Numa carta dirigida a Ruge, Karl Marx afirma que «há já muito tempo que o mundo sonha com algo que só pode possuir na realidade se se tornar consciente disso". Walter Benjamin comenta: "A utilização de elementos do sonho no despertar é o exemplo de manual do pensamento dialéctico". (O socialismo) é alimentado mais pela imagem de antepassados escravizados do que pela imagem de netos livres».
O pós-modernismo constitui, nos tempos obscuros e corruptos que vivemos, o maior adversário do pensamento que visa transformar radicalmente o mundo e, como tal, pode ser visto como a face visível da nova ideologia de mercado do poder instituído: a sua noção de posthistoire e a sua crítica da metafísica transfigurada corruptamente em apologia da aparência representam a vitória do fetichismo comercial, a ideologia degenerada do consumo perpétuo, que abdica do próprio conceito de emancipação. O resultado é a "cultura afirmativa" (Marcuse): uma cultura que capitula diante do falso triunfo do capitalismo global e do seu pensamento único, desvalorizando sistematicamente as possibilidades existentes de intervenção e crítica políticas e, por isso, paralisando a prática oposicional de esquerda genuína. Apesar da indigência cognitiva e da atrofia dos órgãos mentais do homem metabolicamente reduzido e desmemorizado e do alastramento mundial da miséria social, a cultura de esquerda deve descobrir a esperança por detrás do desespero, distanciando-se do estado de espírito desiludido da pós-modernidade e criando as condições necessárias à emergência de uma cultura da esperança militante.
Walter Benjamin efectuou uma crítica da modernidade do ponto de vista da teoria da experiência que não implica um niilismo antropológico, como sucede com o pós-modernismo que, neste aspecto, é mais fascista do que o pensamento ultraconservador: "Onde nos apercebemos de uma cadeia de acontecimentos, (o Anjo da História) vê uma única catástrofe que continua a amontoar destroços sobre destroços e os arremessa para diante dos seus pés". A tempestade responsável por esta catástrofe é o "progresso". Se for abandonado a si mesmo, o curso imanente da História nunca produzirá a redenção. O filósofo marxista deve "destruir o contínuo da História", de modo a activar e actualizar os seus potenciais redentores ocultos, que Benjamin associa ao "tempo de agora" (Jetztzeit). Engels já tinha afirmado que "a História é talvez a mais cruel de todas as deusas; ela conduz o seu carro triunfal sobre montes de cadáveres, não só na guerra, mas também nos períodos de desenvolvimento económico pacífico". Para Benjamin, bem como para o último Engels, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la. Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origínes), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch).
A crítica da modernidade de Benjamin mostra que as próprias forças políticas de esquerda estavam comprometidas com uma visão iluminista do progresso que, no essencial, quase não se distinguia da concepção burguesa do mundo que procuravam combater. Tanto os social-democratas como os comunistas foram de tal modo seduzidos pela lógica do progresso que descuraram o valor daqueles elementos "não-contemporâneos", cuja promessa revolucionária estava a ser controlada pelas forças da reacção política. Estes elementos pertencentes aos valores da tradição, à Gemeinschaft, ao mito, enfim à religiosidade, foram bruscamente marginalizados e neutralizados pela corrida para a modernidade, que tornou o mundo um lugar desencantado, empobrecido, inóspito e completamente destituído de significado. A agenda política da esquerda coincidia (e ainda coincide) em tudo com a agenda política da direita, até mesmo na proclamação da exploração da natureza como um objectivo válido e desejável, traindo a visão não-instrumental de uma reconciliação entre a humanidade e a natureza proposta por Fourier e tematizada pelo Jovem-Marx.
Benjamin, Adorno e Horkheimer recorreram à Lebensphilosophie para mostrar que a civilização contemporânea sofre de um excesso de "intelecto" sobre a "vida": o entendimento técnico coloca a humanidade em conflito tanto com a natureza interior como com a natureza exterior, inviabilizando a reconciliação do homem com a natureza. Benjamin tenta realizar a fusão de Marx e Ludwig Klages, com o objectivo de recuperar certos temas pertinentes da filosofia da vida para a agenda política de esquerda, evitando o elo existente entre o vitalismo e a ideologia fascista denunciado por Marcuse e Lukács. A teoria ctónica das imagens arcaicas (Urbilder) de Klages constitui uma crítica de direita do domínio do conceito racional sobre a vida que fundamenta a civilização (Zivilisation) burguesa mecanicista e sem alma: as "representações" pertencem ao "intelecto" que se caracteriza por "perspectivas utilitaristas" e por um interesse na "usurpação", enquanto as "imagens" expressam directamente a alma e estão relacionadas com a "inteligência simbólica". Para Benjamin, a remição da teoria de Klages consiste em historicizar a doutrina das imagens: em vez de encarar as imagens como encarnações intemporais, a-históricas e mitológicas da alma, Benjamin satura as imagens com um conteúdo histórico, de modo a revelar a crise cultural não como uma manifestação da eterna luta cosmológica entre razão e vida, mas como uma crise do capitalismo.
A teoria das imagens dialécticas de Benjamin considera que as imagens são potencialmente superiores às teorias racionais da cognição responsáveis pela marcha triunfal do "desencantamento do mundo" pós-iluminista. Contudo, ao contrário do que pensava Weber, o desencantamento do mundo implica um reencantamento do mundo, isto é, um ressurgimento de forças mitológicas com roupagem moderna, tais como exposições mundiais, construções de ferro, panoramas, interiores, museus, iluminação, fotografia e galerias, que representam as imagens-desejo quase utópicas ou as imagens de sonho da superstrutura cultural do capitalismo moderno, mais precisamente do capitalismo do século XIX. Para Benjamin, a tecnologia é responsável, não pela emancipação, como pensavam os liberais e os marxistas ortodoxos, mas pela emergência da mitologia moderna que, pelo facto de conter um momento utópico, não deve ser vista como algo pura e simplesmente regressivo. A imagem dialéctica desempenha um papel fundamental na redenção desse momento utópico: situar o passado na sua relação com as necessidades revolucionárias do presente histórico e actualizá-lo, de modo a redimir a promessa de felicidade contida na modernidade. Ora, estas imagens do passado primordial contidas nas manifestações fenoménicas da vida cultural do século XIX são precisamente as imagens materialistas de uma "sociedade sem classes", o "comunismo primitivo" de Bachofen, aplaudido por Engels e Marx, cujos vestígios de memória foram armazenados no inconsciente colectivo (Carl Jung) e, posteriormente, reactivados na fantasmagoria cultural do capitalismo (Buck-Morss).
A crítica da modernidade de Benjamin é levada a cabo a partir de uma teoria da experiência que se inspira em Klages. Com efeito, Benjamin, Klages ou mesmo Ernst Jünger, estavam deveras preocupados com a diminuição do potencial humano para as experiências qualitativas que acompanhou a transição histórica da Gemeinschaf para a Gesellschaft. A modernidade é responsável pela desintegração progressiva da experiência e, nas actuais condições sociais, as imagens arcaicas só são acessíveis nos sonhos despertos, no transe ou nas experiências de choque que confrontam as pessoas com algo que destrói os padrões normais do pensamento racional. Contudo, a direcção imprimida por Benjamin à atrofia da experiência histórica diverge claramente da de Jünger: em vez de defender que a modernidade enfraquecida só pode ser redimida se a sociedade se reorganizar com base num modelo militar, como faz Jünger, Benjamin deposita, como já vimos, a sua esperança numa teoria messiânica da História, através da qual as promessas de uma vida redimida, sem angústia (Adorno), possam ser generalizadas e tornadas profanas, num movimento conjunto em que o corpo e a imagem se interpenetram na tecnologia, de modo a converter a tensão revolucionária em "inervação corporal colectiva". O excesso de consciência (Simmel) prejudica os estados de experiência intensos que tendem a dissolver o eu em totalidades experienciais sempre crescentes e, segundo Benjamin, funciona como defesa contra os choques diários susceptíveis de acordar o homem do seu sono metabólico, a versão superactual do sono dogmático exorcizado por Kant. Isto significa que só o trabalho sistemático da memória involuntária, não-consciente, celebrada em Proust, pode recuperar os vestígios da memória do passado primordial que, devido ao esforço institucionalizado da autopreservação em que a sociedade moderna se tornou, se perderam para a lembrança consciente.
Tal como Bergson, Benjamin encara a memória como a chave para a sua teoria da experiência e, com a ajuda da teologia negativa, mostra que só através da recordação é possível redimir o "acordo secreto" existente entre "as gerações passadas e a (geração) presente", isto é, entre os mortos e os vivos. O primado da recordação opõe-se ao conceito de progresso que só está superficialmente orientado para o futuro: "O passado carrega consigo um índice temporal que o reenvia para a redenção" e, por isso, através da rememoração (Eingedenken), a filosofia crítica pode reactivar e reactualizar esse "índice temporal de redenção" que se encontra adormecido no passado. Daí que o ideal de uma sociedade plenamente justa e livre deva ser nutrido mais pela "imagem de antepassados escravizados" do que pela "imagem de netos livres". Ora, numa sociedade metabolicamente reduzida como a do nosso tempo que atrofia a memória, através das suas políticas da educação, dos mass media e do marketing político, o despertar e a rememoração são temas que devem ser integrados na agenda política de esquerda, porque o despertar da recordação, embora seja impotente para nos libertar dos grilhões do presente, ajuda os oprimidos e vencidos de hoje a resgatar o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, o que foi dito e feito, e o que foi desejado e sonhado, dando-lhes ânimo para lutar contra a miséria do presente, na expectativa de um dia alcançarem a vitória contra os opressores e a História dos vencedores. (Post publicado originalmente aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa
O pós-modernismo constitui, nos tempos obscuros e corruptos que vivemos, o maior adversário do pensamento que visa transformar radicalmente o mundo e, como tal, pode ser visto como a face visível da nova ideologia de mercado do poder instituído: a sua noção de posthistoire e a sua crítica da metafísica transfigurada corruptamente em apologia da aparência representam a vitória do fetichismo comercial, a ideologia degenerada do consumo perpétuo, que abdica do próprio conceito de emancipação. O resultado é a "cultura afirmativa" (Marcuse): uma cultura que capitula diante do falso triunfo do capitalismo global e do seu pensamento único, desvalorizando sistematicamente as possibilidades existentes de intervenção e crítica políticas e, por isso, paralisando a prática oposicional de esquerda genuína. Apesar da indigência cognitiva e da atrofia dos órgãos mentais do homem metabolicamente reduzido e desmemorizado e do alastramento mundial da miséria social, a cultura de esquerda deve descobrir a esperança por detrás do desespero, distanciando-se do estado de espírito desiludido da pós-modernidade e criando as condições necessárias à emergência de uma cultura da esperança militante.
Walter Benjamin efectuou uma crítica da modernidade do ponto de vista da teoria da experiência que não implica um niilismo antropológico, como sucede com o pós-modernismo que, neste aspecto, é mais fascista do que o pensamento ultraconservador: "Onde nos apercebemos de uma cadeia de acontecimentos, (o Anjo da História) vê uma única catástrofe que continua a amontoar destroços sobre destroços e os arremessa para diante dos seus pés". A tempestade responsável por esta catástrofe é o "progresso". Se for abandonado a si mesmo, o curso imanente da História nunca produzirá a redenção. O filósofo marxista deve "destruir o contínuo da História", de modo a activar e actualizar os seus potenciais redentores ocultos, que Benjamin associa ao "tempo de agora" (Jetztzeit). Engels já tinha afirmado que "a História é talvez a mais cruel de todas as deusas; ela conduz o seu carro triunfal sobre montes de cadáveres, não só na guerra, mas também nos períodos de desenvolvimento económico pacífico". Para Benjamin, bem como para o último Engels, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la. Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origínes), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch).
A crítica da modernidade de Benjamin mostra que as próprias forças políticas de esquerda estavam comprometidas com uma visão iluminista do progresso que, no essencial, quase não se distinguia da concepção burguesa do mundo que procuravam combater. Tanto os social-democratas como os comunistas foram de tal modo seduzidos pela lógica do progresso que descuraram o valor daqueles elementos "não-contemporâneos", cuja promessa revolucionária estava a ser controlada pelas forças da reacção política. Estes elementos pertencentes aos valores da tradição, à Gemeinschaft, ao mito, enfim à religiosidade, foram bruscamente marginalizados e neutralizados pela corrida para a modernidade, que tornou o mundo um lugar desencantado, empobrecido, inóspito e completamente destituído de significado. A agenda política da esquerda coincidia (e ainda coincide) em tudo com a agenda política da direita, até mesmo na proclamação da exploração da natureza como um objectivo válido e desejável, traindo a visão não-instrumental de uma reconciliação entre a humanidade e a natureza proposta por Fourier e tematizada pelo Jovem-Marx.
Benjamin, Adorno e Horkheimer recorreram à Lebensphilosophie para mostrar que a civilização contemporânea sofre de um excesso de "intelecto" sobre a "vida": o entendimento técnico coloca a humanidade em conflito tanto com a natureza interior como com a natureza exterior, inviabilizando a reconciliação do homem com a natureza. Benjamin tenta realizar a fusão de Marx e Ludwig Klages, com o objectivo de recuperar certos temas pertinentes da filosofia da vida para a agenda política de esquerda, evitando o elo existente entre o vitalismo e a ideologia fascista denunciado por Marcuse e Lukács. A teoria ctónica das imagens arcaicas (Urbilder) de Klages constitui uma crítica de direita do domínio do conceito racional sobre a vida que fundamenta a civilização (Zivilisation) burguesa mecanicista e sem alma: as "representações" pertencem ao "intelecto" que se caracteriza por "perspectivas utilitaristas" e por um interesse na "usurpação", enquanto as "imagens" expressam directamente a alma e estão relacionadas com a "inteligência simbólica". Para Benjamin, a remição da teoria de Klages consiste em historicizar a doutrina das imagens: em vez de encarar as imagens como encarnações intemporais, a-históricas e mitológicas da alma, Benjamin satura as imagens com um conteúdo histórico, de modo a revelar a crise cultural não como uma manifestação da eterna luta cosmológica entre razão e vida, mas como uma crise do capitalismo.
A teoria das imagens dialécticas de Benjamin considera que as imagens são potencialmente superiores às teorias racionais da cognição responsáveis pela marcha triunfal do "desencantamento do mundo" pós-iluminista. Contudo, ao contrário do que pensava Weber, o desencantamento do mundo implica um reencantamento do mundo, isto é, um ressurgimento de forças mitológicas com roupagem moderna, tais como exposições mundiais, construções de ferro, panoramas, interiores, museus, iluminação, fotografia e galerias, que representam as imagens-desejo quase utópicas ou as imagens de sonho da superstrutura cultural do capitalismo moderno, mais precisamente do capitalismo do século XIX. Para Benjamin, a tecnologia é responsável, não pela emancipação, como pensavam os liberais e os marxistas ortodoxos, mas pela emergência da mitologia moderna que, pelo facto de conter um momento utópico, não deve ser vista como algo pura e simplesmente regressivo. A imagem dialéctica desempenha um papel fundamental na redenção desse momento utópico: situar o passado na sua relação com as necessidades revolucionárias do presente histórico e actualizá-lo, de modo a redimir a promessa de felicidade contida na modernidade. Ora, estas imagens do passado primordial contidas nas manifestações fenoménicas da vida cultural do século XIX são precisamente as imagens materialistas de uma "sociedade sem classes", o "comunismo primitivo" de Bachofen, aplaudido por Engels e Marx, cujos vestígios de memória foram armazenados no inconsciente colectivo (Carl Jung) e, posteriormente, reactivados na fantasmagoria cultural do capitalismo (Buck-Morss).
A crítica da modernidade de Benjamin é levada a cabo a partir de uma teoria da experiência que se inspira em Klages. Com efeito, Benjamin, Klages ou mesmo Ernst Jünger, estavam deveras preocupados com a diminuição do potencial humano para as experiências qualitativas que acompanhou a transição histórica da Gemeinschaf para a Gesellschaft. A modernidade é responsável pela desintegração progressiva da experiência e, nas actuais condições sociais, as imagens arcaicas só são acessíveis nos sonhos despertos, no transe ou nas experiências de choque que confrontam as pessoas com algo que destrói os padrões normais do pensamento racional. Contudo, a direcção imprimida por Benjamin à atrofia da experiência histórica diverge claramente da de Jünger: em vez de defender que a modernidade enfraquecida só pode ser redimida se a sociedade se reorganizar com base num modelo militar, como faz Jünger, Benjamin deposita, como já vimos, a sua esperança numa teoria messiânica da História, através da qual as promessas de uma vida redimida, sem angústia (Adorno), possam ser generalizadas e tornadas profanas, num movimento conjunto em que o corpo e a imagem se interpenetram na tecnologia, de modo a converter a tensão revolucionária em "inervação corporal colectiva". O excesso de consciência (Simmel) prejudica os estados de experiência intensos que tendem a dissolver o eu em totalidades experienciais sempre crescentes e, segundo Benjamin, funciona como defesa contra os choques diários susceptíveis de acordar o homem do seu sono metabólico, a versão superactual do sono dogmático exorcizado por Kant. Isto significa que só o trabalho sistemático da memória involuntária, não-consciente, celebrada em Proust, pode recuperar os vestígios da memória do passado primordial que, devido ao esforço institucionalizado da autopreservação em que a sociedade moderna se tornou, se perderam para a lembrança consciente.
Tal como Bergson, Benjamin encara a memória como a chave para a sua teoria da experiência e, com a ajuda da teologia negativa, mostra que só através da recordação é possível redimir o "acordo secreto" existente entre "as gerações passadas e a (geração) presente", isto é, entre os mortos e os vivos. O primado da recordação opõe-se ao conceito de progresso que só está superficialmente orientado para o futuro: "O passado carrega consigo um índice temporal que o reenvia para a redenção" e, por isso, através da rememoração (Eingedenken), a filosofia crítica pode reactivar e reactualizar esse "índice temporal de redenção" que se encontra adormecido no passado. Daí que o ideal de uma sociedade plenamente justa e livre deva ser nutrido mais pela "imagem de antepassados escravizados" do que pela "imagem de netos livres". Ora, numa sociedade metabolicamente reduzida como a do nosso tempo que atrofia a memória, através das suas políticas da educação, dos mass media e do marketing político, o despertar e a rememoração são temas que devem ser integrados na agenda política de esquerda, porque o despertar da recordação, embora seja impotente para nos libertar dos grilhões do presente, ajuda os oprimidos e vencidos de hoje a resgatar o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, o que foi dito e feito, e o que foi desejado e sonhado, dando-lhes ânimo para lutar contra a miséria do presente, na expectativa de um dia alcançarem a vitória contra os opressores e a História dos vencedores. (Post publicado originalmente aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa
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