quarta-feira, 20 de maio de 2009

Génese e Estrutura da Ciência Moderna (2)

Terceira Secção. «Os leitores de novelas sherlockianas sabem como as pistas falsas perturbam a história e atrasam a solução. O método de raciocinar ditado pela intuição era uma pista errada que levou a ideias falsas sobre o movimento, as quais perduraram por séculos. A grande autoridade de Aristóteles foi talvez a causa principal da longa fé no intuito. Na Mecânica, que há dois mil anos é atribuída a esse filósofo, lemos o seguinte: O corpo em movimento estaciona quando a força que o impele cessa de agir». (Albert Einstein)

3. Desenvolvimento da Física Clássica. De acordo com A. Koyré, podemos distinguir, na história do pensamento científico da Idade Média e do Renascimento, três épocas de desenvolvimento científico que correspondem a três tipos diferentes de pensamento científico: a física aristotélica, a física do impetus, extraída do pensamento grego e elaborada no decurso do século XIV pelos nominalistas parisienses, e, finalmente, a física moderna, a de Arquimedes e de Galileu. Estas etapas encontram-se no próprio desenvolvimento do pensamento científico de Galileu, a quem se deve uma exposição deveras interessante da teoria do impetus. A passagem da física aristotélica e da física do impetus à física matemática de Galileu deve-se fundamentalmente à recepção e à compreensão gradual da obra de Arquimedes e do seu mestre Platão. As duas primeiras teorias pensam em termos de experiência quotidiana, enquanto a teoria de Galileu pensa em termos estritamente matemáticos: o seu livro da natureza está escrito em linguagem matemática.

3.1. A Física de Aristóteles. A física aristotélica é uma ciência teoricamente elaborada que, partindo naturalmente dos dados do senso comum, os submete a uma tratamento teórico extremamente coerente e sistemático. Para Aristóteles (384-322 a.C.), o fundamento da verdadeira ciência do mundo físico reside na percepção e não na especulação matemática, na experiência e não no raciocínio geométrico a priori. A sua ciência que foi a ciência medieval articula intimamente uma metafísica finalista e a experiência normal do senso comum, dois traços que serão rejeitados por Galileu, Descartes e Newton. Quando atribuiu à autoridade de Aristóteles o atraso da "solução" do problema do movimento, Einstein esquece, talvez por ignorância e por preconceito positivista, que a física aristotélica, além de ser uma ciência coerente e corroborada pelos dados da experiência comum, exibe semelhanças com a sua teoria geral da relatividade: o movimento circular dos astros aristotélicos parece estar particularmente difundido no mundo, tanto ao nível macroscópico (galáxias e nebulosas) como ao nível microscópico (átomos e electrões). Einstein mostrou que uma curvatura local do espaço pode produzir movimentos deste género, e o seu universo, tal como o cosmos de Aristóteles, não é infinito, mas finito, embora tenha limites (noção estranha a Aristóteles). Não existe rigorosamente nada fora do universo einsteiniano, pela simples razão de todo o espaço estar dentro e não fora do universo: o tempo e o espaço estão no universo e, não como pensava Newton, o universo contido neles. Sem os recursos da geometria riemaniana, Aristóteles já sabia que fora do mundo não existe nada, nem pleno, nem vácuo (princípio da plenitude do universo ou horror vacui), e que todos os lugares estão no interior do mundo. A diferença substancial entre Aristóteles e Einstein reside no facto da concepção do primeiro ser metafísica e da concepção do segundo ser matemática: o mundo finito de Aristóteles não é geometricamente curvado, como o de Einstein, mas é metafisicamente curvado. (Observação: A relatividade especial mostrou que as distâncias e os intervalos de tempo dependem da velocidade e que a massa é equivalente à energia, enquanto a relatividade geral mostra que a massa determina a geometria do espaço circundante: Einstein rejeita, portanto, a tese de Leibniz de que o espaço é fisicamente vazio; o espaço é um campo físico, embora não seja o campo euclidiano indicado por Newton na sua experiência do balde.)

Para Aristóteles, a ciência começa quando se procura explicar as coisas que parecem naturais, tais como "um corpo pesado cair para baixo" ou "a chama de um fósforo dirigir-se para cima". O seu objectivo é traduzir ou exprimir na sua linguagem elaborada estes dados do senso comum, ao mesmo tempo que os «transfigura». A distinção aristotélica entre movimentos naturais e movimentos violentos enquadra-se numa concepção de conjunto da realidade física, cujos traços principais são: a crença na existência de naturezas qualitativamente definidas (1), e a crença na existência de um Cosmos (2), mais precisamente a crença na existência de princípios de ordem em virtude dos quais o conjunto dos seres reais constitui um todo hierarquicamente ordenado e harmónico. Este último conceito implica que, no universo, as coisas estão distribuídas e dispostas numa determinada ordem, e que a sua localização não é indiferente, nem para elas, nem para o universo. Pelo contrário, cada coisa tem, segundo a sua própria natureza, um lugar determinado no universo, ou melhor, o seu lugar próprio. O conceito de lugar natural exprime, na física aristotélica, uma exigência teórica: um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar.

O conceito de lugar natural baseia-se numa concepção puramente estática da ordem, na medida em que, se cada coisa estivesse em ordem, estaria no seu lugar natural e aqui permaneceria para sempre. Isto significa que cada coisa resiste naturalmente a todo o esforço para a afastar do seu lugar natural. Para a expulsar desse lugar, é preciso «imprimir-lhe» algum tipo de violência, capaz de colocar um corpo fora do seu lugar, mas, após ter sido afastado do seu lugar, o corpo procura voltar a ele. O movimento implica alguma espécie de desordem cósmica, uma perturbação no equilíbrio do universo, porque é ou o efeito directo da violência ou, pelo contrário, o efeito do esforço do ser no sentido de compensar essa violência, para recuperar a ordem e o equilíbrio perturbados, isto é, para recolocar as coisas nos seus lugares naturais, onde devem ficar e permanecer. O movimento natural mais não é do que o retorno à ordem. Perturbar o equilíbrio, voltar à ordem: eis uma concepção estática e ordenada do cosmos que dispensa uma explicação do estado de repouso. A própria natureza ontológica do cosmos explica o facto da Terra estar em repouso no centro do mundo.

O conceito de uma ordem estática implica a ideia de que o movimento é necessariamente um estado transitório: um movimento natural cessa naturalmente quando o corpo atinge o seu objectivo. Porém, afirmar que o movimento cessa quando o corpo alcança o seu objectivo é o mesmo que dizer que o movimento não pode ser definido como estado, até mesmo como estado transitório, porque todos os corpos do universo tendem para a ordem cósmica. Para Aristóteles, o movimento é um processo de mudança, em oposição ao repouso, o qual, sendo o objectivo e o fim do movimento, deve ser considerado como um estado. Todo o movimento é mudança (actualização ou corrupção) e, por conseguinte, um corpo em movimento não só muda em relação a outros corpos (1), como também, ao mesmo tempo, está ele próprio submetido a um processo de mudança. O movimento afecta sempre o corpo que se move e, se o corpo for dotado de dois ou mais movimentos, estes perturbam-se mutuamente, entravam-se uns aos outros e, por vezes, podem ser incompatíveis. Considerado como um processo de mudança, um vir-a-ser, o movimento não pode prolongar-se espontânea e automaticamente. Para persistir, o movimento exige a acção contínua de um motor ou de uma causa e, quando esta causa cessa de exercer o seu efeito, o movimento do corpo também cessa. Cessante causa cessat effectus. O tipo de movimento postulado pelo princípio de inércia é totalmente inadmissível na física aristotélica. Aristóteles não admite a acção à distância: cada transmissão de movimento implica um contacto. Só existem dois tipos de transmissão: a pressão e a tracção. Para fazer com que um corpo se mova, é preciso empurrá-lo ou puxá-lo. Não existem outros meios para pôr um corpo em movimento. Quando uma destas acções cessa, o corpo regressa ao seu lugar natural e permanece em repouso.

A dinâmica aristotélica nega o vazio e o movimento no vazio, porque, na sua perspectiva, o vazio não só não favorece o movimento como também o torna impossível. Esta dupla-rejeição reflecte a antiga concepção grega da plenitude do universo, geralmente referida como horror vacui ou aversão da natureza pelo vácuo: a natureza age sempre de maneira a evitar a formação do vácuo. A teoria aristotélica do movimento está ligada intimamente ao conceito de um espaço finito e completamente ocupado: o seu cosmos é auto-suficiente e autocontido, não deixando nada fora dele. Como vimos, quando um corpo é deslocado do seu lugar por uma força externa, ele tende a regressar ao seu lugar natural e este movimento efectua-se pelo caminho mais curto e mais rápido, portanto, em linha recta. Se o meio no qual o corpo se move não opusesse qualquer resistência ao seu movimento, tal como se passaria no vácuo, então o corpo dirigir-se-ia para o seu lugar com uma velocidade infinita. Ora, segundo Aristóteles, este movimento instantâneo no vazio é absolutamente impossível. E, no caso do lançamento, o movimento no vazio equivale a um movimento sem motor e, como o vazio não é um meio, não pode receber, isto é, transmitir e conservar o movimento, mais outra impossibilidade.

Um universo infinito não pode coexistir com o universo finito de Aristóteles, por duas ordens de razões fundamentais. Em primeiro lugar, um espaço infinito não tem centro: cada ponto está a igual distância de todos os outros pontos da periferia. Ora, se não existir centro, não só não há um lugar escolhido no qual o elemento pesado terra possa ser agregado, como também não há o intrínseco "para cima" e "para baixo" a fim de determinar o movimento natural de um elemento (terra, água, ar e fogo) ao regressar ao seu lugar próprio. Isto equivale a dizer que, num universo infinito, não existem lugares naturais, porque cada lugar é igual a qualquer outro. Aristóteles liga os conceitos de espaço finito e completamente ocupado, de modo a mostrar que a noção de vazio é incompatível com a ideia de uma ordem cósmica. As interacções da matéria e do espaço determinam o movimento e o repouso dos corpos. Com efeito, no vácuo não há lugares naturais ou mesmo quaisquer lugares: o vazio não é nada e situar qualquer coisa nesse nada é absurdo. Em segundo lugar, a noção de espaço infinito não só elimina a noção de centro, como também retira o homem e a Terra do centro do universo: ela é incompatível com o «facto» de toda a terra, água, ar e fogo estarem agregados num único ponto, nos seus respectivos lugares naturais. (O éter, um sólido cristalino, era, para Aristóteles, o elemento celeste.) No vácuo, não há lugares nem direcções privilegiadas, portanto, no vazio um corpo não teria razão para se mover numa direcção de preferência a uma outra, ou melhor, não teria razão para se mover. Descartes rejeita o vazio de modo mais radical do que Aristóteles: a sua identificação entre a extensão e a matéria leva-o a considerar o vazio como um nada existente, donde resulta a ideia de que o espaço não é uma entidade distinta da matéria que o "enche", bem como a ideia de um mundo indefinido. (Para Descartes, só Deus é infinito.)

3.2. A Física do Impetus. O maior defeito da física aristotélica reside no facto de ser desmentida pela prática quotidiana do lançamento ou arremesso. Porém, Aristóteles não se rende e procura explicar o lançamento pela reacção do meio, o ar ou a água. A solução de Aristóteles é engenhosa e genial: o movimento, aparentemente sem motor, do projéctil é explicado por um processo turbilhonante no meio envolvente do corpo, neste caso no ar, que age sobre este último arrastando-o e impelindo-o. De certo modo, Aristóteles inventa um meio particularmente apto a mover-se, portanto, um "meio elástico": o ar.

Os nominalistas parisienses, nomeadamente Buridan e Nicolau Oresme, retomam os argumentos de Filão, o fundador grego da teoria do impetus. Filão aponta dois grupos de argumentos contra a dinâmica aristotélica: os argumentos de ordem material sublinham o quanto é improvável a suposição segundo a qual um corpo grande e pesado, por exemplo, a bala de um canhão, a mó que gira ou a flecha que voa contra o vento, possa ser movido pela reacção do ar, enquanto os argumentos de ordem formal assinalam o carácter contraditório da atribuição ao ar de um duplo-papel, o de resistência e o de motor, assim como o carácter ilusório de toda a teoria aristotélica. Filão acusa Aristóteles de ter deslocado o problema do corpo para o ar, sendo obrigado a atribuir ao ar o que recusa aos outros corpos, nomeadamente a capacidade de manter e conservar o movimento de um corpo separado da sua causa externa. Estes argumentos foram retomados, desenvolvidos e aperfeiçoados por Hiparco, João Filopono, Buridan, Nicolau Oresme, Alberto da Saxónia, Leonardo da Vinci e Benedetti, bem como pelo jovem-Galileu e pelo seu mestre Bonamico. A concepção do movimento que sustenta e apoia a teoria do impetus é completamente diferente da concepção de movimento terrestre da teoria aristotélica. O movimento não é mais interpretado como um processo de actualização. Contudo, continua a ser visto como mudança e, como tal, exige a sua explicação pela acção de uma força ou de uma causa determinada. O impetus é precisamente essa causa imanente que produz o movimento, o qual é, converso modo, o efeito produzido por ela. Assim, o impetus impressus produz o movimento, isto é, move o corpo, ao mesmo tempo que desempenha outro papel muito importante: domina a resistência que o meio opõe ao movimento. Contudo, apesar das excelentes clarificações realizadas por Benedetti, a teoria do impetus (força motriz) foi incapaz de elaborar um conceito novo e original do movimento. O jovem-Galileu mostrou que, embora fosse compatível com o movimento no vacuum, a física do impetus era incompatível com o princípio de inércia e, portanto, incompatível com o método matemático. O contributo original de Galileu será, como veremos, abandonar esta concepção e edificar uma física matemática na perspectiva da estática de Arquimedes, mediante a elaboração de um conceito novo de movimento. (Publicado aqui.)

Quarta Secção.
«(Na mecânica ondulatória,) as leis da natureza não têm um carácter tão exacto como na física clássica; não há já um determinismo rigoroso dos fenómenos, mas somente leis de probabilidade (= leis estatísticas). É o que exprime de modo preciso o célebre "princípio de incerteza" enunciado por Werner Heisenberg. As próprias noções de causalidade e de individualidade tiveram que ser submetidas a um novo exame, e desta considerável crise de princípios directores das nossas concepções físicas sairão, sem dúvida, consequências filosóficas ainda hoje não bem compreendidas». (Werner Heisenberg)

Se lermos com muita atenção a obra de W. Heisenberg, ficamos com a impressão de que a revolução científica do século XX pode ser vista como uma espécie de revolução anti-copernicana, a qual exige uma nova filosofia. Quando formula em termos matemáticos as leis da natureza, a mecânica quântica "pressupõe sempre o homem e não devemos esquecer, como diz Niels Bohr, que, no espectáculo da vida, nunca somos apenas espectadores, mas também, constantemente, actores" (Heisenberg). O reconhecimento do homem como "actor" leva Heisenberg a apostar na cultura humanística que deriva inexoravelmente do pensamento grego e a identificar essa aposta com a "opção pelo Ocidente". Nesta perspectiva, não há "teorias mortas", como afirmam muitos burrecos nacionais que pretendem filosofar e criticar sem previamente terem adquirido conteúdos objectivos de conhecimento, como se a crítica fosse anterior ao conhecimento e à própria entrega ao objecto. A perspectiva destes luso-burrecos é a da tagarelice ou, como diz Heidegger, a da vida inautêntica e fácil de homens alienados do seu poder-ser. Darwin, Marx e Freud foram lidos como tendo levado a revolução copernicana até à intimidade do homem, embora Marx nunca tenha usado essa expressão para caracterizar a sua imensa revolução teórica. A mecânica quântica imprime outro rumo, recolocando o homem na natureza e atribuindo-lhe um papel activo no conhecimento da natureza. A imagem científica da natureza deixa de ser supostamente uma imagem da natureza "em si mesma" ou tal como Deus a concebeu na criação e passa a ser a imagem da relação do homem com a natureza. A noção de limite readquire um novo estatuto epistemológico e metafísico, questionando e comprometendo a própria noção de progresso. Deste modo, Heisenberg estabeleceu uma conexão essencial entre a "cosmologia" e a antropologia, conexão que foi pensada pelos físicos posteriores e, aparentemente, desprezada pelos filósofos absorvidos na tarefa de destronar ou destruir o homem. O positivismo teve este efeito perverso na cultura ocidental: "separar" as duas culturas (S.P. Snow), como se elas fossem irreconciliáveis, dando prioridade à cultura científica sobre a cultura filosófica. Contudo, tanto a revolução científica do século XVII como a revolução científica em andamento desmentem cabalmente o positivismo e a sua pobre visão do mundo. Nos seus últimos desenvolvimentos teóricos, a própria física "regressa" à filosofia ou, como diz Heisenberg, "é filosofia", e, curiosamente, quando Stephen Hawking fala do "fim da física", retoma um velho conceito hegeliano. Uma tal teoria unificada e, portanto, completa do cosmos, visa reconciliar os dois pilares da física contemporânea, a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, que permite compreender o universo em grandes escalas (estrelas, galáxias e a imensidão do universo), e a mecânica quântica, que permite compreender o universo nas mais pequenas escalas (átomos, moléculas, electrões e quarks). A teoria das supercordas pretende casar as leis que regem o grande e o pequeno, superando os seus conflitos e mostrando que as duas teorias precisam uma da outra: toda a matéria e todas as forças (electromagnética, fraca, forte e gravítica) são unificadas sob o mesmo conceito de oscilações de cordas.

3.3. A Física de Galileu. Durante o seu período de Pisa, o jovem-Galileu tenta, aliás na peugada de Benedetti, matematizar a física do impetus, mas, como não consegue superar o seu impasse, será levado a edificar uma nova física, cujo modelo lhe é fornecido por Arquimedes. O jovem-Galileu desenvolve a dinâmica do impetus, de modo a mostrar que o movimento do móvel é um efeito da força que o anima: a força motriz imprimida ao móvel explica o fenómeno do arremesso, sem ser necessário recorrer à reacção do meio, como fez Aristóteles. A noção de força motriz permitiria a formulação do princípio de inércia, desde que concebesse a continuação indefinida do movimento, mas, para Galileu e Benedetti, o movimento eterno era um absurdo, porque a força que produz um movimento não pode permanecer a mesma em dois momentos consecutivos e, por isso, o movimento produzido desacelera até se extinguir. Deste modo, a física do impetus não só é incompatível com o princípio de inércia, como também nega a aceleração do movimento de queda. Para o jovem-Galileu, a velocidade ou a lentidão do movimento de queda depende do maior ou menor peso do corpo que cai. A velocidade não é função da resistência do meio, como em Aristóteles, mas é algo inerente e intrínseco ao próprio movimento: a velocidade da queda de um corpo é proporcional ao seu peso e o seu valor é constante para cada corpo dado. É certo que um corpo que cai, cai cada vez mais depressa, mas esta aceleração só se dá no início do movimento da queda até ao momento em que o corpo em queda atinge a sua velocidade própria, proporcional ao seu peso. Nesse momento, a velocidade permanece constante e o movimento acelerado transforma-se em movimento uniforme. A velocidade própria de um corpo em queda é função do seu peso, não do seu peso absoluto, mas do seu peso específico ou relativo. Com a introdução da noção de peso relativo, Galileu faz rebentar a física do impetus. O caso de um corpo pesado lançado ao ar verticalmente permite-lhe compreender que a leveza e o peso são definidos a partir dos efeitos que produzem: a leveza faz com que o corpo suba e o peso faz com que o corpo desça. Leveza e peso não são qualidades absolutas, mas sim propriedades relativas ou meras relações. Um corpo leve eleva-se e um corpo pesado desce em função do meio em que está colocado: a força com que sobe ou desce é medida pela diferença entre o seu peso específico e o peso de um volume igual do meio em que se encontra. O facto de um corpo possuir um peso absoluto leva Galileu a reconhecer que o único movimento natural é o movimento dos corpos pesados para baixo, ou seja, para o centro do mundo. A distinção entre peso absoluto e peso relativo, conjugada com a ideia de que a velocidade da queda de um corpo é função do seu peso relativo no meio dado, conduzem Galileu a reconhecer que é no vazio e apenas no vazio que os corpos pesam os seus pesos absolutos e caem com uma velocidade que é a sua velocidade própria. Com esta última noção, Galileu é levado a definir o movimento como estado. A ruptura com Aristóteles e a física do impetus consuma-se: Galileu já pode elevar-se ao nível de uma física matemática, embora tenha retido a noção de centro do mundo onde se situam os corpos pesados e ao seu redor, em camadas concêntricas, os corpos mais leves.

O que é o movimento para Galileu? O movimento é algo estranho que não afecta o corpo que dele é dotado, como pensavam os aristotélicos ou mesmo Leibniz: estar em movimento ou estar em repouso não afecta, isto é, não altera o corpo em movimento ou em repouso. O corpo é totalmente indiferente ao movimento e ao repouso. Assim, não podemos atribuir o movimento a um determinado corpo em si mesmo, porque um corpo só está em movimento em relação a outro corpo que supomos estar em repouso. Todo o movimento é relativo e, por isso, pode ser atribuído ad libitum a um ou a outro dos dois corpos. Porém, embora seja relação, o movimento é um estado, tal como o repouso. Ambos são estados persistentes. De acordo com a famosa lei da inércia, a primeira lei do movimento de Newton, que não foi formulada por Galileu, como lhe foi atribuído pelos seus seguidores, Cavalieri, Torricelli e Gassendi, mas por Descartes, um corpo abandonado a si mesmo persiste eternamente no seu estado de movimento ou de repouso, a não ser que sofra a acção de uma força externa que transforme um estado de movimento em estado de repouso e vice-versa. A eternidade não é inerente a todo o tipo de movimento, mas apenas ao movimento uniforme em linha recta. Uma vez posto em movimento, um corpo conserva eternamente a sua direcção e a sua velocidade, desde que não sofra a acção de uma força externa. Embora conhecesse o movimento circular e eterno das esferas celestes, o aristotélico Simplício, no caso do diálogo galilaico, retorquía que nunca tinha encontrado um movimento rectilíneo permanente e com razão, porque um tal movimento, conforme mostrou Salviati, só pode ser produzido no vácuo. Isto significa que os corpos que se movem num espaço vazio e infinito não são corpos reais que se deslocam num espaço real, mas corpos matemáticos que se deslocam num espaço matemático homogéneo e infinito. A conclusão de Salviati de que todos os corpos caem com a mesma velocidade, independentemente do peso (massa), exige, evidentemente, o auxílio da segunda lei do movimento e da lei da gravitação de Newton. A lei da aceleração afirma que, se um corpo sofrer uma acção de uma força externa, ele acelerá no sentido dessa força, e a aceleração será proporcional à força e inversamente proporcional à massa do corpo (F= ma). A lei da gravitação universal de Newton afirma que todo o corpo, partícula ou quantidade de massa no universo atrai todos os demais corpos do universo, com uma força proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Estas leis do movimento, incluindo a lei da acção e reacção, e a lei da gravitação universal foram formuladas por Newton no seu livro "Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" (1687).

Antecipada filosoficamente por Giordano Bruno, a noção de universo infinito é consumada pela física de Newton. Embora acredite no éter que enche o espaço do nosso sistema solar, Newton concebe esse éter como uma substância de tal modo ténue e elástica que não chega a encher completamente o espaço físico. O movimento dos cometas mostra que existe espaço vazio, porque, caso contrário, não se moveriam com liberdade em todas as direcções, conservando o seu movimento, mesmo quando se movem na rota contrária à dos planetas. E, dado a matéria sem vis inertia (resistência) ser impensável, os espaços celestes são destituídos de matéria: a estrutura do éter é descontínua, isto é, compõe-se de partículas extremamente pequenas, entre as quais existe vácuo. Esta estrutura elástica do éter implica necessariamente o vácuo, ideia que Newton opõe à concepção cartesiana de um mundo constituído por matéria uniforme e que, portanto, se estende de modo contínuo, impedindo a elasticidade e o próprio movimento. Portanto, Newton considera inadmissível a existência de um espaço completamente ocupado ou de um plenum que oporia uma resistência extraordinária ao movimento, tornando-o impossível e obrigando-o a cessar, ao mesmo tempo que advoga que os espaços celestes são constituídos por um éter extremamente rarefeito, fino e ténue, dotado de uma estrutura granular, que possibilita a existência do vácuo e a recusa de um meio contínuo. Além disso, ao estipular a existência de um espaço absoluto e de um tempo absoluto, distintos do espaço e do tempo relativos, Newton pode conceber um tempo matemático que flui uniformemente, sem relação com nada exterior, e um espaço que permanece sempre semelhante e imóvel, de modo a garantir um movimento absoluto, uniforme, rectilíneo e inercial, distinções que serão abandonadas pela teoria geral da relatividade de Einstein. A libertação do espaço de tudo o que o enche identifica-o com o espaço euclidiano, aquele que toma a forma de um continente.

A revolução galilaica consiste em explicar o ser real pelo ser matemático ou, como declara o próprio Galileu, o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos ou geométricos. O verdadeiro assunto do "Diálogo dos Grandes Sistemas" não é tanto a oposição entre dois sistemas astronómicos, mas fundamentalmente a defesa da explicação matemática da natureza em oposição à explicação não-matemática do senso comum e da física aristotélica. Dirigido ao "grande público", o livro de Galileu visa a destruição da concepção aristotélica do mundo e da ciência e a sua substituição pela concepção copernicana do mundo, embora sem o fazer directa e explicitamente. Trata-se, portanto, de uma obra de filosofia da natureza escrita na forma de diálogo, cujos intervenientes são Salviati, o próprio Galileu, Sagredo, o leigo inteligente, e Simplício, o sage aristotélico. Em vez de "imaginar" o movimento em termos de esforço (impetus) e de deslocamento, como fazia a ciência medieval, Galileu "pensa"-o em termos de velocidade e de direcção. Contra a ciência aristotélica, baseada na experiência e na percepção dos sentidos, Galileu reclama o poder do pensamento e, por conseguinte, a herança do matematismo platónico: o pensamento puro e sem mistura, e não a experiência sensorial, é que está na base da "nova ciência matemática da natureza". Isto é dito claramente aquando da discussão do famoso exemplo da bala que cai do alto do mastro de um navio em movimento. Galileu explica longamente o princípio da relatividade física do movimento, a diferença entre o movimento do corpo em relação à Terra e o seu movimento em relação ao navio, e, a seguir, sem fazer qualquer referência à experiência, conclui que o movimento da bala em relação ao navio não muda com o movimento deste último. Quando Simplício lhe faz a pergunta, "Fizeste uma experiência?", Galileu responde: "Não, e não preciso fazê-la, e posso afirmar, sem qualquer experiência, que é assim, porque não pode ser de outra forma". A física galilaica desenvolvida em Pádua é uma ciência feita a priori. A teoria precede a experiência: eis o sentido do vector epistemológico estabelecido por Galileu. A experiência é inútil, porque, antes de toda a experiência, já possuímos o conhecimento que procuramos. Ao contrário da teoria do conhecimento elaborada mais tarde por Newton, fundada sobre o lema hypotheses non fingo (não imagino hipóteses), os conceitos galilaicos não são arrancados da experiência: eles são pressupostos e, como tal, são conceitos "fictícios". É certo que a realidade da experiência pode não estar completamente de acordo com a dedução, mas são estes conceitos prévios que nos permitem compreender e explicar a natureza e fazer "experiências", isto é, fazer perguntas e interpretar as respostas. As leis fundamentais do movimento, leis que determinam o comportamento espacial e temporal dos corpos materiais, são leis de natureza matemática, portanto, leis dotadas da mesma natureza que as leis que governam as relações das figuras e dos números. Estas leis não se encontram na natureza, mas no nosso espírito e na nossa memória, como ensinou Platão: conhecer é recordar. É por isso que somos capazes de dar provas puramente matemáticas das proposições que descrevem os sinais do movimento e de desenvolver a linguagem da ciência natural, de questionar a natureza através de experiências construídas de maneira matemática e de ler o grande livro da natureza que está escrito em linguagem matemática. A física galilaica é, pois, uma geometria do movimento, do mesmo modo que a física do divus Archimedes era uma física do repouso (hidroestática).

A passagem de um mundo fechado para um universo aberto, para utilizar a bela expressão de Koyré, é determinada, em última instância, pelo abandono de um estado natural predominante na Idade Média em que cada coisa estava no seu lugar próprio e a Terra em repouso permanecia no centro do universo (geocentrismo) e pela adopção de um estado natural no qual o trabalho é muitíssimo valorizado e o mundo, tal como a Terra girando em torno do Sol (heliocentrismo), se põe em movimento. Desta perspectiva, a dinâmica afigura-se como uma correspondência da economia de mercado aberta em vias de nascimento acelerado. O primado do movimento sobre o repouso significa que emergia, no novo mundo social, dominado pela burguesia mercantil, um mercado cada vez mais aberto e extenso, completamente em rota de colisão interna com o anterior mercado fechado, onde o trabalho e a actividade mercantil eram subestimadas pelos estratos sociais superiores da sociedade feudal.

No Renascimento, a linha divisória entre os seguidores de Aristóteles e os de Platão era clara: os platónicos eram aqueles que reivindicavam para as matemáticas uma posição superior, atribuindo-lhes um real valor e uma posição decisiva na física, enquanto os aristotélicos eram aqueles que viam a matemática como uma ciência abstracta e de menor valor do que a física e a metafísica, embora não duvidassem da certeza das proposições ou demonstrações geométricas e não negassem o direito de medir o que é mensurável e de contar o que é numerável. O que os distinguia realmente era a concepção que tinham da estrutura do ser e da estrutura da ciência. Neste campo de luta teórica, Galileu colocava-se na posição dos platónicos e era como platónico que os seus contemporâneos o viam: a sua filosofia matemática da natureza constituía um retorno a Platão e a sua ciência, uma vitória empírica de Platão sobre Aristóteles. Galileu mostrou que a ciência matemática da natureza era possível, sem no entanto ter refutado as objecções aristotélicas à matematização da natureza. Aristóteles alegava contra Platão que as qualidades sensíveis e as essências não podem ser matematizadas. Galileu (e a sua física dos graves), Descartes (e a sua física dos choques) e Newton (e a sua física das forças) conseguiram matematizar a física à custa de rejeitar as propriedades qualitativas e de renunciar ao mundo da percepção sensível e da experiência comum, substituindo-o pelo mundo abstracto e incolor de Arquimedes. O movimento é o movimento dos corpos arquimedianos no espaço homogéneo e infinito da nova ciência: o único movimento que é governado pelos números, isto é, pelas leges et rationes numerorum. (Publicado aqui. FIM da série "Génese e Estrutura da Ciência Moderna".)

J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

As introduções de cada uma das secções estabelecem pontes com a física contemporânea! Estive para as eliminar, mas não o fiz porque penso que ajudam a compreender conceitos fundamentais. :)