«A liquidação do indivíduo é a autêntica assinatura da nova condição musical». (Theodor W. Adorno) A maior parte da música contemporânea exibe características de um "bem de consumo", dominado mais pelo valor de troca do que pelo valor de uso. A dicotomia real não é entre "música séria" e "música ligeira", mas entre "música comercial" e "música não orientada para o mercado". Um dos resultados desta mercadorização da música e da sua massificação é a desintegração actual da educação: os consumidores da arte são incapazes de considerar e de conhecer a distinção entre a "arte superior autónoma" e a "arte comercial ligeira". Em Portugal, como nos restantes países do mundo globalizado, a "música comercial" integra diversos tipos musicais, entre os quais a "música popular" ou mesmo a "música erudita", no grande sistema da "indústria cultural" atemporal cuja missão é impedir "a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões". Este sistema da indústria cultural constitui o âmago da cultura capitalista alienada tardia, na qual os homens veneram cega e obedientemente os seus próprios produtos como objectos reificados. Destituída da sua transcendência e da sua negatividade, a cultura torna-se "cultura afirmativa": Cultura afirmativa é um conceito forjado por Marcuse para designar a "cultura da época burguesa que, no decurso do seu próprio desenvolvimento, levou à segregação entre a civilização e o mundo espiritual e mental que é considerado como superior à civilização. A sua característica decisiva é a afirmação de um mundo eternamente melhor, universalmente obrigatório e mais valioso, que deve ser incondicionalmente afirmado: um mundo essencialmente distinto do mundo concreto da luta quotidiana pela existência, e, não obstante, realizável interiormente por cada indivíduo para si mesmo, sem nenhuma transformação do estado de facto". Adorno "localizou" o "pecado original" da separação entre o sujeito e o objecto e da dominação do objecto pelo sujeito na divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual: o pensamento abstracto aparece como uma função da abstracção do mercado (Alfred Sohn-Rethel). Por isso, mostrou-se hostil ao marxismo vulgar que atribuía a primazia à produção, condenando-se a repetir a dominação do objecto pelo sujeito, bem como ao uso do conceito de reificação feito por Lukács. Na filosofia de Adorno, a reificação não é equivalente à objectivação alienada da subjectividade, isto é, à redução de um processo fluído a uma "coisa morta". Na "dialéctica negativa", a reificação significa a supressão repressiva da heterogeneidade, do não-idêntico, da diferença, em nome da identidade: o domínio do mundo natural exterior levou ao controle da natureza interior do homem e, em última análise, ao controle do mundo social. A "sociedade administrada" transformou o "progresso" na sua antítese: a barbárie mais brutal, em função da utilização das modernas técnicas de controle e de vigilância, e a indústria cultural na sua função mistificadora manipulou de tal modo a consciência dos consumidores que conseguiu vencer a sua resistência e, portanto, anular e neutralizar o "pensamento crítico", promovendo a adaptação em detrimento da mudança qualitativa e o conformismo. "Toda a reificação é um esquecimento": esta frase de Adorno não significa que a superação da reificação decorra da recuperação anamnética de um sentido original, a reunificação de um sujeito com a sua objectivação perdida. A reversão do esquecimento não é equivalente a um re-lembrar de algo desmembrado, a recuperação de uma totalidade perfeita ou plenitude original, como sucede em Hegel e Marcuse: significa, sim, a restauração da diferença e da não-identidade no seu lugar adequado, na constelação não-hierárquica das forças subjectivas e objectivas, enfaticamente cognominada "paz". A fetichização da música não é somente uma categoria psicológica, mas também e fundamentalmente uma categoria económica, enraizada no carácter fetichista da mercadoria, produzida por sociedade dominada pelo princípio de troca: "Marx define o carácter fetichista da mercadoria como a veneração da coisa auto-produzida e que como valor de troca se aliena dos produtores e dos consumidores, dos "seres humanos". Este destaque do papel do fetichismo na indústria cultural revela, pois, a dívida de Adorno para com a obra de Marx. A música foi invadida pelo "ethos capitalista" e, por isso, a sua fetichização é tendencialmente total: a produção e a recepção musicais são dominadas pelos valores de troca da comercialização contemporânea, a qual serve a música como um objecto culinário de fácil digestão. O entendimento estrutural do conjunto musical, no seu desenvolvimento temporal, é sacrificado nos altares de diversos estratagemas usados para vender as obras como mercadorias a vastos auditórios que aprenderam a desejá-las. Adorno analisou o carácter fetichista na música em dois níveis: o da produção e o da recepção musical. 1. Ao nível da produção, o fetichismo musical reflecte-se no predomínio excessivo dos "arranjos" e das "execuções" sobre as "verdadeiras composições", na introdução frequente de "efeitos coloridos" impressionistas, na estandardização das obras musicais, a estandardização do êxito, e na ressurreição nostálgica de estilos musicais passados de moda pelo seu valor evocativo. 2. Ao nível da recepção musical, o fetichismo musical manifesta-se na ênfase dada às "estrelas", tanto na música clássica (Toscanini, por exemplo) como na música popular, no culto do instrumento, como no caso dos violinos Amati e Stradivarius, na necessidade de ir ver o concerto "correcto", em vez de ir escutar a própria música, na audição atomizada dos clímax românticos ou de melodias separadas dos seus contextos construtivos, e no êxtase vazio do entusiasta do Jazz que escuta pelo simples desejo de escutar. A experiência adquirida por Adorno no "Princeton Radio Research Project" mostrou-lhe que os questionários e as entrevistas não eram suficientes para verificar a fetichização da música, através de técnicas científicas normais, porque as opiniões dos próprios ouvintes não mereciam confiança. Os ouvintes eram incapazes de superar a conformidade das normas culturais, e a sua competência para escutar revelou-se degenerada. Tinham regredido, não fisiologicamente, mas psicologicamente: o sentido da regressão da audição não se dirigia para uma música epocalmente anterior, mas para um "estado infantil" em que o ouvinte era dócil e passivo e temia tudo o que fosse "novo" ou "não-familiar". Este estado de infantilização já tinha sido descrito por Erich Fromm como um "sentimento de impotência". Tal como as crianças que só pedem alimentos que lhes agradaram no passado, o ouvinte cujo ouvido tinha regredido só era capaz de reagir perante uma repetição daquilo que tinha escutado anteriormente. Isto significa que o ouvinte revela uma crescente incapacidade de concentração em qualquer coisa, excepto nos aspectos banais e truncados de uma composição. Na música popular, os ouvintes são programados para aceitar uma música que rejeita todo o desenvolvimento coerente e que exibe, em vez disso, uma temporalidade espacializada do "sempre-igual", a qual ajuda a reforçar subtilmente o status quo como destino inescapável. E, como as crianças que reagem perante as cores brilhantes, o ouvinte sentia-se fascinado pela utilização de recursos coloridos que lhe davam a impressão de excitação e de individualidade. Quando a consciência capitula perante o poder superior da "coisa anunciada" pela publicidade, o auditório acaba por comprar "paz espiritual", fazendo literalmente coisa sua as mercadorias impostas. Ao chamar-se a isto "gosto" individual, nega-se claramente a dependência passiva envolvida na identificação do ouvinte com o que lhe foi "servido" pela indústria musical: o que se prepara e se desfruta musicalmente é uma dieta infantil de sons encurtados, cujo sinal seguro é a recusa arrogantemente ignorante de tudo o que não seja familiar, em prol da repetição interminável das resoluções açucaradas mais cómodas e fluídas. O comportamento do consumidor de cultura combina os traços masoquistas e, ao mesmo tempo, uma indignação sádica intensa: "O masoquismo da audição define-se não apenas como o auto-sacrifício e o pseudo-prazer pela identificação com o poder. Subjaz-lhe a experiência de que a segurança do abrigo protector nas condições de dominação é meramente provisória, é apenas uma folga, e que no fim tudo há-de acabar por ruir. Mesmo no auto-sacrifício, uma pessoa não se sente bem: ao fruir, sente que trai os possíveis e, ao mesmo tempo, é traído pelo existente. A audição regressiva está sempre pronta a degenerar em raiva". Isto significa que a abnegação masoquista dos ouvintes despolitizados e passivos pode converter-se em raiva destrutiva dirigida para o exterior. A sexualidade frustrada dos "jitterbugs", isto é, dos "percevejos que executam movimentos reflexos, espectadores do seu próprio êxtase", que, no caso de serem mulheres, costumam "desmaiar (ou gritar) quando ouvem a voz de um crooner ou de um cantor de jazz", exprime esta agressividade reprimida. Contudo, esta cólera reprimida parece ser insuficiente para dar um sentido construtivo à "arte popular", embora Walter Benjamin acreditasse no seu "potencial revolucionário". Anexo: Veja o site da "Casa da Música" da cidade do Porto. A autoria do edifício é do prestigiado arquitecto e urbanista holandês Rem Koolhaas, e foi concebido para servir um projecto cultural inovador do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura. J Francisco Saraiva de Sousa
Sem comentários:
Enviar um comentário