sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Hans Jonas: Pensar Deus depois de Auschwitz

Excurso provisório sobre a teologia especulativa de Hans Jonas
Auschwitz foi um acontecimento real e Deus permitiu que esse acontecimento horroroso acontecesse. Poder-se-ia dizer que depois de Auschwitz já não se pode pensar mais em Deus, mas uma tal atitude não nos ilibaria da nossa responsabilidade.
Hans Jonas coloca a questão nestes termos: «Que tipo de Deus poderia permitir isso?»
. A questão colocada nestes termos não visa romper com qualquer tipo de compreensão de Deus e muito menos negar Deus: não é Deus que é posto em questão, mas uma determinada concepção teológica de Deus — aquilo a que Moltmann chamou o «Deus de Parménides»:
«O Deus de Parménides é “pensável” porque é o ser eterno, uno e pleno. Pelo contrário, o que não é, o passado e o futuro, não são “pensáveis” Na contemplação da presente eternidade deste Deus, tornam-se impensáveis — pois não “são” — o que não é, o movimento e a mudança, a história e o futuro. A contemplação deste Deus não permite uma experiência inteligente da história, mas só a sua negação. O logos deste ser liberta e exonera, para o presente eterno, do poder da história»
.
Hans Jonas pensa, talvez demasiado precipitadamente, que, diante desta pergunta, o judeu «está teologicamente numa posição mais difícil que o cristão»
. Dado que espera a verdadeira salvação no mais-além, o cristão encara este mundo como sendo, em grande medida, diabolizado e, por isso, objecto de desconfiança. O pecado original tornou o mundo humano objecto de desconfiança permanente. O judeu, pelo contrário, vê neste mundo o lugar da criação divina, da justiça e da redenção. Daqui resulta que Deus é, em primeiro lugar, o Senhor da História.
Ora, Auschwitz «põe em causa todo o conceito tradicional de Deus»
, na medida em que «acrescenta à história judia algo nunca visto, algo que não se pode abordar com as antigas categorias teológicas». Poder-se-ia abandonar definitivamente o conceito de Deus e, desse modo, por termo à questão, mas Hans Jonas considera mais adequado «pensá-lo novamente para não ter que prescindir dele e buscar uma nova resposta ao velho problema de Job. Por isso, procura «oferecer um fragmento de teologia abertamente especulativa», elaborada a partir da experiência judia. Tal teologia despede-se do conceito de Deus como Senhor da História, aproximando-se, quer queira ou não Jonas, do espírito de toda a teologia cristã.
1. A TEOLOGIA FENOMENOLÓGICA DE JONAS. Para expor o seu novo conceito de Deus, Hans Jonas recorre a um mito elaborado por ele e que pode ser designado o mito do ser-no-mundo de Deus. Trata-se de uma conjectura figurada mas verosímil, de resto admitida por Platão para a esfera mais elevada do conhecimento. Eis o teor do mito:
«No princípio, por uma escolha não conhecível, o fundo divino do ser decidiu entregar-se à aventura e à infinita diversidade do devir. E fez isso totalmente. Ao integrar-se na aventura do espaço e do tempo, a divindade não reteve nada dela mesma; não permaneceu nenhuma parte inacessível e imune de si para dirigir, corrigir e finalmente garantir desde fora a sinuosa formação do seu destino no mundo do criado. O espírito moderno defende esta imanência incondicional. O seu valor ou o seu desespero, e em todo o caso a sua radical sinceridade, levam-no a tomar a sério o nosso ser-no-mundo, isto é, a entender o mundo como abandonado a si mesmo, as suas leis como fechadas a qualquer intromissão e o rigor da nossa pertença a ele como não atenuado por uma providência extramundana. Isto mesmo afirma o nosso mito do ser-no-mundo de Deus. Mas não no sentido de uma imanência panteísta, porque se Deus e o mundo são simplesmente idênticos, o mundo representa em todo o momento e em qualquer estado a sua plenitude, e Deus não pode nem perder nem ganhar. Ou melhor, para que possa existir o mundo, Deus renuncia ao seu próprio ser; despoja-se da sua divindade para voltar a recebê-la da odisseia do tempo, carregada com a colheita ocasional de experiências temporais imprevisíveis, sublimada ou talvez também desfigurada por elas. Neste abandono de si mesmo da integridade divina a favor do devir incondicional não se pode supor nenhum outro saber prévio salvo o que se refere às possibilidades que o ser cósmico oferece devido às suas próprias condições: Precisamente a estas condições entregou Deus a sua causa quando se alienou a favor do mundo«Durante eões o mundo esteve seguro nas mãos lentas do acaso cósmico e das probabilidades do seu jogo quantitativo, enquanto, simultaneamente, pela circulação da matéria — assim podemos conjecturá-lo — se foi acumulando uma memória paciente. Com o seu aumento cresceu uma esperança intuitiva, com a qual o eterno acompanhou cada vez mais de perto as obras do tempo. Assim se produziu um tardio emergir da transcendência desde a opacidade da imanência.
«E então surgiu a primeira moção de vida, que introduz uma nova linguagem no mundo. Com esta linguagem intensificou-se extremamente o interesse por parte do eterno e produziu-se um súbito salto no crescimento para a recuperação da sua plenitude. Este momento, que estava à espera a divindade em devir, era o acaso universal, e nele, pela primeira vez, a sua pródiga participação mostrou sinais da sua redenção final. Começou uma incessante acumulação de sensações, percepções, aspirações e actuações, que se ia erguendo em formas mais e mais diversas e intensas sobre os mudos redemoinhos da matéria, e desta acumulação a eternidade cobrou força, encheu-se de conteúdos e mais conteúdos de auto-afirmação, até que, no seu despertar, Deus pode dizer pela primeira vez que a Criação era boa.
«Mas é necessário ter presente que a vida trouxe consigo a morte e que a mortalidade era o preço que a nova possibilidade de ser teve de pagar por si mesma. Se a meta tivesse sido a permanência constante, a vida nem sequer deveria ter começado, porque em nenhuma das suas formas possíveis a sua persistência pode medir-se com a dos corpos inorgânicos. Trata-se de um ser essencialmente revogável e destrutível, de uma aventura da mortalidade, que obteve em préstimo as trajectórias finitas dos si-mesmos individuais por parte da matéria duradoura, sob as suas condições e para o curto prazo do organismo metabolizante. Esse breve sentir-se a si mesmo, actuar e sofrer de indivíduos finitos, aos quais só a pressão da finitude outorga toda a intensidade e o frescor do seu sentir, é precisamente o âmbito onde se desenrola a paisagem divina com todo o jogo das suas cores e onde a divindade se experiencia a si mesma...
«É necessário observar também que, na inocência da vida antes da aparição do saber, a causa de Deus não podia falhar. Cada diferenciação de espécies, que a evolução produziu, acrescentou uma nova às possibilidades de sentir e actuar, enriquecendo assim a auto-experiência do fundo divino. Cada dimensão da resposta do mundo, que se abriu no seu transcurso, significou para Deus uma nova modalidade para provar o seu ser encoberto e para se descobrir a si mesmo nas surpresas da aventura universal. E toda a colheita do seu apremiado esforço por devir, seja clara ou obscura, incrementa no mais além o tesouro da eternidade vivida no tempo. Se isso já é certo para o espectro em desenvolvimento da própria diversidade, quanto mais ainda para a crescente alerta e paixão da vida que vai a par com o crescimento da percepção e o movimento no mundo animal. A constante intensificação dos impulsos e do medo, do prazer e da dor, triunfo e miséria, amor e inclusive crueldade — o penetrante da sua própria intensidade e de toda a experiência em geral — é um ganho para o sujeito divino»
.
Deus alienou-se a favor do mundo: desta tese decorre o carácter estrutural da teologia de Hans Jonas. A sua teologia mais não é que uma fenomenologia de Deus e da sua experiência, elaborada em analogia com a Fenomenologia do Espírito de Hegel
.
Deste mito decorrem implicações teológicas sérias, algumas das quais são tratadas por Hans Jonas.
1. A concepção de um Deus sofredor opõe-se directamente à ideia bíblica da majestade divina.
O cristianismo usa constantemente a expressão deus sofredor, mas num sentido diferente daquele em que a emprega Jonas. A sua teologia não fala de um «acto único por meio do qual a divindade pôs uma parte de si mesma numa situação de sofrimento (a encarnação e a crucificação), com a finalidade especial de redimir os seres humanos»
. Deus sofredor tem um sentido mais radical na teologia de Jonas que no cristianismo: «a relação de Deus com o mundo inclui um sofrimento de Deus desde o momento da Criação, e certamente desde o da criação dos seres humanos». O sofrimento das criaturas é evidenciado por qualquer teologia e, como tal está incluído na ideia radical de Jonas de que «Deus sofre com o criado». Embora esta ideia choque com a noção de majestade divina, ela não é completamente alheia à bíblia hebraica. Basta recordar o profeta Oseias e a emotiva queixa amorosa de Deus sobre a sua infiel esposa Israel.
2. A teologia especulativa de Jonas esboça a imagem de um Deus que devém: «É um Deus que surge no tempo em vez de possuir um ser perfeito que permanece eternamente idêntico a si mesmo»
.
Tal ideia de um devir divino contradiz a tradição grega platónico-aristotélica, a qual declara como atributos de Deus a transtemporalidade, a impassibilidade e a imutabilidade. Ao sustentar a contraposição ontológica entre ser e devir, donde o devir é inferior ao ser e característico do mundo corpóreo mais baixo, o pensamento clássico exclui logo à partida a ideia de um devir do ser puro e absoluto da divindade. Ora, segundo Jonas ou mesmo Moltmann, o conceito grego de divindade nunca se coadunou verdadeiramente com o espírito e a linguagem da bíblia. O conceito de um devir divino combina-se talvez melhor com, esse mesmo espírito bíblico.
Mas o que quer dizer que Deus devém? A teologia fenomenológica de Jonas concede a Deus, pelo menos, «tanto “devir” como o que fica patente no mero facto de que fica afectado pelo que acontece no mundo, e “afectado” significa “alterado”, mudado no seu estado»
. Quando decidiu alienar-se no mundo, Deus aceitou submeter-se aos efeitos do devir. Com efeito, «a própria Criação, enquanto acto e existência do seu resultado, significa uma mudança decisiva no estado de Deus, porque com ela deixa de estar só». Além desta mudança, a relação contínua de Deus com o criado, uma vez que existe e se move no fluir do devir, significa precisamente que Ele «experiencia algo com o mundo e que, portanto, o que sucede neste influi no seu próprio ser». Ora, se Deus está em alguma relação com o mundo, como afirma qualquer religião, então «só é assim como o Eterno se tem “temporalizado” e, por meio das realizações do processo universal, se vai modificando progressivamente». Isto aplica-se tanto à simples relação com o saber que o acompanha, como ao interesse.
Deste conceito de Deus em devir deriva uma consequência marginal, que possibilita destruir a ideia do eterno retorno do mesmo. Esta ideia elaborada por Nietzsche opunha-se à metafísica judaico-cristã.
«A ideia de Nietzsche é com efeito, o símbolo mais extremo da viragem para a temporalidade e a imanência incondicional, longe de qualquer transcendência que pudesse conservar uma memória eterna do que perece no tempo. A sua ideia é que, pelo simples esgotamento das permutações possíveis na repartição de elementos materiais, deve voltar a estabelecer-se uma configuração «originária» do cosmos, com a qual tudo volta a começar de idêntica maneira; e se uma vez, então também incontáveis vezes, como Nietzsche o exprime na metáfora do “anel dos anéis, o anel do eterno retorno”»
.
Ora, se a eternidade não é imune ao que acontece no tempo, não pode haver um retorno do mesmo, uma vez que «Deus não é o mesmo depois de ter atravessado a experiência de um processo universal. Cada mundo novo terá incluído na sua própria herança a recordação do precedente ou, por outras palavras: não haverá uma eternidade indiferente e morta, mas uma eternidade que cresce com a colheita temporal que se vai acumulando»
.
3. Os conceitos de um Deus sofredor e em devir estão intimamente relacionados com o conceito de um Deus que está preocupado.
A preocupação — o cuidado — não é uma estrutura característica exclusivamente do Dasein, como queria fazer crer Heidegger. Também Deus está preocupado, embora não seja ontologicamente um ser-para-a-morte
. Um Deus preocupado «não está distante, separado e fechado em si mesmo, mas envolvido naquilo pelo qual se preocupa».
Independentemente daquilo que tenha sido o seu estado «originário», Deus deixou de ser fechado em si mesmo «no momento em que entrou em relação com a existência do mundo, criando este mundo ou permitindo o seu aparecimento»
.
É certo que o judaísmo sempre esteve familiarizado com este facto de que Deus se preocupa pelas suas criaturas, mas a teologia de Jonas acentua o aspecto menos familiar da preocupação divina: «Deus cuidador não é nenhum mago que no acto mesmo de se preocupar já resolva o que é motivo da sua preocupação»
. Ao alienar-se no mundo, Deus deixou algo a fazer pelos outros actores e, ao proceder assim, permitiu que aquilo que O preocupa esteja nas mãos dos outros.
4. Daqui decorre que Deus é também um «Deus ameaçado, um Deus com um risco próprio»
. Este conceito de Deus ameaçado merece ser destacado. Desde Gehlen e outros antropólogos de orientação bio-filosófica, sabemos que o homem, devido à ausência de adaptações filogenéticas que lhe doem um mundo, é um ser em risco. A teologia de Jonas «humaniza» de tal modo a divindade que até mesmo Deus é encarado como um ser em risco permanente. Ao alienar-se no mundo, Deus entregou-se completamente ao devir mundano, correndo um risco próprio. Deus entregou-se, num acto de dádiva pura, ao destino da história universal.
Deus é um Deus ameaçado, «porque de outro modo o mundo se acharia num estado de permanente perfeição»
. Ora, basta abrir os olhos para ver que o mundo está longe da perfeição. O mundo actual é miséria. Tal facto «só pode significar uma de duas coisas: ou bem que não existe Um Deus (ainda que talvez mais de um), ou que este Um (uno) deixou algo distinto de si mesmo, algo criado por ele, um espaço de acção e um direito de co-decisão para o que é motivo da sua preocupação». O mundo humano, mais do que qualquer outro aspecto da criação, é verdadeiramente o motivo da preocupação de Deus: o homem ameaça directamente Deus com a sua crueldade manifestada ao longo da história. Ora, se existe Um Deus, este é um Deus cuidador e, por conseguinte, não é «um mago», isto é, um Deus que intervenha milagrosamente na história sempre que o homem se afasta do seu caminho. «De qualquer maneira, por um acto de sabedoria insondável ou de amor ou qualquer outro motivo divino, [Deus] renunciou a garantir a satisfação de si mesmo pelo seu próprio poder, e fê-lo depois de já ter renunciado por meio da Criação mesma a ser o todo do todo».
A renúncia de Deus só pode ser um acto de amor pleno, como de resto acentua o cristianismo.
5. Daqui decorre aquilo a que Jonas chama o «ponto mais crítico [da sua] aventura teológica especulativa: Não é um Deus omnipotente!»
. Ao criar o mundo, Deus abdicou da sua omnipotência, entregando-se ao devir. Jonas é peremptório: «Sustento, com efeito, que, em virtude da nossa imagem de Deus e de toda a nossa relação com o divino, não podemos manter já a doutrina tradicional (medieval) de um poder divino absoluto e ilimitado». Esta é, sem dúvida, a tese fundamental desenvolvida pela teologia especulativa de Hans Jonas: Deus não é omnipotente, como afirmava de forma enfática Santo Agostinho.
Jonas justifica esta tese a dois níveis: ao nível lógico e ontológico e ao nível religioso.
Ao nível lógico, Jonas articula «o paradoxo que se encontra no próprio conceito de poder absoluto»
. De acordo com Jonas, do simples conceito de poder decorre que «a omnipotência é um conceito contraditório em si [mesmo], que se anula a si mesmo e que resulta absurdo». Tal oxímero é explicitado através da comparação do poder absoluto com a liberdade absoluto humana:
«[A liberdade não] começa onde acaba a necessidade, [tal como defenderam tanto Hegel como Marx], a liberdade consiste e vive no medir-se com a necessidade. O mesmo vale também para o poder, que seria vazio se fosse absoluto e único. Poder absoluto e total significa um poder que não está limitado por nada, nem sequer pela existência de algo outro em geral, algo fora dele mesmo e distinto dele. Porque a mera existência de algo outro representaria já uma limitação, e o poder único deveria aniquilá-lo para conservar o seu carácter absoluto. Então o poder absoluto, na sua solidão, não teria nenhum objecto sobre o que pudesse exercer o seu efeito, mas como poder sem objecto, um poder é impotente e anula-se a si mesmo. «Omni» equivale aqui a «zero». Para que possa actuar, tem que haver algo outro e tão pronto como aparece, o uno já não é omnipotente, embora o seu poder pudesse ser indefinidamente superior em qualquer comparação. A existência tolerada de outro objecto limita por si mesma o poder da mais poderosa força eficiente enquanto condição da sua possibilidade de actuar, isto é, pelo facto de lhe permitir assim que seja uma força eficiente. Em suma, «poder» é um conceito relacional que requer uma relação pluripolar. Mas inclusivamente então um poder, que não encontra nenhuma resistência no outro da sua relação, é igual que nenhum poder em absoluto. Um poder só pode entrar em acção em relação com algo que também tem poder. Se não quer ser ocioso, o poder consiste na capacidade de superar algo, e a coexistência com algo é como tal suficiente para que se cumpra esta condição. A existência significa resistência e, portanto, é uma força que actua contra algo. O mesmo que na física uma força sem resistência, isto é, sem uma força contrária, permanece vazia, também o será na metafísica um poder sem contrapoder, por desigual que este pudesse ser. Aquilo sobre o que o poder actua deve Ter por si mesmo um poder, ainda que este viesse do primeiro e originariamente lhe tivesse sido concedido juntamente com a sua existência por meio de uma renúncia a si mesmo do poder ilimitado, ou seja, por meio do acto da Criação. Em resumo, não é possível que todo o poder esteja só do lado de um sujeito efectuante único. O poder deve estar compartilhado para que possa existir poder em geral»
.
Depois de ter apresentado a objecção lógico-ontológica à noção de poder absoluto, Jonas apresenta uma outra objecção, desta vez teológica e autenticamente religiosa:«A omnipotência divina só pode coexistir com a bondade divina ao preço da absoluta insondabilidade de Deus, isto é, do seu carácter enigmático. Ante a existência do mal ou inclusivamente só da miséria no mundo, deveríamos sacrificar a compreensibilidade de Deus à relação dos outros dois atributos. Só de um Deus de todo incompreensível se pode dizer que, ao mesmo tempo, é absolutamente bom e omnipotente e que tolera, sem dúvida, o mundo tal como é. Dito de maneira mais geral, os três atributos em questão — bondade absoluta, omnipotência e compreensibilidade — estão numa relação tal que qualquer conexão de dois deles exclui o terceiro»
.
Na economia geral dos três atributos geralmente atribuídos a Deus, só se podem ligar os atributos dois a dois, com a exclusão de um terceiro. Se ligarmos a omnipotência com a bondade divina, teremos de encarar Deus como um ser insondável, isto é, incompreensível. É preciso ceder um desses atributos para conservar uma concepção integral de Deus.
«A bondade, isto é, o querer o bem, é certamente inseparável do nosso conceito de Deus e não pode ser restringida. A compreensibilidade ou cognoscibilidade está duplamente condicionada: pela essência de Deus e pelas limitações do ser humano, e, em última instância, está sujeita à limitação, mas sob nenhuma condição pode ser totalmente negada»
.
A concepção de Deus elaborada por Jonas abdica da omnipotência divina a favor da ideia de Deus como um ser Bom e, de certo modo, cognoscível. Negar a compreensibilidade de Deus, além de atentar contra a revelação, equivale a defender um Deus oculto. Ora, «o Deus abconditus, o Deus oculto (para não falar do Deus absurdo) é uma ideia profundamente alheia à fé judia»
. Segundo Jonas, a Tora baseia-se e insiste em que «podemos entender a Deus, naturalmente não do todo, mas algo dele, da sua vontade, das suas intenções e inclusivamente da sua essência, porque se nos deu a conhecer. A revelação teve lugar, possuímos os seus mandamentos e leis e a alguns — os seus profetas — comunicou-se directamente, usando-os como a sua boca para todos, que fala na língua dos seres humanos e do tempo, isto é, balbuciando pelas limitações dos meios, mas sem se manter num secreto obscuro. Um Deus completamente oculto e incompreensível é um conceito inaceitável segundo a norma judia».
Se associarmos à bondade divina à sua pertença omnipotência, obtemos igualmente um Deus oculto, mais precisamente um Deus obscuro. Ora, é precisamente essa concepção de Deus que é problematizada pela experiência de Auschwitz:
«Depois de Auschwitz podemos dizer, mais decididamente do que nunca, que uma divindade omnipotente ou não seria infinitamente boa ou então totalmente incompreensível (no seu domínio sobre o mundo, que é donde só podemos compreendê-la). Mas, se Deus tem de ser compreensível de certo modo e até certo grau (e devemos sustentar isso), então o seu ser-bom deve ser compatível com a existência do mal e só pode sê-lo se não é omni-potente. Só desta maneira podemos continuar a sustentar que é compreensível e bom e que, sem dúvida, existe o mal no mundo. E, dado que já vimos que o conceito da omnipotência é em si mesmo duvidoso, é este o atributo de que temos de prescindir»
.
O argumento de Jonas em torno da omnipotência permite-lhe estabelecer o princípio, «para qualquer teologia que esteja em continuidade com a herança judia, de que há que considerar o poder de Deus como limitado por algo cuja existência por direito próprio e cujo poder de actuar por autoridade própria são reconhecidos por Deus mesmo»
.
A limitação do poder de Deus poderia ser interpretada como uma mera concessão por parte de Deus, «a que ele pode revogar quando o deseja, isto é, como a retenção de um poder irrestrito que possui, mas que, em virtude do direito próprio do criado, só usa de maneira limitada. Mas isto não seria suficiente, porque ante os tormentos realmente e absolutamente monstruosos que uns seres humanos infringem a outros inocentes de maneira unilateral — tratando-se sempre da espécie criada segundo a imagem de Deus —, se deveris poder esperar que o bom Deus rompesse de vez a própria regra da extrema discrição do seu poder e que interviesse com um milagre de salvação. Mas não ocorreu nenhum milagre de salvação. Durante os anos das atrocidades de Auschwitz, Deus permaneceu em silêncio. Os milagres que se produziram só eram obra de seres humanos (...)»
.
Enquanto alguns homens justos, cuja memória não deve ser abandonada ao esquecimento dos arquivos, não se recusavam a sacrificar a sua vida para salvar os inocentes, «Deus permaneceu em silêncio». Mas este silêncio não pode ser compreendido como desinteresse e muito menos como cumplicidade: Deus não interveio, não porque não quis, «mas porque não pôde»
intervir.
É, por isso, que Jonas propõe «a ideia de um Deus, que durante um tempo — o tempo do processo universal em progresso — renunciou a todo o seu poder de imiscuir-se no curso das coisas do mundo; que não contestou o choque do acontecer terreno contra o seu próprio ser com «a mão forte e o braço estendido», como recitam os judeus cada ano comemorando o êxodo do Egipto, mas com a intensidade da sua muda solicitação a favor da sua meta incumprida»
.
Jonas reconhece que a sua teologia especulativa se distancia substancialmente da mais antiga doutrina judia. Algumas das treze doutrinas de fé formuladas por Maimónides, nomeadamente os enunciados sobre o poder supremo de Deus sobre a Criação, os enunciados que afirmam que Deus recompensa os bons e castiga os maus ou mesmo os enunciados que insistem na chegada futura do Messias prometido, que se cantam no serviço religioso judeu, tornam-se caducos a partir do momento em que não se pode falar já da «mão forte» de Deus. Contudo, dado que «a impotência de Deus só se refere ao físico»
, os enunciados que falam do chamamento das almas, da inspiração dos profetas e da Tora, a ideia de eleição, a ideia de um único Deus e o chamamento «escuta Israel!», continuam a ser válidos na perspectiva teológica de Jonas.
A teologia de Jonas abdica do dualismo maniqueísta para explicar o Mal. Este «só surge nos corações humanos e ganha poder no mundo. Na mera admissão da liberdade humana encontra-se implícita uma renúncia ao poder divino»
. A negação da omnipotência divina deixa teoricamente aberta a escolha entre um dualismo originário — teológico ou ontológico — e a autolimitação do Deus único por meio da sua Criação desde o nada. De acordo com Jonas, o dualismo pode adoptar duas formas: a maniqueísta e a platónica.
O dualismo maniqueísta defende a existência de uma força do mal activa que, desde o princípio, actua em todas as coisas contra o propósito divino. Desta posição resulta uma teologia de dois deuses, a qual é inaceitável não só para o judaísmo, como afirma Jonas, mas sobretudo para o cristianismo. A ideia de um único Deus está acima de qualquer problematização.
O dualismo platónico afirma a existência de um meio passivo que, de uma maneira igualmente universal, permite somente a materialização imperfeita do ideal no mundo. Daqui decorre uma ontologia da forma e da matéria. Mas uma tal ontologia só pode responder, no melhor dos casos, ao problema da imperfeição e da necessidade na natureza, deixando sem resposta o problema do mal activo que implica uma liberdade com autoridade própria, inclusivamente frente ao seu Criador.
Ora, a questão teológica actualmente pertinente é precisamente «o facto e o êxito do mal por vontade, muito mais que as pragas da cega causalidade natural: Auschwitz e não o terramoto de Lisboa», que tanto preocupou Leibnitz ou Voltaire. Como escreve Jonas: «Só com a Criação desde o nada temos a unidade do princípio divino juntamente com a sua autolimitação, que deixa espaço à existência e à autonomia do mundo. A Criação foi o acto da soberania absoluta, com o qual esta manifestou a sua vontade de deixar de ser absoluta em função da existência de uma finitude que se pode autodeterminar. Trata-se, portanto, de um acto de auto-alienação divina»
.
Jonas recorda a corrente subterrânea da cabala judaica, estudada por Gershom Scholem, para mostrar que a tradição judia é menos ortodoxa em questões de soberania divina do que pretende a doutrina oficial. Com efeito, a cabala conhece um destino de Deus, ao qual este se submeteu aquando do devir do mundo. Daí que Jonas diga que o seu mito só radicaliza «a ideia do zimzum, este conceito central da cabala luriana. Zimzum significa contracção, retirada, autolimitação. Para dar espaço ao mundo, o En-Ssof do começo, o Infinito, teve de recolher-se em si mesmo para fazer surgir o vazio no e do qual pôde criar o mundo. Sem este recolher-se em si mesmo não poderia existir nada mais ao lado de Deus, e só o seu continuado limitar-se preservou as coisas finitas de perder o seu ser próprio novamente no «todo dentro do todo» divino»
. Jonas vai ainda mais longe quando sublinha que «a contracção é total, o infinito na sua totalidade e poder alienou-se no finito, entregando-se [inteiramente] a ele».
Coloca-se agora a questão de saber se uma tal concepção da auto-alienação de Deus no mundo finito deixa algum lugar para uma relação com Deus. Em termos mais radicais, devemos colocar a questão: Um Deus autolimitado pode ser objecto de adoração? A resposta de Jonas é longa, mas compacta:
«Renunciando à sua própria invulnerabilidade, o eterno fundo do mundo permitiu a este que existisse. Todas as criaturas devem a sua existência a esta autonegação e receberam graças a ela tudo o que havia a receber do mais além. Uma vez que se entregou por completo ao mundo e a seu devir, Deus já não tem nada a dar. Agora cabe ao ser humano dar o seu a Deus. E pode fazê-lo procurando, nos caminhos da sua vida, que não se converta em motivo para que Deus se arrependa de haver permitido o devir do mundo. Isto poderia ser talvez o segredo dos desconhecidos «trinta e seis justos», que, segundo o ensinamento judeu, não devem faltar nunca para que o mundo possa continuar a existir; a eles podem ter pertencido no nosso tempo alguns dos mencionados «justos entre os povos». O segredo seria, pois, que graças à superioridade do bem sobre o mal, que podemos supor para a lógica não causal das coisas do mais além, a sua santidade oculta é capaz de redimir uma culpa infinita, de saldar a conta de uma geração e de salvar a paz do reino invisível»
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No fundo, a teologia especulativa de Jonas procura dar uma resposta ao problema de Job, mas a resposta que dá é contrária à do Livro de Job. Enquanto Job apela à plenitude do poder do Deus criador, Jonas apela à sua renúncia ao poder. Apesar dessa diferença, as duas respostas são elogiosas, «porque a renúncia ocorreu para que possamos existir»
e até mesmo na resposta de Job Deus sofre.Ao alienar-se completa e inteiramente no mundo e no seu devir, Deus colocou o homem diante da responsabilidade de zelar pelo seu destino certo. Somos responsáveis quer diante Deus, quer diante dos outros e de todas as coisas criadas. Cabe ao homem a responsabilidade de redimir e de salvar o mundo, vencendo o mal. Na memória infinita de Deus tudo é conservado, tanto o que já não existe quanto o que ainda não existiu. A memória de Deus aguarda que o homem cumpra o prometido. A teologia de Jonas exige uma ética da responsabilidade. Aliás, fundamenta uma tal ética.
2. DEUS: MEMÓRIA E SOFRIMENTO. Deus como infinita memória que guarda cada detalhe da vida das suas criaturas é uma concepção que pode ser comparada com o mito das punições eternas de Platão e, em ambos os casos, os seres vivos serão confrontados com essa memória infinita que os julgará para sempre. Em Platão, encontra-se aqui um fundamento da vida política da Polis. Aos justos resta-lhes a benaventurança eterna. Numa civilização dada ao prazer imediato e embrutecedor, o pragmatismo recomenda a recuperação da dor, porquanto esta ensina a viver a vida de modo disciplinado e responsável. O hedonismo é inimigo da democracia.
3. IMPLICAÇÕES PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ. É certo que Jonas tende a elaborar uma teologia no âmbito da tradição judaica, mas um tal empreendimento neglicencia uma outra tradição mais vasta, da qual o judaísmo faz parte, a menos que os judeus pretendam ser um povo privilegiado e, nesse caso, devem ser abandonados à sua sorte: referimo-nos ao Ocidente como civilização. A Filosofia como guardiã dessa grande tradição greco-romana mantém a sua pretensão à universalidade, reforçada pela mensagem cristã. O Deus de Moisés, de Abraão e de Jacob é o mesmo Deus de Cristo e de todos os seres humanos. O judaísmo só faz sentido quando dissolvido no cristianismo: fora desta matriz universal o judaísmo corre o risco de ser encarado como uma seita sectária cujo destino é governado pelas leis do conflito religioso.
Daqui resulta que a Trindade de Deus só pode ser pensada em devir: Deus Pai no seu estado originário decide arriscar-se e cria o Filho. Aqui começa a odisseia de Deus alienado no mundo, do qual só se pode libertar quando o homem vencer o próprio mal: o Espírito Santo é a comunidade santa de Deus com a sua criação recuperada. Mas Deus é o ser em risco e, a menos que tenha eleito alguma assembleia, como supõe a mística judaica, pode correr o risco derradeira de perder o mundo para Si e perder-se a Si mesmo. Não há Igreja que possa recuperar Deus: somente os homens o podem fazer. Mas o Deus que queremos salvar já não é objecto da teologia, porque Deus não é epistemologicamente objecto. Este facto é escamoteado por muitas teologias que reificam «deus», tal como os judeus adoraram o bezerro de ouro no deserto.
J Francisco Saraiva de Sousa

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