sábado, 5 de julho de 2008

Sartre e Dialéctica da Sociedade

«Toda a aventura humana, pelo menos até aqui, é uma luta obstinada contra a escassez.» (Jean-Paul Sartre)
Infelizmente, não posso expor neste post toda a filosofia de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e mostrá-la em toda a sua riqueza conceptual, sobretudo quando Sartre, como sucede na Crítica da Razão Dialéctica (1960), tenta a "fusão" entre o marxismo e o existencialismo, de resto já bem visível no seu ensaio introdutório Questões de Método, publicado originalmente numa revista polaca em 1957. Por isso, vamos restringir o nosso tema a uma breve análise da sua teoria dialéctica da origem da sociedade.
Para explicar o antagonismo mútuo, um conceito presente desde "O Ser e o Nada", Sartre introduz o "princípio da escassez", originalmente elaborado por Locke mas sobretudo por David Hume e retomado por Malthus: «tal substância ou tal produto manufacturado existe, em determinado campo social, em número insuficiente, levando em consideração o número dos membros dos grupos ou dos habitantes da região: não existe o suficiente para todos» (Sartre).
Toda a história humana é uma história da escassez e da luta obstinada contra a escassez. O mundo não dispõe do suficiente para distribuir por todos os homens. A escassez tanto une como divide os homens. Une-os, porque somente unindo os seus esforços podem os homens lutar com êxito contra a escassez. Divide-os, porque cada homem sabe que o obstáculo à abundância individual reside na existência dos outros. Segundo Sartre, a escassez é o «motor passivo da história». Como os homens não podem eliminar completamente a escassez, são «forçados» a colaborar uns com os outros para minimizar os seus efeitos.
Contudo, esta colaboração é paradoxal. Cada homem sabe que a escassez se deve exclusivamente à existência dos outros. Isto significa que os homens são rivais uns dos outros e, sempre que colaboram ou trabalham juntos para minimizar a escassez, estão a alimentar os seus rivais. A escassez molda não somente a nossa atitude em relação ao mundo natural, mas também a nossa atitude em relação aos vizinhos: os outros homens. A escassez faz dos homens rivais, obrigando-os ao mesmo tempo a colaborar uns com os outros. Sozinho o homem é impotente: a luta contra a escassez só pode ser travada com a divisão do trabalho e outros empreendimentos colectivos.
A natureza é "inerte" e indiferente ao bem-estar humano. O mundo que habitamos é composto pelo mundo da natureza e pelo mundo construído pelos nossos antepassados no decorrer da sua longa história de luta contra a escassez. Sartre chama-lhe o "prático-inerte": campo que compreende o mundo da praxis, na medida em que é o resultado do trabalho e dos projectos dos seus habitantes passados e presentes, e o mundo natural que foi transformado mediante o seu trabalho sobre a materialidade passiva ou inerte. Ora, neste universo hostil definido pela escassez, o homem torna-se o inimigo do homem ou, como diz Sartre, converte-se em "anti-homem".
Esta é a explicação económica que Sartre dá dos antagonismos ou conflitos entre os homens. Considerado dialecticamente, o antagonismo é a reciprocidade negativa, negada na e pela colaboração dos homens imposta pela necessidade de superar a escassez. A partir daqui Sartre elabora a sua teoria dialéctica da origem da sociedade.
Sartre distingue duas formas significativamente diferentes de estrutura social: as séries e os grupos. Uma "série" é um ajuntamento de pessoas unidas somente pela proximidade exterior e, por isso, não existe como um todo «dentro» de nenhum dos seus membros. Sartre ilustra a série com a fila de pessoas numa paragem de autocarro: todas as pessoas que observamos numa fila têm a mesma finalidade, embora não partilhem um objectivo comum ou colectivo. Devido à escassez de lugares no autocarro, cada elemento da fila é um rival dos demais membros e vice-versa: os outros também desejariam que ele não estivesse ao lado. Por isso, como cada um é "um a mais", todos acordam entrar ordenadamente na fila, formando assim uma série para evitar uma luta pelo acesso de entrada no autocarro. Esta série ordenada é uma relação recíproca negativa que constitui a negação do antagonismo, portanto, a negação de si mesma!
Além das séries que são «pluralidades de solidões», existe outro tipo de reuniões na sociedade, a que Sartre chama "grupo". Um grupo é um conjunto de pessoas que, ao contrário daquelas que formam uma série, têm um objectivo ou uma finalidade comuns. Sartre dá como exemplo uma equipa de Futebol. O que distingue o grupo da série é o facto de cada membro ter-se comprometido (ou ter jurado) a agir como um membro desse grupo. O grupo é reunido e constituído pelo juramento (le serment): cada membro converteu a sua própria praxis individual numa praxis comum ou social. Isto significa que a origem do grupo se deve ao facto de termos de trabalhar juntos ou morrer a lutar uns contra os outros. Ao contrário da série, o grupo não é impotente e, por isso, pode realizar e fazer coisas.
A força motriz continua a ser a escassez, porque é ela que obriga os homens a trabalhar juntos, tendo em vista um fim comum. Sartre introduz três noções que ajudam a compreender a origem das sociedades humanas a partir da escassez: o "juramento", a "violência" e o "Terror". Com efeito, o grupo começa a existir quando cada indivíduo assume o compromisso de se tornar um membro do grupo e de não o trair ou desertar dele. A sociedade como grupo é, portanto, um conjunto ajuramentado. Mas, para que o juramento seja cumprido e os membros do grupo tenham a certeza de que será cumprido, são necessárias a violência e o Terror, porque, segundo Sartre, é o medo que impele os homens a formar grupos e que os mantém unidos nos seus grupos.
Ora, o medo que os vincula ao grupo é o Terror. O juramento em si é, como diz Sartre, um pedido de violência a ser usada contra alguém que não cumpra a sua palavra, e a existência do Terror é uma garantia de que essa violência será usada contra qualquer membro que não cumpra a sua palavra. Os grupos correm o risco de se dissolverem em séries e cada indivíduo está consciente da ameaça de dispersão em si próprio e nos outros. O terror é, segundo Sartre, «a garantia estatutária, livremente assumida (jurada), de que ninguém recairá na série». Ou, por outras palavras, o Terror é a "solicitude mortal", graças à qual um homem se torna um ser social, criado por si próprio e pelos outros. O Terror é, portanto, a violência que nega a violência e, com tal, é a "fraternidade", porque é a garantia de que o meu vizinho permanecerá o meu irmão. O Terror vincula-o a mim pela ameaça da violência que poderá ser utilizada caso ouse tornar-se "não-fraterno".
Sartre analisa o Estado como um grupo que «se reconstitui incessantemente e que modifica a sua composição por uma renovação (descontínua ou contínua) dos seus membros». O "grupo em fusão" cria lideres e, mais tarde, perpetua-se fundando instituições. Esta é a base da soberania. A autoridade está ligada ao Terror, porque o soberano é o homem autorizado a exercer o Terror. Enquanto numa sociedade serial o homem obedece porque tem de obedecer, num Estado o homem obedece a si próprio, porque foi ele que, pelo seu compromisso juramentado, se incorporou ao grupo e autorizou o soberano a comandar. Cada homem desse grupo não fez o juramento pessoalmente, mas por "procuração": um compromisso não deixa de ser um compromisso. O Terror não é somente fraternidade, mas também é liberdade. O homem incorporou livremente o seu projecto individual no projecto comum quando se comprometeu ou foi comprometido por procuração com o Estado. Assim, quando o soberano comanda em nome do Estado está a devolver-lhe a sua liberdade. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

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