segunda-feira, 9 de março de 2009

Filosofia da Ciência de Thomas S. Kuhn

Thomas S. Kuhn partilha com o seu tempo (P. Duhem, A. Koyré, G. Bachelard, G. Canguilhem ou mesmo Karl Popper) a ideia de que a história da ciência não é acumulativa, mas, pelo contrário, descontínua: o crescimento do conhecimento científico não consiste na acumulação de dados e de observações, mas numa sequência descontínua, não-cumulativa, de paradigmas científicos que, tal como sucede na história das instituições sociais e políticas, se realiza através de rupturas a que chama revoluções científicas. O esquema do desenvolvimento científico que Kuhn elabora revela, no entanto, uma outra referência fundamental não-nomeada: a teoria da história de Karl Marx, isto é, a teoria da sucessão "descontínua" dos modos de produção e das revoluções sociais, adaptada criativamente à história da ciência. A concepção positivista e neopositivista da ciência, bem como os seus derivados, incluindo o racionalismo crítico de Karl Popper, é completamente desmistificada e arrasada, e, com o recurso à sociologia do conhecimento (Max Scheler, Karl Mannheim e Robert K. Merton), Kuhn tende a converter a "epistemologia" em sociologia da ciência: a ciência é reconduzida àquilo que é, ou seja, um empreendimento humano colectivo, uma actividade social, cuja meta é, como diz John Ziman, "um consenso de opinião racional sobre o campo mais amplo possível" do mundo. Ora, uma tal concepção de ciência deixa de lado a doutrina ingénua segundo a qual toda a ciência é necessariamente verdadeira e todo o conhecimento verdadeiro é necessariamente científico: o cientismo, a doença infantil da ciência ou a ideologia espontânea dos cientistas (Althusser). Doravante, a filosofia da ciência deve levar em conta o princípio do consenso que conduz à sociologia interna da comunidade científica, inserida no contexto mais vasto da sociedade e da economia de mercado, em articulação com as novas tecnologias.
Um paradigma científico designa, numa primeira aproximação, uma teoria pré-estabelecida que orienta e guia a selecção, a reunião e a explicação dos "factos", garantindo a existência de uma solução estável e segura de determinados problemas, e que é partilhada durante um determinado período de tempo por todos os membros de uma determinada comunidade científica. Basicamente, um paradigma científico é um padrão teórico completo aceite por consenso pela comunidade científica que garante de antemão solução para um conjunto de problemas. O paradigma dominante numa determinada ciência está geralmente exposto nos manuais de texto, pelos quais os mais jovens são iniciados ou socializados nessa área do conhecimento: "Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham e, inversamente, uma comunidade científica é formada por homens que partilham um paradigma" (Kuhn). Este conceito de paradigma está intimamente relacionado com outro conceito: a ciência normal que, como actividade do dia-a-dia da comunidade científica, consiste em solucionar problemas à luz do paradigma dominante. Kuhn chama enigmas aos problemas cuja solução é dada de antemão ou prevista pelo paradigma que orienta a actividade científica. A actividade da ciência normal é uma actividade de rotina e extremamente ultraconservadora, isto é, avessa à inovação: a ciência normal procura sempre resolver os seus problemas em função das soluções estáveis fornecidas e garantidas pelo paradigma que ilumina a sua actividade diária. Por vezes, a comunidade científica pode ser surpreendida por um problema que não é esclarecido previamente pelo paradigma reinante. Porém, esse problema não-solucionado pelo paradigma não o leva imediatamente à crise, tendendo a ser ignorado até que outras anomalias ou contra-exemplos surjam e suscitem algum cepticismo ou mesmo um "sentimento de crise" na comunidade científica. A acumulação de anomalias, isto é, de problemas para os quais o paradigma reinante não tem ou não garante solução, ou a sua pertinência, acabam por levar o paradigma à crise: "o teste de um paradigma ocorre somente depois que o fracasso persistente na resolução de um enigma importante dá origem a uma crise" (Kuhn).
A crise do paradigma não significa a crise da ciência: releva apenas o reconhecimento das anomalias que recusam ser assimiladas aos "modelos" existentes disponibilizados pelo paradigma reinante que, por isso, se torna incapaz de fornecer a todos os fenómenos um lugar determinado pela teoria no campo visual dos cientistas. Durante o período em que o paradigma é confrontado com problemas que não consegue resolver, alguns cientistas, sobretudo os mais jovens, que, por estarem menos familiarizados com os manuais de texto, não têm nada a perder com uma mudança de paradigmas, dedicam-se intensamente à tarefa de solucionar essas anomalias ou mesmo à procura de novos paradigmas alternativos. No seu caso, a crise do paradigma revela-se na substituição da ciência normal pela ciência revolucionária ou extraordinária: a busca de novos paradigmas. Ora, podem surgir durante este período revolucionário de prática científica extraordinária diversos paradigmas rivais ou paradigmas em competição e, neste caso, a comunidade científica precisa de escolher um deles em detrimento dos outros: "Na escolha de um paradigma, como nas revoluções políticas, não existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante" (Kuhn). Kuhn discute diversos critérios de selecção, levando em conta tanto o impacto da natureza e da lógica como "as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas". Em princípio, o novo paradigma candidato a substituir o paradigma reinante deve ser capaz de resolver os problemas que conduziram o paradigma antigo à crise, garantido solução para os problemas que já eram resolvidos pelo anterior (1), prever ou fazer predições de fenómenos totalmente insuspeitados pela prática orientada pelo paradigma anterior (2), ser apropriado ou estético, no sentido de ser "mais claro", "mais adequado" ou "mais simples" que o anterior (3), levar os cientistas a ter "fé" nas suas capacidades para resolver os grandes problemas com que se confrontam (4) e, fundamentalmente, conquistar alguns "adeptos iniciais" que irão aperfeiçoar o paradigma, explorando as suas possibilidades e mostrando "o que seria pertencer a uma comunidade guiada" pelo novo paradigma (5). Isto significa que o novo candidato a paradigma não é "avaliado" apenas em termos lógicos ou pela sua habilidade teórica e experimental para resolver problemas, mas sobretudo pela capacidade competente dos adeptos iniciais para elaborarem "argumentos", experiências, instrumentos, artigos e livros, capazes de persuadir a maior parte dos membros da comunidade científica, conquistando finalmente a sua adesão. Deste modo, um número cada vez maior e crescente de cientistas, convencidos da fecundidade da nova concepção, vai adoptando a nova maneira de praticar a ciência normal, até que restam muitíssimo poucos opositores: "o homem que continua a resistir após a conversão de toda a sua profissão deixou ipso facto de ser um cientista" (Kuhn).
Quando a tarefa da ciência extraordinária é bem sucedida, os membros da comunidade científica acabam por aderir ou dar o seu assentimento ao novo paradigma que, deste modo, toma o lugar do paradigma anterior, passando a guiar a ciência normal. Kuhn chama revoluções científicas a estes "episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo (paradigma), incompatível com o anterior". A mudança de paradigmas constitui ou implica uma conversão, porque os proponentes de paradigmas rivais "praticam os seus ofícios em mundos diferentes": "Por exercerem a sua profissão em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas vêem coisas diferentes quando olham de um mesmo ponto para a mesma direcção. Isto não significa que possam ver o que lhes aprouver. Ambos olham para o mundo e o que olham não mudou. Mas em algumas áreas vêem coisas diferentes, que são visualizadas mantendo relações diferentes entre si" (Kuhn). Para estabelecerem uma comunicação entre si, os dois grupos de cientistas devem experimentar a conversão: a mudança de paradigmas é "uma transição entre incomensuráveis", que não pode ser feita a par e passo, mediante a imposição da lógica e de experiências neutras, mas de modo súbito. Isto significa que a mudança de paradigmas implica uma mudança de mundo, porque, por um lado, guiados por um novo paradigma, os cientistas adoptam novos instrumentos e orientam o seu olhar em novas direcções, e, por outro lado, durante as revoluções, vêem coisas novas e diferentes quando, usando instrumentos familiares, olham para os mesmos aspectos do mundo já examinados anteriormente: a comunidade profissional é subitamente transportada para "um novo planeta, onde objectos familiares são vistos sob uma luz diferente", aos quais se ligam objectos desconhecidos. Portanto, ao mudar de paradigmas, os cientistas reagem a um mundo diferente, com novos esquemas interpretativos e novas áreas de experiência determinadas pelo novo paradigma: "em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem do seu ambiente deve ser reeducada, deve aprender a ver uma nova forma (Gestalt) em algumas situações com as quais já está familiarizado".
Deixei transparecer que a teoria do desenvolvimento científico de Kuhn se distancia do racionalismo crítico de Popper, sobretudo quando fala da invisibilidade das revoluções científicas, ao mesmo tempo que apreende a nova organização social da ciência e da investigação científica. Porém, há um outro aspecto subjacente à sua noção de ciência que aponta na direcção da existência de muitas espécies de ciências. Em resposta ao desafio que lhe foi dirigido por Imre Lakatos, Paul Feyerabend levou mais longe esta tendência plural e democrática das ciências, forjando uma nova abordagem, o anarquismo teórico, visto como "um excelente tratamento médico para a epistemologia e para a filosofia da ciência": "a ciência deve ser ensinada como uma maneira de ver entre outras e não como a única via que leva à verdade e à realidade", porque mais não é do que uma tradição entre muitas outras tradições inconscientes do seu enraizamento histórico. Nem a ciência precisa da filosofia racionalista ou outra, nem a filosofia precisa da ciência: "Uma teoria da ciência que define modelos e elementos estruturais para todas as actividades científicas e os legitima por referência à «Razão» ou à «Racionalidade» é susceptível de impressionar os leigos, mas afigura-se um instrumento excessivamente grosseiro aos que estão por dentro das coisas, ou seja, para os cientistas que se confrontam com um problema de investigação concreto". Dizer "adeus à razão" é, nesta perspectiva, dizer sim à proliferação das teorias: a uniformidade congelada do "racionalismo" enfraquece o poder crítico da ciência e coloca em perigo o livre desenvolvimento individual, ao mesmo tempo que aterroriza as pessoas menos familiarizadas com a sua prática. Porém, hoje em dia o jogo de poder que domina a ciência impôs-lhe uma organização burocrática e empresarial que a transforma em "algo" que não conhecemos, embora se manifeste na busca de fama e de lucro, no espírito de negócio que orienta a pesquisa científica, subordinando-a aos imperativos do desenvolvimento tecnológico e económico, como já tinha confessado James Watson. (Este post foi editado pela primeira vez neste blogue.)
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

Fabiano César Cardoso disse...

Parabéns pelo texto. Gostei muito da indicação de Kuhn enquanto sociólogo da ciência ao invés de epistemólogo, pelo menos no livro A Estrutura...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Thanks! Sim, deu um contributo importante para a sociologia da ciência.