domingo, 15 de julho de 2007

Um Conceito de Antropologia

Homo Fossilis: Ensaio Neuro-Antropológico
INTRODUÇÃO da Tese de Mestrado (1988-1989), onde já procurava pensar radicalmente a animalidade do homem, lançando o conceito de neuro-filosofia.



Existem vários tipos de tese: tese monográfica versus tese panorâmica, tese histórica versus tese teórica. A tese que me proponho apresentar é uma tese essencialmente teórica e, como tal, tem por finalidade encarar de modo inovador e original um «determinado objecto». Como o objecto escolhido é o próprio Homem perspectivado em toda a sua complexidade, é necessário acrescentar que se trata, em última análise e fundamentalmente, de uma tese teórica de antropologia.

Esta designação coloca de imediato duas questões fundamentais: o que se entende por tese teórica? e o que se entende por antropologia?, cuja «solução» constitui a intenção desta Introdução. A «solução» da primeira questão encontramo-la numa pequena obra de Louis Althusser (1978), intitulada Sobre o Trabalho Teórico. Uma tese teórica é fundamentalmente uma tese de investigação que toma a forma de um discurso teórico. Althusser (1978) definiu o discurso teórico, na sua significação mais geral, como sendo «um discurso que tem por efeito o conhecimento de um objecto» (p.15). No sentido exacto do termo, só existem objectos reais, concretos e singulares. Todo o discurso teórico procura realizar, em última análise, o conhecimento «concreto» desses objectos, quer na sua individualidade, quer nos modos desta individualidade. Mas este conhecimento é sempre o resultado de todo um processo de produção teórica, cujo resultado é a «síntese de uma multiplicidade de determinações» (Marx). Esta síntese mais não é do que o conhecimento concreto de um objecto concreto.

A síntese de conhecimento de que nos fala Althusser, na peugada de Marx, consiste na combinação-conjunção de dois tipos de elementos ou determinações de conhecimentos: elementos teóricos em sentido estrito ou conceitos teóricos (em sentido estrito) e elementos empíricos ou conceitos empíricos. Qualquer discurso, seja ele científico e/ou filosófico, utiliza palavras da linguagem quotidiana, ou expressões compostas construídas com palavras da linguagem quotidiana, mas que funcionam sempre de maneira diferente do que na linguagem quotidiana. No discurso teórico, as palavras e expressões compostas funcionam como conceitos teóricos: quer dizer que o sentido das palavras está nele fixado, não pelo seu uso corrente, mas sim pelas relações existentes entre os conceitos teóricos no interior do seu sistema teórico. «São estas relações — escreve Althusser (1978) — que atribuem às palavras, que designam conceitos, o seu significado teórico» (p.12). O discurso teórico requer, na sua existência, a produção de expressões específicas, que designam conceitos teóricos. Eles podem ser, como vimos, conceitos teóricos em sentido estrito ou conceitos empíricos. Os conceitos teóricos dizem respeito às determinações ou objectos abstractos-formais, enquanto os conceitos empíricos dizem respeito às determinações da singularidade dos objectos concretos.

Os conceitos teóricos referem-se, portanto, a objectos abstractos-formais, que não existem em parte alguma a não ser no e pelo pensamento. Contudo, são indispensáveis para a produção do conhecimento concreto dos objectos concretos e reais. Sem eles não seria possível o conhecimento das determinações da singularidade dos objectos concretos, os quais são qualificados como existentes pelos conceitos empíricos. Quer dizer que os conceitos empíricos acrescentam aos conceitos estritamente teóricos as determinações da existência dos objectos concretos. A relação dos conceitos teóricos com os conceitos empíricos é assim «uma relação de realização»: os conceitos empíricos realizam os conceitos teóricos no conhecimento concreto dos objectos concretos. Assim, o conhecimento concreto dos objectos concretos mais não é do que a síntese dos conceitos teóricos necessários, combinados com os conceitos empíricos elaborados.

Qualquer discurso teórico pode, consoante o seu nível de abstracção, referir-se quer a objectos abstractos e formais, quer a objectos concretos e reais. Assim, os discursos teóricos referentes a objectos reais-concretos ou a objectos formais-abstractos pertencem a níveis teóricos diferentes: os primeiros constituem a teoria em sentido lato ou teoria empírica, enquanto os segundos poderão ser chamados discursos teóricos ou teoria em sentido estrito. Mas os discursos concretos supõem sempre a existência dos discursos abstractos, cujo alcance ultrapassa infinitamente o objecto dos primeiros. Deve acrescentar-se ainda que só se pode atingir o conhecimento dos objectos reais-concretos na condição de se trabalhar também, e ao mesmo tempo, com objectos formais-abstractos. O conhecimento destes últimos não tem nada de um conhecimento especulativo e contemplativo, concernente a ideias «puras». Pelo contrário, ele só tem em vista e só diz respeito aos objectos reais; só tem sentido porque permite forjar os instrumentos teóricos, os conceitos teóricos formais e abstractos, pobres em determinações empíricas, que permitem produzir, por fim, o conhecimento dos objectos reais-concretos, rico em determinações de existência.

Como tese teórica que é, a nossa tese toma a forma rigorosa de um discurso teórico de antropologia. Dado que a antropologia ‚ uma teoria do Homem, mais precisamente uma teoria da natureza humana, torna-se necessário acrescentar que um discurso teórico de antropologia tem por efeito o conhecimento do Homem ou da natureza humana, considerada como um sistema aberto em permanente evolução no quadro da evolução cósmica e biológica. O Homem será, pois, considerado como uma totalidade bioneuropsicossociocultural complexa, auto-organizada, ambígua e aberta. Do mesmo modo, a sua teoria dever ser (e será) aberta, multidimensional e complexa, cuja designação genérica é teoria neuronal do Homem. Esta designação já traz a marca da sua originalidade. Como Edgar Morin (1975) já tinha defendido a entrada do cérebro na ciência do Homem, optamos por expor o nosso modelo neuro-antropológico a partir de uma crítica subtil mas exigente da sua teoria da natureza humana. Quer dizer que o nosso modelo, impossibilitado de se dar no simples absoluto da sua presença, teve de passar necessariamente pela deambulação de outras «teses antropológicas» para se definir e apoderar de si próprio na sua diferença. Partindo das teses morianas, trabalhámos assim a nossa própria diferença, a fim de ocuparmos as nossas próprias posições (Capítulo I). Esta diferença mostrou-nos, em primeiro lugar, que era necessário considerar o cérebro (em sentido lato) como um órgão semelhante aos outros órgãos do organismo humano, constituído por um tecido uniforme cuja organização lhe permite desempenhar funções específicas e únicas (processamento de informação). Assim, depois de expormos a evolução biológica do Homem (Capítulo II), que irá demonstrar a existência de um paralelismo entre evolução cerebral e evolução cultural, iremos analisar o sistema nervoso, tanto na sua anatomia histológica como no seu funcionamento (Capítulo III) e desenvolvimento (Capítulo IV). Esta análise permitir-nos-á compreender finalmente a antropogénese (Capítulo V), bem como a evolução social e cultural do Homem Fóssil (Capítulos VI e VII), sem no entanto esgotarmos nenhum destes assuntos que deverão ser retomados e aprofundados numa outra oportunidade.

A «exposição» desta vasta temática, que obedece às regras do método teórico, sendo na sua essência teórica, procura, sempre que possível, apresentá-la nos seus dois momentos: o teórico e o empírico, que, como se sabe, estão sempre presentes na prática teórica de qualquer ciência. O momento teórico é na sua essência filosófico-especulativo e dele resulta a construção de modelos teóricos que deverão ser imediatamente «enriquecidos» com as determinações empíricas da existência. É, por isso, que a Filosofia se encontra no interior da própria ciência, em «estado prático», não-elaborado conceptualmente, frequentemente sob a forma de «filosofia espontânea dos cientistas» (Althusser,1976).

Mas a diferença não diz só respeito à natureza do objecto a estudar: o Homem Neuronal. Ela localiza-se também ao nível da natureza desse estudo: a Antropologia. Neste ponto preciso, opomo-nos completamente a Edgar Morin e a muitos outros antropólogos e filósofos.

Dissemos que a antropologia era uma teoria do Homem, sem no entanto especificar a natureza dessa teoria. Sem mais rodeios, iremos defender a tese segundo a qual a antropologia é uma teoria simultaneamente científica e filosófica do Homem. Esta tese, para muitos evidente, deve ainda ser incompreensível para muitos autores, portadores dessa patologia do pensamento que se chama positivismo. Quem leu Marx e outros marxistas «sérios», não deverá levantar grandes dúvidas quanto à natureza antropológica da Filosofia. O jovem-Marx sempre sentiu a necessidade de constituir uma nova antropologia filosófica, na qual o Homem deveria ser considerado como parte integrante da natureza: «As ciências naturais desenvolveram uma tremenda actividade e reuniram uma massa sempre crescente de dados. Mas, a filosofia permaneceu-lhes estranha, da mesma maneira que as referidas ciências continuaram estranhas à filosofia. A sua aproximação momentânea não passou de uma ilusão fantástica [Feuerbach?]. Nasceu o desejo de união, mas faltou o poder de a levar a cabo» (1975, p.169). Os epígonos de Marx, que se mantiveram próximos da sua problemática antropológica de juventude, continuaram a defender o carácter marcadamente antropológico da Filosofia. Assim, por exemplo, Lucien Goldmann (1959) escreve: «Le principal objet de toute pensée philosophique est l'hommme, sa conscience et son comportement. A la limite, toute philosophie est une anthropologie» (p.16). Até mesmo Jean-Paul Sartre (1960) considerava ser necessário reintegrar o Homem no seio da antropologia marxista: «...la réintégration de l'homme, como existence concréte, au sein d'une anthropologie, comme son soutien constant, apparait nécessairement comme une étape de "devenir-monde" de la philosophie» (p.110). Outros filósofos, nomeadamente os mestres do pensamento alemão contemporâneo, insistem sempre, na peugada de Max Scheler (1966), na necessidade de se constituir uma nova antropologia filosófica. Não é por acaso que, na Alemanha — país em que não existe divórcio entre as ciências e a Filosofia —, um médico, P. Vogler, querendo integrar numa mesma «colectânea» o contributo de diversas disciplinas da pesquisa moderna que estuda o Homem, convidou para seu co-editor um grande filósofo contemporâneo, H. J. Gadamer (Vogler & Gadamer, 1977).

Ora, se a filosofia é na sua essência uma antropologia geral — e, como se sabe, Lévi-Strauss (1987) incluiu-a, bem como a lógica, no grupo das «ciências humanas», junto da pré-história, da Arqueologia e da História, da Antropologia, da Linguística e da Psicologia (p.312) —, não podemos concordar com aqueles antropólogos sociais e culturais que, como J. Copans (1988), confundindo a antropologia com a ciência das sociedades primitivas (etnologia), vêem em Heródoto (século V a.C.), ou mesmo em Morgan (século XIX) (Maurice Godelier, 1973), o «fundador» da ciência antropológica. Ao contrário desses positivistas envergonhados, pensamos que o pressuposto teórico da ciência antropológica se encontra na tese socrática - «Conhece-te a ti mesmo». Esta tese socrática, que marcou toda a problemática filosófica, foi lida, ao longo dos dois mil e quinhentos anos de história da filosofia, de modos diferentes, consoante as problemáticas filosóficas em que se situavam os diversos filósofos. Como não pretendemos abordar todas essas problemáticas antropológicas, diremos apenas que a filosofia antropológica contemporânea apresenta duas interpretações básicas da tese socrática: quer dizer que a reflexão sobre si pode significar duas coisas diferentes mas — segundo penso — complementares, conforme o homem se atenha ao que lhe aconteceu na vida e queira representar-se a si próprio, ou a vida e ele mesmo se tornem para si um problema de conhecimento (Bernard Groethuysen, 1982). Por outras palavras, a questão do homem pode ser encarada ou sob o ângulo da vida ou sob o ângulo do conhecimento. Se aceitarmos a colocação desta questão nestes termos e se aceitarmos também que o melhor ângulo da vida é a fenomenologia existencial, teremos que esclarecer que o homem, no âmbito desta tese, é tratado segundo o ângulo do conhecimento. Tratar a questão do homem como problema de conhecimento é, em certa medida, permanecer fiel à problemática socrática.

A filosofia socrática caracteriza um dos maiores momentos da história da filosofia. Costuma-se dizer que a revolução socrática marca a passagem de uma reflexão sobre a natureza para uma reflexão sobre o homem. A antropologia filosófica teria assim nascido com Sócrates. Afirmar isso é o mesmo que menosprezar toda a filosofia pré-socrática e a sofística. Com efeito, o problema do homem como problema de conhecimento está presente em todo o pensamento filosófico grego. Heráclito de Éfeso já se tinha interrogado sobre a natureza humana quando, no fragmento 249, diz que — «A mim mesmo me procurei». Mas nem sequer a colocação da questão do homem como problema de conhecimento constitui uma novidade de Sócrates. Desde que surgiu, a filosofia se define como uma investigação da verdade, ou melhor, como teoria no sentido forte e restrito do termo. As anedotas acerca de Tales como filósofo típico demonstram precisamente o carácter teórico da investigação filosófica. Platão, na sua obra Teeteto, conta-nos que «Tales, enquanto observava os astros e olhava para o céu, caiu a um poço. Certa jovem trácia, criada ladina e atraente, troçou dele, ao que se diz, pelo ardor com que procurava conhecer o que se passava no céu, sem se dar conta do que estava à sua frente e precisamente a seus pés» (Kirk e Raven, 1979). Citámos esta anedota, não só para mostrar que o fundador histórico da filosofia sempre pensou a sua actividade como uma investigação teórica (sobre a natureza), mas também para dizer que a novidade da filosofia socrática reside menos na abertura da filosofia ao homem encarado como problema de conhecimento que na sua abordagem teórica dessa questão. O homem como problema de conhecimento é tão velho como a filosofia: Sócrates não descobriu, portanto, o homem, tendo-se limitado apenas a encarar o homem em si mesmo, independentemente da natureza, como problema simultaneamente teórico e ético-político. Se isto for verdade, Sócrates, embora tenha criado uma nova prática da filosofia, pecou por ter destruído a antiga aliança entre o homem e a natureza, contribuindo deste modo para o surgimento de uma antropologia insular. Ora, a filosofia pré-socrática é, neste aspecto, «superior» à filosofia socrática, uma vez que concedia ao conhecimento de si mesmo um lugar especial na sua explicação do mundo como um todo: quer dizer que a «antropologia pré-socrática» está mais próxima, no modo como coloca o problema do homem, do novo modelo antropológico que proponho que a antropologia socrática. A filiação do novo pensamento não pode assim parar em Sócrates, mas deve remontar à filosofia pré-socrática. Se o que define especificamente o homem é o facto de ser um ser de cultura, não se deve esquecer essa outra verdade que diz ser o homem simultaneamente um ser de natureza. Os dois aspectos não podem ser dissociados um do outro se quisermos — como defendia Sócrates — produzir uma nova Política do Homem.

Embora herdeira da filosofia grega nas duas tendências mencionadas, a tese antropológica que defendo é que o «Conhece-te a ti mesmo» é sinónimo de «Conhece o teu cérebro». Com esta reformulação radical da tese socrática, pretendo apenas dizer que a abertura do homem à natureza se faz através da mediação do seu sistema nervoso.
J Francisco Saraiva de Sousa

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