quinta-feira, 26 de julho de 2007

ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA


O Modelo Neuronal de Homem é uma teoria simultaneamente científica e filosófica. O seu pressuposto epistemológico reside na teoria da Nova Aliança, a qual proíbe qualquer tipo de divórcio entre filosofia e ciência.
Como se sabe, este divórcio, legitimado filosoficamente pelo positivismo, foi posto em causa pela revolução científica do século XX, em particular pelo surgimento da mecânica quântica e da termodinâmica dos processos irreversíveis. É, por isso, que Prigogine e Stengers (1987) têm razão quando escrevem que a redescoberta do tempo físico «não resulta da simples lógica interna das teorias científicas, mas de questões que foi necessário decidir continuar a colocar, que foi necessário decidir que não podiam ser olvidadas por uma física que visa compreender a natureza» (p.40). Assim, se no passado a ciência «se constituiu contra a natureza, pois lhe negava a complexidade e o devir em nome dum mundo eterno e cognoscível regido por um pequeno número de leis simples e imutáveis» (p.33), hoje, devido essencialmente ao aparecimento da termodinâmica, a primeira ciência não-clássica, a ciência já não pode negar o tempo. Empurrada pela crítica feroz de Henri Bergson (1968;1979), ela «reconhece o tempo irreversível das evoluções para o equilíbrio, o tempo ritmado das estruturas cuja pulsão se alimenta do mundo que as atravessa, o tempo bifurcante das evoluções por instabilidade e amplificação de flutuações e mesmo esse tempo microscópico que (...) manifesta a indeterminação das evoluções físicas microscópicas. Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos, ramificados uns nos outros segundo articulações subtis e múltiplas. A história, seja a de um ser vivo, seja a de uma sociedade, nunca poder ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único, quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace os caminhos de um progresso ou de uma degradação. A oposição entre Carnot e Darwin deu lugar a uma complementaridade que nos falta compreender em cada uma das suas produções singulares» (pp.373-374). Em face de todas estas transformações, a única conclusão a tirar é que «a nossa ciência já não é a ciência clássica (...), porque, a partir de agora, ‚ capaz de compreender e descrever, pelo menos parcialmente, os processos complexos que constituem o mais familiar dos mundos, o mundo natural onde evoluem os seres vivos e as suas sociedades» (p.66). Se no passado a cultura se encontrava polarizada à volta de duas posições — a ciência clássica e a Filosofia — que se afrontavam sem remissão, hoje em dia as condições apontam antes para a constituição de uma terceira cultura. «Com efeito, as ciências ditas "exactas" têm hoje por função sair dos laboratórios onde, pouco a pouco, apreenderam a necessidade de resistir ao fascínio de uma busca da verdade geral da natureza. Elas sabem, de ora em diante, que as situações idealizadas não lhes darão a chave universal, pelo que devem, enfim, tornar a ser "ciências da natureza", confrontadas com a riqueza múltipla que, durante muito tempo, se acharam no direito de esquecer. Por isso, colocar-se-á para elas o problema do diálogo necessário com saberes preexistentes a respeito de situações familiares a cada um, problema esse a propósito do qual alguns quiseram estabelecer a singularidade das ciências humanas, quer para as elevar, quer para as rebaixar. Tal como as ciências da sociedade, as ciências da natureza já não poderão esquecer o enraizamento social e histórico que a familiaridade necessária à modelagem teórica de uma situação concreta supõe» (p.380). «Assim, a ciência afirma-se hoje como ciência humana, ciência feita por homens e para homens» (p.381).
As suas relações com a Filosofia são, no quadro cultural e social, privilegiadas, constituindo aquilo a que Althusser (1974) chamou correctamente o Ponto Nodal n.º 1. Se posteriormente Althusser (1976) afirma, num «Curso de filosofia para cientistas», que, «fora da sua relação com as ciências, a filosofia não existiria» (p.80), I. Prigogine e I. Stengers (1987) vão muito mais longe quando escrevem inequivocamente que «física e metafísica se encontram hoje para pensar um mundo onde o processo, o devir, seria constitutivo da existência física e onde, contrariamente às mónodas leibnizianas, as entidades existentes poderiam interagir e, portanto, também nascer e morrer» (p.384). Trata-se efectivamente, neste último caso, de uma verdadeira aliança entre ciência e filosofia, aliança esta que não pode ser reduzida à epistemologia ou mesmo a uma terapêutica filosófica da ciência: a diferença entre interrogações científicas e filosóficas implica sempre a «complementaridade de saberes que, nos dois casos, constituem a tradução, segundo regras mais ou menos rigorosas, de preocupações pertencentes a uma cultura e a uma época. A questão é, pois, a das regras, dos métodos, das coacções» (p.393). Desta imensa revolução científica, resulta não só uma metamorfose da ciência, mas também e sobretudo uma metamorfose da filosofia. Ambas (ciência e filosofia) se unem contra a interrogação mitológica, ao proclamarem a sua submissão aos processos da verificação e discussão crítica. É que também a filosofia, nomeadamente a de Bergson, Whitehead, Serres e Deleuze, bem como a de Althusser, realiza uma «diligência experimental». «Não de uma experimentação sobre a natureza, mas sobre os conceitos e suas articulações, de uma experimentação na arte de pôr os problemas e de seguir as consequências com o maior rigor» (p.395). Desta metamorfose da ciência resulta não só «uma ciência conceptualmente mais rica» (p.160), mas também uma filosofia empiricamente mais rica.
Como escrevem Prigogine e Stengers (1987), a propósito da filosofia crítica de Kant: «(...) não há diálogo possível com uma ciência cujo discurso é mítico. Ela define a empresa científica como muda e sistemática, fechada sobre si própria. Fazendo isto, a filosofia consagra e estabiliza a situação de ruptura, abandona à ciência o campo do saber positivo a fim de reservar para si a meditação sobre a existência humana, sobre a abertura que constitui a liberdade do homem, em resumo, sobre tudo aquilo que, no homem, se julga transcender as determinações positivas, "naturais”» (p.146). E, no parágrafo seguinte, acrescentam: «A natureza antiga era fonte de sabedoria, a medieval falava de Deus e a moderna, por sua vez, tornou-se muda a tal ponto que Kant julgou dever separar completamente ciência e sabedoria, ciência e verdade. Vivemos esta separação há já quase dois séculos; desejamos que termine depressa e, do ponto de vista científico, parecem estar hoje reunidas as condições para isso» (p.147). Edgar Morin e Merleau-Ponty já nos tinham, cada um à sua maneira, alertado para a necessidade de convergência entre ciência e filosofia. Merleau-Ponty (1968) disse, num dos seus seminários no Collège de France, que «o recurso à ciência não precisa(va) de ser justificado» (p.117), enquanto Edgar Morin (1982) ia mais longe quando escreveu que «uma ciência empírica privada de reflexão como uma filosofia puramente especulativa são insuficientes» (p.21). Num outro parágrafo da mesma obra, Edgar Morin esclarece melhor a sua posição quando escreve: «O que é extraordinário é que nos damos conta de que o corte entre ciência e filosofia que se operou a partir do século XVII com a dissociação formulada por Descartes entre o eu pensante, o Ego cogitans, e a coisa material, a Res extensa, cria um problema trágico na ciência, ou seja, que a ciência não conhece a si mesma, que não dispõe da capacidade auto-reflexiva. E este drama concerne também a filosofia, visto que esta, deixando de ser alimentada empiricamente, sofreu a agonia da Naturphilosophie e o fracasso da Lebenphilosophie; há tanta extralucidez em Husserl quando diagnosticava a crise do conhecimento científico como há ilusão metafísica, evasão estratosférica na ideia de "ego transcendental". Assim, a filosofia é impotente para fecundar a ciência que, por sua vez, é impotente para se conceber» (pp.54-55). É certo que qualquer um destes autores que acabam de ser citados reconhece a necessidade de uma convergência de interesses entre filosofia e ciência, mas nenhum deles pareceu ter a coragem suficiente para situar essa convergência num outro terreno que não unicamente o da epistemologia. A filosofia é muito mais que uma simples teoria do conhecimento científico ou, como preferia dizer Morin, que a consciência da ciência: a Filosofia é, acima de tudo, uma teoria do mundo perspectivada de um ponto de vista antropológico e crítico. Mas, mesmo para desempenhar a sua função crítica, a filosofia precisa de recuperar a sua genuína vocação de investigação empírica. Por outras palavras, a filosofia precisa da ciência que, por sua vez, precisa da filosofia para se conceber e para se tornar conceptualmente mais rica. Ora, o conceito de metamorfose da ciência implica necessariamente, com já vimos, um outro trabalho teórico a realizar: a metamorfose da filosofia. Esta última necessidade parece ser mais sentida pelos cientistas do que pelos filósofos profissionais. Não é por acaso que o conceito de metamorfose da ciência foi lançado por dois cientistas com excelente formação filosófica. Com efeito, as ciências sentem hoje cada vez mais a necessidade de uma nova filosofia ou, pelo menos, de uma nova prática da filosofia (Althusser, 1974). Entre outras razões, além da redescoberta do tempo e do devir, mencionaremos aqui apenas o problema da transformação e da complexidade que, por si só, exige uma aproximação da ciência à filosofia. Esta vocação da totalidade que cada uma das ciências manifesta na sua área está a pôr termo há compartimentação geral que, em particular, separava a filosofia de uma das fontes tradicionais da sua reflexão e a ciência dos meios para reflectir sobre a sua prática. A. N. Whitehead (1969) propôs, na sua cosmologia, um novo tipo de diálogo entre ciência e filosofia, onde o seu alcance universal a define como filosófica. Mas a fecundação das ciências pela filosofia levou-as a reclamar para si um alcance universal. É assim que, por exemplo, um historiador, Paul Veyne (1971), reconhecendo a importância de uma aliança entre filosofia e história, afirma que «o esforço histórico se parece mais com o esforço filosófico do que com o esforço cientifico» (in Jacques Le Goff e Pierre Nora, 1987, p.81), uma vez que a história explica menos do que explicita. O tempo, o devir, a transformação, a complexidade, enfim a totalidade, são portanto problemas, interesses, que fomentam uma nova Aliança entre filosofia e Ciência. Ao propor uma filosofia mais rica empiricamente e uma ciência mais rica conceptualmente, a nova Aliança proíbe, no final de contas, qualquer diferença qualitativa entre ciência e filosofia. Esta proibição exige, pelo contrário, uma ciência mais filosófica e uma filosofia mais científica. Ambas são teorias críticas que se opõem a qualquer teoria mitológica e/ou ideológica. No fundo, trata-se mais de unificação do saber do que de interdisciplinaridade.
Como acabamos de ver, estes últimos autores defendem uma verdadeira aliança entre filosofia e ciência. A antropologia é uma ciência simultaneamente natural e humana que, sob impulso da filosofia e sobretudo da sua visão da totalidade, se encontra hoje empenhada na elaboração de uma antropologia geral, que nos deverá conduzir, segundo certos antropólogos de orientação marxista (J. Copans e outros, 1988), «à ciência única das formações sociais e históricas de que todos necessitamos» (p.41). Quando se fala de uma antropologia geral deve ter-se sempre em vista uma teoria unificada do Homem, a qual se opõe ao divórcio que ainda hoje existe entre antropologia física ou biológica e antropologia social e cultural. A superação deste divórcio só se tornou possível graças ao desenvolvimento das neurociências. Com efeito, o sistema nervoso é uma organização simultaneamente biológica (genética) e social (cultural). Como escreve Jean-Pierre Changeux (1970): Os vertebrados superiores possuem a propriedade característica de «escapar ao determinismo genético absoluto que leva aos comportamentos estereotipados do tipo daqueles descritos pelo excelente zoólogo K. Lorenz» (p.344). É esta propriedade de possuir à nascença certas estruturas cerebrais não determinadas que lhes permite que sejam especificadas por meio do encontro quase imposto, por vezes fortuito, com o meio físico, social ou cultural. Mas «os limites desta adaptabilidade fenotípica são (sempre) determinados geneticamente» (p.344). Quer dizer que, embora na sua estrutura básica seja determinado por um envelope genético, o cérebro humano sofre também na sua organização a influência do meio físico, social e cultural. Sendo assim, o cérebro é um produto biocultural. É esta sua dupla característica que nos permite unificar as ciências antropológicas numa única antropologia fundamental que deverá ser o modelo de todos os seus discursos. Uma tal antropologia só pode ser a neurobiologia antropológica, que, associada a uma genética antropológica, procurará lançar os fundamentos de uma antropologia psicológica e de uma antropossociologia, com vista a uma futura noologia antropológica, fortemente baseada numa moderna biologia do espírito.
A neurobiologia antropológica considera o Homem como sendo uma totalidade complexa e organizada. Com efeito, o Homem é uma totalidade cujos subsistemas convergem no sistema nervoso. A noção insular de homem separava-o da natureza e da sua própria natureza, constituindo assim o domínio de uma antropologia reduzida a uma estreita faixa psicocultural. Ora, esta noção foi posta em causa pela revolução biológica contemporânea, bem como pela revolução filosófica, que de uma só cajadada matou dois coelhos: o biologismo, concepção fechada da vida, e o antropologismo, concepção fechada do homem. Ao contribuírem para a ultrapassagem da alternativa ontológica natureza/cultura, a biologia da evolução, a biologia molecular, a ecologia, a etologia, a sociobiologia, a sociologia animal e a neurobiologia, bem como a paleantropologia, a psicanálise, o materialismo histórico e dialéctico, a nova botânica, a teoria da relatividade e a mecânica quântica, reformularam completamente a noção de homem, reformulação esta que rompe quer com o panbiologismo quer com o panculturalismo. Esta ruptura epistemológica atribui à biologia humana e à cultura humana um papel recíproco de uma sobre a outra. Como escreve o genético molecular T. Dobzhansky (1963): «A evolução humana só pode ser entendida como produto de interacção destes dois movimentos» (p.1), ou seja, do biológico e do cultural. Assim, a anterior teoria fechada, fragmentária e simplificante do homem cede o seu lugar a uma nova teoria aberta, multidimensional e complexa do homem, cujos fundamentos se encontram numa lógica da complexidade e da auto-organização que receberam um contributo decisivo da cibernética, da informática e da teoria geral dos sistemas. As ciências que dominavam o anterior paradigma antropológico, nomeadamente a antropologia social, a antropologia cultural, a etnologia, a economia, a psicologia, a história, as ciências políticas, a linguística e a sociologia, bem como certas filosofias do homem, não deverão por isso ser rejeitadas e abandonadas. Trata-se antes de integrar as suas contribuições numa nova Síntese antropológica, libertando-as no entanto da sua armadura esquemática e unidimensional. Quer dizer que nenhuma delas ou qualquer outra ciência, nova ou não, poder á pretender reduzir o Homem à dimensão do seu próprio objecto: não existe um homem económico, um homem político, um homem social, um homem biológico, etc., independentes uns dos outros, mas sim um único homem inserido num vasto mundo natural em evolução — o Homem Total.
Se o homem é um sistema aberto, ou seja, uma totalidade «consistindo de partes em interacção» (Bertalanffy, 1977, p.38), então torna-se necessário considerar o campo antropológico como sendo constituído nas interacções, nas interferências e na actividade fenomenal (praxis) entre quatro pólos sistémicos complementares, concorrentes, antagonistas: o sistema genético, o cérebro, o sistema sociocultural e o ecossistema, sendo cada um deles co-organizador, co-autor, co-controlador, do conjunto. É certo que se trata ainda de um modelo antropológico demasiado esquemático, mas, ao contrário dos modelos reducionistas, tem o mérito de ser um modelo multipolarizado que nos permite compreender, de modo complexo, tudo o que é humano. Com efeito, pretende abarcar o conjunto de toda a antropologia, que nos surge assim como uma ciência sintética e integrada do Homem Total. Quer dizer que o seu fundamento só pode ser policêntrico: a natureza do homem não reside apenas na genética (Morris, 1967) ou na cultura (Cassirer, 977), nem sequer na sobreposição quase geológica do estrato cultural sobre o estrato biológico (Fromm, 1980), mas na inter-relação, na interacção (não linear), na interferência, nesse, e por meio desse, policentrismo. Assim, toda a unidade de comportamento humano (práxica) é simultaneamente genética, cerebral, social, cultural e ecossistémica. Isto não significa que cada uma das ciências sociais e humanas ou mesmo biossociais deva levar em conta, nas suas análises particulares, o conjunto de todos estes factores ou sistemas. Este é o dever da Filosofia e da antropologia que são disciplinas sintéticas por natureza, mas não o de cada ciência particular: cada uma delas, tomada isoladamente, pode, de acordo com as necessidades dos seus estudos particulares, desprezar tal ou tal aspecto que seja muito remotamente mediatizado, sem que com isso seja afectada na sua cientificidade.
A complexidade antropológica é efectivamente policêntrica ou, como prefere dizer Althusser (1977), sobredeterminada. Nenhum dos quatro pólos desempenha efectivamente um papel privilegiado em relação aos outros: o sistema genético, o sistema nervoso, o sistema sociocultural e o ecossistema coexistem com o mesmo estatuto ontológico num campo de interacções, de interferências, complementares, concorrentes, antagonistas. Contudo, na complexidade antropológica há um sistema que ocupa uma posição central: o sistema nervoso humano. Edgar Morin (1975) considerou-o, no seu modelo da natureza humana, como «o epicentro organizacional de todo o complexo bioantropossociológico» (p.198). O cérebro humano é, de facto, a placa giratória onde comunicam o organismo individual, o sistema genético, o ecossistema e o sistema sociocultural. Mas esta função só a pode desempenhar quando é considerado como órgão e não, como pensa Morin, como um princípio de organização meta-cerebral, exterior ao cérebro considerado como órgão. Efectivamente, é o órgão cérebro e não um qualquer princípio meta-cerebral que é um produto, nas suas primeiras fases biológico e depois biocultural, da filogénese e da ontogénese. O cérebro é, para o indivíduo, o sistema integrador/organizador central. Além disso, desempenha também um papel organizacional na sociedade e na cultura. Sem ele não seria possível a existência de uma sociedade e cultura humanas, assim como também não seria possível um cérebro humano sem estas últimas. Esta correlação não-linear cérebro-sistema sociocultural é permanente e fundamental: quer dizer que o cérebro não é unicamente uma estrutura biológica, mas também uma estrutura sociocultural, uma vez que ele é uma parte integrante da estrutura social e cultural, sendo esta última também uma parte integrante da estrutura do sistema nervoso central. Se todas as ciências humanas devem convergir sobre o sistema nervoso, então podemos dizer que a antropologia fundamental é, em última análise, uma neurobiologia antropológica, intimamente associada à genética antropológica proposta por Wilson (1980), e a uma psicossociologia antropológica, ainda por constituir. A maior ambição da neurobiologia antropológica será e é por termo ao divórcio que existe entre as ciências do homem e as ciências do sistema nervoso ou neurociências. Nada justifica hoje em dia a persistência do corte dos laços profundos que unem o social ao cerebral. Em vez de descerebrizar o social e o cultural, procuramos, dentro do possível, cerebrizar o sociocultural e o humano, visando lançar no futuro as bases de uma moderna biologia do espírito, que implicará uma reorganização profunda da Filosofia (vide John Searle, 1987). Como para já isso ainda não é possível, limitamos o domínio de refutabilidade do nosso Modelo Neuronal do Homem ao fenómeno da antropogénese, ou seja, da passagem de um sistema antropóide para um sistema humano.
A visão da totalidade característica da neurobiologia antropológica bastaria, por si só, para a definir como filosófica. Como se sabe, a palavra antropologia reveste dois sentidos: por um lado, pode designar o conhecimento ou a ciência acerca do homem, enquanto, por outro lado, pode também significar o logos do próprio anthropos. A antropologia entendida como o logos do homem constitui o seu sentido originário, uma vez que se o homem não tivesse um logos em si mesmo não seria possível uma ciência a seu respeito. Os filósofos tradicionais interrogavam-se frequentemente sobre o que distingue uma antropologia filosófica das outras antropologias. Qualquer antropologia científica tem por missão descrever o homem sob determinado aspecto e, mesmo que conseguisse englobar e condensar todos os diferentes aspectos do homem, nunca teria como resultado o homem como tal. Ao contrário de uma tal antropologia, a antropologia filosófica consiste numa tentativa única de compreender o homem como tal e na totalidade, já que a filosofia visa o todo e não constitui uma especialidade científica, sendo por isso destituída de objectivo e de utilidade prática. Dado que quando se fala do ser, da essência ou da natureza do homem se entende sempre o homem como tal e na totalidade, pode dizer-se que a antropologia filosófica é uma teoria da essência do homem. Mas a própria noção de totalidade pode significar duas coisas: por um lado, pode significar o homem uno e todo por oposição aos muitos aspectos parciais que o caracterizam, enquanto, por outro lado, pode designar o homem todo dentro da totalidade do que existe no universo. Na primeira acepção, o homem como tal e na totalidade ainda não constitui a totalidade do ser no segundo sentido. Quer dizer que uma antropologia verdadeiramente filosófica não pode deixar de perguntar qual é a relação existente entre esta parcela enigmática que é o homem como tal e na sua totalidade e a totalidade daquilo que existe. Se quiser conhecer as suas verdadeiras proporções em relação à totalidade do ser, ou seja, do universo ou mundo, o homem deve inquirir para além de si mesmo. Com efeito, só com esta pergunta abrangente acerca da relação entre o homem e o mundo pode a antropologia tornar-se filosófica. Mas esta relação não pode ser reduzida a uma relação unilateral do homem com o mundo. Ambos são de tal modo decisivos para esta relação que se impõe, de imediato, uma pergunta: como se pode saber algo acerca da totalidade do ser sem referência ao homem? O homem é o único ser que tem uma autoconsciência de si mesmo e uma consciência da totalidade e é, nessa medida, que ele pode ser considerado como ponto de partida e de referência para o conhecimento acerca de todo o ser. Parece assim que a filosofia deve reduzir-se e referir-se ao homem. Quando Kant reuniu as suas três perguntas — que posso saber?; que devo fazer?; que posso esperar? — numa única interrogativa fundamental: o que é o homem?, parecia querer dizer que a filosofia, embora orientada para o todo, seria, num sentido essencial, antropológica, ainda que a antropologia na sua acepção especial não fosse fundamental, pelo menos no tempo de Kant ou mesmo de Descartes, para o conhecimento da totalidade. Até mesmo Heidegger baseia, na sua ontologia fundamental, o problema do ser na compreensão ontológica da existência humana. «A Filosofia — escreve Heidegger (1980) — é a ontologia fenomenológica universal que, partindo da hermenêutica do "ser-aí" e como analítica da existência, estabelece o fim do fio condutor de toda a questão filosófica no ponto do qual esta se origina e para o qual retorna» (p.469). Ora, o conceito de metamorfose da ciência recupera, contra a ciência clássica, a grande tradição antropológica da filosofia. Dele resulta o conceito de ciência centrada, o qual era intragável para a ciência clássica. Como escrevem Prigogine e Stengers (1987): «A objectividade científica fora definida durante muito tempo como ausência de referência ao observador; de agora em diante encontra-se definida por uma inultrapassável referência ao ponto de vista humano — uma referência ao homem, ou à bactéria por exemplo, esse outro habitante do mundo macroscópico cujo movimento constitui claramente uma actividade exploratória, pois supõe a orientação no tempo e a capacidade de reagir irreversivelmente a modificações químicas do meio. A nossa ciência, por muito tempo definida pela busca de um ponto de vista de sobrevoo absoluto, descobre-se finalmente como ciência "centrada", cujas descrições são situadas e traduzem a nossa situação no seio do mundo físico» (p.394). É certo que ambas as noções apresentam algumas diferenças significativas entre si, mas têm o mérito não só de acentuar o carácter antropológico destas duas actividades humanas que são a filosofia e a ciência, como também de mostrar a necessidade de introduzir o ponto de vista da totalidade em cada uma delas. Se tanto a antropologia filosófica como a científica procuram abarcar de chofre o homem como tal e na sua totalidade e se a teoria da Nova Aliança proíbe traçar uma linha de demarcação entre ambas, torna-se então evidente que a antropologia filosófica joga um papel privilegiado na unificação das ciências antropológicas e humanas. Só a filosofia, enquanto ciência dos princípios que visa o todo, pode realizar esse trabalho de síntese antropológica, sendo ela mesma o seu resultado. Quer dizer que uma antropologia filosófica da totalidade não pode ser constituída por oposição às outras antropologias. A neurobiologia antropológica entendida como antropologia geral e fundamental é necessariamente um esforço filosófico.
Os filósofos antropólogos têm realizado o projecto de uma antropologia geral de maneiras diferentes, as quais correspondem a três tendências que podem ser encaradas como possibilidades fundamentais da Antropologia filosófica em geral e que se deixam especificar como:
antropologia a partir da esfera espiritual do homem ou antropologia de cima (Nicolai Hartmann,1933,1949; E. Cassirer; E. Rothacker);
antropologia a partir da apreensão da natureza do homem ou antropologia de baixo (A. Gehlen,1966; A. Portmann,1944,1958); e
antropologia da facticidade fenomenal da constituição vivida e existencial do homem ou antropologia do interior (Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Sartre, Merleau-Ponty e Binswanger).
Qualquer um destes tipos fundamentais procura compreender a essência ou natureza do homem. Grosso modo, o problema da natureza humana aparece mais associado à antropologia de baixo do que à antropologia de cima, que prefere antes a noção de essência humana. O modelo neuronal de homem, embora não seja uma teoria essencialista, não abdica do conceito de natureza do homem. É, por isso, que se torna necessário demarcá-lo das demais teorias clássicas do homem.
A este propósito a história do desenvolvimento do pensamento de Karl Marx é exemplar. Althusser (1979) demonstrou de modo inteligente que Marx, a partir de 1845, «rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política em uma essência do homem» (p.200). Quer dizer que o desenvolvimento do pensamento científico-filosófico de Marx é atravessado por uma ruptura epistemológica que o divide em dois grandes períodos essenciais: o período ainda ideológico, anterior à ruptura de 1845, e o período científico, posterior à ruptura de 1845. O primeiro período, sobretudo a sua segunda etapa (1842-1845), é dominado pela problemática teórica do humanismo, em particular do humanismo comunitário de Feuerbach. Com efeito, o homem é pensado como ser comunitário, ou seja, como um ser que só se realiza teórica e praticamente nas relações humanas universais, tanto com os homens como com os seus objectos. É nesta essência do homem que se fundam a história e a política. Assim, a história mais não é que a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem verdadeiro no homem alienado. «Nos produtos alienados do seu trabalho (mercadorias, Estado, religião), o homem, sem o saber, realiza a essência do homem. Esta perda do homem, que produz a história e o homem, supõe efectivamente uma essência preexistente definida. No final da história, este homem, transformado em objectividade inumana, não terá mais do que tomar, como sujeito, a sua própria essência alienada na propriedade, na religião e no Estado, para vir a ser o homem total, o homem verdadeiro» (Althusser,1977,p.232). Ora, se a história mais não é do que a alienação, ou seja, exteriorização da sua essência nos produtos alienados do seu trabalho, a acção política deverá ser uma reapropriação prática da sua essência pelo homem. «Com efeito, o Estado, como a religião, é efectivamente o homem, mas o homem na sua desapossessão; o homem está cindido entre o cidadão (Estado) e o homem civil, duas abstracções. No céu do Estado, nos "direitos do cidadão", o homem vive imaginariamente a comunidade humana de que está privado na terra dos "direitos do homem". A revolução não será mais somente política (reforma liberal racional do Estado), mas também "humana" ("comunista"), para restituir ao homem a sua natureza alienada na forma fantástica do dinheiro, do poder e dos deuses. Por conseguinte, esta revolução prática será a obra comum da filosofia e do proletariado porquanto, na filosofia, o homem é afirmado teoricamente; no proletariado, ele é negado praticamente. A penetração da filosofia no proletariado será a revolta consciente da afirmação contra a sua própria negação, a revolta do homem contra as suas condições inumanas. Então, o proletariado negará a sua própria negação e tomará posse de si mesmo no comunismo. A revolução é a prática mesma da lógica imanente à alienação: é o momento em que a critica, até aí desarmada, reconhece as suas armas no proletariado. Ela dá ao proletariado a teoria do que ele é: o proletariado dá-lhe, por sua vez, a sua força armada, uma só e mesma força em que cada um se alia como que consigo mesmo. A aliança revolucionária do proletariado e da filosofia é, pois, ainda aqui, selada na essência do homem» (Althusser,1977,pp.232-233).
Após a ruptura de 1845, Marx não só rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência do homem, como também parece romper radicalmente com toda a antropologia ou todo o humanismo filosóficos. Os três aspectos indissociáveis desta ruptura são os seguintes: 1) formação de uma teoria da história e da política fundada em conceitos radicalmente novos, tais como os conceitos de formação social, modo de produção, forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determinação em última instância pela economia, determinação específica dos outros níveis, etc.; 2) crítica radical das pretensões teóricas de todo o humanismo filosófico; e 3) definição do humanismo como ideologia. Quer dizer que a essência do homem criticada (2) é definida como ideologia (3), categoria esta que pertence à nova teoria da sociedade e da história (1). Esta ruptura é, num só e mesmo acto, a rejeição da problemática da filosofia anterior e a adopção de uma problemática nova, desta vez científica. A filosofia anterior idealista repousava, em todos os seus domínios e desenvolvimentos, sobre uma problemática da natureza humana, constituída por um sistema coerente de conceitos precisos, estreitamente articulados uns aos outros. Os seus dois postulados complementares e indissociáveis, analisados por Marx na sua VI tese sobre Feuerbach, precisam que existe uma essência universal do homem (1), a qual é o atributo dos indivíduos tomados isoladamente, que são os seus sujeitos reais (2). Althusser (1977) demonstrou que a sua existência e a sua unidade pressupõem toda uma concepção empirista-idealista do mundo. «Para que a essência do homem seja atributo universal, é preciso, com efeito, que os sujeitos concretos existam como dados absolutos: o que implica um empirismo do sujeito. Para que esses indivíduos empíricos sejam homens, é preciso que tragam cada um em si toda a essência humana, se não de facto, ao menos de direito: o que implica, pois, o idealismo da essência. O idealismo do sujeito implica, pois, o idealismo da essência e reciprocamente» (p.234). É certo que esta relação se pode inverter no seu contrário (empirismo do conceito/idealismo do sujeito), mas esta inversão diz somente respeito à estrutura fundamental dessa problemática, que permanece fixa. Isto significa que os termos em presença e a sua relação só variam no interior de uma estrutura-tipo invariante, que constitui a própria problemática: «a um idealismo da essência corresponde sempre um empirismo do sujeito ou a um idealismo do sujeito, um empirismo da essência» (Althusser,1977,p.235). Quando rejeitou a essência do homem como fundamento teórico da teoria da história e da política, Marx rejeita igualmente todo o sistema orgânico de postulados da problemática antropológico-humanista anterior a si. Os antigos conceitos não só são recusados como também são substituídos por conceitos novos. «Com efeito, Marx funda uma nova problemática, um novo modo sistemático de apresentar as questões ao mundo, novos princípios e um novo método» (Althusser,1977,p.235). Esta descoberta científica de Marx, que está contida imediatamente na teoria do materialismo histórico, propõe, num só e mesmo acto, uma nova teoria da história das sociedades humanas e uma nova concepção da filosofia, mais precisamente uma teoria materialista dialéctico-histórica dos diferentes níveis específicos da prática humana nas suas articulações próprias, fundadas nas articulações específicas da unidade da sociedade humana.
Se Marx — ou para sermos menos polémicos, se Althusser — rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência humana preexistente definida, e se a substitui por uma nova teoria da história e por uma nova prática da filosofia, cabe-nos — a nós pós-marxistas — o direito legítimo de perguntar se ainda é possível uma teoria do homem, isto é, uma Antropologia. Parece-nos que nem Marx nem Althusser negaram completamente a possibilidade de uma antropologia, desde que não se caia nas armadilhas de uma problemática do humanismo da essência. Como se sabe, Marx afirmou, em O Capital, que o seu «método analítico não parte do homem, mas do período social economicamente dado...». Após os seus Elementos de Auto-crítica (1972, 1976), Althusser (1973) escreveu, na sua resposta a John Lewis, que «"o homem" é um mito da ideologia burguesa: o Marxismo-Leninismo não pode partir do "homem". "Parte do período social economicamente determinado": e, no termo da sua análise, ele pode "chegar" aos homens reais. Esses são então o ponto de chegada de uma análise que parte das relações sociais do modo de produção existente, das relações de classe e da luta de classes. Esses homens são radicalmente diferentes do "homem" da ideologia burguesa». E acrescenta: «"A sociedade não é composta de indivíduos", diz Marx. Efectivamente: a sociedade não é uma "composição", uma "adição" de indivíduos; o que a constitui é o sistema das suas relações sociais em que vivem, trabalham e lutam os seus indivíduos. Efectivamente: a sociedade não é composta de indivíduos em geral, quaisquer, os quais seriam outros tantos exemplares do "homem"; porque cada sociedade tem os seus indivíduos, histórica e socialmente determinados. O indivíduo-escravo não é o indivíduo-servo nem o indivíduo-proletário, e o mesmo se passa quanto aos indivíduos de cada classe dominante correspondente. No mesmo sentido, mesmo uma classe não é "composta" de quaisquer indivíduos: cada classe tem os seus indivíduos, modelados na sua individualidade pelas suas condições de vida, de trabalho, de exploração e de luta — pelas relações da luta de classes. Na sua massa, os homens reais são aquilo que as condições de classe deles fazem. Essas condições não dependem da "natureza" burguesa do "homem": a liberdade. Pelo contrário, as suas liberdades, incluindo as formas e os limites dessas liberdades, dependem dessas condições» (p.38). Este texto não deixa margem a dúvidas: a teoria da subjectividade e da individualidade, ou seja, a antropologia é possível, desde que se fundamente na teoria do materialismo histórico. Althusser, embora crítico intransigente do humanismo da essência, está no entanto de acordo com Georg Luckács (1974) quando este escreve que «para o marxismo não há, pois, em última análise, ciência jurídica, economia política, história, etc., autónomas: há somente uma ciência, histórica e dialéctica, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade» (p.42). Quer dizer que a antropologia só é possível enquanto teoria regional (e dependente) da teoria do materialismo histórico, ou seja, da ciência da história das sociedades humanas. Até mesmo certos antropólogos de orientação marxista, como por exemplo J. Copans, S. Tornay, M. Godelier ou C. Backès-Clément (1988), que criticam pontualmente certas teses defendidas por Althusser, reconhecem que o projecto de uma antropologia geral deverá defini-la como a «ciência única das formações sociais e históricas» (p.41). Mas, em vez de reduzirem a antropologia à história, parecem, pelo contrário, ter optado pelo movimento inverso, com o qual estou inteiramente de acordo. Com efeito, a antropologia não é uma simples teoria regional da ciência da história: esta é que deverá ser integrada na antropologia...
Com a definição da antropologia como ciência do desenvolvimento das sociedades humanas, os marxistas pretendem salvaguardar a sua problemática teórica de toda e qualquer investida por parte da problemática com a qual Marx tinha rompido em 1845. Quando responde às críticas de John Lewis, Althusser aproveita a ocasião para criticar severamente a antropologia de Sartre e não só. Após Marx, Nietzsche e Freud, tem-se vindo a assistir à consumação da ruína do essencialismo metafísico enquanto corrente do pensamento filosófico. Um dos seus momentos, e não o menos importante, foi o êxito das várias correntes do existencialismo, em particular do existencialismo ateu de Sartre. Na verdade, Jean-Paul Sartre teve sempre como projecto fundamental lançar as bases para a formulação da antropologia dos tempos modernos. Como pretendia realmente romper com a sociedade burguesa e emancipar o homem, Sartre teve de dialogar com o marxismo, que ocupava precisamente esse terreno. Desse diálogo resultou a sua conversão ao marxismo. Com efeito, o marxismo é — escreve Sartre (1960) — «a única antropologia possível, que deve ser simultaneamente histórica e estrutural. É a única, ao mesmo tempo, que toma o homem na sua totalidade, isto é, a partir da materialidade da sua condição» (p.107). Contudo, o marxismo apresenta uma falha: «ele perdeu por completo o sentido do que é um homem» (p.58), empobrecendo e desumanizando assim a sua própria concepção da história e da dialéctica, ou seja, «o marxismo tende a eliminar o questionador da sua investigação e a fazer do questionado o objecto de um Saber absoluto» (p.107). É, por isso, que «nós podemos, ao mesmo tempo, declarar-nos em profundo acordo com a filosofia marxista e manter, provisoriamente, a autonomia da ideologia existencial» (p.107). Ora, se há no próprio âmago da filosofia marxista «o lugar vago de uma antropologia concreta» (p.59), a função do existencialismo será a de «reconquistar o homem no interior do marxismo» (p.59).
Quando no seu empreendimento filosófico se depara com o essencialismo metafísico, Sartre identifica constantemente a noção de essência humana com a de natureza humana. Com efeito, até mesmo na Crítica da Razão Dialéctica, ele afirma que é impossível «elaborar a definição de algo como uma essência humana, ou seja, um conjunto fixo de determinações a partir das quais seria possível consignar um lugar definido aos objectos estudados» (p.105). Deste modo, Sartre, ao basear toda a sua investigação numa concepção pré-dialéctica da essência humana, vê-se impossibilitado de ultrapassar o essencialismo metafísico. Em vez de o superar, opõe-se-lhe no âmbito do seu próprio terreno, o da filosofia especulativa. Assim, à ideia de que o homem em geral se define por uma essência humana abstracta, opõe a simples inexistência dessa essência abstracta. Esta tese não o liberta da concepção do homem em geral, mas leva-o antes a defini-lo através da ausência de uma essência preestabelecida, ou seja, por uma liberdade abstracta, ontologicamente constitutiva da realidade humana. Quer dizer que toda a sua antropologia é construída à base de entidades abstractas, tais como o em-si, o para-si, o homem, o outro, a liberdade, não passando as suas análises concretas de partes justificativas da construção filosófica. Como não reconhece claramente a excentricidade posicional, de índole social (e não só), da essência humana real, Sartre remete todos os problemas inerentes à mudança social para a escolha, para o projecto livres do homem, ou seja, do indivíduo em geral, concebido enquanto suporte e origem última de todas as relações sociais. Quando afirma que «o homem não é‚ senão aquilo que faz de si mesmo (1978,pp.216-217), Sartre mais não faz do que conceder uma prioridade ontológica essencial do indivíduo em geral relativamente às relações sociais. E a tese fundamental da Crítica da Razão Dialéctica continua a ser a mesma: efectivamente, escreve Sartre (1960), «o único fundamento concreto da dialéctica histórica é a estrutura dialéctica da acção individual» (p.279), ou seja, os únicos agentes dessa dialéctica histórica «são os homens individuais enquanto executantes de livres actividades» (p.377). Quer dizer que o homem, enquanto indivíduo livre, é obrigatoriamente considerado como factor da história, e simultaneamente da sua própria história. Dado que não reconhece os homens individuais como sendo um produto prévio das relações sociais, Sartre, que mais não faz do que considerá-los como sendo anteriores às relações sociais, acaba por psicologizar e subjectivar invencivelmente todas as coordenadas de base da antropologia, impedindo deste modo a constituição de uma antropologia verdadeiramente científica e filosófica.
O desenvolvimento de um certo número de ciências humanas no âmbito do seu positivismo acarretou necessariamente a dissolução da vasta influência do existencialismo. Assim, a psicanálise, a linguística e a etnologia mostraram que a antropologia não pode encontrar outro fundamento que não seja nas estruturas objectivas, impessoais e inconscientes que subentendem e informam toda a existência humana. É precisamente esta a ideia central que Lévi-Strauss (1976) opõe a Sartre quando, no último capítulo de O Pensamento Selvagem, escreve que «quem começa por se instalar nas pretensas evidências do eu nunca mais de lá sai» (p.284). E a sua crítica a Sartre continua nestes termos: «Entrincheirado no individualismo e no empirismo, um Cogito — que quer ser ingénuo e primitivo — perde-se nos impasses da psicologia social. Porque é evidente que as situações a partir das quais Sartre procura definir as condições formais da realidade social: greve, combates de boxe, desafio de futebol, bicha de espera numa paragem de autocarro, não passam todas senão de incidentes secundários da vida em sociedade; elas não podem, portanto, servir para desvendar os seus fundamentos» (p.285). «Ao mesmo tempo que rendemos homenagem à fenomenologia sartriana, não esperamos encontrar nela senão um ponto de chegada, nunca um ponto de partida» (p.286). Apesar da sua crítica severa mas justa à fenomenologia sartriana, Lévi-Strauss não consegue superar a antropologia e o humanismo filosóficos através de uma concepção rigorosa das ciências humanas, uma vez que a sua leitura se baseia implícita ou explicitamente numa concepção geral do homem que se distingue sobretudo por uma ausência: a estrutura das relações de produção, no que diz respeito ao contributo de Marx. É certo que Lévi-Strauss clama por inúmeras vezes a importância que dedica ao «incontestável primado das infra-estruturas» (1977,p.157), mas, quando as reduz aos dados geográficos, apercebemo-nos imediatamente o quão afastado está da economia política, no referente à sua acepção marxista. Lévi-Strauss é assim levado a substituir as infra-estruturas económicas, colocadas entre parêntesis, por outras, que irão preencher por completo o papel de estruturas de base. Estas outras estruturas mais não são do que as estruturas linguísticas que foram promovidas a essa função pela antropologia estrutural. A partir do contributo das ciências linguísticas para o estudo dos factos culturais, e mediante uma constante passagem sub-reptícia ao sentido generalizado em que, por oposição ao natural, o termo cultural pretende designar tudo o que é social, a antropologia estrutural é levada a construir, na base dessas ciências, a ciência-piloto para o conjunto das ciências humanas. Deste modo, apresenta a linguagem como sendo a essência de tudo o que é humano. Com efeito, Lévi-Strauss (1975) afirma inequivocamente que «a linguagem é ao mesmo tempo o facto cultural por excelência (que distingue o homem do animal) e aquele por intermédio do qual todas as formas de vida social se estabelecem e perpetuam» (p.399). Dado que têm por contextura a linguagem, as instituições sociais e as condutas individuais são apenas «modalidades temporais das leis universais em que consiste a actividade inconsciente do espírito» (1975,p.83). Ao afirmar que as leis universais do espírito humano orientam e governam o mundo, Lévi-Strauss nada mais faz do que modernizar a velha tradição do idealismo sociológico francês — a do comtismo por oposição ao marxismo, sem lograr no entanto uma vitória contundente sobre o humanismo existencialista.
A fenomenologia sartriana e a antropologia estrutural são, portanto, duas abordagens antropológicas literalmente opostas, mas, a um nível bastante mais profundo, perfeitamente análogas. Sartre, ao defender a prioridade ontológica essencial do indivíduo relativamente às relações sociais, e Lévi-Strauss, ao afirmar axiomaticamente que a linguagem impregna todas as categorias sociais, nada podendo existir sem ela na ordem dos fenómenos sociais (Cf.1987,p.301), remetem-nos, pelo menos parcialmente, para aquém da revolução teórica operada por Marx. Como não conseguiram ultrapassar real e cientificamente o essencialismo metafísico, ambos permaneceram prisioneiros de uma problemática antropológica tradicional e sobretudo de um conceito metafísico, não dialéctico e não histórico, de essência humana, claramente desmistificado por Marx na VI Tese sobre Feuerbach, onde se diz que a natureza humana é «o conjunto das relações sociais». A partir desse momento, qualquer teoria antropológica que se pretenda cientifica deve, se não quiser ser tratada como especulativa e abstracta, substituir a concepção pré-dialéctica de essência humana por uma nova concepção dialéctica e histórica, sem no entanto procurar reduzi-la a um único traço fixo. Com efeito, o que desaparece hoje não é, de forma alguma, a essência humana, mas sim a forma ideológica mistificada sob a qual esta era apresentada. O essencialismo metafísico afirmava que os indivíduos eram exemplos singulares do homem em geral, cuja essência era definida por um conjunto de propriedades universais e imutáveis, possuindo em si mesmas a forma psicológica, propriedades naturais ou sobrenaturais mas, em todo o caso, não históricas. Ou seja, o essencialismo metafísico mais não é do que uma teoria de uma essência humana abstracta, espontaneamente inerente ao indivíduo isolado. Marx rompeu radicalmente com uma tal problemática filosófico-antropológica: ao fazê-lo tornou possível um conhecimento genuinamente científico e filosófico do homem. Contudo, se a antropologia pretende abarcar a totalidade do homem, procurando implicitamente o conhecimento do ser da realidade humana, o conceito marxista de essência humana, enquanto conjunto das relações sociais, apresenta-se como insuficiente, uma vez que escamoteia a complexidade da organização humana. Althusser (1973) e, de um modo geral, os marxistas dizem, e com toda a razão, que cada sociedade ou cada classe social possui os seus próprios indivíduos reais, mas esquecem-se de acrescentar que esses indivíduos foram modelados pelo seu meio social porque os seus cérebros são dotados geneticamente de uma organização morfológica aberta às instruções do meio exterior. Assim, os indivíduos sociais são aqueles que já trazem, na estrutura fina dos seus cérebros, a marca cultural da sua sociedade e/ou da sua classe social.
Tal como o modelo marxista, a maior parte dos modelos antropológicos, com excepção dos de Edgar Morin e de Arnold Gehlen, nem sempre levam em conta a complexidade da natureza humana, mesmo que, como os de Sartre ou de Lévi-Strauss, reclamem o conhecimento da totalidade do homem. É, por isso, que apoiamos a antropologia de baixo representada por um A. Gehlen ou por um A. Portmann, que procura apreender a essência do homem a partir de uma reflexão vigorosa da biologia moderna e não somente a partir das ciências humanas, mas que somos mais cépticos em relação a uma antropologia de cima, onde se poderia incluir a antropologia estrutural, ou a uma antropologia existencial, como a fenomenologia sartriana. Com efeito, a natureza humana reside precisamente na sua complexidade e no seu carácter de sistema aberto, donde resulta a impossibilidade de reduzi-la epistemológica e ontologicamente a um dos seus traços ou aspectos. A natureza humana não é nem exclusivamente biológica, nem exclusivamente cultural: o seu nó górdio reside efectivamente na sobredeterminação, ou melhor, na interacção que se estabelece entre esses dois grandes sistemas. Mas entre a biologia e a cultura encontra-se sempre o sistema nervoso, ele próprio produto e co-produtor da biologia e da cultura, bem como da complexidade antropológica. Quer dizer que o homem é essencialmente um ser-neuronal na medida em que é um ser cultural porque neuronal e um ser bioneuronal porque cultural. O homem neuronal é assim um ser simultaneamente natural e cultural. Um tal modelo antropológico, na medida em que implica um diálogo das ciências humanas ou, mais correctamente, das ciências do comportamento com as ciências do sistema nervoso, poderia ser encarado como uma teoria estritamente científica. Mas o modelo neuronal de homem não rompe com a boa tradição filosófica, pela simples razão de que não abdica, apesar de tudo, do conceito de natureza humana que, enquanto sistema aberto, não tem já nada a ver com a problemática-tipo do essencialismo metafísico. Ao afirmarmos o carácter simultaneamente científico e filosófico da nova antropologia, queremos apenas frisar que ela não abdica da reflexão filosófica, cujo resultado é a produção de modelos teóricos, e que esses modelos sem a experiência científica são verdadeiramente especulativos ou até mesmo, por vezes, inúteis. O encontro dos modelos com a experiência, que define o diálogo experimental, é aquilo a que chamaremos uma ciência filosófica do homem e uma filosofia científica do homem, ou seja, uma verdadeira ciência do Homem.

(Trabalho datado. Tese de Mestrado: HOMO FOSSILIS: Ensaio Neuro-Antropológico, Conclusão, Lisboa: 1989).

J Francisco Saraiva de Sousa

Sem comentários: