CyA teoria crítica tem sido sistematicamente acusada de dedicar pouca atenção à morte. Contra estas acusações, a teoria crítica afirma enfaticamente a impossibilidade de um discurso teórico sobre a morte: a morte é conceptualmente incontornável (Ernst Bloch). A sua tentativa de conceptualização esquece o que verdadeiramente é importante: resgatar a memória do ser humano que morreu. Dando voz ao pensamento do morto querido, podemos recordá-lo até ao fim da nossa própria vida e, deste modo, permanecer fiel à sua palavra. É a sua palavra e não a nossa palavra que irão escutar — a palavra de quem foi privado da palavra durante uma vida tragicamente danificada.
1. Quando liga o homem à sociedade que o condiciona, a teoria tradicional (Horkheimer) esquece que o homem, antes de ser um ser social, é um ser vivo: a biologia humana é extremamente plástica mas tem sempre a primeira e a última palavras. A morte faz parte integrante da vida: todo o organismo que nasce morre. Todos sabemos disso, uns mais tarde do que outros, mas todos sabemos que iremos morrer. Da morte ninguém escapa. O substrato biológico do homem não pode ser silenciado por um sociologismo incapaz de olhar para o homem sem o reduzir a um feixe de relações e de condicionalismos sociais.
2. Quem morre sobrevive apenas na memória daqueles que permanecem fiéis à sua palavra: quem açambarca o cadáver sem lhe ser fiel revela-se a si mesmo como uma coisa. Ser coisa é não assumir a sua culpa sem criar um bode expiatório.
3. A morte é um acontecimento metafísico: na sua crueldade revela a humanidade ou falta de humanidade daqueles que privam o defunto da sua palavra.
4. Esquecer a palavra do morto é matá-lo pela segunda vez: neste acto, rouba-se-lhe o direito à lembrança.
5. Os fracos precisam desesperadamente da morte de um próximo para se sentirem vivos: vampiros que não são ninguém.
6. Quem planeia o funeral de uma pessoa doente não a ama: o amor é esperança.
7. Quem açambarca os bens do defunto contra a sua vontade não é digno do amor que este lhe deu durante a sua vida.
8. Como se pode dizer que se ama alguém que esteja a lutar contra a morte e, ao mesmo tempo, trair a sua vontade? A promessa foi uma mentira: o que alimentava o seu ego mesquinho era a vingança.
9. Situação estranha: quando o doente com sérias possibilidades de vida precisou dos cuidados dos seus próximos, ninguém lhe acudiu, mas, quando foi hospitalizado, todos lhe acudiram. Os horários deixaram de ser desculpa. Se o doente morrer, de que lhe valeu esta culpa serôdia?
10. A morte já não é um acontecimento digno: mesmo antes de morrer já estamos mortos!
11. O diálogo é uma mentira terrível: o idealismo estava certo quando afirmava a certeza que tenho de mim mesmo. O indivíduo perdido num banho de gente não é uma figura retórica: é a nossa verdade. O pior de tudo é que os outros existem para atormentarem quem não quer nem espera nada deles. Mais vale ser esquecido que atormentado por abutres sempre prontos a devorar as suas vítimas. Nem a sua dor os impede... mentir. A crueldade é uma manifestação especificamente antropológica da agressividade.
12. Apelar pela união dos homens é apelar pela crueldade: os «proletários» unidos são uma turba de assassinos!
13. No fundo, a morte revela-nos a nossa impotência de vencer a inércia material. A vitória dos vencedores é a sua aniquilação pela matéria inerte. O universo é reificação: a lembrança será esquecida pela matéria desmemorizada.
14. A morte não escapou à racionalização funcional: o capital apropriou-se do mundo até mesmo do cadáver. O fetichismo da mercadoria é necrofilia.
15. O cogito nada é sem a linguagem, mas a linguagem como sedimento do outro revolta-se contra a crueldade quando o cogito se «sabe» mortal. O instinto de sobrevivência é mais forte que o apelo do opressor.
16. A morte individualiza; é, por isso, que o sistema procura desesperadamente domesticar a morte.
17. A minha morte como possibilidade certa salvaguarda-me da heteronomia.
18. O indivíduo não pode atingir a sua plenitude sem a sociedade, mas pode revoltar-se contra a sociedade que lhe nega o direito a ser feliz. A consciência infeliz é resistência.
19. A mensagem cristã é aquela que resiste à codificação. Se assim não fosse, não poderíamos denunciar o cristianismo em nome da Cristianismo.
20. A biologia reprimida revolta-se contra o opressor: este nunca será verdadeiramente vencedor.
21. O homem é a única espécie que procura a sua própria extinção: o mal é radicalmente humano.
22. Diz Wittgenstein: «Não há linguagem privada». A consciência rebelde é capaz de privatizar a linguagem voltando-a contra o opressor que nela se insinua para a oprimir. A biologia é uma filosofia da libertação. Se faz sentido falar em inconsciente, este só pode ser o substrato biológico que recusa ser integrado pela sociedade repressiva. A biologia ameaçada pode converter-se, ela mesma, numa força de destruição cega.
23. O cosmos não se deixa enquadrar facilmente nos esquemas mentais do opressor. A fúria do idealismo volta-se contra si mesmo: a coisa-em-si é vencedora.
24. Como senhor do mundo, o homem está condenado a não ser nada. A morte é a única senhora...
25. O ritual funerário, tal como se pratica nas sociedades ocidentais, pode ser encarado como a última cerimónia pública em que participa o defunto como o seu principal protagonista. O defunto faz a sua última aparição em público: todas as fases do funeral giram em torno de si até que chega o momento final do sepultamento. Quando o caixão hermeticamente fechado é colocado sobre a campa aberta e começa a descer até que, assente no fundo, começa a desaparecer por debaixo da terra lançada, o defunto é definitivamente afastado do espaço público. Entregue à terra, o defunto deixa de ser um protagonista participante do mundo comum. O seu ocaso consuma-se completamente quando a campa já coberta de terra até ao cimo permanece assim. Naquele lugar jazem os restos mortais de um ser que já existiu.
26. Os abutres gostam de explorar os momentos de maior vulnerabilidade de uma pessoa para atingir os seus próprios fins. A morte afigura-se-lhes como o momento ideal para atacar o alvo: o órfão. Na maior parte das vezes são bem sucedidos, mas também podem fracassar. A morte de alguém querido fortalece. A nossa força é, nesse instante, reforçada pela incorporação da sua imensa e sublime força: ambos continuamos unidos.
1. Quando liga o homem à sociedade que o condiciona, a teoria tradicional (Horkheimer) esquece que o homem, antes de ser um ser social, é um ser vivo: a biologia humana é extremamente plástica mas tem sempre a primeira e a última palavras. A morte faz parte integrante da vida: todo o organismo que nasce morre. Todos sabemos disso, uns mais tarde do que outros, mas todos sabemos que iremos morrer. Da morte ninguém escapa. O substrato biológico do homem não pode ser silenciado por um sociologismo incapaz de olhar para o homem sem o reduzir a um feixe de relações e de condicionalismos sociais.
2. Quem morre sobrevive apenas na memória daqueles que permanecem fiéis à sua palavra: quem açambarca o cadáver sem lhe ser fiel revela-se a si mesmo como uma coisa. Ser coisa é não assumir a sua culpa sem criar um bode expiatório.
3. A morte é um acontecimento metafísico: na sua crueldade revela a humanidade ou falta de humanidade daqueles que privam o defunto da sua palavra.
4. Esquecer a palavra do morto é matá-lo pela segunda vez: neste acto, rouba-se-lhe o direito à lembrança.
5. Os fracos precisam desesperadamente da morte de um próximo para se sentirem vivos: vampiros que não são ninguém.
6. Quem planeia o funeral de uma pessoa doente não a ama: o amor é esperança.
7. Quem açambarca os bens do defunto contra a sua vontade não é digno do amor que este lhe deu durante a sua vida.
8. Como se pode dizer que se ama alguém que esteja a lutar contra a morte e, ao mesmo tempo, trair a sua vontade? A promessa foi uma mentira: o que alimentava o seu ego mesquinho era a vingança.
9. Situação estranha: quando o doente com sérias possibilidades de vida precisou dos cuidados dos seus próximos, ninguém lhe acudiu, mas, quando foi hospitalizado, todos lhe acudiram. Os horários deixaram de ser desculpa. Se o doente morrer, de que lhe valeu esta culpa serôdia?
10. A morte já não é um acontecimento digno: mesmo antes de morrer já estamos mortos!
11. O diálogo é uma mentira terrível: o idealismo estava certo quando afirmava a certeza que tenho de mim mesmo. O indivíduo perdido num banho de gente não é uma figura retórica: é a nossa verdade. O pior de tudo é que os outros existem para atormentarem quem não quer nem espera nada deles. Mais vale ser esquecido que atormentado por abutres sempre prontos a devorar as suas vítimas. Nem a sua dor os impede... mentir. A crueldade é uma manifestação especificamente antropológica da agressividade.
12. Apelar pela união dos homens é apelar pela crueldade: os «proletários» unidos são uma turba de assassinos!
13. No fundo, a morte revela-nos a nossa impotência de vencer a inércia material. A vitória dos vencedores é a sua aniquilação pela matéria inerte. O universo é reificação: a lembrança será esquecida pela matéria desmemorizada.
14. A morte não escapou à racionalização funcional: o capital apropriou-se do mundo até mesmo do cadáver. O fetichismo da mercadoria é necrofilia.
15. O cogito nada é sem a linguagem, mas a linguagem como sedimento do outro revolta-se contra a crueldade quando o cogito se «sabe» mortal. O instinto de sobrevivência é mais forte que o apelo do opressor.
16. A morte individualiza; é, por isso, que o sistema procura desesperadamente domesticar a morte.
17. A minha morte como possibilidade certa salvaguarda-me da heteronomia.
18. O indivíduo não pode atingir a sua plenitude sem a sociedade, mas pode revoltar-se contra a sociedade que lhe nega o direito a ser feliz. A consciência infeliz é resistência.
19. A mensagem cristã é aquela que resiste à codificação. Se assim não fosse, não poderíamos denunciar o cristianismo em nome da Cristianismo.
20. A biologia reprimida revolta-se contra o opressor: este nunca será verdadeiramente vencedor.
21. O homem é a única espécie que procura a sua própria extinção: o mal é radicalmente humano.
22. Diz Wittgenstein: «Não há linguagem privada». A consciência rebelde é capaz de privatizar a linguagem voltando-a contra o opressor que nela se insinua para a oprimir. A biologia é uma filosofia da libertação. Se faz sentido falar em inconsciente, este só pode ser o substrato biológico que recusa ser integrado pela sociedade repressiva. A biologia ameaçada pode converter-se, ela mesma, numa força de destruição cega.
23. O cosmos não se deixa enquadrar facilmente nos esquemas mentais do opressor. A fúria do idealismo volta-se contra si mesmo: a coisa-em-si é vencedora.
24. Como senhor do mundo, o homem está condenado a não ser nada. A morte é a única senhora...
25. O ritual funerário, tal como se pratica nas sociedades ocidentais, pode ser encarado como a última cerimónia pública em que participa o defunto como o seu principal protagonista. O defunto faz a sua última aparição em público: todas as fases do funeral giram em torno de si até que chega o momento final do sepultamento. Quando o caixão hermeticamente fechado é colocado sobre a campa aberta e começa a descer até que, assente no fundo, começa a desaparecer por debaixo da terra lançada, o defunto é definitivamente afastado do espaço público. Entregue à terra, o defunto deixa de ser um protagonista participante do mundo comum. O seu ocaso consuma-se completamente quando a campa já coberta de terra até ao cimo permanece assim. Naquele lugar jazem os restos mortais de um ser que já existiu.
26. Os abutres gostam de explorar os momentos de maior vulnerabilidade de uma pessoa para atingir os seus próprios fins. A morte afigura-se-lhes como o momento ideal para atacar o alvo: o órfão. Na maior parte das vezes são bem sucedidos, mas também podem fracassar. A morte de alguém querido fortalece. A nossa força é, nesse instante, reforçada pela incorporação da sua imensa e sublime força: ambos continuamos unidos.
J Francisco Saraiva de Sousa
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