«Habitar é o traço essencial do ser de acordo com o qual os mortais são. Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já é um enorme ganho se habitar e construir se tornarem dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar». (Martin Heidegger) O estudo da dinâmica fundamental da vida humana, do partir e do voltar, deve analisar duas regiões do espaço que estrutura: o mundo lá fora, em toda a sua vastidão, com os seus pontos e regiões cardinais, com os seus caminhos e as suas estradas, e o mundo no qual a vida permanece ligada a um centro, a um ponto de referência fixo, ao qual se vinculam todos os seus caminhos, os que partem e os que regressam. O homem precisa de um tal centro, através do qual possa permanecer objectivamente enraizado no espaço e ao qual são referidas todas as suas circunstâncias espaciais. Sem este último mundo do lar o homem não pode viver: a terra natal ou lar é o "lugar" onde o homem habita no seu "mundo", onde se encontra em casa e para o qual sempre regressa depois de ter partido. Isto significa que a casa se encontra no centro do mundo dos mortais. Ernst Cassirer mostrou que o homem primitivo está fortemente enraizado nesse centro objectivo fixo do espaço e, por isso, o habitar não constitui um problema para ele, como se verifica pelos estudos de Marcel Mauss sobre as sociedades esquimó, de Bronislaw Malinowski sobre os nativos das Ilhas Trobriand ou de Evans-Pritchard sobre os Nuer. Porém, o mesmo já não pode ser dito em relação ao homem moderno. O capitalismo tardio e as suas práticas económicas globais neoliberais estão a destruir este centro objectivo, fomentando o desenraizamento e criando um "mundo sem lar" (Peter Berger): o mundo do sonho e do sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio e um lugar seguro contra a anomia e a alienação. Não satisfeito com a destruição da natureza, o capitalismo tardio usa e explora o homem, roubando-lhe o lar e entregando-o ao abandono completo. O homem moderno está a transformar-se num apátrida sobre a Terra, porque já não está vinculado a qualquer lugar. Converte-se num eterno fugitivo de um mundo cada vez mais ameaçador e em risco. Mas, onde começa o perigo que ameaça o homem moderno, deve nascer a sua missão política. Ou, como diz Heidegger, «o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar». Para viver sem angústia, o homem precisa encontrar um centro no seu espaço, visto que a sua essência está ligada à existência de um tal centro. Se já não o encontra como algo dado, devido à apropriação capitalista da terra, o homem tem de o criar, sacá-lo ao capitalismo ladrão, apropriar-se dele e defendê-lo contra todas as agressões e ameaças exteriores. Neste mundo sem lar, cuja economia capitalista lança o homem para a rua e o desespero, qual ser sem-abrigo, a missão decisiva do homem é criar este centro e lutar violentamente contra as forças económicas e políticas que o ameaçam. Esta missão exige um luta contínua contra os poderes instituídos e os seus cleptocratas, e a coragem para a cumprir: pensar, construir, edificar e habitar a sua casa. A posse externa de uma "habitação digna" não é suficiente para cumprir esta missão de sustentação e de sentido: o importante é a relação interna com a habitação, aquilo que Heidegger referiu quando disse que «os mortais devem primeiro aprender a habitar», e que Merleau-Ponty viu como a palavra-chave que reflecte plenamente a conexão do homem com o mundo. Para Merleau-Ponty, o homem habita no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo, assim como o sentido habita na palavra e no signo e o anímico expresso, na expressão. Em todos estes "casos", fundados originariamente no "habitar o ser", o habitar designa a intimidade singular da relação mediante a qual algo anímico ou espiritual está misturado e envolvido com algo espacial. Quando escreve que «a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las», Merleau-Ponty mais não faz do que acentuar a diferença existente entre a objectividade científica no seu confronto com o objecto e a intimidade do habitar. Saint-Exupéry foi um dos primeiros pensadores a descobrir que «os homens habitam e que o sentido das coisas varia para eles em função do sentido das suas casas». Habitar não é mais uma actividade humana entre tantas outras actividades, mas constitui a característica essencial do homem que determina a sua relação com o mundo na sua totalidade: habitar é, pois, o modo como o homem vive na sua casa, e é no habitar que o homem pode alcançar a plenitude do seu verdadeiro ser. A concepção de Saint-Exupéry coincide com a de Heidegger: «Ser homem significa: ser como um mortal sobre esta terra. Significa: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. (...) (A actual crise habitacional reside no) facto de não se fazer mais a experiência de que habitar constitui o ser do homem e de não se pensar mais que habitar é, em sentido pleno, o traço fundamental do ser-homem. (...) Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os homens, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo das quatro faces da quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura no seu vigor de essência». Ao contrário do existencialismo que encarava o mortal como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência total do homem é determinada a partir do habitar. O homem habita a sua casa antes de habitar o mundo. Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes", os "espaços louvados", como "espaços de posse", porque são espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" de uma economia capitalista que mata o planeta azul. Se não quiser continuar a ser um estranho lançado na terra, o homem deve aprender a habitar poeticamente esta terra, porque, como diz Heidegger, «a poesia é a capacidade fundamental do modo humano de habitar». (Publicado aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
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