segunda-feira, 14 de julho de 2008

Bachelard e Filosofia do Habitar

«A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o homem é colocado no berço da casa.» (Gaston Bachelard)
Segundo Bachelard, a função primordial da casa é abrigar e proteger: a casa tem "valor de protecção". Na vida do homem, a casa constitui um "centro de abrigo", que cria em si uma esfera ordenada, um cosmos, do qual é eliminado o caos e a desordem do mundo exterior: "Na vida do homem, a casa afasta contingências". Goethe referiu-se, no seu "Fausto", ao fugitivo, ao "sem-abrigo", ao "sem lar", ao homem desnaturalizado "sem meta nem repouso": este homem sem-abrigo é uma criatura desnaturalizada, porque errou a autêntica natureza do homem que, segundo Heidegger, reside no habitar resguardando a quadratura: os sem-abrigo que vagueiam pelas nossas cidades foram destituídos do estatuto de humanidade e, por isso, já não são "homens", os quais na linguagem capitalista significam "contribuintes" nomeados nas suas inúmeras estatísticas metabolicamente gordas e inumanas, completamente reificadas. Isto significa que o homem só pode ser verdadeiramente homem quando tem um lar, uma casa. O fugitivo leva, qual vagabundo, uma vida errante e intranquila, condenada ao desenraizamento ou, como Bachelard prefere dizer, à fragmentação: o fugitivo ou, como lhe chama Bachelard, a "alma apátrida" dispersa-se e perde-se no anonimato, na desordem, nos vícios e nas compulsões da grande cidade. A sua vida torna-se fragmentada, "fragmentadora fora de nós e em nós". A casa possibilita ao homem um enraizamento mais profundo na vida e constitui um elemento de estabilidade: "Multiplica os seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso". A casa é capaz de recolher o disperso e conduzir o homem ao recolhimento. Bachelard considera-a "uma das maiores forças de integração" na vida do homem. Deste modo, a casa garante um apoio para resistir aos ataques do mundo exterior, mantendo o homem erguido "através das tempestades do céu e das tempestades da vida", ao mesmo tempo que lhe permite entregar-se aos sonhos de fantasia, aos devaneios, os sonhos diurnos de Ernst Bloch, o que constitui o seu "encanto mais valioso": "A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz".
Com estes devaneios do sonhador, nasce "a casa do sonho", a "casa onírica", aquele "templo da casa natal", no qual se condensam todas as lembranças das diversas moradas habitadas e vividas pelo homem, bem como as primeiras experiências de habitar no lar paterno, que ajudam a formar a "imagem primitiva da casa": "A nossa casa, captada no seu poder onírico, é um ninho no mundo". Para Bachelard, a consciência de bem-estar da vida que a casa proporciona ao homem é o sentimento feliz de abrigo e de refúgio. Bachelard vai mais longe quando escreve: "Não existe bem-estar sem devaneio. Nem devaneio sem bem-estar. Assim, pelo devaneio, descobrimos que o ser é um bem. Um filósofo dirá: o ser é um valor." O homem sonhador não está lançado e jogado no mundo, porque para ele o mundo é acolhimento e ele próprio é princípio de acolhimento: "O homem do devaneio banha-se na felicidade de sonhar o mundo, banha-se no bem-estar de um mundo feliz. O sonhador é dupla consciência do seu bem-estar e do mundo feliz. O seu cogito não se divide na dialéctica do sujeito e do objecto", porque, quando ele sonha o mundo, o mundo passa a existir tal como ele o sonha. Habitando verdadeiramente todo o volume do seu espaço, o sonhador está em todas as partes no seu mundo, "num dentro que não tem fora". O mundo já não está diante do eu e o eu já não se opõe ao mundo: "tudo é acolhimento".
Se o homem se sentir bem e confortável no calor do seu "ninho", ele será invadido pela "felicidade do habitar", acompanhada pelo sentimento completamente elementar de se sentir semelhante ao animal. Como escreveu o pintor Vlaminck: «O bem-estar que sinto diante do fogo, quando o mau tempo se desencadeia, é totalmente animal. O rato no seu buraco, o coelho na toca, a vaca no estábulo, devem ser felizes como eu». A casa como abrigo permite apreender a cálida "maternidade da casa": o onirismo da casa exige uma "pequena casa" dentro da "grande casa" para que o homem possa recuperar as seguranças primárias da "vida sem problemas". Todos os lugares de repouso são lugares maternais e a casa onírica é, em termos de intimidade e de repouso, mais profunda do que a casa natal, na medida em que sem a "casa de sonho" todas as "casas reais" são "casas mutiladas". O homem da cidade é, de certo modo, um ser mutilado, privado de actividade onírica e reduzido ao "conforto do esófago".
A filosofia fenomenológica do habitar diverge do existencialismo de Jean-Paul Sartre: Bachelard defende que a casa e não o "ser lançado no mundo hostil" constitui a "experiência primitiva do homem". Isto significa que a ameaça e a hostilidade do mundo externo são algo derivado e posterior: "A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa. (...) A experiência da hostilidade do mundo e, consequentemente, os nossos sonhos de defesa e de agressividade, são posteriores. No seu germe, toda a vida é bem-estar. O ser começa pelo bem-estar" e, na perspectiva do habitar, "o mundo é o ninho do homem". A ideia de Inverno com a neve e o gelo intensifica especialmente o "valor de intimidade da casa": o "lugar" onde o homem medita o seu ser no ser tranquilo do mundo. Baudelaire já se tinha interrogado: "O Inverno não aumenta a poesia da habitação?" O sonhador "pede anualmente ao céu tanta neve, granizo e geada quanto seja possível. É preciso que haja um inverno canadense, um inverno russo. O seu ninho será mais quente, mais doce, mais amado." Henri Bosco esclarece: "Quando o abrigo é seguro, a tempestade é boa".
Porém, Bachelard previne que, na dialéctica da casa e do universo, não podemos ignorar o momento de luta que se manifesta na resistência contra as forças da natureza. E, recorrendo ao testemunho poético de Henri Bosco, relativo à coragem da casa de Malicroix diante de uma tempestade, chamada La Redouse e construída numa ilha da Camarga, escreve: "A casa lutava com bravura. Ao princípio queixava-se; as piores rajadas atacaram-na de todos os lados ao mesmo tempo, com um ódio nítido e tais urros de raiva que, durante alguns momentos, eu tremi de medo. Mas ela resistiu. Quando começou a tempestade, ventos mal-humorados dedicaram-se a atacar o telhado. Tentaram arrancá-lo, partir-lhe os rins, fazê-lo em pedaços, aspirá-lo. Mas ele curvou o dorso e agarrou-se ao velho vigamento. Então outros ventos vieram e, arremessando-se rente ao solo, arremeteram contra as muralhas. Tudo se vergou sob o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo-se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela prendia-se ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis e, por isso, as suas finas paredes de pau-a-pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava o meu corpo não cedeu nada à tempestade. A casa apertou-se contra mim, como uma loba, e, por momentos, senti o seu cheiro descer maternalmente até ao meu coração. Naquela noite ela foi realmente a minha mãe".
É nestes momentos de luta contra as forças destrutivas da natureza que se constitui a "comunidade dinâmica entre o homem e a casa": Erguida contra a tempestade, "a casa torna-se o verdadeiro ser de uma humanidade pura, o ser que se defende sem jamais ter a responsabilidade de atacar. La Redousse é a Resistência do homem. É valor humano, grandeza do Homem». A casa é não somente protecção externa, "concha", mas também símbolo da vida humana: «Toda a forma guarda uma vida. O fóssil já não é simplesmente um ser que viveu; é um ser que ainda vive, adormecido na sua forma". Quando se contrai e se torna mais protector e exteriormente mais forte, o refúgio transforma-se em reduto, isto é, em "fortaleza da coragem para o solitário que nela deve aprender a vencer o medo. Tal morada é educativa". A casa é educativa, a casa educa, a casa paterna é o berço da educação. Isto significa que a casa, além de dispensar interiormente calor, comodidade, repouso, tranquilidade, afecto, serenidade e acolhimento, dá ao homem na sua relação com o mundo exterior firmeza de carácter e força para prevalecer contra o mundo: A casa "é um instrumento para afrontar o cosmos. (...) A casa ajuda-nos a dizer: serei um habitante do mundo, a despeito do mundo".
Se as filosofias da existência encaravam o homem como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência do homem é totalmente determinada a partir do habitar. Segundo Bachelard, o homem habita a sua casa antes de habitar o mundo: "Todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa" e "a casa é o nosso canto do mundo", "o nosso primeiro universo", porque, antes de ser lançado no mundo, "o homem é colocado no berço". Depois de ter começado a vida bem "agasalhada no regaço da casa", o homem é "expulso" e "posto fora de casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo". A expulsão do abrigo natal é, de certo modo, preparada pela exploração do espaço livre que circunda a casa: o quintal com o seu jardim, as suas dependências e os seus animais de estimação, um imenso espaço de acção, desprezado por Bachelard, no qual irrompe em segredo o contacto com o mundo exterior. O começo da vida humana ocorre numa conexão essencial com a casa: o estado de abrigado em casa tem objectivamente primazia sobre o estado de "ser lançado no mundo", o qual é experimentado posteriormente. O "encontrar-se" no espaço abrigado da casa opõe-se ao estado de lançado no mundo. Habitar não significa estar abandonado em qualquer lugar de um mundo hostil; mas significa estar abrigado graças ao "amparo da casa".
Minkowski elaborou o conceito de "ressonância no espaço" para qualificar um carácter geral do "espaço vivido", para além da sua significação meramente acústica: o homem pode sentir-se amparado no espaço total como se estivesse num espaço fechado. O espaço pode cumprir esta missão, porque o homem não se encontra originariamente nele como um "estranho" lançado num elemento que lhe é alheio, mas se sente ligado ao espaço, amalgamado com o espaço e sustentado pelo espaço. Daqui resulta que todo o ser vivo pode viver em simpatia, em harmonia e de acordo com o seu meio: a ressonância designa um estado primacial muito mais "primitivo que a antítese do eu e do mundo". Anulada a cisão entre sujeito e objecto, o espaço originário não pode ser objectivado. Embora tenha com o espaço uma relação oscilante, precisamente no ponto central entre o ter e o ser, o homem pode identificar-se com o espaço e, neste caso, ser o espaço onde está. Bachelard cita o verso de Noël Arnaud: "Sou o espaço onde estou". Assim, podemos alargar o conceito de habitar ao modo de ser do homem no espaço e afirmar que o homem mora no espaço, tal como habita na casa. Ora, o habitar na casa só pode dar amparo quando o homem morar de modo mais dilatado no espaço. Retomando o conceito de "encarnação", podemos afirmar que o "homem está encarnado no espaço". Esta expressão significa que o homem não só se encontra num meio e pode mover-se nele, mas que ele próprio é parte integrante desse meio, separado por um limite do meio circundante e, apesar disso, unido e sustentado pelo meio.
Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes" como "espaços de posse": espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" da natureza e da economia capitalista que reduz a casa à sua mera funcionalidade e à "satisfação do instinto de proprietário", negando-lhe a sua dimensão onírica impulsionada pelos "sonhos que querem enraizar-se". A geografia e a etnografia descrevem os mais diversos tipos de habitação, enquanto a fenomenologia procura revelar a "função original do habitar" e compreender o germe da "felicidade central, segura, imediata": "Encontrar a concha inicial em toda a moradia, no próprio castelo, eis a tarefa básica do fenomenólogo": "A imagem poética (da casa) está sob o signo de um novo ser" e "esse novo ser é o homem feliz". A fenomenologia da casa é, pois, uma "topofilia", que visa determinar o "valor humano" dos "espaços amados", sem levar em conta os "espaços de hostilidade" e os "espaços de ódio e de combate" associados a "imagens apocalípticas" e a matérias ardentes, tais como o fogo, os incêndios, os vulcões ou as guerras.
A explicitação da essência total da casa exige não só um desenvolvimento horizontal, mas também um desenvolvimento vertical. Isto significa que as moradas devem prolongar-se para a altura e a profundidade, ou seja, devem ter um sótão e um porão: "A verticalidade (da casa) é proporcionada pela polaridade do porão e do sótão". Como arquitecto da casa onírica, Bachelard hesita entre a casa de três e a casa de quatro andares, embora se incline para a casa de três andares: "A casa de três andares, a mais simples com referência à altura essencial, tem um porão, um pavimento térreo e um sótão". O interior da casa repete a significação simbólica do de cima e do de baixo. Entre os andares existem as escadas: "A escada que conduz ao porão tem um carácter diferente da escada que leva ao sótão". Descemos as escadas que conduzem ao porão e subimos as escadas abruptas que levam ao sótão: as restantes escadas nós as subimos e as descemos. Descer ao porão, onde a casa mergulha as suas raízes na terra negra e húmida, significa mergulhar na noite e no frio que moram debaixo da casa e, em princípio, só os homens vão à adega buscar o vinho. Subir ao sótão é ascender para a mais tranquila solidão. O sótão é o lugar onde ocorreram as birras de infância, a contemplação, as leituras intermináveis, o disfarce com as roupas dos nossos avós e a descoberta de imensas velharias que se ligam para sempre à alma da criança: os devaneios do sótão tornam vivos o passado familiar e a juventude dos nossos ancestrais. Para Bachelard, o sótão é o que faz a casa estar enraizada no solo profundo, de resto inquietante e terrível, da terra e das rochas. E, seguindo Henri Bosco, sonha com uma "casa com raízes cósmicas", que se eleva das mais terrestres e aquáticas profundezas até à morada de uma alma que habita no céu: "A casa converte-se num ser da natureza. É solidária com a montanha e com as águas que trabalham a terra". Esta casa evocada por Bosco ilustra a "verticalidade do humano" e é oniricamente completa. A casa é um "arquétipo sintético" que evoluiu: no seu porão está a caverna e no seu sótão está o ninho. O porão é a sua raiz e representa o inconsciente, enquanto o seu telhado é o ninho e representa as funções conscientes: "A casa oniricamente completa é um dos esquemas verticais da psicologia humana".
A vida moderna afrouxa o vigor das imagens oníricas da casa com sótão e porão e a sua "topologia onírica", aceitando a casa como um lugar de tranquilidade, embora de uma "tranquilidade abstracta", e esquecendo o aspecto fundamental: o "aspecto cósmico". As casas de Paris já não são autênticas casas: "Em Paris, não existem casas. Os habitantes da grande cidade vivem em caixas sobrepostas". Na cidade, "a casa não tem raízes" e "os arranha-céus não têm porão". Falta às casas da cidade a raiz e um vínculo cósmico mais profundo: os andares ou apartamentos são, como diz Paul Claudel, "buracos convencionais", destituídos de verticalidade em si mesma e sem espaço ao seu redor. A altura dos edifícios da cidade é apenas exterior, os seus elevadores destroem os "heroísmos da escada", o andar é uma simples horizontalidade e, por isso, "já não há mérito em morar perto do céu". As casas da grande cidade perderam os valores íntimos da verticalidade e a cosmicidade que permitia compreender a "situação da casa no mundo": as casas já não estão na natureza, não conhecem os "dramas do universo", as suas relações com o espaço tornaram-se "artificiais" e as ruas são meros tubos onde os homens são aspirados (Max Picard). Como diz Bachelard: "Viver num andar é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem porão é uma morada sem arquétipos". Os seus habitantes são seres desenraizados e apátridas, sem história, sem memória, sem imaginação. Perderam a verticalidade humana e a compreensão da sua situação no mundo: são seres alheados do mundo. Se for "impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa", então a casa da grande cidade perdeu a riqueza dos arquétipos do seu inconsciente e os seus habitantes tornaram-se seres mutilados e seres exilados na terra, portanto, apátridas. A casa da grande cidade é dominada pela "ideia do superego": tem escadas de serviço onde circulam "rios de provisões de boca" (Michel Leiris) e os elevadores levam rapidamente à sala de estar, onde se "conversa" enquanto se aguarda a refeição.
O Porto edificou-se e cresceu, ao longo da sua gloriosa história de cidade invicta, como Cidade do Sonho, "a própria imagem do futuro sonhado" (M. Torga), que, nas últimas décadas, foi abandonada ao esquecimento, devido à concentração de poderes numa capital necrófila e a erros atávicos urbanos e arquitectónicos. No Porto, existem centenas e centenas de casas cuja topologia se organiza em altura: um porão enterrado, o piso térreo da vida comum, o andar de cima onde se dorme e o sótão onde se sonha. Porém, muitas dessas casas evocadas por Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Miguel Torga e Agustina Bessa-Luís, e cantadas por Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, António Nobre, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, foram e são demolidas para dar lugar a edifícios residenciais e a condomínios fechados, e outras permanecem abandonadas, à mercê da especulação imobiliária irracional, carente de visão do passado glorioso e do futuro aberto ao novo. Estas casas burguesas, ou até mesmo as casas pobres, são sonhos realizados e concretizados na pedra granítica e, na sua topologia onírica, memória e imaginação não se deixam dissociar, trabalhando para o seu aprofundamento mútuo: "Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem". O Porto é a cidade da "bela arquitectura" diversa e plural, cujos quarteirões abrigam no seu interior espaços de sonho, e até mesmo os mais "pobres", as "ilhas", são labirintos que projectam horizontalmente os sonhos diurnos dos seus habitantes, em contraste com as casas burguesas que se elevam na verticalidade, procurando contacto com a "morada celestial" e dando um ar fálico à cidade. No Porto, os edifícios são real e virtualmente corpos de imagens que dão aos seus habitantes, os portuenses ou os homens portugueses "mais livres, mais progressivos, mais responsáveis e mais capazes" (M. Torga), razões ou ilusões de estabilidade e de segurança: as casas portuenses são seres verticais que se elevam e se diferenciam no sentido da sua verticalidade, fazendo apelo à nossa consciência de verticalidade, e são seres concentrados, levando-nos à consciência de centralidade. Segundo Miguel Torga, "os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos". O Porto é imaginariamente uma enorme cidade-abrigo, uma cidade-fortaleza, uma cidade-invicta. Contudo, esta cidade de sonho precisa de cuidados redobrados: conservar os seus valores de intimidade e de cosmicidade, abrindo-se ao futuro e à modernização e ampliando a sua rica confluência de estilos arquitectónicos, em harmonia com a natureza e no resguardo da quadratura (Heidegger).
Porém, as casas autênticas, na estrutura vertical das suas funções como moradas, são mais do que aquilo que está contido nas ideias espaciais geométricas. Assim, Bachelard estabelece uma distinção forte entre a casa como espaço vivido concreto e o conceito de espaço matemático abstracto: "A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico". Esta transcendência torna-se evidente na rivalidade dinâmica entre a casa e o universo, na espessura da qual "a casa remodela o homem", adquirindo qualidades e valores humanos. O ser abrigado vive a casa na sua realidade e na sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos diurnos. A casa não é vivida na sua positividade e no momento presente em que reconhecemos os seus benefícios. A casa tem um passado que vem viver, pelo sonho, numa nova casa: "A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas da nossa vida interpenetram-se e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de protecção".
Na nossa sociedade urbana tardia, o homem distancia-se velozmente do abrigo da sua casa: "Por que nos saciámos tão depressa da felicidade de habitar a morada?", eis a questão colocada por Bachelard. Poderíamos procurar uma resposta na dialéctica da casa e do universo ou mesmo na dialéctica do exterior e do interior: o homem "escolhe" um aspecto em detrimento do outro, quando ambos os aspectos são realmente complementares. Porém, Bachelard alude a algo mais profundo, na medida em que não se refere a um distanciamento temporal da casa para voltar novamente ao lar, exemplificado com os casos da viagem ou da ida para o emprego ou para o serviço militar, mas a uma insuficiência definitiva de todas as casas: "Alguma coisa mais do que a realidade faltou à realidade. Na casa não sonhámos o tempo suficiente". A casa perfeita sonhada não pode ser alcançada em nenhuma morada real: "Na minha casa real, sinto exaurida a minha liberdade de habitar: há sempre que deixar aberta a possibilidade de que exista outro lugar". Isto aponta para a conexão da casa e da distância, aquela nostalgia última que arrasta o homem sonhador para a distância. "Alojado em todas as partes, mas em nenhuma parte encerrado", eis como Bachelard formulou o "lema do sonhador do habitar". Isto significa que o homem só pode alcançar a sua última pátria com as criações da fantasia, desencadeada pela nostalgia e pelo sonhar "com aquilo que (na casa natal) deveria ter sido, com o que teria estabilizado para sempre os nossos devaneios íntimos". A nostalgia é vizinha da morte: o sonhador do lar aguarda a chegada da morte (Florbela Espanca) e a sua última morada terrestre (Guerra Junqueiro): o túmulo, o cadáver fechado num caixão e enterrado no interior da terra fria e húmida. A cidade dos vivos nasceu da cidade dos mortos e a ela regressa.
J Francisco Saraiva de Sousa

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