínios da antropologia às ciências biológicas, mas, estruturalmente falando, a sua análise peca por negligência da filosofia. Embora «louve» de modo ingénuo e apressado as tentativas de alguns filósofos, tais como Marx, Engels, Spencer ou mesmo Freud, para firmar a ciência do homem sobre uma base natural, Edgar Morin quando considera que a filosofia do homem sobrenatural foi uma das últimas resistências opostas à ciência do homem parece querer romper com toda e qualquer filosofia, como se esta tivesse os seus dias contados.
Este positivismo doentio de Morin não lhe permitiu ver e avaliar o enorme contributo da filosofia para o desbloqueio da noção de homem. Mais clarividente e muito mais inteligente do que Morin, o filósofo Plessner (1969), na sua obra Os Graus do Orgânico e o Homem, embora diga que a filosofia não deu nenhum contributo significativo para a antropologia, procura, sem sair da filosofia, indagar a partir de um ponto de vista biológico qual a estrutura fundamental de todo o ser orgânico. Segundo Plessner, o ser orgânico é uma crescente e gradual «centralização», bem como uma «posicionalidade própria». Chega-se assim a uma determinação do humano da qual a sua particularidade consiste numa potenciação muito específica dessas duas características do ser vivo.
A centralização e a posicionalidade atingem, no homem, a sua «peripécia», no sentido de que aquilo que em todos os sistemas puramente orgânicos é somente uma centralização imanente em correlação com um campo imediatamente circundante alcança no homem uma centralização que é, ao mesmo tempo, distância em relação às duas coisas. Assim, a «peripécia» adquire o carácter da reflexividade ou volta a si mesma, pela qual se tornam possíveis tanto a relação do homem consigo mesmo quanto a sua posse de um mundo objectivo. Culminando e aumentando continuamente o princípio da centralização, o homem caracteriza-se por uma centralização que se tornou uma concentração excêntrica. Esta faz do homem, no sentido objectivo, um ser «imperscrutável», o homo absconditus, o qual é para si mesmo «uma questão aberta». Sendo assim, o homem nunca se conhece nas suas últimas possibilidades mas somente nos actos e atitudes que se distinguem dele. Estes são, no entanto, determinados não só pela sua emancipação e liberdade fundamentais mas também pelas suas dependências em relação à natureza, à situação e aos vínculos históricos que o limitam exactamente na sua infinita soberania por eles simultaneamente pressuposta, traçando para a sua liberdade caminhos concretamente finitos.
A antropologia de Plessner, bem como a de A. Gehlen (1966) e de A. Portmann (1944, 1958), é uma teoria do homem a partir da apreensão da sua natureza («antropologia de baixo») e opõe-se, tal como a de Morin, à antropologia a partir da esfera espiritual do homem («antropologia de cima»). Mas, ao contrário da antropologia de Morin, a teoria do homem de Plessner não rompe com a filosofia, mas sim com algumas filosofias, mais precisamente as filosofias idealistas e espiritualistas do homem. Mais ainda: Plessner parece ter consciência de que não é possível uma ciência do homem que não seja simultaneamente filosófica e científica, o que abona a favor da nossa tese filosófica fundamental.
A breve referência que acabamos de fazer da antropologia filosófica de Plessner permite-nos trabalhar a diferença do nosso modelo antropológico sobre as teses defendidas por Edgar Morin, a partir de uma análise do seu modelo da organização. Descurada ingenuamente pelo filósofo Edgar Morin, a filosofia integrou, muito antes da biologia moderna, que é uma biologia não-cartesiana, o homem no universo. D. von Uslar (1977) verificou, num ensaio fulgurante e conciso, que, nos sistemas filosóficos modernos, o problema da natureza do homem está em relação com o problema do mundo e da natureza: quer dizer que os filósofos modernos pensam que o próprio ser do homem deve ser compreendido à luz do ser do mundo de que faz parte. Os três exemplos mais característicos em que o homem é visto como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo são os sistemas filosóficos de Spinoza, Leibniz e Schelling.

SPINOZA. O homem é compreendido por Espinosa como natureza. Desta imagem do homem resulta que, no sistema filosófico de Espinosa, a antropologia coincide com a teoria da natureza. Descartes designava por natureza uma parte ou um sector do ser que se podia contrapor ao espírito. Ora, para Espinosa a palavra natureza designa a realidade de tudo aquilo que existe. A totalidade do existente, pelo simples facto de existir, é vinculada à unidade infinita de tudo quanto existe. Esta unidade é a natureza. Se o homem é natureza, o seu ser é determinado pelo facto de constituir apenas uma parte infinitamente pequena da unidade natural. Mas a natureza não é somente totalidade e unidade de tudo quanto existe: ela é também a fonte do nascer para a própria realidade. Tudo o que existe, existe tão só em virtude da potência originante da natura naturans (natureza originante). Por conseguinte, a essência do homem é determinada pela sua participação nesta potência originante ou gerante. Como diz Espinosa (1960): «A potência do homem é‚ portanto, uma parte da potência infinita de Deus, ou seja, da Natureza» (IV, 4, p. 16). Assim, a potência com a qual um ser existente conserva a sua realidade é a potência infinita da natureza, enquanto esta se exprime neste ser individual. Consequentemente, o impulso do homem, no sentido de conservar-se no ser, constitui uma expressão da potência da Natureza. A essência do homem reside, por isso, num instinto que mais não é que a maneira pela qual se manifesta no homem a tendência de todo o ser para a realidade.
Espinosa concebeu como uma necessidade absoluta a força extraordinária com a qual a natureza gera para o ser tudo quanto existe. Ora, este factor originante ou gerante (a razão da realidade) é a própria natureza. A metafísica escolástica deu o nome Deus àquilo que é a razão de si mesmo e que possui a força de gerar a si mesmo. Ora, Espinosa deu o nome de Deus à natureza e fala mesmo da potência do ser contida na natureza divina (potentia divinae naturae). Deste modo, designa a natureza como aquilo que se gera a si mesmo. A distinção entre a natureza originante (natura naturans) e a natureza originada (natura naturata) corresponde à distinção entre o ser e o existente. Como o ser da natureza não tem uma razão fora de si mesmo, Espinosa diz que ele existe em virtude da sua própria força. Sendo assim, existe uma identidade entre a natura naturans e a natura naturata que, segundo Espinosa, exprime o próprio mistério do ser. Portanto, tudo o que existe, na medida em que existe, participa da necessidade com a qual a natura naturans implica a natura naturata.
No homem esta participação manifesta-se evidentemente na força cogente do impulso ou instinto. Este dirige-se para tudo o que favorece o ser do homem e evita tudo o que o contraria e coíbe. Como a força e o poder dos afectos reside no choque entre a natureza que está no homem e a natureza que está fora dele, eles mais não são que os efeitos originários que as coisas produzem no homem, na medida em que favorecem ou obstam o seu esforço de «ser». A tomada de consciência do impulso faz o homem desejar aquilo que mantém e favorece a sua existência. Assim o afecto original é para Espinosa a cupiditas (cupidez), que dirige o instinto do homem para o mundo. Como instinto aliado à consciência do mesmo, a cupidez é, na medida em que é determinada por uma afeição para o agir, a própria essência do homem.
As coisas que promovem ou favorecem este desejo original do homem despertam nele laetitia (alegria), enquanto as que o cerceiam ou abstaculam produzem nele tristitia (tristeza). Outras variantes desta tendência ou instinto são o amor e o ódio. Como o homem ama aquilo que lhe causa alegria e odeia aquilo que contraria a sua possibilidade de ser, Espinosa define o amor como alegria acompanhada da ideia de uma causa externa e o ódio como tristeza acompanhada também da ideia de uma causa extrínseca. A tendência ou instinto do homem choca constantemente com o mundo. Deste choque resulta um movimento flutuante da alma (fluctuatio animi) entre a alegria e a tristeza.
Para Espinosa a plenitude e a pluriformidade da vida afectiva do homem derivam dos elementos básicos descritos. Os afectos não são algo de exclusivamente interno, como um sentimento violento, mas a relação que o homem tem com o mundo. Alegria e tristeza, amor e ódio são, antropologicamente falando, experiências do ser. Mediante estas experiências o homem tem acesso, dentro de si mesmo, à natureza. Mas, ao mesmo tempo, a alegria e o ódio constituem a vibração ou sintonização do homem com o todo, que sente como uma modificação da natureza.
As modificações da vida afectiva representam assim variações do amor e do ódio. Estes são causados no homem pela pluriformidade das coisas com as quais ele entra em contacto. Espinosa apresenta uma teoria da libido que poder servir de fundamentação ontológica à teoria dos instintos de Freud. Mas a sua concepção da libido não é psicológica, mas sim ontológica. Considerada como um tipo especial de afecto, a libido é definida como cupidez e amor com vista à união do corpo. Como constitui um modo da natureza se manifestar no homem, a libido só pode ser dominada através da compreensão interna do conjunto da natureza durante a qual o homem entra numa sintonia tal com a totalidade que se sente carregado por ela. O caminho da cura leva-o a um aumento de alegria até chegar à beatitude ou felicidade (beatitudo). O homem desfruta desta beatitude, não porque domina a sua libido, mas porque, sendo capaz de dominar a libido, desfruta da felicidade de contemplar a si mesmo como natureza e, deste modo, contemplar a natureza na sua totalidade.

LEIBNIZ. A teoria do homem de Leibniz pode ser caracterizada por uma «perspectividade» multi-relacionada. A sua tese fundamental é a de que o homem é um espelho do mundo. O homem relaciona-se no que faz, pensa, representa ou percebe com o mundo. Mas o mundo revela-se a cada homem numa perspectiva diferente. Esta perspectiva resulta do facto da totalidade do ser se revelar a cada pessoa em função do lugar que ocupa no mundo. Pelo simples facto da sua percepção, cada pessoa é o ponto central de perspectiva do seu mundo: o que ela percepciona, percepciona-o em função do seu lugar no seio da realidade. O mundo que se apresenta está orientado para cada pessoa. Deste modo, cada um é uma representação do todo e a sua individualidade é caracterizada pelo seu ângulo específico de visão da totalidade. Embora cada indivíduo veja o mundo em função do lugar que ocupa no mundo, sabe que não é só ele que é o ponto de referência do seu mundo, visto que cada um dos outros indivíduos com quem vive também é ponto central de perspectiva do seu mundo. Por conseguinte, cada um dos outros aparece na nossa consciência como um espelho do universo.
Na experiência da sua própria realidade, cada um pode não só aceitar como evidente a realidade do mundo e da sua própria existência como tais, mas também perguntar-se porque razão existe algo, porque motivo não existe nada, e porque existe exactamente este mundo e não qualquer outro completamente distinto. Na verdade, não é evidente que exista algo. Poderia muito bem não existir nada. Não será um milagre incompreensível a existência do mundo e o facto de existirmos? Igualmente é de admirar que existam na realidade precisamente estas coisas, na sua peculiaridade inteiramente individual, quais se nos apresentam. Tudo poderia ser completamente diferente. Seriam possíveis um número infinito de outros mundos, de outras constelações de coisas. É uma característica peculiar do homem poder fazer tais perguntas. Por isso, a inquietação constante de Leibniz pelo problema da razão suficiente constitui o fundo antropológico propriamente dito do sistema leibniziano.
Como o homem existe como um espelho do mundo, e o mundo se revela onde existir um ser no qual possa assemelhar-se, é evidente que, para Leibniz, os problemas da natureza do mundo e da natureza do homem estão vinculados entre si. O mundo é tudo aquilo que realmente existe, existiu e existirá. É, pois, a totalidade e a unidade de tudo o que existe. Ora, esta totalidade manifesta-se, segundo Leibniz, no homem, ou melhor, espelha-se num ser, ao qual pode revelar-se e em cuja concepção o todo está, pois, representado. Todo o ser em cuja percepção o mundo se espelha é ele mesmo uma parte do mundo. Por isso, o mundo revela-se-lhe apenas através da perspectiva determinada pelo lugar específico que lhe cabe no todo. A verdadeira imagem do mundo só apareceria se ele mostrasse, não somente uma perspectiva, mas uma plenitude de perspectivas diferentes, as quais se completam num todo. Ora, a complementaridade recíproca dos diversos pontos de vista da consciência, os quais somente em conjunto representam o mundo como tal, constitui, segundo Leibniz, como que a vista na qual se representa o mundo da divindade.
Para Leibniz o mundo e a consciência, o sujeito e o objecto não se apresentam como elementos isolados, um frente ao outro. A consciência é de antemão determinada a partir do seu lugar específico no conjunto das coisas e, especialmente, a partir da sua relação com as perspectivas inteiramente diversas das outras pessoas e dos outros seres viventes. Assim a consciência e o espírito são apenas as formas mais elevadas da representação. Todo o ser vivente reflecte no seu ser o mundo. Mas nem todos os reflexos são conscientes: existem também, em todo e qualquer ser vivo, reflexos inconscientes e obscuros.
Todo o ser individual tem uma relação com o todo. Isto significa que cada ser, na sua existência, é um reflexo desse todo. Leibniz entende, portanto, o ser como representação. E esta sua ideia está associada à ideia de harmonia universal. O mundo é uno (ou unitário). Esta unidade só é possível porque as coisas se harmonizam entre si formando um todo em que as coisas estão conjuntamente com outras. O ser espiritual é apenas uma articulação desta relacionalidade em todo o ser. O ser existente é determinado pelo facto de representar o todo no lugar que ocupa dentro deste todo. O conceito de harmonia universal exprime, portanto, a unidade do ser que existe no todo. A consciência reflecte esta unidade numa perspectiva determinada mas só participa da harmonia do todo na sua relacionalidade com os outros reflexos possíveis do universo.
Por outro lado, o conceito de harmonia universalis permite a Leibniz responder à questão da razão suficiente: Por que razão existe exactamente este mundo, e não um outro qualquer? Por que motivo existem precisamente estas coisas, embora haja uma infinidade de outras possibilidades que têm o mesmo direito de existir na realidade? Com efeito, existe um enorme leque de mundos possíveis e imagináveis. Mas, dentre essas possibilidades, o mundo real ser aquele de cuja constelação resultar o maior grau de concretização de possibilidades. Ora, o mundo harmónico é precisamente aquele que é capaz de harmonizar entre si o maior número de possibilidades. Deste modo, a razão suficiente do mundo real reside na capacidade máxima de compaginar ou harmonizar possibilidades. Estas podem tornar-se e tornaram-se efectivamente reais nesta constelação. Assim o nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis.

SCHELLING. Na filosofia de Schelling, a natureza do homem também é determinada à luz da unidade e da totalidade do ser, mas a fonte destas já não consiste, como acontecia com Espinosa ou Leibniz, em aprofundar-se na natureza ou em contemplar o jogo infinito de reflexos das mónadas, mas sim no próprio eu. Com efeito, é no seu próprio eu que o homem faz a experiência original do ser e experimenta a identidade do fundamento e do fundamentado. No eu o absoluto manifesta-se ao homem. Deste modo, Schelling coloca o homem no ponto focal do problema do ser.
A unidade e a totalidade infinita do ser é absolutamente independente em si mesma, não podendo ser condicionada ou determinada por nada. Experienciamos este algo incondicionado em nós mesmos quando verificamos que tudo o que existe aparece-nos na consciência. É, portanto, a consciência que encerra no seu bojo a unidade infinita. Na consciência o ser existente, que lhe aparece, funde-se num todo. Ora, o lugar da experiência desta unidade é, portanto, o próprio eu. Todo o existente, pelo simples facto de existir, funde-se à unidade infinita do ser. Dado que o eu é o lugar em que se revela esta unidade de tudo o que existe, é no eu que experienciamos esta fusão antes mesmo de conhecermos o que quer que seja. O eu é, segundo Schelling, um lugar no qual se revela e brilha o absoluto.
A verdadeira profundidade e insondabilidade da consciência encontra-se na natureza da autoconsciência que, designada pela palavra eu, constitui a fonte da unidade de tudo aquilo que se nos depara. A filosofia de Schelling parte do princípio Kantiano segundo o qual a unidade transcendental da consciência se manifesta no facto de que a representação «Eu penso» acompanha todas as minhas outras representações. A autoconsciência é o seu próprio objecto. Quando digo «eu», faço-me objecto de mim mesmo. Na autoconsciência o sujeito e o objecto são idênticos. A autoconsciência só pode existir quando se faz objecto de si mesma. O significado antropológico da filosofia transcendental de Schelling reside na descoberta de que não se pode explicar a autoconsciência reduzindo-a a outra coisa qualquer, nomeadamente a processos fisiológicos ou outros, uma vez que ela só existe no seu auto-exercício. A sua natureza é uma identidade absoluta, não sendo condicionada por nada. Esta identidade da autoconsciência pode ser expressa pela fórmula eu=eu. O sinal de igualdade exprime o verdadeiro ser da autoconsciência. Com efeito, só quando compreendo que este eu como sujeito é idêntico ao eu como objecto, é que estou consciente de mim mesmo.
Mas, na identidade da autoconsciência, existe ao mesmo tempo uma duplicação que estabelece a distinguibilidade entre sujeito e objecto. Quer dizer que é necessário distinguir quem conhece daquilo que é conhecido. Só fazendo esta distinção é que se pode pasmar ante a identidade do sujeito e do objecto. Esta identidade estabelece a partir de si mesma o pólo do subjectivo e do objectivo, produzindo-os ao concretizar-se. Cada um dos elementos da proposição «eu=eu» é determinado pelo facto de identificar-se com o segundo, e vice-versa. Isto significa que cada um dos dois é em si mesmo um «eu=eu». Assim o sujeito da autoconsciência é determinado pelo facto de identificar-se com o objecto, sendo como tal um sujeito-objecto. Por outro lado, o seu objecto já‚ em si mesmo determinado pelo facto de ser idêntico ao sujeito, sendo também um objecto-sujeito. Os pólos da identidade absoluta na autoconsciência potencializam-se numa diferenciação infinita. Mas a identidade da autoconsciência suprime sempre de novo a diferenciação do sujeito e do objecto, e imediatamente deve estabelecer de novo esta diferença. O objecto do autoconhecimento deve sempre já conter o facto de que sou eu quem o conhece e o sujeito da autoconsciência só é plenamente compreendido sempre que se compreende ao mesmo tempo que o reflexo objectivo faz parte do seu ser. Ora, a autoconsciência produz-se a si mesma através desta realização ou concretização. Como ela só existe lá onde se conhece a si mesma, o ser e o conhecer, o ser e a verdade são, na filosofia transcendental de Schelling, a mesma coisa. Por fim, se o eu deve produzir-se a si mesmo no acto, Schelling considera que o fundamento e o fundamentado são também idênticos. Esta identidade absoluta entre o fundamento e o fundamentado, entre o ser e o existente, só é acessível na verdade do eu, uma vez que se manifesta na identidade entre o cognoscente e o conhecido, entre o sujeito e o objecto.

Spinoza, Leibniz e Schelling vêem o homem como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo. Embora as suas filosofias possam ser consideradas, no plano antropológico, como modelos «insulares» do homem, elas não tratam, no entanto, o problema do homem isoladamente do problema da natureza. Nestes três grandes sistemas filosóficos, a questão da natureza humana, tão grata a Edgar Morin, está intimamente vinculada ao problema da realidade do mundo em geral. No entanto, a análise do problema geral da relação homem/natureza varia de autor para autor. De uma maneira muito geral, podemos dizer que, na resposta ao problema do portador da unidade e da totalidade do ser, a tónica se desloca da substância para o sujeito. Enquanto que para Spinoza esta unidade é inquestionavelmente a natureza, para Schelling ela coincide totalmente com a unidade do sujeito. Leibniz parece aqui representar um meio termo. Com efeito, para Leibniz a unidade do ser manifesta-se já na representação. Da representação à unidade do sujeito, a distância é «curta» e, na história da filosofia, ela foi ocupada pela filosofia transcendental de Kant. Depois disso, temos a filosofia do idealismo alemão: Fichte, Schelling e Hegel.
Leibniz e Spinoza pensam que o problema da natureza do homem está intimamente associado ao problema da unidade do mundo e da natureza. Pensam também que a experiência da alma constitui um acesso para compreender o ser da natureza. Mas o caminho trilhado por cada um é inteiramente diverso. A fórmula de Spinoza «Homo pars naturae» insere o homem na totalidade do mundo. Para Spinoza, o homem não é uma entidade puramente subjectiva e espiritual que se contraporia à natureza, mas uma parte da própria natureza. Assim, para Spinoza, o ser aparece a tal ponto como a potência geradora da natureza que o próprio Deus é, em última análise, natureza. A unidade do mundo explica-se, portanto, inteiramente a partir da potência geradora da natureza. O homem é apenas uma parte dela que experimenta a natureza em si mesma na dinâmica do instinto e dos afectos. Ora, para Leibniz, a experiência da realidade feita no ser do homem é a da representação, isto é, do reflexo da totalidade cósmica em cada ser individual dotado de alma. Se na filosofia de Spinoza a potência geradora da natureza era concebida como uma necessidade absoluta, na filosofia de Leibniz domina a ideia de que seriam possíveis outros mundos inteiramente distintos do universo que realmente existe, não sendo sequer evidente que existe um mundo. Leibniz concebe o ser e a realidade a tal ponto como representação, espelho ou reflexo que o próprio Deus mais não é que a plenitude da representação na totalidade das perspectivas. Sendo assim, a natureza do homem consiste na representação e na «perspectividade», uma vez que a unidade do todo consiste na compatibilidade e relacionalidade recíproca que existe em todo o ser individual. Esta compatibilidade e relacionalidade estão representadas em cada indivíduo num reflexo caracterizado por uma perspectiva.
As filosofias de Spinoza e de Leibniz são, portanto, dominadas por conceitos diferentes. Enquanto para Spinoza as palavras fundamentais para compreender a realidade são natura e potentia, para Leibniz são as palavras repraesentatio e harmonia. Em ambos os sistemas filosóficos, o homem é definido pela posição que ocupa no conjunto total dos seres existentes, orgânicos e não orgânicos, mas este conjunto é compreendido à luz desses conceitos básicos. Se o ser é o poder e a força da natureza, a natureza do homem consiste em participar da natureza e da sua dinâmica dentro de nós. Se o ser é harmonia e representação, a natureza do homem consiste em ser um espelho do mundo e em participar da perspectividade pluriforme do todo. Contudo, Spinoza e Leibniz (filósofos da segunda metade do século XVII) encontram na nossa própria existência uma porta de acesso para compreender a realidade, uma vez que o nosso ser está enquadrado e determinado pelo todo superior que é o mundo.
Schelling, Hegel e Hölderlin fizeram juntos, quando estudavam em Tubinga (1790-1793), a leitura de um escrito de Jacobi sobre Espinoza (1785), no qual reproduz o seu diálogo com Lessing. A primeira reacção de Schelling foi tornar-se spinozista, como nos dá conta uma carta datada de 4 de Fevereiro de 1795 dirigida a Hegel. Schelling diz que o que Spinoza procurou na sua reflexão sobre a natureza foi a unidade e a totalidade infinita do ser. Mas enquanto Spinoza tinha procurado na natureza o lugar da experiência desta unidade, Schelling procurou-a e efectivamente encontrou-a no próprio eu. Se Spinoza afirmava que a natureza é na verdade una e única e que, por conseguinte, só existe uma substância, Schelling encontra este absoluto no eu. O eu é, na filosofia de Schelling, não somente algo que deve realizar-se a si mesmo, mas é também o produto de um evento que denominamos ser. A natureza enigmática do ser foi investigada por Spinoza na sua reflexão sobre a natura naturans. A identidade entre a natura naturans e a natura naturata estabelecida por Spinoza foi descoberta por Schelling na autoconsciência. Esta identidade absoluta entre o sujeito e o objecto, o fundamento e o fundamentado, o ser e o existente torna-se-lhe manifesta no eu, uma vez que somente aqui somos nós mesmos o objecto do conhecimento. O princípio spinoziano da única substância, a ideia cartesiana da auto-certeza absoluta que só é acessível no cogito ergo sum, e a experiência leibniziana do ser como representação e jogo de espelhos, conjugam-se nesta concepção para dar origem a uma nova unidade na esteira da filosofia transcendental de Kant e de Fichte. Embora o homem se apresente no sistema filosófico de Schelling como o elemento procurado a partir do evento da unidade e da totalidade do ser, perdeu-se, no entanto, algo que era característico sobretudo na filosofia de Spinoza: a primazia absoluta da natureza na definição do ser. É, por isso, que podemos considerar o sistema filosófico de Spinoza como «superior» ao dos seus émulos. Qualquer tentativa de constituição de uma nova Filosofia da Natureza deverá, pois, partir da filosofia spinozista.
Heidegger denunciou a metafísica da subjectividade de Fichte, Schelling e Hegel, procurando, na sua obra Sein und Zeit, superar a identificação entre o ser e a consciência, sem abandonar, todavia, a unidade entre a existência (Dasein) e o mundo defendida por Spinoza, Leibniz e Schelling. Como pretendemos argumentar contra a negligência filosófica de Edgar Morin, vamos descrever, em traços largos, o modo como a filosofia de Heidegger, mas também a fenomenologia existencial, encara o problema da correlação existente entre o homem e o mundo.

HEIDEGGER. A existência humana é sempre considerada, em Sein und Zeit, em conexão com o problema da verdadeira natureza do ser. Se quisermos compreender o que significa o ser, devemos primeiramente começar por colocar o problema do ser sem pretender dar-lhe uma resposta definitiva. Que significa dizer que existimos ou somos? Que significa afirmar que existe um mundo? O homem confronta-se constantemente com o ser, quer na sua própria morte, quer no seu agir e no seu comportamento quotidiano. Na confrontação com a sua morte, o homem compreende o que significa o facto de existir. Esta inquietação ante a possibilidade do nosso próprio não-ser, causada pela realidade factual e pelo carácter finito da nossa existência, é a relação que temos com o nosso ser. Deste modo, o homem concebe-se como um ente confrontado directamente com o ser e com o nada. Todavia, não é somente o seu próprio ser que se coloca como questão que urge compreender na sua forma interrogativa, mas o ser de tudo quanto existe. A unidade do mundo, ou seja, de tudo quanto existe, que tanto preocupava os filósofos anteriores, é o próprio ser que já não pode ser considerado como um sujeito ou uma coisa. O ser é um «enigma». Sendo assim, o homem já não é também pensado como sujeito ou substância, mas como um ser que se relaciona com a sua própria existência.
O aspecto mais enigmático do homem reside na sua relação com o tempo, mais precisamente com o futuro e o passado. Em cada situação o homem age em direcção a um futuro que ainda não existe. O nosso agir é determinado através de decisões acerca daquilo que ainda não é na realidade. Como projectamos a nossa existência em direcção a um futuro que é infinitamente aberto, não podemos satisfazer todas as nossas possibilidades. A característica essencial da existência humana encontra-se na abertura e indeterminação do futuro. A nossa existência encerra tanto o ainda-não do futuro como o não-mais do passado. Por conseguinte, não podemos limitá-la ao presente e ao que está-aí diante de nós. O futuro aberto em função do qual nos determinamos e o que já passou (passado) que constantemente reassumimos fazem também parte dela. Na recordação relacionamo-nos não somente com uma representação ou imaginação subjectiva que mora em nós, mas também e sobretudo com o ser do próprio passado. Desta meditação sobre a temporalidade da existência humana resulta ao mesmo tempo que não se pode limitar o ser ao presente e ao que está diante de nós. O ser compreende, além do presente que é, o futuro que ainda não é, e o passado que já não é mais. O tempo não é apenas o horizonte da existência humana. Trata-se antes de uma dimensão do próprio ser. Assim não se pode reflectir sobre o que é o ser sem emaranhar-se no «enigma» do tempo. Por conseguinte, Heidegger considera, na sua concepção «antropológica», que a temporalidade da existência humana só pode ser, em última análise, compreendida a partir do carácter temporal inerente ao ser. Como o ser é, em última análise, tempo, o homem mais não é do que um ser temporal, não somente na história da sua vida, mas também pelo seu papel representativo na história e no tempo em geral. O homem é, portanto, um ser-no-tempo.
À temporalidade inerente à existência humana devemos acrescentar uma outra sua «determinação». O homem encontra-se sempre no meio de outras coisas, ou melhor, num espaço que partilha com essas coisas. Isto significa que a existência humana «compreende» igualmente o mundo como lugar da sua existência. Faz, pois, parte da nossa existência o facto de, juntamente com ela, existir um horizonte de mundo no qual enxergamos tudo quanto existe. O mundo é o palco ou cenário do nosso agir e o lugar no qual somos, e não apenas o horizonte da nossa consciência. A nossa existência é de antemão definida como um ser-no-mundo. O ser do homem é, portanto, ser-no-mundo.
Se, na obra Sein und Zeit (1980) a unidade infinita e a totalidade do mundo se manifestavam na existência do homem, na Carta sobre o Humanismo (1973) Heidegger mostra que a criação deste círculo de luz, no qual o existente pode estar presente como existente, mais não é que o próprio evento do ser. Como afirma Heidegger, a existência do homem consiste em ser testemunha deste evento. Contudo, o ser não se define somente pela comparação do círculo de luz. Define-se também pela obscuridade, pelo mistério ou pelo estar-retirado. Assim como na realidade-humana faz parte também o esquecimento do passado e a perda de muitas possibilidades do futuro, da mesma forma faz parte do ser a sua notável proximidade do nada. O ser só pode ser concebido quando se toca a possibilidade do nada. Da dificuldade de pensar o nada resulta a dificuldade de entender o ser. O homem é o ente que pode pensar o ser, e que na sua existência se relaciona com o ser. Assim, o ser está próximo do nada. Como não está presente em parte alguma, o nada precisa do homem para se revelar. É, por isso, que o homem é também um lugar no qual pode revelar-se o ser. O homem pode distinguir o ser do não-ser. Em parte alguma do mundo está presente o nada existente: no mundo só existe o existente. O próprio ser e a unidade do mundo não existem em parte alguma como coisas. Manifestam-se onde houver um ente que pergunta por eles. Eis por que a existência do homem deve ser determinada pela manifestação e pela evidência do próprio ser e pela automanifestação do mundo como todo. Pena é que Heidegger, com base na sua filosofia ontológica, não tenha repensado o conceito de natureza que domina o sistema de Spinoza, embora os seus escritos sobre o conceito grego de Physis se orientem nessa direcção. Não será porventura necessário — precisamente se tivermos compreendido que somos um evento do ser — compreender novamente que somos natureza? A naturalidade do homem manifesta-se claramente na sua corporalidade. O existir como tal é ser-corpo (Merleau-Ponty, 1975), da mesma forma como é ser-no-mundo e temporalidade.

Ora, este percurso pela história da filosofia visava mostrar que o desbloqueio da noção de homem, que exige uma nova antropologia, é muito anterior à revolução biológica moderna que viu nascer uma biologia não-cartesiana. Contudo, a revelação biológica impulsionou de forma directa e quase imediata o nascimento da nova antropologia. Os dados novos que as ciências biológicas e biomédicas trouxeram reformaram (no sentido de Bachelard) completamente a noção de Homem. Se a metafísica clássica, nomeadamente a de Spinoza e de Leibniz, prepararam de modo espectacular o terreno da nova antropologia, integrando o homem na unidade do cosmos, este movimento antecipatório da filosofia acabou por refluir com o surgimento do idealismo alemão que traçou uma linha divisória radical entre a filosofia e a ciência. A velha aliança tinha sido assim quebrada. Mas Marx e o marxismo trouxeram um novo impulso: a aliança entre filosofia e ciência foi parcialmente restabelecida no marxismo da maturidade. Apesar da ruptura epistemológica que atravessa o pensamento de Marx e que o divide em dois grandes períodos, as obras de juventude que ainda não são marxistas e as obras de maturidade propriamente científicas, o jovem-Marx (1975) estabeleceu de modo firme e seguro o projecto de uma scienza nuova: «A ciência natural acabar um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrar em si a ciência natural; haver apenas uma única ciência» (p. 169).
Embora preparado pela filosofia ao longo das suas intermináveis lutas contra a tirania do pensamento religioso dogmático (que possibilitaram a compreensão do homem na sua finitude, independentemente de qualquer «força» estranha e transcendente), a unificação das ciências naturais e das ciências do homem começou pelas ciências biológicas. Edgar Morin considera que o desbloqueio biológico operou-se fundamentalmente em três frentes, a saber: a biologia molecular, a ecologia e a etologia. É certo que foram estas ciências que fizeram surgir brechas no seio de cada paradigma isolado, mas, mesmo permanecendo no domínio da biologia, o movimento de aberturas para os outros domínios até então interditos e através dos quais se operam as primeiras conexões e emergências teóricas novas foi iniciado, de modo surpreendente, pela biologia da evolução. Além da biologia da evolução, da biologia molecular, da ecologia e da etologia, duas outras ciências biológicas, a sociobiologia e a neurobiologia trouxeram, nos últimos anos, um contributo de tal modo complexo e problemático que se torna necessário reformar todos os modelos antropológicos actuais, nomeadamente o de Edgar Morin, e fundá-los, mesmo que ainda provisoriamente, sobre novas bases biológicas, físicas e filosóficas.
Consequentemente, consideramos que o desbloqueio biológico ocorreu, não em três, mas em seis frentes: a biologia da evolução, a biologia molecular, a ecologia, a etologia, a sociobiologia e as neurociências. Cada uma dessas ciências biológicas desbloqueia uma determinada noção ou ideia, abrindo assim cada paradigma isolado para os domínios até então interditos. O desbloqueio de uma determinada noção compreende sempre simultaneamente uma ruptura e um acto epistemológico, no sentido preciso de Bachelard. A reforma de uma determinada noção implica sempre a ideia de que essa noção representa, na cultura científica, um obstáculo epistemológico que entrava o desenvolvimento científico. Assim as noções de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, que dominavam os anteriores paradigmas isolados, constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos. Foi preciso esperar pela revolução biológica para vermos essas noções a ser submetidas a uma crítica severa e radical que, na maior parte das vezes, nem sequer a designação nominal conservou. Todas essas noções ideológicas, funcionavam no interior de paradigmas ou modelos teóricos que teimavam manter-se isolados uns dos outros. Ora, Prigogine demonstrou que essa imagem do saber compartimentado em áreas e domínios isolados uns dos outros não conseguiu resistir aos efeitos de impacto da revolução científica do século XX. Se hoje o conceito de ciência é, na sua essência, um conceito filosófico no sentido de implicar uma aliança com toda a cultura e particularmente com a filosofia, o próprio conceito precisa de ser revisto e reformado a tal ponto que possa, sem perder a sua autonomia e especificidade, integrar no seu seio a actividade científica. Como o nosso conceito de Filosofia já compreende a actividade científica, não temos qualquer necessidade de reduzir o seu diálogo com as ciências ao domínio da epistemologia, da gnoseologia ou da lógica. Assim como a ciência contemporânea é filosofia, assim também a filosofia é ciência. Só a sua «unificação» dialéctica nos permite o empreendimento ousado de desbloquear as noções ideológicas de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, por modo a preparar um novo terreno do qual possa emergir um novo modelo teórico de Homem. Sem os métodos filosóficos seriamos incapazes de definir o homem como totalidade. Ora, é precisamente o conceito de totalidade em evolução, mais precisamente de sistema, que iremos opor a cada uma das noções, que entravavam o progresso científico. Dessa oposição da ideia de sistema a cada uma dessas noções surgirão ímpetos do génio científico que provocam impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico. Bachelard chamou-lhes actos epistemológicos mas Foucault, já numa outra perspectiva, optou pelo termo irrupções no saber, para os designar.
(Esta é uma secção da nossa tese de mestrado, Homo Fossilis: Ensaio neuro-antropológico. Embora este texto precise ser revisto e clarificado, editamo-lo por pensarmos que ela possa incentivar a pesquisa filosófica. O título aqui escolhido pode parecer um pouco desfasado ou mesmo inadqueado, dado não clarificar a natureza do cibernauta, mas a cyberciência também compreende tudo quanto possa ser e é efectivamente divulgado pela Internet.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Cidade e Ecologia Social dos Comportamentos Gay

À memória da minha mãe, Celeste dos Anjos Saraiva de Sousa

À memória do meu orientador de doutoramento, Professor Doutor Custódio Rodrigues




O estudo de sócio-ecologia dos comportamentos dos homens homossexuais confronta-se com um único problema, o qual orienta toda a existência do homem e até mesmo da mulher homossexuais: Como e onde procurar novos parceiros sexuais? Os próprios indivíduos homossexuais têm, de certo modo, consciência desse problema, porquanto são os primeiros a elaborar e divulgar roteiros gay, que fornecem informação pormenorizada sobre os chamados «lugares de engate». Este facto revela que a possibilidade de haver um encontro sexual constitui uma característica estável e normal da interacção que ocorre onde quer que se reunam os homens homossexuais, quaisquer que sejam o lugar, o momento, a cidade, o país e as pessoas. Em grande medida, a vida do homem homossexual «activo» gira em torno desses lugares públicos, aos quais chamámos na peugada de Delph (1978) «oásis erótico», uma vez que vive em constante busca de novos parceiros sexuais. Todos os indivíduos observados ao longo do tempo, independentemente de serem homens ou mulheres, homossexuais ou pseudo-heterossexuais ou de terem relações estáveis ou não, exibem em maior ou menor grau comportamentos sexualmente promíscuos. Este facto é incontornável e pode ser evidenciado mediante a explicitação da estrutura e da dinâmica da comunidade gay portuguesa.
Os resultados deste estudo intensivo de campo são congruentes com os resultados obtidos por diversos estudos que usaram uma metodologia idêntica, em particular os estudos de Hooker (1967), Hoffman (1970), Humphreys (1970) e Delph (1978).
Na apresentação sucinta dos resultados deste estudo lançámos novos conceitos, nomeadamente os de banalização, ubiquidade e efeito homossexuais, com o objectivo de mostrar que as estimativas apresentadas substimam a incidência de comportamento homossexual na população portuguesa. As noites portuguesas fervilham de actividades homossexuais que ocorrem nos mais diversos lugares e circuitos que constituem o oásis erótico gay português, levando-nos a estimar que muito mais de 10% da população portuguesa exibe frequentemente comportamentos homossexuais. Aliás, quando integram os bissexuais na sua comunidade, os próprios homossexuais reconhecem que eles também são predominantemente homossexuais não-assumidos, com os quais fazem sexo regularmente.
O conceito de oásis erótico, forjado por Delph (1978) e usado para designar um lugar considerado física e socialmente seguro, em função dos padrões definidos pela subcultura gay, de ameaças exteriores, onde os seus frequentadores se reúnem para estabelecer interacções sexuais mutuamente desejadas, pode incluir tanto lugares públicos como lugares privados. Alguns desses lugares são negócios comercialmente explorados, tais como saunas, ginásios, sexy-shops, restaurantes, unidades hoteleiras, parques de campismo, bares e discotecas homossexuais, enquanto outros são lugares cooptados ou usurpados pelos homens homossexuais, para propósitos sexuais, tais como sanitários, parques públicos, praias, praças, avenidas, ruas, estações de serviço, terminais rodoviários e ferroviários, descampados e matas e tantas outras áreas públicas. Estes lugares são, portanto, duas variantes básicas de oásis eróticos. Alguns oásis eróticos são lugares públicos usurpados para actividades sexuais. Outros são lugares subculturalmente designados para sexo e encorajam abertamente o sexo.
A aplicação deste conceito ao estudo da comunidade gay portuguesa foi feita com base na teoria matemática dos grafos, na sociometria e na própria perspectiva dos homossexuais portugueses. Como vimos no estudo dois, estes utilizam a palavra «ambientes» para designar os diversos lugares públicos que constituem o seu oásis erótico. Cada «ambiente» ou circuito tem os seus frequentadores habituais e, em função do tipo de lugar e das actividades que nele ocorrem e que são subculturalmente incentivadas, podemos traçar o perfil desses utentes habituais e definir o seu estilo de vida.
A estrutura conceptual mais adequada para captar a comunidade gay é a noção de rede (Elizabeth Both, 1976). Ao examinarmos de perto o ambiente imediato dos homens e das mulheres homossexuais, isto é, os seus relacionamentos reais externos com pessoas e lugares, constatámos a existência de dois padrões: 1) os relacionamentos sociais externos dos homossexuais e bissexuais assumem muito mais a forma de uma rede do que de um grupo organizado, e, embora os homens homossexuais pertençam muito mais a redes do que a grupos, 2) existem consideráveis variações na conectividade das suas redes. A conectividade ou intensidade indica a extensão em que as pessoas conhecidas por um indivíduo se conhecem e se encontram umas com as outras, independentemente do indivíduo. Destacam-se basicamente dois graus relativos de conectividade que não devem ser vistos como polaridades opostas: a rede de «malha estreita» que é usada para descrever uma rede na qual existem muitas relações diversificadas entre as unidades componentes, e a rede de «malha frouxa» que é usada para descrever uma rede na qual existem poucos relacionamentos deste tipo. Embora existam organizações gay em Portugal, elas têm pouco impacto e adesão na comunidade gay portuguesa, já que esta comunidade tende a ser uma rede virtual de lugares de engate e de potenciais parceiros e contactos sexuais.
Assim, um «ambiente» nada mais é do que um lugar público que propicia e incentiva encontros homossexuais e vários «ambientes» podem estar fortemente conectados entre si de modo a formar um circuito gay. Um circuito homossexual é um conjunto interligado de espaços e de fenómenos que se sucedem regular e periodicamente ou, mais precisamente, um conjunto de hábitos e de movimentos que caracteriza a rotina quotidiana de um grupo de homossexuais ou mesmo de um único homem homossexual. Há tantos circuitos homossexuais quantos os grupos ou tipos homossexuais, mas, regra geral, existem padrões que permitem tipificar os circuitos mais comuns, embora esses possam variar em função do tempo, do espaço e das «modas». Levando em conta apenas dois critérios – a assunção da homossexualidade e o tipo de convívio ou relações sociais estabelecidas, podemos distinguir dois tipos fundamentais de circuitos: os circuitos gay de sexo anónimo (CGSA), frequentados regularmente e predominantemente por homens homossexuais que tendem a não assumir-se como homossexuais e cujo objectivo exclusivo é a prática de actividades sexuais, em detrimento do convívio social, e os circuitos gay de convívio sócio-sexual (CGCS), frequentados regularmente por homens e mulheres homossexuais que se assumem como tais e que, além do sexo, estão envolvidos em encontros sociais.
Os roteiros tão difundidos na comunidade gay visam difundir o conhecimento desses lugares de engate, onde qualquer homossexual pode encontrar facilmente e sem dificuldades parceiros sexuais. Qualquer revista, nacional, internacional ou estrangeira, e site gay fornece esses roteiros, que são frequentemente transmitidos oralmente durante as breves conversações que ocorrem nos encontros sexuais. Em termos geográficos, a comunidade gay portuguesa pode ser reduzida a um roteiro nacional de «lugares de engate», que são regularmente frequentados pelos homossexuais em busca de parceiros e experiências sexuais e escolhidos em função dos seus interesses e perfil psicológico. Cada um adopta o seu roteiro, em função das suas necessidades, interesses e perfil psicológico.
Os homens homossexuais frequentam regularmente esses lugares, com o propósito de procurar novos parceiros sexuais. O que mais impressiona nas abordagens homossexuais é o facto da conversação ser mínima e das interacções estarem concebidas e baseadas na perseguição de objectivos individuais e não sociais, apesar de certos «ambientes» serem concebidos como espaços de convívio social. Assim, a comunicação é primordialmente de natureza não-verbal. Os homens homossexuais comunicam com os seus olhares, gestos, linguagem corporal e toques e, só posteriormente, ocorrem ocasionais e breves declarações verbais. Estas observações mostram que a rede gay tende a ser mais uma rede de contactos sexuais do que uma rede social e, que, à medida em que nos afastamos do circuito cafés/bares/discotecas, a rede tende a ser mais frouxa em termos de conectividade social.
Ao destacarmos o «convívio social», verificamos rapidamente que os circuitos que integram e interconectam cafés, bares e discotecas gay são os que possibilitam um maior convívio social entre os homossexuais e os seus frequentadores habituais tendem a optar por um estilo de vida mais homosocial e tendencialmente com menor número de episódios de «sexo anónimo». Embora se observe variação frequente de parceiros sexuais, esta tende a ocorrer com parceiros conhecidos ou amigos e as ligações que se estabelecem, breves ou prolongadas, são mais personalizadas. Os circuitos que ligam cafés, bares e discotecas gay são redes de malha estreita, frequentados assuiduamente por homossexuais hiperefeminados, emergentes e muitos masculinizados que assumem mais saudavelmente a sua identidade gay e que, nesses espaços, convivem mais estreitamente entre si e com outros grupos sócio-sexuais, tais como lésbicas, travestis, transgéneros e transexuais, bem como com muitos heterossexuais que frequentam os «ambientes». Embora se observem manifestações afectivas entre os seus utentes, as actividades sexuais não são incentivadas nestes lugares públicos, ficando pontualmente restringidas ou a «quartos escuros», quando existem, ou a espaços intersticiais, tais como os sanitários. São, pois, oásis eróticos mais discretos.
Ora, os restantes circuitos e os mais abundantes abrangem lugares nos quais as actividades sexuais são incentivadas, em detrimento do convívio social e, nestes lugares, observa-se fundamentalmente «sexo anónimo», com múltiplos parceiros consecutivos ou em simultâneo. Como dizem alguns homossexuais: os seus frequentadores são «homens de poucas falas e muito sexo» e, geralmente, não assumem abertamente a sua homossexualidade, alegando serem bissexuais. Estes circuitos de malha frouxa não são frequentados por mulheres lésbicas.
Pela frequência habitual destes dois tipos básicos de circuitos gay, podemos referir dois estilos de vida sexualmente promíscuos: um mais anónimo e predatório, centrado nos circuitos gay do sexo casual e anónimo, e outro mais personalizado, centrado nos circuitos gay de convívio sócio-sexual. No entanto, existem omnívoros de todos os circuitos gay: são os vagabundos sexuais, casados ou solteiros, que frequentam diariamente e em regime pós-laboral todos os lugares públicos de engate, visando apenas encontros casuais e anónimos.
Matematicamente, um circuito é um conjunto de pontos fixos interligados por vias preferenciais. Os pontos fixos correspondem aos lugares públicos frequentados assiduamente pelos homossexuais e as vias são os trajectos que os ligam. Se os pontos, num determinado período de tempo, permanecem fixos, os trajectos variam constantemente, em função das necessidades e dos interesses pessoais. Ora, o conhecimento aprofundado, minucioso e actualizado dos circuitos gay, constantemente actualizado pelos roteiros gay, impressos ou electrónicos, é fundamental para todo o homem homossexual que se auto-reduz à sua dimensão estritamente sexual, na medida em que possibilita e garante novos encontros sexuais. De certo modo, um circuito homossexual é, em grande medida, um percurso que um homossexual ou grupo de homossexuais percorre, noite após noite, à procura de novas aventuras sexuais. Se o homossexual iniciante não souber resistir às forças gravitacionais ou centrípetas dos circuitos gay, acabará por assimilar o «esquema gay» e, uma vez aí instalado, corre o risco de ser completamente absorvido pela rede gay. Neste último caso, toda a sua vida individual desvanece-se: a sua individualidade é eclipsada e anulada pelos «efeitos de manada» provenientes da rede. A rede homossexual é uma estrutura altamente ultracongelada e reificada: nela o indivíduo perde a sua individualidade e assume-se como mais uma peça da maquinaria homossexual. A rede homossexual tem, pois, um carácter totalitário: as individualidades são fragilizadas a favor da integração total. Os seus imperativos são superiores aos imperativos individuais, familiares, sociais, culturais, sentimentais ou mesmo profissionais. Reduzido a um instrumento sexual, o homossexual comporta-se como tal, deixando para trás todas as outras dimensões vitais e entregando-se exclusivamente — a tempo inteiro — à busca frenética de novos orgasmos, de preferência cada vez mais inusitados, estranhos e anónimos. Até mesmo aqueles homossexuais que procuram salvaguardar a sua autonomia, evitando contactos com membros da rede homossexual institucionalizada, denominada «ralé gay», não são geralmente bem sucedidos, uma vez que o esquema em que estão inseridos acaba por se cristalizar numa rede que é tão reificadora quanto a rede predominante que criticavam. As forças de inércia da rede são mais poderosas que as vontades individuais já, por si mesmas, fragilizadas pela apetência sexual incontrolável que os domina desde dentro. É, por isso, que alguns deles abandonam os seus empregos sempre que surge a oportunidade de novos encontros sexuais. Como ser unidimensional, o homossexual só vive para o sexo: o seu estilo de vida fetichista sexual é a consumação da reificação homossexual.
Os homossexuais reconhecem, sem disso se aperceberem completamente, que a uniformidade é mais real que a suposta diferença que ousam reclamar. Isto significa que praticamente todos os homossexuais observados, até mesmo os homossexuais activistas, partilham com os demais o mesmo esquema homossexual. Ora, este esquema mais não é que um conjunto de dispositivos e de conhecimentos que facilitam a procura frenética e compulsiva de novos orgasmos. É, portanto, em torno dessa procura de novos parceiros sexuais ou da sua possibilidade, que gira toda a vida do homossexual, ao ponto de podermos dizer que homossexualidade e promiscuidade sexual são praticamente a mesma coisa. Como vimos no estudo anterior, esta quase identificação é reconhecida pelos próprios homossexuais, que, além de serem fazedores de roteiros do prazer, elaboram «teorias» emic que visam justificar e legitimar o seu estilo de vida sexualmente promíscuo.
Se definirmos o estilo de vida como um conjunto de práticas que um indivíduo adopta para satisfazer as suas necessidades e dar forma a uma narrativa particular de auto-identidade, constatamos facilmente que o estilo de vida do homossexual típico consiste em frequentar determinados lugares públicos e usar sexualmente as novas tecnologias da informação e da comunicação, tais como telemóveis e a comunicação mediada por computador, para arranjar novos parceiros sexuais — um estilo de vida sexualmente promíscuo. Três noções emic, utilizadas pelos próprios homossexuais, definem sucintamente este estilo de vida: «esquemas» (busca de novos parceiros sexuais), circuitos (lugares de engate frequentados) e «rede» (complexo de relações que solidificam a rotina gay). Os esquemas, os circuitos e as redes favorecem a procura homossexual de novos orgasmos em determinados lugares públicos e, ao possibilitar a sua concretização, reforçam-se e estabilizam-se, mesmo que ocorram mudanças de lugares.
Ora, dado que os comportamentos sexualmente promíscuos são factores antropológicos na transmissão da Sida e doutras doenças sexualmente transmissíveis, torna-se evidente que todas essas estruturas comportamentais cristalizadas facilitam a sua transmissão e a sua expansão no seio da comunidade homossexual, bem como no seio da população heterossexual, uma vez que muitos pseudo-heterossexuais manifestam comportamentos homossexuais. Isto significa que os percursos homossexuais são virtualmente percursos da Sida e de outras doenças sexualmente transmissíveis (Binson et al., 2001, Griensven et al., 2004, Peterson et al., 2001, Mutchler, 2002, Westburg & Guindon, 2004, Betts, 2002, Jin et al., 2002, Vandentorren et al., 2001, Wilson et al., 2002, Eich-Höchli et al., 1998, Weinberg, Worth & Williams, 2001, Stueve et al., 2001, Pulerwitz et al., 2001, Suarez & Miller, 2001, Wislar & Fendrich, 2000, Dilger, 2003, Catania et al., 2001, Hogg et al., 1997, Dukers et al., 2000, Bauer & Welles, 2003, Morrow & Allsworth, 2000).
O ritmo de vida dos homossexuais é mais nocturno do que diurno e varia ao longo do ano, observando-se nas estações frias (Outono/Inverno) maior concentração e intensidade em lugares fechados e nas estações quentes (Primavera/Verão), em lugares abertos, tais como as praias e parques de campismo. Esta mudança de ritmo anual tende a estar marcada pelas férias, que possibilitam uma deslocação dos espaços conhecidos para espaços desconhecidos. Com efeito, quando um homossexual julga ter esgotado a lista de parceiros sexuais na sua área de residência e de trabalho, dado ter feito sexo com todos, ele tende a deslocar-se, diariamente ou em determinados dias da semana, de automóvel para outras zonas, próximas ou distantes, em busca de novos parceiros sexuais, e o período de férias que geralmente coincide com o mês de Agosto é aproveitado para fazer «turismo sexual», ou seja, para viajar para outros lugares desconhecidos onde possa encontrar novos parceiros sexuais.
Além dos circuitos gay intra-urbanos que variam em função do perfil dos homossexuais que os percorrem, em função do ambiente e das normas subculturais proporcionados pelos lugares públicos, em função da época do ano ou mesmo dos dias da semana e em função das novidades que entretanto vão surgindo no mercado da indústria de lazer, existem os circuitos gay inter-urbanos, que incluem deslocações para outras cidades de Portugal (roteiros de fins-de-semana) ou para outras cidades estrangeiras (roteiros turísticos internacionais). Os roteiros gay fornecem diversas informações úteis para os «turistas do sexo», como mostra «Spartacus: International Gay Guide», mas o fundamental das informações consiste numa «listagem» de «lugares de engate», cuja articulação configura o oásis erótico gay de cada país. Estes roteiros omitem os espaços residenciais e os espaços institucionais e de trabalho, embora dêem algumas indicações sobre unidades de saúde e monumentos. Estes são os circuitos gay de turismo sexual (CGTS).
Muitas ligações que se formam nesses lugares podem converter-se em uniões estáveis fechadas e, nestes casos, os casais homossexuais começam a afastar-se e a abster-se de frequentar os «ambientes», para evitar conflitos conjugais, a menos que optem consensualmente por uma solução aberta de casal. Apesar de existirem muitos casais gay cujas relações foram acompanhadas durante dezasseis anos de pesquisa, verificámos que um ou mesmo os dois membros não são fiéis, cometendo regularmente adultério ou diversos tipos de infidelidades, com múltiplos parceiros sexuais, e, em muitos casos, contagiando posteriormente o seu companheiro de vida ou parceiro sexual a longo prazo. O universo dos casais homossexuais pode ser perspectivado como uma espécie de fuga ao oásis erótico gay, mas isso não significa, segundo as nossas observações, ausência de comportamentos sexualmente promíscuos. Aliás, o sexo extraconjugal ajuda a explicar muita da violência doméstica observada e relatada pelos casais homossexuais masculinos e femininos (Kuehnle & Sullivan, 2003, Liu, 2003, Rohrbaugh, 2006, Pitt & Dolan-Soto, 2001, Pitt, 2000, Blair, Nelson & Coleman, 2001, Harrison & Esqueda, 2000, Smith & Gallo, 1999, Halpern et al., 2001, Markowitz, 2001, Saewyc et al., 1999, Garfield, 2004, Testa & Leonard, 2001, Phillips et al., 2001, Lucas et al., 2003).
Com o advento da sociedade de consumo (Baudrillard, 1991), sobretudo a partir da segunda metade dos anos 90, o nível de vida dos portugueses elevou-se de tal modo que a posse de carro particular se tornou um recurso que facilita o deslocamento para zonas mais distantes da área de residência ou de trabalho, abrindo mais possibilidades de conquista sexual. Este facto associado à introdução das novas tecnologias da informação e comunicação, em particular os telemóveis, o teletexto e a Internet, veio, conforme observámos durante a pesquisa interactiva (2000-2006), igualmente facilitar a procura de novos parceiros sexuais. Com a comunicação mediada por computador, o teletexto e a troca de números de telemóvel, os homossexuais já não precisam deslocar-se para encontrar parceiro sexual disponível: no seu espaço residencial ou no cibercafé ou mesmo no lugar de trabalho, basta ligar o computador e ter acesso à rede e, através do Widows Live Messenger, ver se algum dos seus amigos virtuais está online e afim de fazer sexo com ele, ou enviar uma mensagem para um dos amigos da sua «lista» íntima, a fazer-lhe uma proposta sexual. O encontro sexual ocorre ou na casa de um deles ou noutro lugar previamente combinado. Se nenhum dos dois estiver interessado em sair de casa, podem fazer «virtual sex» e/ou «sexphone», usando as respectivas webcams. Neste aspecto, no que se refere ao uso das novas tecnologias, os homossexuais são bons aprendizes e, ao contrário do que seria de esperar (Lippa, 2002, 2001), revelam elevado grau de instrumentalidade, um padrão sexual tipicamente masculino, mesmo que sejam do tipo efeminado. No que se refere ao uso das novas tecnologias da comunicação, sobretudo ao uso do computador e da Internet, observam-se diferenças de género: os homens são utilizadores mais assíduos e criativos do computador do que as mulheres e, quanto mais jovens são, mais peritos parecem ser (Mantovani, 2001, Pratarelli & Browne, 2002, Barak & Fisher, 1997, Dittmar, Long & Meek, 2004, Biber et al., 2002, Engelberg & Sjöberg, 2004, Talamo & Ligorio, 2001, Spink et al., 2004, Speepersad, 2004, Whitty, 2003, Chandler & Roberts-Young). Os homens homossexuais revelam ser bons cibernautas, especialmente atentos a todas as novidades tecnológicas que surgem e que integram rapidamente nas suas rotinas diárias e no seu «esquema» sexualmente promíscuo de vida. A comunidade gay online é sexualmente muito pragmática: os contactos virtuais tendem a converter-se em encontros sexuais reais. Isto significa que a Internet constitui um outro circuito de engate gay, que desconhece fronteiras e que, por isso, é global, como se verifica por exemplo no site GayDar, através do qual podemos entrar em vários chats estrangeiros e estabelecer contactos ou embarcar em chats mais específicos, em função das preferências sexuais pessoais.
Como vimos no estudo um, tal como sucede nos USA (Sender, 2001), os homens homossexuais portugueses investem bastante na sua formação pessoal e são muitos os que tiram um curso superior e seguem carreiras superiores, incluindo carreiras políticas, como autarcas ao nível regional ou como deputados. A atipicidade ocupacional que lhes é geralmente atribuída não é assim tão evidente, até porque muitos seguem carreiras tipicamente masculinas, tais como carreiras militares, policiais e como «seguranças». Estas carreiras desenrolam-se em espaços institucionais, aparentemente pouco favoráveis aos homossexuais. Para não falar nas prisões, espaços institucionais militares, policiais, políticos, empresariais, religiosos, hospitalares e educacionais, incluindo o ensino superior, empregam muitos homossexuais e, como onde há homossexuais há sexo, alguns desses espaços convertem-se em «lugares de engate», com os seus circuitos intra-institucionais, como constatámos abundantemente nas instituições religiosas. Contudo, estes circuitos intra-institucionais estão perfeitamente integrados na rede gay de contactos sexuais.
A abertura de grandes espaços comerciais, nomeadamente de centros comerciais e de hipermecados, diversificou e aumentou o número de «lugares de engate». Alguns espaços comerciais fecharam, mas, em seu lugar, abriram-se novos espaços. Apesar dessas mudanças observadas, em termos puramente formais, os circuitos gay continuam a ser topologicamente os mesmos. Podemos mesmo considerá-los como invariantes topológicos.
Ora, estudos prévios mostram que os homens são mais promíscuos do que as mulheres e que os homens homossexuais são mais promíscuos que os homens heterossexuais (Lauman et al., 1994).
Diversos estudos psicossociais e genéticos têm sido realizados para examinar as contribuições dos factores genéticos e ambientais para certos aspectos do comportamento sexual, tais como a idade da iniciação da actividade sexual e o envolvimento em actividade sexual com múltiplos parceiros.
Muitos estudos providenciam evidência para as influências ambientais sobre o comportamento sexual. Assim, as crianças oriundas de famílias divorciadas tornam-se sexualmente activas numa idade precoce e têm mais parceiros sexuais (Amato, 1996, Booth, Binkerhoff & White, 1984, Furstenberg & Teitler, 1994, Gabardi & Rosen, 1992, Glenn & Kramer, 1987). Variáveis estruturais familiares estão associadas com a idade do primeiro intercurso sexual: os adolescentes provenientes de famílias mono-parentais iniciam a sua actividade sexual em idades mais precoces (Miller & Moore, 1990). Níveis elevados de comportamento de monitorização parental foram associados com idade tardia da primeira relação sexual (Capaldi, Crosby & Stoolmille, 1996, Miller, McCoy, Olson & Wallace, 1986, Small & Luster, 1994). Estes jovens também tinham poucos parceiros sexuais (Rodgers, 1999). Níveis elevados de «self-reported parent-family connectedness» (Resnick et al., 1997) e níveis elevados auto-relatados de satisfação com as relações com as suas mães (Jaccard, Dittus & Gordon, 1998) foram associados com idade tardia da primeira relação sexual e com poucos parceiros sexuais. O uso de álcool e de drogas e a delinquência estão fortemente associados ao conjunto de actividade sexual precoce (Jessor & Jessor, 1977, Rosenbaum & Kandel, 1990, Whitbeck, Yoder, Hoyt & Conger, 1999, Yamaguchi & Kandel, 1987). Aspirações educacionais baixas e fraca ligação à escola foram associadas ao comportamento sexual precoce (Hayes, 1987, Lammers, Ireland, Resnick & Blum, 2000, Small & Luster, 1994).
A influência genética sobre a idade do primeiro intercurso sexual foi avaliada por alguns estudos de gémeos. Dunne et al. (1997) e Martin, Eaves & Eysenck (1977) mostraram que existe uma contribuição genética na determinação da idade do primeiro intercurso sexual. Usando dados do National Longitudinal Study of Youth, Rodgers, Rowe & Buster (1999) descobriram que as influências genéticas e ambientais não-partilhadas constituem importantes determinantes na idade do primeiro intercurso sexual nos pares de gémeos masculinos (male-male twin pairs). Miller et al. (1999) relataram que a variação alélica dos genes que codificam os receptores da dopamina pode desempenhar um papel importante na idade da primeira relação sexual. Hershberger (1994) estudou gémeos para examinar as influências genéticas sobre o envolvimento em actividade sexual com múltiplos parceiros, mas sem resultados geneticamente significativos. Usando os métodos da genética quantitativa, Michael J. Lyons et al. (2004) realizaram um estudo para avaliar o papel das influências genéticas e ambientais na idade da iniciação das primeiras relações sexuais e no envolvimento na actividade sexual com múltiplos parceiros (10 ou mais parceiros num ano), numa amostra de gémeos masculinos do Vietnam Era Twin Registry. Os resultados mostraram que os dois aspectos do comportamento sexual eram significativamente herdados e somente a idade do conjunto das relações sexuais era significativamente influenciada pelo meio partilhado pelos gémeos: a variação observada é significativamente atribuível a diferenças genéticas entre os indivíduos. Os efeitos genéticos aditivos reflectem as acções de um vasto número de genes, cada um com pequeno efeito, cujas influências se combinam de uma forma aditiva para produzir diferenças ao nível fenotípico. A iniciação precoce de relações sexuais estava associada com uma probabilidade elevada de ter múltiplos parceiros sexuais. Estes resultados são consistentes com estudos do comportamento sexual dos adolescentes que mostram que a socialização familiar (aprendizagem social) e os factores biológicos (maturação) influenciam significativamente a idade da primeira relação sexual nos rapazes (Capaldi et al., 1996, Crockett, Bingham, Chopak & Vicary, 1996, Halpern, Udry, Campbell & Suchindran, 1993, Udry & Billy, 1987).
As teorias biopsicológicas da promiscuidade sexual vacilam entre duas concepções (Gazzaniga, 1996): uma concepção recorre ao modelo químico do cérebro e das toxicodependências para definir a hipersexualidade como dependência/adição, a outra concepção socorre-se de outra variável da nossa personalidade, nomeadamente as compulsões, colocando a promiscuidade sexual num contexto POC (perturbação obsessivo-compulsiva), juntamente com o jogo patológico, embora as duas concepções não sejam incompatíveis. Aliás, o modelo comportamental apresentado na Figura XY (omitida) é um modelo saturado empiricamente pelos padrões observados, está em conformidade com as tendências combinadas das teorias emic e revela a promiscuidade sexual como adição. E, neste âmbito, destacam-se duas teorias biológicas da promiscuidade sexual: a hipótese do gene receptor da dopamina 4 e a hipótese da vasopressina e da oxitocina.

HIPÓTESE DO D4DR. O efeito Coolidge é o conceito usado para referir o interesse dos machos em diversos parceiros sexuais e está bem documentado nos humanos (Buss, 1994, 1989) e noutras espécies animais, tais como carneiros, ratos e chimpanzés. Este interesse masculino demostra três dos aspectos fundamentais das características genéticas: ocorre em diversas culturas e épocas, encontra-se nas outras espécies e revela variabilidade individual, todos eles utilizados por Eibl-Eibesfeldt (1983, 1977) para estudar os comportamentos hereditários humanos. O estudo genético deste efeito proveio do estudo da personalidade, especificamente a característica denominada procura de novidade, que significa encontrar prazer em experiências novas, variadas e intensas. Os estudos de Bogaert & Fisher (19) e de Zuckerman et al. (19) demonstraram que os grandes perseguidores de novidades satisfazem a sua necessidade de mudança e variedade com um grande número de parceiros sexuais. O seu registo contribui mais para prever o número de parceiros sexuais do que qualquer outro factor (beleza física, masculinidade, idade ou interesse geral pelo sexo). Isto significa que quanto mais um indivíduo perseguia novidades, mais parceiros tinha. Disseram ser óptimo fazer sexo com alguém que acabavam de conhecer, mesmo que não tivessem a certeza de gostar um do outro. Os perseguidores menos activos tinham mais probabilidades de se interessar pelo sexo apenas quando estavam muito apaixonados e, de preferência, casados. Os perseguidores de emoções viam o sexo como um «jogo», enquanto os que não procuravam emoções viam o sexo como uma expressão de compromisso emocional. Além disso, os perseguidores de emoções tinham uma extensão e variedade de actividades sexuais maior que a dos que menos interessados, em particular tinham mais probabilidades de usar sexo oral e posições sexuais menos habituais. No entanto, a ligação entre a busca de emoções e a voracidade sexual não é o impulso sexual, porquanto os perseguidores de emoções não se masturbavam mais do que os outros, mas tinham mais parceiros. Isto sugere que a busca de emoções se refere à forma como se faz sexo e a quem se procura para o fazer, não à frequência sexual.
Hamer et al. (19) mostraram que a busca de novidades é, em grande parte, determinada pelo gene receptor de dopamina 4, um activador do comportamento que existe em abundância no nucleus accumbens, e que existe uma correlação entre o gene D4DR e o número de parceiros sexuais. Nos homens heterossexuais, os grandes perseguidores de novidades têm a forma longa do gene D4DR, enquanto os pouco interessados em novidades têm a forma curta. Embora os primeiros tivessem um número ligeiramente superior de parceiros do que os segundos, a diferença não era estatisticamente significativa. Contudo, alguns homens heterossexuais tinham feito sexo com outro homem, geralmente apenas uma vez e quando eram novos e, neste aspecto do seu comportamento sexual, havia uma forte correlação com o gene D4DR. Com efeito, os grandes perseguidores de novidades com o gene longo tinham seis vezes mais probabilidades de ter feito sexo com outro homem do que os que tinham um gene curto. Cerca de metade dos inquiridos do gene longo já tinha feito sexo com um parceiro sexual masculino, em comparação com apenas 8% dos homens com o gene curto.
Nos homens homossexuais, verificava-se precisamente o contrário. Como seria de esperar, os homossexuais tinham mais parceiros sexuais masculinos do que os heterossexuais tinham parceiras femininas, provavelmente porque no mundo gay o efeito Coolidge é universal e o gene D4DR tinha o efeito esperado. Contudo, o seu efeito era muito mais forte para o número de parceiras femininas dos homens homossexuais. Os grandes perseguidores homossexuais de novidades, com a forma longa do gene, tinham feito sexocom cinco vezes mais mulheres do que aqueles que não procuravam novidades, com a forma curta do gene. Estes resultados mostram que o gene receptor da dopamina D4 influencia indirectamente o comportamento sexual masculino, mediante o comportamento de busca de novidades.
Como vimos, muitos homens homossexuais, sobretudo os encobertos, que fazem sexo com mulheres e são casados heterossexualmente e têm filhos, frequentam assiduamente os circuitos gay de sexo anónimo em busca de parceiros masculinos. É provável que o desejo de novas experiências desempenhe o seu papel neste comportamento, mas o facto de terem sexo com mulheres deve-se fundamentalmente a pressões familiares, profissionais e sociais. Certas carreiras profissionais são reguladas em conformidade com normas heterosexistas e algumas delas, como a carreira militar, policial ou política, exigem praticamente que os homens sejam casados. Os efeitos da dopamina D4 não podem ser dissociados destes factores sociais e, entre os homossexuais, estão certamente associados à variedade de experiências sexuais, prática de sexo arriscado, de sexo em grupo e de sexual bondage.

HIPÓTESE DA VASOPRESSINA E DA OXITOCINA. Apenas 3% dos mamíferos são monogâmicos, formando casais heterossexuais estáveis e selectivos que cooperam na criação dos filhos, e, apesar da diversidade de sistemas de acasalamento humano, o homem é predominantemente monogâmico. O rato selvagem do género Microtus tem sido utilizado para estudar o modo como a constituição genética e a química cerebral podem controlar os comportamentos sociais complexos, em particular a formação de casais (pair-bonding), cuidados parentais e protecção da fêmea (mate guarding) (Carter et al., 1995, Young, Wang & Insel, 1998).
Estes ratos são pequenos roedores semelhantes aos ratos do campo e, nos USA, existem pelo menos duas espécies estreitamente relacionadas – os ratos da pradaria (Microtus ochrogaster) e os ratos da montanha (Microtus montanus), que são muito utilizadas por serem muito diferentes no que respeita ao tipo de acasalamento. Os ratos da pradaria machos acasalam para toda a vida e lutam ferozmente contra os machos intrusos, enquanto os ratos da montanha são sexualmente promíscuos (Tabela omitida).
Insel et al. (1995) estudaram estes ratos e descobriram que as duas espécies apresentam diferenças no padrão de receptores de uma hormona péptidea, a vasopressina. Quando a vasopressina era bloqueada nos cérebros dos ratos da pradaria normalmente monogâmicos, eles acasalavam promiscuamente por toda a colónia e não defendiam as suas fêmeas dos outros machos. Além disso, quando um rato da pradaria macho vivia com uma fêmea, o seu cérebro produzia mais vasopressina que quando estava só. Estas mudanças não foram detectadas nos ratos da montanha, nem nas fêmeas de ambas as espécies. Estes resultados mostram que uma diferença genética entre as duas espécies produz uma diferença importante no comportamento de acasalamento, através da simples mudança da quantidade e distribuição da vasopressina (Tabela omitida).
Os ratos da pradaria formam casais após 24 h do acasalamento (Williams et al., 1992; Winslow et al., 1993a/b; Insel et al., 1995a/b). Os membros dos casais permanecem juntos e em contacto físico um com o outro e os machos exibem agressão contra intrusos de ambos os sexos. O acasalamento facilita a formação de preferência pelo parceiro em ambos os sexos, mas nas fêmeas a cohabitação com um macho ao longo de 24 h antes do acasalamento é suficiente para induzir a preferência pelo parceiro (Williams et al., 1992). O acasalamento parece ser mais importante para os machos formarem casal e desenvolver agressão contra intrusos (Insel et al., 1995).
Como é que o acasalamento facilita a formação de casais? A estimulação genital provoca libertação intracerebral de oxitocina (OT) nos machos e nas fêmeas de variadas espécies (Witt, 1995). A libertação de OT durante a estimulação vaginocervical induz comportamento maternal nos ratos e nas ovelhas e é importante para a ligação ovelha-carneiro. A libertação central de OT durante o acasalamento também parece facilitar a formação de pares nos ratos da pradaria. A infusão intracerebroventricular (ICV) de oxitocina induz rapidamente a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria na ausência de acasalamento (Williams et al., 1994; Insel & Hulihan, 1995; Cho et al., 1999), enquanto a infusão do antagonista da oxitocina (OTA) bloqueia a formação desta preferência mesmo depois de acasalamento prolongado (Insel & Hulihan, 1995). A OT e OTA podem ter efeitos similares sobre a formação de preferência de parceiro nos machos dos ratos da pradaria, mas o efeito nos machos parece depender da dose e do paradigma comportamental (Windlow et al., 1993; Cho et al., 1999).
A arginina vasopressina (AVP), uma molécula similar à oxitocina, também foi implicada na transição de solteiro ao estado de casado, mas enquanto a OT facilita preferencialmente a formação de casais nas fêmeas, a AVP facilita preferencialmente a formação de casais nos machos. A infusão ICV de AVP nos machos dos ratos da pradaria induz a preferência de parceiro e a agressão contra intrusos na ausência de acasalamento (Winslow et al., 1993; Cho et al., 1999). Contrariamente, a infusão ICV de um antagonista da vasopressin-1a (V1a) receptor nos machos dos ratos da pradaria bloqueia o desenvolvimento da preferência de parceiro e da agressão selectiva, mesmo após a experiência de acasalamento prolongado (Winslow et al., 1993). A AVP também pode facilitar a formação de preferência de parceiro nas fêmeas, sob algumas condições experimentais (Cho et al., 1999) mas não noutras (Insel & Hulihan, 1995).
Como é que a OT e a AVP facilitam a formação de casais? Uma abordagem elegante para esclarecer esta questão recorreu à análise de OT knock-out (OTKO) mice (Freguson et al., 2000, 2001). Os ratinhos knock-out parecem ter respostas normais aos estímulos olfactivos não-sociais e exibem habilidades normais de aprendizagem espacial. Contudo, estes animais não conseguem reconhecer um congénere ou co-específico, mesmo depois de ter sido exposto a ele mais de uma vez. Injecções ICV de OT antes, mas não após, da exposição social restauram a recognição social nos ratinhos OTKO. A comparação de c-Fos imunoreactividade como um marcador de activação neuronal entre ratos machos selvagens e OTKO, acompanhada de exposição a estímulos femininos, sugere que o processamento de estímulos é normal nos ratos OTKO até atingir a amígdala medial. Os ratos selvagens, mas não os OTKO, mostram elevada indução de c-Fos na amígdala medial (Ferguson et al., 2001). A amígdala medial é um importante alvo das projecções provenientes do bulbo olfactivo e é rica em receptores de OT. A injecção de OT especificamente dentro da amígdala medial restaura a recognição social nos ratos OTKO, enquanto a injecção de OTA na mesma área nos ratos selvagens interrompe a recognição social. No entanto, nos ratos, a activaçãp dos receptores de Ot na amígdala medial durante o início da exposição social é necessária para a subsequente recognição social (Ferguson et al., 2001). Tal como os ratinhos, os ratos da pradaria dependem fortemente da olfacção para a recognição social (Cárter et al., 1995).
Uma hipótese para explicar os efeitos farmacológicos da OT sobre a preferência de parceiro nos ratos da pradaria é a de que, na amígdala medial, a OT facilita a formação de casais por aperfeiçoamento da recognição social, enquanto o OTA induz amnésia social (Young et al., 2001). Contudo, esta hipótese não explica porque razão os ratos da pradaria estabelecem relações monogâmicas e os ratos da montanha, bem como os ratinhos, não o fazem (Young et al., 2001).
Uma segunda linha de pesquisa deriva de estudos comparativos de espécies de ratos monogâmicos e não-monogâmicos. Embora a administração ICV de OT e AVP facilite a formação de preferência de parceiro nos ratos da pradaria, estes neurotransmissores não afectam o comportamento social dos ratos da montanha que, apesar de estarem relacionados, são não-monogâmicos (Winslow et al., 1993; Young et al., 1997, 1999). A oxitocina e a vasopressina medeiam os seus efeitos sobre o cérebro pela activação de receptores G-protein couple. Os padrões de expressão do receptor da OT e o V1a receptor diferem entre os ratos da pradaria e os ratos da montanha. Nos ratos da pradaria, mas não nos da montanha, o receptor da OT é expresso em níveis elevados no nucleus accumbens e no córtex pré-limbico (Insel & Shapero, 1992). O V1a receptor é expresso em níveis elevados na região do pallium ventral nos ratos da pradaria mas não nos ratos da montanha. O nucleus accumbens, o palladium ventral e o córtex pré-limbico estão associados com a via mesolímbica da dopamina, que é suposta estar envolvida nos efeitos de recompensa ou de reforço dos estímulos naturais ou psicoestimulantes (Pitkow et al., 2001). Estes dados são congruentes com a hipótese de que a OT e a vasopressina actuam nestas áreas do cérebro dos ratos da pradaria para condicionar uma preferência de parceiro (Insel & Young, 2001; Young et al., 2001). Com efeito, a injecção do OTA especificamente no nucleus accumbens ou córtex pré-límbico inibe a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria (Young et al., 2001), ao passo que o aumento da expressão do V1a receptor na região do palladium ventral, usando um viral vector, incrementa a preferência de parceiro e o comportamento afiliativo nos machos dos ratos da pradaria (Pitkow et al., 2001). Além disso, a neurotransmissão de dopamina no nucleus accumbens foi implicada na formação de preferência de parceiro (Wang et al., 1999; Gingrich et al., 2000). O acasalamento aumenta os níveis de dopamina no nucleus accumbens e a injeção de D2 dopamine receptor agonist quinpirole no seio do nucleus accumbens facilita a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria na ausência de acasalamento (Gingrich et al., 2000), sem impedir a continuação de um casal já estabelecido (wang et al., 1999). Estes dados apoiam a hipótese de que a formação de casais envolve uma preferência de parceiro condicionada e mediada, em parte, pela libertação de dopamina, OT e vasopressina durante o acasalamento.
Esta variação natural no padrão de expressão do V1a receptor pode ser importante para a variação do comportamento social em diferentes espécies de ratos. Os ratinhos transgénicos para o V1a receptor dos ratos da pradaria mostram um padrão de expressão do V1a receptor semelhante àquele observado nos ratos da pradaria e diferente do dos ratinhos selvagens, respondendo à injeção ICV de AVP com o aumento de comportamento afiliativo (Young et al., 1999).
Falta saber se estes estudos animais são relevantes para o amor humano. No cérebro humano, os receptores de oxitocina estão concentrados em diversas regiões ricas em dopamina, especialmente a substância negra e o globus pallidus, bem como a área pré-optica (Loup et al., 1991). Embora o padrão seja consistente com o cérebro monogâmico, os receptores não foram encontrados no estriatum ventral ou pallidum ventral, áreas nas quais os receptores V1a da oxitocina e da vasopressina são abundantes nos ratos e macacos monogâmicos (Wang et al., 1997). Ainda não existe evidência de que estas vias estejam envolvidas na vinculação humana (Carter, 1998).
Bartels & Zeki (2000) realizaram um «functional magnetic resonance imaging (fMRI) study of adults looking at pictures of their partners, as opposed to close non-romantic friends» e descobriram activação bilateral no cingulate anterior (Brodmann’s area 24), insula medial (Brodmann’s area 14), bem como no caudate e putamen. Este padrão de activação cortical era distinto daquele obtido por estudos anteriores de recognição facial, atenção visual, excitação sexual ou outros estados emocionais, mas assemelha-se aos resultados prévios de um «fMRI study of new mothers listening to infant cries» (Lorberbaum et al., 1999). Ambos os estudos da vinculação humana revelam marcada sobreposição entre o padrão de activação «when looking or hearing a loved one» e um relato anterior de activação durante a euforia induzida por cocaína (Breiter et al., 1997). Esta sobreposição sugere que as vias que medeiam as propriedades hedonistas dos psico-estimulantes estão também envolvidas, como sistema neural, na vinculação social. (Estudos recentes fornecem evidência nesse sentido) Estes resultados apontam no sentido do amor ser uma adição.

(Este texto é um resumo incompleto de outro estudo da minha Tese de Doutoramento. Muitos resultados, referências bibliográficas, tabelas e figuras foram omitidos, bem como partes de texto. A designação dalgumas estruturas cerebrais ficaram em inglês.)



J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA

O Léxico Erótico Gay Português

À memoria do meu orientador de doutoramento, Professor Doutor Custódio Rodrigues
A cada um dos tipos de homossexualidades corresponde um determinado estilo de vida e, ao analisarmos esse estilo de vida a partir dos campos cognitivos da moderna ideologia gay, tal como se revela na linguagem erótica gay portuguesa, somos reconduzidos ao modo como cada uma deles se relaciona com a sociedade e a cultura dominantes e com a própria homossexualidade e a comunidade gay estabelecida. Entramos assim no campo da luta ideológica, onde se confrontam duas ideologias: a ideologia heterosexista dominante e a moderna ideologia gay. Seguindo Thompson (1995), conceptualizamos a ideologia «em termos das maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar activamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e de recepção de formas simbólicas» (p.79).
Se a relação com a sociedade instituída for de rejeição da sua ideologia sexual dominante, o heterosexismo, a sua relação com a própria homossexualidade só pode ser encarada em termos de imaginário instituinte (Castoriadis, 1975, Durand, 1998, Bachelard, 1989, 1990a, 1990b, 1996a, 1996b, Althusser, 1974, Sartre, 1940): os homossexuais instituem o seu próprio mundo e apresentam-no como uma alternativa social e cultural ao mundo heterossexual predominante. É a isso que chamamos um estilo de vida autónomo. Mas, se a relação com a sociedade instituída for de aceitação plena ou de compromisso explícito ou tácito com a sua ideologia heterosexista dominante, a sua relação com a própria homossexualidade é necessariamente deformada e distorcida precisamente pelo facto de permanecer uma província da cultura do duplo-padrão dominante: os homossexuais, em vez de instituírem o seu próprio mundo através de um imaginário instituinte, deixam-se colonizar pelo imaginário instituído dominante. É a isso que chamamos um estilo de vida heterónomo.
Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto complexo de maneiras de agir, de pensar e de sentir, inscritas materialmente em determinados espaços sociais, que tipificam e caracterizam as práticas quotidianas de um determinado grupo ao longo da sua existência no tempo e no mundo em que habitam. Ou, como prefere Giddens (1994), é «um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adopta, não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade» (p.73). Estilo de vida autónomo e estilo de vida heterónomo são, portanto, duas construções ideais, sem as quais não poderíamos expor os dados empíricos e determinar as diferenciações que ocorrem no seu seio.
Em geral, as homossexualidades emersas que abrangem as homossexualidades femininas emancipadas e as homossexualidades masculinas masculinizadas têm um estilo de vida autónomo, enquanto as homossexualidades imersas que integram as homossexualidades masculinas efeminadas e as homossexualidades femininas masculinizadas e muitíssimo efeminadas têm um estilo de vida heterónomo. Este agrupamento das homossexualidades masculinas e femininas em torno de dois estilos de vida ideais pode ser diferenciado, quer em função do sexo, quer em função das relações que estabelecem entre si. Assim, obtemos quatro estilos de vida homossexuais:

Estilo de vida autónomo dos homossexuais masculinos emersos. Dizemos que os quatro subtipos de homens homossexuais masculinizados são emersos, não para significar com tal termo a sua «visibilidade social», mas antes para acentuar o modo criativo e liberto de preconceitos como aceitam e «assumem» a sua homossexualidade. À definição social do maricas opõem uma nova construção instituinte da homossexualidade: o Gay é o homossexual que, rejeitando o estereótipo social, afirma, nesse acto, a sua autonomia. O seu estilo de vida é autónomo, na medida em que recusa o imaginário instituído na e pela sociedade dominante a favor de um novo imaginário: um imaginário radical que cria uma nova imagem de homossexual ou novas maneiras de ser gay.

Estilo de vida heterónomo dos homossexuais masculinos imersos. Dizemos que os quatro subtipos de homens homossexuais efeminados, mas sobretudo os hiperefeminados, são imersos, não para significar com tal termo a sua «invisibilidade social», porquanto são os mais visíveis, mas antes para mostrar que vivem a sua homossexualidade nos termos impostos pela ideologia sexual dominante. A sua experiência da homossexualidade é aquela que lhes é imposta, durante a socialização, pela ideologia sexual dominante. Os homossexuais masculinos imersos vivem subjugados, sujeitados e submetidos aos padrões sexuais da ideologia dominante: a sua homossexualidade é extremamente visível em termos sociais, uma vez que todas as pessoas conhecem a definição social do maricas e, por conseguinte, sabem reconhecer os que agem em conformidade com esse estereótipo social. Constituem aquilo a que os homossexuais masculinos emersos chamam «o lado publicitário do movimento gay». São, pois, indivíduos, simultaneamente, integrados e «marginalizados» na e pela sociedade estabelecida. O seu estilo de vida decorre nos espaços que a sociedade lhes reserva e, como tal, é fortemente condicionado pela mesma (Nicolas, 1982). A heteronomia é a estrutura caracterizadora do seu estilo de vida.

Estilo de vida autónomo das lésbicas emersas. Dizemos que as lésbicas emancipadas são emersas, não para significar com tal termo a sua «visibilidade social», mas antes para acentuar o modo criativo e liberto de preconceitos como aceitam e «assumem» a sua homossexualidade. O seu estilo de vida é autónomo, na medida em que, recusando a colonização da sua homossexualidade, inventaram novas formas de ser homossexual, com as quais se identificam e em conformidade com as quais agem, pensam e sentem.

Estilo de vida heterónomo das lésbicas imersas. Dizemos que as lésbicas masculinizadas e demasiado efeminizadas são imersas, não para significar com tal termo a sua «invisibilidade social», mas antes para mostrar que vivem a sua homossexualidade nos termos impostos pela ideologia sexual dominante. Deste grupo de lésbicas aquelas que são mais facilmente reconhecidas socialmente são, sem dúvida, as homossexuais masculinizadas caricaturais; as restantes passam despercebidas, pelo menos ao olhar pouco instruído. Dado a sua vivência da homossexualidade decorrer em conformidade com o imaginário sexual instituído, o seu estilo de vida é claramente heterónomo. Objectiva e subjectivamente, são homossexuais colonizados, destituídos de uma identidade própria.

As relações que os quatro grupos homossexuais estabelecem entre si são de dois tipos — de proximidade e de distância. As homossexuais femininas imersas e os homossexuais masculinos imersos aproximam-se entre si e as homossexuais femininas emersas e os homossexuais masculinos emersos tendem a distanciar-se entre si, embora partilhem um imaginário instituinte semelhante (Estudo em preparação). Estas relações intra e inter-homossexuais reflectem as relações que cada um dos grupos estabelece com a ideologia sexual dominante. As homossexualidades emersas são aquelas que emergem de modo criativo por oposição à ideologia sexual dominante: o seu imaginário é radical e autónomo. As homossexualidades imersas são aquelas que se deixaram colonizar pela ideologia sexual dominante.
Ora, a moderna ideologia gay é o imaginário radical das homossexualidades emersas: o seu alvo de ataque é a colonização das homossexualidades por parte da ideologia sexual dominante que não lhes reconhece o direito à existência e à diferença.
Contudo, apesar desta diferenciação sócio-ideológica, existe um conjunto de variáveis que tende a criar uma certa uniformidade entre os diversos estilos de vida homossexuais: trata-se evidentemente da promiscuidade sexual. Os homossexuais que têm consciência disso tendem a distinguir dois tipos de promiscuidade sexual: as formas “boa” e “má” da promiscuidade sexual, a primeira atribuída aos homossexuais que vivem a sua homossexualidade “sem preconceitos” e a segunda atribuída aos que a vivem “com preconceitos de diversas ordens”. Escusado será dizer que esta distinção tende a coincidir respectivamente com as oposições entre “sexo grátis” e “sexo não grátis” e “homossexuais normais” e “ralé gay”. Embora se reconheça uma certa diferenciação da promiscuidade sexual, ela é encarada de um ponto de vista demasiado «elitista». Contudo, das pressões que o atractor da inércia exerce sobre os diversos estilos de vida homossexuais resulta uma diferenciação interna da própria promiscuidade sexual e, consequentemente, a emergência de diversos estilos de vida sexualmente promíscuos, que serão examinados no estudo seguinte.

A comparação dos léxicos eróticos heterossexual e homossexual evidencia imediatamente que ambos são criações masculinas, o que abona a favor da tese de Dale Spender (1980), segundo a qual a linguagem tanto evidencia a história da dominação masculina, como constitui um instrumento de «opressão», uma vez que restringe a maneira pela qual os homens classificam e conceptualizam as mulheres e até mesmo a maneira pela qual as mulheres pensam sobre si mesmas e sobre o mundo. De facto, a preocupação homossexual masculina pela linguagem não se verifica entre as lésbicas. Se a opressão feminina, passada e actual, é não somente reflectida na linguagem, mas também o seu resultado, dado ter um vocabulário derrogatório bem desenvolvido em relação à mulher, as lésbicas são duplamente derrogadas enquanto mulheres e enquanto lésbicas. As lésbicas observadas não exibiram capacidade de produção de significados. Daí que não tenhamos conseguido elaborar um léxico erótico lésbico. A sua linguagem parasita claramente a linguagem gay, como se pode verificar consultando o Dicionário Gay/Lésbico Ilustrado do site PortugalGay.PT.
Além de serem criações masculinas, as linguagens eróticas analisadas desvalorizam as mulheres. O domínio masculino, heterossexual ou homossexual, da linguagem manifesta-se em três marcas: (1) os homens produzem significados; (2) os homens desvalorizam as mulheres e (3) os homens sobrevalorizam a masculinidade. As linguagens eróticas são claramente «linguagens falocráticas» (Preti, 1984). E, curiosamente, os homossexuais efeminados, apesar de serem extremamente fluentes na fala e no discurso, tal como as mulheres heterossexuais (Kucian et al., 2005; Crucian & Berenbaum, 1998; Newman, Sellers & Josephs, 2005; Cohen-Kettenis et al., 1998), mostram-se pouco capazes de gerar significados de grupo: a sua atitude é a defensiva. Os homossexuais hiperefeminados encaram-se voluntariamente como «mulheres»: eles querem ser «elas» e é, como se fossem «elas», que se tratam entre si. A sua visão da homossexualidade é a da passividade «malcriada». Sujeitam-se, sem resistência, ao discurso heterosexista, deixando-se interpelar como «maricas» (Althusser, 1974, Berger, 1986). Eles/elas não precisam gerar novos significados, dado estarem satisfeitos com a rotulagem dominante.
Destas considerações resultam três conclusões gerais a tirar e, neste aspecto, não podemos ser politicamente correctos: (1) o poder é masculino, (2) a sexualidade é predominantemente masculina, como diria o Professor Custódio Rodrigues, e (3), se a linguagem é «história sedimentada», a conclusão de Spender, que alargamos às lésbicas e aos homossexuais efeminados, sobretudo os hiperefeminados, é correcta: as mulheres e seus associados masculinos estão aprisionados linguisticamente e «sem saída». Carecem, portanto, de um jogo de linguagem autónomo. Este aprisionamento reflecte a infra-estrutura biológica que partilhamos com os restantes mamíferos: o domínio do macho. Encarar o problema das mulheres e seus associados masculinos como um problema de inacessibilidade ao poder, como faz Cameronn (1985), não é um caminho adequado. A história é a história dos homens e, como diz Walter Benjamin (1992), dos homens «vencedores»: a origem da dominação masculina perde-se, como diz Spender, no passado, ou melhor, na genética das sociedades de caçadores. Deborah Smith (1979) faz a este propósito uma observação curiosa: A tradição intelectual ocidental e a história das publicações impressas são certamente a história dos empreendimentos masculinos ou, como as feministas poeticamente preferem dizer, "his-story". Em inglês, history (história) torna-se, para as feministas, "his" (dele, a sua), mais "story" (história), não havendo a forma "her-story" (a história dela).

Os resultados deste estudo da linguagem erótica gay estão em conformidade com aqueles apresentados por Joel W. Wells (1987, 1990). Com efeito, verifica-se que o uso da linguagem erótica em diferentes contextos das relações interpessoais varia em função do género e da orientação sexual, sendo sexualmente mais excitante para os homens do que para as mulheres. Em média, os homens tendem a usar mais essa linguagem do que as mulheres, e os homens e mulheres homossexuais usam mais frequentemente um vocabulário erótico ou excitante, sobretudo em conversas em chat, do que os homens e as mulheres heterossexuais, pelo menos nas suas relações amorosas. Aliás, alguns homens heterossexuais que, auto-classificando-se no topo da hierarquia social e educacional, julgam ser «feio dizer palavrões em público» e gostar de «jogos masculinos rudes», de resto um tipo heterossexual masculino que exibe traços sexualmente atípicos e afectados, quase do tipo enfastiado de efeminamento (Tripp, 1978). No entanto, os homens homossexuais, quando interagem real ou virtualmente com os companheiros ou potenciais parceiros sexuais, usam quase exclusivamente uma linguagem sexualmente provocadora e excitante. Entre os homens homossexuais, verifica-se que os activos e mais masculinizados usam espontânea e abundantemente essa linguagem, enquanto os passivos e efeminados se limitam a oferecer os seus serviços sexuais, como por exemplo: «Queres que te faça um broche?». Esta mensagem apareceu frequentemente no meu telemóvel no decurso da pesquisa interactiva. Os seus emissores têm essa mensagem e outras similares guardadas nos seus telemóveis, porquanto a enviam regularmente e, por vezes, mais de uma vez por dia para os nomes que constam nas suas «listas íntimas», na expectativa de marcarem um encontro sexual.

Mas a linguagem erótica gay é mais do que um depósito de palavras eróticas usadas para aumentar a excitação sexual: ela estrutura uma visão do mundo, a que chamámos moderna ideologia gay, cujo objectivo é combater a concepção social do maricas e acentuar a condição masculina dos homossexuais, mediante a valorização de traços masculinos e hipermasculinos e a desvalorização da feminilidade, de modo a cimentar uma comunidade gay autónoma e liberta dos estereótipos sociais. Assim, este estudo da linguagem erótica gay portuguesa foi realizado afim de testar, ao nível do vocabulário, a hipótese de Sapir-Wolff, que Clyde Kluckhohn (1972) sintetizou nestes termos: «A língua é, em certo sentido, uma filosofia» (p.165), levando em conta que, numa língua, é o léxico que «reflecte mais directamente as realidades não linguísticas» (Martinet, 1974, p.36). Schutz (1974) acentuou que as tipificações se encontram elaboradas no vocabulário da linguagem ordinária e, no nosso caso, no uso que os próprios homossexuais fazem dela em contextos práticos da vida quotidiana. A visão do mundo que está implícita na linguagem erótica gay foi estruturada, seguindo indicações contextuais de uso, em onze dimensões cognitivas, que, em termos quantitativos, se ordenam seguindo esta sequência decrescente: actividades homossexuais (1), sexualidades alternativas (2), desencadeadores sexuais corporais (3), classificações emic das homossexualidades (4), vida conjugal gay e adultério (5), elementos do comportamento sexual (6), estilo de vida predominante e ambientes (7), iniciação homossexual (8), ligações homossexuais e parceiros sexuais (9), sociedade e conflito ideológico (10) e orientações sexuais (11). Verifica-se claramente um predomínio do sexo sobre qualquer outro assunto, mesmo aquele que interessa a todos e que deveria estar no cerne da ideologia gay: o da sociedade e conflito ideológico. E, conforme mostraram Witter et al. (2005), os homens homossexuais incluem mais referências sexuais em relação a eles próprios nos seus anúncios íntimos do que os homens heterossexuais.

1. Dimensão das actividades homossexuais. Das actividades homossexuais a mais preferida é claramente o sexo anal (1º), seguida pela conquista sexual (2º), sexo oral (3º), preliminares sexuais (4º), masturbação (5º), comportamentos pós-coitais (6º), papel desempenhado na corte e coito entre-pernas e entre-nádegas (ambos em 7º), cunnilingus (8º) e, finalmente, cópula por fricção (9º). Os homens que fazem sexo com homens preferem claramente praticar o coito anal e o sexo oral como preparação para o primeiro, com parceiros sexuais ocasionais seduzidos nos lugares públicos reservados a essa função. O campo lexical da conquista sexual configura um estilo de vida centrado na procura compulsiva de parceiros sexuais.

2. Dimensão das sexualidades alternativas. Das sexualidades alternativas a mais referida é a prostituição masculina (1º), claramente um estilo de vida de determinados tipos de homossexuais, a que se segue o sadomasoquismo (2º), o exibicionismo, voyeurismo e fetichismo (3º), a homossexualidade feminina (4º), a pederastia e pedofilia (5º), o travestismo e transexualismo (6º), o sexo em grupo (7º), o oportunismo (8º), a urologia e escatologia (9º), a heterossexualidade (10º), a pornografia gay (11º), a bissexualidade (12º), a zoofilia (13º) e, finalmente, o sexo com velhos (14º).

3. Dimensão dos desencadeadores sexuais corporais. O pénis (1º), o ânus (3º), os testículos (4º) e as nádegas (5º) são, por esta ordem, os desencadeadores sexuais corporais mais apreciados. Seguem-se depois a pilosidade (6º), os órgãos genitais masculinos (7º), a glande (8º), o prepúcio e os odores (ambos em 9º), a vagina (10º) e, finalmente, o escroto (11º). As outras partes do corpo foram classificadas conjuntamente (2º). O pénis e o ânus são, sem dúvida, os desencadeadores corporais sexuais mais atractivos para todos os homens gay e, com excepção da vagina, todos os outros desencadeadores sexuais são traços e estruturas masculinas. Embora não tenham sido tratadas separadamente, a boca, os olhos, as mãos, o pescoço ou a língua são estruturas muito valorizadas eroticamente.
Em termos estritamente homossexuais, é compreensível o destaque dos órgãos genitais masculinos e do ânus/nádegas, porquanto estas são as estruturas eroticamente mais atractivas e mais usadas nas relações gay, mas o mesmo não pode ser dito em relação aos homens heterossexuais. No entanto, os léxicos eróticos heterossexuais destacam os órgãos genitais masculinos em detrimento dos órgãos genitais femininos. Além disso, a vagina não é alvo de discriminações mais subtis, como se fosse uma mera «bainha» ou como se os homens fizessem sexo com mulheres para exibir a sua masculinidade para os outros homens.

4. Dimensão das classificações emic das homossexualidades. Os homens homossexuais são classificados em função de três critérios gerais: visibilidade (50,58%), preferências sexuais (31,66%) e atributos hipermasculinos (17,76%), donde resulta uma classificação dicotómica que decalca o duplo-padrão. Esta classificação emic das homossexualidades está bem patente nos anúncios íntimos, impressos e electrónicos, e na correspondência de corte, e nas comunicações mediadas por computador e é fundamentalmente congruente com as nossas tipologias das homossexualidades masculinas e femininas.
Segundo a visibilidade, os homossexuais são classificados em função da aparência e atractividade física (1º), em muito atraentes e pouco atraentes, em função do duplo-padrão (2º), em masculinos e efeminados, em função da compleição física (3º), em musculosos e em «amulherados», e em função das exibições (4º), em discretos e em escandalosos.
Nas preferências sexuais, destacam-se as actividades sexuais (1º), os papéis sexuais (2º) e a idade (3º). Os homossexuais mais velhos são vistos como pouco atraentes.
Evidencia-se nos atributos hipermasculinos uma clara preferência por parceiros sexuais «bem dotados» (2º) e sexualmente potentes (1º). (A experiência heterossexual é referida uma única vez, embora seja usada como indicador de masculinidade e virilidade). Tanto quanto sabemos nenhum estudo sobre os atributos dos parceiros preferidos captou este padrão: os homens homossexuais preferem parceiros dotados de pénis com grandes dimensões e com fortes erecções. O contacto visual olhos-no-pénis visa avaliar as dimensões do pénis do potencial parceiro sexual, o denominado «papo», além de indicar disponibilidade e interesse sexuais. É, por isso, que os homossexuais, em particular os masculinizados e activos, fazem nudismo e exibições fálicas nos lugares que propiciam as actividades sexuais, nomeadamente nas praias periféricas e estações de serviço.

5. Dimensão da vida conjugal gay e adultério. Os sete campos lexicais que constituem esta dimensão seguem a seguinte ordem decrescente: compromisso e tipos de uniões estáveis (1º), membros do casal gay (2º), cometer adultério (3º), parceiro traído (4º), particularidades da vida conjugal (5º), divórcio (6º) e ligações extraconjugais (7º). Paradoxalmente, na dimensão da vida conjugal e adultério, o campo lexical predominante é o do compromisso e tipos de uniões estáveis, intimamente associado ao campo dos membros do casal gay. Este facto revela uma discrepância entre o tipo «ideal» de ligação a longo prazo almejada pelos homossexuais e as ligações a curto prazo observadas, a qual reflecte uma insatisfação gay com o seu estilo de vida sexualmente promíscuo predominante. As uniões estáveis são enfaticamente caracterizadas como ligações afectivas.
No adultério, observa-se o mesmo preconceito heterosexista: o indivíduo traído é muito estigmatizado e maltratado e o parceiro infiel acaba por ser até certo ponto admirado.

6. Dimensão dos elementos do comportamento sexual. A erecção (1º) e a ejaculação/orgasmo (2º) são os elementos do comportamento sexual mais mencionados. Seguem-se a excitação sexual (3º) e o sémen (4º). Todos estes elementos são traços especificamente masculinos, tidos como características dos homossexuais com «aspecto masculino e jovem» e preferencialmente activos e dominantes. No entanto, o campo da excitação sexual também refere a excitação anal, atribuída aos homossexuais passivos. O predomínio da erecção, isto é, do pénis erecto, coaduna-se, como seria de esperar, com a noção do pénis como o desencadeador corporal sexual mais erótico, em torno do qual gira a atracção homossexual.

7. Dimensão do estilo de vida predominante e «ambientes». Na dimensão do estilo de vida predominante, a promiscuidade sexual e seus dependentes (1º) e os «ambientes» (2º) predominam sobre os riscos do comportamento sexualmente promíscuo (4º) e a Sida e sexo seguro (3º), mais outra indicação de que os homens homossexuais portugueses praticam sexo sem preservativo. Os «ambientes» mais referidos são aqueles que propiciam a actividade sexual, os chamados oásis eróticos.

8. Dimensão da iniciação homossexual. A iniciação homossexual é dominada claramente pela iniciação sexual propriamente dita (1º) e pela identidade gay (2º), entendida como «discrição», seguindo-se a classificação dos participantes (3º) e a homosocialização (4º). A ausência de preocupação real pela formação de uma identidade gay saudável deve-se ao facto da maior parte dos homossexuais portugueses, sobretudo os masculinizados, preferirem viver a sua homossexualidade na clandestinidade, evitando assim conflitos com a família e entidades patronais. Contudo, a clandestinidade tem os seus preços, quer ao nível da saúde, quer ao nível da coesão da comunidade gay, porquanto o processo de «coming out» é não apenas um acto pessoal, mas também um acto ideológico (De Cecco, 1984; Grierson & Smith, 2005).

9. Dimensão da sociedade e conflito ideológico. A homofobia e seus efeitos (1º) destacam-se na dimensão da sociedade e conflito ideológico, seguindo-se o conflito entre a sociedade heterosexista e comunidade gay (2º) e as lutas do movimento gay (3º). Compreende-se facilmente o papel de destaque desempenhado pela homofobia e pelos preconceitos sexuais manifestados contra os homossexuais desde a infância (Corliss, Cochran & Mays, 2000; Parrott & Zeichner, 2006), mas o último lugar atribuído aos movimentos gay mostra que os homossexuais portugueses são pouco reivindicativos e empenhados politicamente, preferindo viver na clandestinidade.

10. Dimensão das ligações homossexuais e parceiros sexuais. Com excepção das uniões estáveis, os homossexuais distinguem três tipos de ligações: encontros ocasionais (1º), semanticamente relacionados com o estilo de vida sexualmente promíscuo dos homossexuais, ligações breves (2º) e ligações prolongadas (4º), às quais correspondem o parceiro ocasional ou estranho, o parceiro amante e o parceiro companheiro, respectivamente (3º). A amizade e o sexo não se diferenciam no mundo gay: um grupo de amigos constitui também uma «lista» de potenciais parceiros sexuais. À partida parece haver uma contradição entre o destaque das ligações a curto prazo e o papel de relevo dado às uniões estáveis na dimensão cognitiva da vida conjugal gay e do adultério. No entanto, independentemente da insatisfação, podemos afirmar que, tal como os homens heterossexuais, os homens gay adoptaram uma estratégia sexual de acasalamento mista: conjugam uma ligação a longo prazo com relações extraconjugais ocasionais, muitas das quais acontecem nos lugares de trabalho (Traeen, Holmen & Stigum, 2007; Buss, 1989). A própria classificação dos parceiros sexuais mostra que os homens gay distinguem entre dois tipos de fidelidade ou de infidelidade: sexual e emocional, e, ao contrário dos homens heterossexuais e de modo semelhante às mulheres, consideram que a infidelidade emocional é mais ameaçadora que a infidelidade sexual, podendo levar ao divórcio (Buunk & Dijkstra, 2001; Sagarin et al., 2003; Shackelford et al., 2004; Buss et al., 1999; Buss & Shackelford, 1997; Wood & Eagly, 2002; Geary, Vigil & Byrd-Craven, 2004; Schmitt, Shackelford & Buss, 2001; Harris, 2000).

11. Dimensão das orientações sexuais. Finalmente, a orientação sexual que mais preocupa os homossexuais masculinos é a própria homossexualidade (1º), a que se seguem a heterossexualidade masculina (2º), a homossexualidade feminina (3º), a bissexualidade (4º) e a heterossexualidade feminina (5º). A homossexualidade masculina é enfaticamente definida como «gostar curtir com o mesmo instrumento». Contudo, ao contrário do imaginário heterossexual radical, os homens homossexuais não estigmatizam a heterossexualidade masculina ou mesmo feminina, porquanto os homens heterossexuais constituem, de certo modo, os seus alvos sexuais preferidos ou exemplares, pelo menos em fantasia e a figura da mulher está associada no seu imaginário à figura da mãe.

(Este texto é um resumo de um estudo estatístico do léxico erótico gay português que faz parte da minha Tese de Doutoramento. Algums dados e considerações foram omitidos, bem como a comparação dos léxicos gay e heterossexual. As classificações emic das homossexualidades masculinas confirmam cabalmente a nossa tipologia das homossexualidades, mostrando que os próprios machos homossexuais seguem uma classificação dicotómica, atribuindo e diferenciando cada um dos tipos básicos de machos homossexuais em função de determinados traços ou características, muitas das quais são levadas em conta pelos estudos científicos disponíveis, mas sem diferenciar internamente a amostra.)
J Francisco Saraiva de Sousa