Nas suas "Teses sobre a Filosofia da História", Walter Benjamin escreveu: «Não há nenhum documento da cultura que não seja também documento de barbárie». Ora, no nosso tempo, a cultura oficializada é a própria barbárie. A teoria crítica é obrigada a rever profundamente a sua estética.
A teoria estética de Marcuse procura mostrar que a arte pode contribuir para a luta desesperada pela transformação do mundo, uma vez que representa o objectivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a autonomia do indivíduo. Deste modo, a teoria estética de Marcuse continua ligada à teoria marxista da sociedade, que «compreende a sociedade estabelecida como uma realidade que deve ser mudada». Após o colapso do sistema soviético, as chamadas "sociedades livres" revelam o seu verdadeiro rosto: a corrupção das suas pretensas elites que abusaram do reforço do poder do Estado e das suas tarefas sociais para enriquecer em termos privados. É esta sociedade mais cleptocrática do que democrática que urge transformar, de modo a garantir a qualidade da democracia. A "cultura" destas pseudo-elites é a barbárie. A linguagem política é, actualmente, mentirosa e abusa dos cálculos "falsificados" para credibilizar a mentira. A barbárie também é política: esta geração de políticos sem ideias é o horror.
Contudo, na actual sociedade de consumidores (Hannah Arendt), «os seres humanos administrados reproduzem […] a própria repressão e renunciam à ruptura com a realidade». Nesta situação de integração social e cultural total, tanto a teoria crítica como o seu projecto político são forçadas a mudar teoricamente de rumo. Neste contexto social de ofuscamento e de paralisia da crítica, Marcuse procurou pensar a afinidade e a oposição entre a arte e a praxis radical: «Ambas visionam um universo que, embora provenha das relações sociais existentes, também liberta os indivíduos destas relações». A arte e a política visam a libertação e, nesse sentido, a arte como negação da realidade estabelecida antecipa ilusoriamente um outro princípio de realidade que guia a praxis revolucionária. Para Marcuse, a "sociedade socialista" não resolve todos os conflitos entre o universal e o particular, entre os seres humanos e a natureza, entre os indivíduos uns com os outros: «O socialismo não liberta Eros de Thanatos, nem poderia fazê-lo». Esta incapacidade de vencer definitivamente as forças da morte impele «a revolução para além de todo o estado de liberdade conseguido». Isto significa que a revolução nunca é definitiva, mas sempre permanente. É sempre «a luta pelo impossível, contra o inconquistável cujo domínio talvez possa, no entanto, ser reduzido». Como escreve Marcuse:
«A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na realidade social, sendo, no entanto, a sua outra face. A arte abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária».
A arte antecipa um outro princípio da realidade mais livre e pleno, que a praxis radical deve procurar realizar: «A autonomia da arte reflecte a ausência de liberdade dos indivíduos na sociedade sem liberdade». A arte mostra a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva: «Se as pessoas fossem livres, então a arte seria a forma e a expressão da sua liberdade». Mas, como as pessoas não são livres e autónomas, «a arte continua marcada pela ausência de liberdade; ao contradizê-la, adquire a sua autonomia. O nomos a que a arte obedece não é o do princípio da realidade estabelecida, mas a sua negação».
A arte antecipa, no seio da sociedade repressiva, a sua negação, isto é, a sociedade livre, embora de forma necessariamente sublimada e alienada. O que a praxis radical procura realizar é o que já está esboçado na forma estética, embora de forma sublimada e irreal. A arte é, de certo modo, transcendência, portanto, utopia. Mas «a utopia na grande arte nunca é simples negação do princípio de realidade (senão seria abstracta, má-utopia), mas a sua preservação transcendente em que o passado e o presente projectam a sua sombra na realização. A autêntica utopia baseia-se na memória».
Se «toda a reificação é, como afirmaram Adorno & Horkheimer, um esquecimento», então a arte é o contrário de toda a reificação: a arte é memória: memória do sofrimento e do terror. «A arte combate a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada. (...) O esquecer os sofrimentos do passado e as alegrias passadas torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva. Pelo contrário, a lembrança estimula o impulso pela conquista do sofrimento e da permanência da alegria».
Porém, sob o princípio de realidade estabelecida, «a força da lembrança é frustrada: a própria alegria é eclipsada pela dor» e pela gratificação. A inexorabilidade deste eclipse da lembrança é uma questão aberta, porque «o horizonte da história ainda está aberto. Se a lembrança das coisas passadas se tornasse um motivo poderoso na luta pela mudança do mundo, a luta seria empreendida para uma revolução até aqui suprimida nas revoluções históricas anteriores».
Nos seus escritos de juventude, Marcuse tinha elaborado o conceito do carácter afirmativo da cultura e, muito mais tarde, reconheceu que uma civilização do prazer pode constituir um obstáculo à tarefa da libertação. Embora não tenha sido sempre claro a este propósito, Marcuse sabia que a gratificação imediata e a educação sem esforço paralisam a crítica e a preparação subjectiva para a Grande Recusa. Ora, este reconhecimento inviabiliza a «dimensão estétca» pensada na sua verdade como a vitória de Eros sobre Thanatos, a qual mais não é do que o próprio domínio de Thanatos. Eros é domesticado e a sexualidade plástica torna-se um obstáculo à luta pela autonomia.
Esta observação crítica aponta para uma outra leitura do pensamento estético e político de Herbert Marcuse, num confronto com as estéticas pós-modernas, levando em conta a estética da recepção de W. Iser e de H.R. Jauss, a teoria da vanguarda de Peter Bürger e a sua crítica da estética idealista, o conceito de soberania da arte de C. Menke, a ideologia estética de Paul de Man e o contributo fresco de Marshall Berman. A noção marcuseana de subjectividade rebelde pode funcionar como fio condutor, desde que reformulada em função dos modelos relacionais do Self, sem cair na tentação sofista do consenso universal de Habermas. Também no domínio estético a teoria crítica precisa mudar de rumo: a arte contemporânea tornou-se um feitiço! A Grande Recusa exige o resgate do Ocidente e a sua libertação de elementos estranhos! (Publicado em CyberCultura e Democracia Online.)
J Francisco Saraiva de Sousa
A teoria estética de Marcuse procura mostrar que a arte pode contribuir para a luta desesperada pela transformação do mundo, uma vez que representa o objectivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a autonomia do indivíduo. Deste modo, a teoria estética de Marcuse continua ligada à teoria marxista da sociedade, que «compreende a sociedade estabelecida como uma realidade que deve ser mudada». Após o colapso do sistema soviético, as chamadas "sociedades livres" revelam o seu verdadeiro rosto: a corrupção das suas pretensas elites que abusaram do reforço do poder do Estado e das suas tarefas sociais para enriquecer em termos privados. É esta sociedade mais cleptocrática do que democrática que urge transformar, de modo a garantir a qualidade da democracia. A "cultura" destas pseudo-elites é a barbárie. A linguagem política é, actualmente, mentirosa e abusa dos cálculos "falsificados" para credibilizar a mentira. A barbárie também é política: esta geração de políticos sem ideias é o horror.
Contudo, na actual sociedade de consumidores (Hannah Arendt), «os seres humanos administrados reproduzem […] a própria repressão e renunciam à ruptura com a realidade». Nesta situação de integração social e cultural total, tanto a teoria crítica como o seu projecto político são forçadas a mudar teoricamente de rumo. Neste contexto social de ofuscamento e de paralisia da crítica, Marcuse procurou pensar a afinidade e a oposição entre a arte e a praxis radical: «Ambas visionam um universo que, embora provenha das relações sociais existentes, também liberta os indivíduos destas relações». A arte e a política visam a libertação e, nesse sentido, a arte como negação da realidade estabelecida antecipa ilusoriamente um outro princípio de realidade que guia a praxis revolucionária. Para Marcuse, a "sociedade socialista" não resolve todos os conflitos entre o universal e o particular, entre os seres humanos e a natureza, entre os indivíduos uns com os outros: «O socialismo não liberta Eros de Thanatos, nem poderia fazê-lo». Esta incapacidade de vencer definitivamente as forças da morte impele «a revolução para além de todo o estado de liberdade conseguido». Isto significa que a revolução nunca é definitiva, mas sempre permanente. É sempre «a luta pelo impossível, contra o inconquistável cujo domínio talvez possa, no entanto, ser reduzido». Como escreve Marcuse:
«A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na realidade social, sendo, no entanto, a sua outra face. A arte abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária».
A arte antecipa um outro princípio da realidade mais livre e pleno, que a praxis radical deve procurar realizar: «A autonomia da arte reflecte a ausência de liberdade dos indivíduos na sociedade sem liberdade». A arte mostra a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva: «Se as pessoas fossem livres, então a arte seria a forma e a expressão da sua liberdade». Mas, como as pessoas não são livres e autónomas, «a arte continua marcada pela ausência de liberdade; ao contradizê-la, adquire a sua autonomia. O nomos a que a arte obedece não é o do princípio da realidade estabelecida, mas a sua negação».
A arte antecipa, no seio da sociedade repressiva, a sua negação, isto é, a sociedade livre, embora de forma necessariamente sublimada e alienada. O que a praxis radical procura realizar é o que já está esboçado na forma estética, embora de forma sublimada e irreal. A arte é, de certo modo, transcendência, portanto, utopia. Mas «a utopia na grande arte nunca é simples negação do princípio de realidade (senão seria abstracta, má-utopia), mas a sua preservação transcendente em que o passado e o presente projectam a sua sombra na realização. A autêntica utopia baseia-se na memória».
Se «toda a reificação é, como afirmaram Adorno & Horkheimer, um esquecimento», então a arte é o contrário de toda a reificação: a arte é memória: memória do sofrimento e do terror. «A arte combate a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada. (...) O esquecer os sofrimentos do passado e as alegrias passadas torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva. Pelo contrário, a lembrança estimula o impulso pela conquista do sofrimento e da permanência da alegria».
Porém, sob o princípio de realidade estabelecida, «a força da lembrança é frustrada: a própria alegria é eclipsada pela dor» e pela gratificação. A inexorabilidade deste eclipse da lembrança é uma questão aberta, porque «o horizonte da história ainda está aberto. Se a lembrança das coisas passadas se tornasse um motivo poderoso na luta pela mudança do mundo, a luta seria empreendida para uma revolução até aqui suprimida nas revoluções históricas anteriores».
Nos seus escritos de juventude, Marcuse tinha elaborado o conceito do carácter afirmativo da cultura e, muito mais tarde, reconheceu que uma civilização do prazer pode constituir um obstáculo à tarefa da libertação. Embora não tenha sido sempre claro a este propósito, Marcuse sabia que a gratificação imediata e a educação sem esforço paralisam a crítica e a preparação subjectiva para a Grande Recusa. Ora, este reconhecimento inviabiliza a «dimensão estétca» pensada na sua verdade como a vitória de Eros sobre Thanatos, a qual mais não é do que o próprio domínio de Thanatos. Eros é domesticado e a sexualidade plástica torna-se um obstáculo à luta pela autonomia.
Esta observação crítica aponta para uma outra leitura do pensamento estético e político de Herbert Marcuse, num confronto com as estéticas pós-modernas, levando em conta a estética da recepção de W. Iser e de H.R. Jauss, a teoria da vanguarda de Peter Bürger e a sua crítica da estética idealista, o conceito de soberania da arte de C. Menke, a ideologia estética de Paul de Man e o contributo fresco de Marshall Berman. A noção marcuseana de subjectividade rebelde pode funcionar como fio condutor, desde que reformulada em função dos modelos relacionais do Self, sem cair na tentação sofista do consenso universal de Habermas. Também no domínio estético a teoria crítica precisa mudar de rumo: a arte contemporânea tornou-se um feitiço! A Grande Recusa exige o resgate do Ocidente e a sua libertação de elementos estranhos! (Publicado em CyberCultura e Democracia Online.)
J Francisco Saraiva de Sousa
Sem comentários:
Enviar um comentário