domingo, 29 de junho de 2008

Fractura e Divagação Rilkeana

«E sou eu que tenho que dar a verdadeira explicação das Elegias? Elas ultrapassam-me infinitamente». (Rainer Maria Rilke)
«Os meus poemas têm o sentido que se lhes dê». (Paul Valéry)
«A obra literária faz apelo, de um modo essencial, à leitura». (Hans-Georg Gadamer)
O conceito predominante destas divagações nocturnas é fractura: a fractura originária, a "dor originária" (Rilke), que aqui "identifico" com o Vale do Rift: a fractura da crosta terrestre que deu origem ao homem, esse ser fracturante nascido de uma fractura da Terra, que o obrigou a pôr-se de pé e a caminhar em frente. Como escreveu Yves Coppens: «A "espuma da Terra" é que teria propiciado o "Homem neuronal" (Jean-Pierre Changeux), esse Homem que apareceu porque a Terra se fracturou, porque o clima secou».
O poema de Rilke que desencadeou estas divagações nocturnas diz:
"Oh como tudo está longe
e há tanto tempo passado.
Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar.
E uma, de entre todas as estrelas,
havia de existir ainda na verdade.
Creio bem que saberia
qual delas foi que durou
sozinha,
qual, como cidade branca,
está no extremo do raio nos céus..."
A Oitava Elegia de Duíno de Rainer Maria Rilke compara o modo de ser do homem que sai do ventre materno para viver de frente até à morte, e o modo de ser do animal que vive na eternidade, porque não saiu do seio. A Elegia termina com este verso: "Assim vivemos nós, sempre a despedir-nos" ("So leben wir und nehmen immer Abschied").
O nosso "destino" humano é estar em frente e sempre em frente. Somos seres conscientes e, por isso, ocorre a fractura entre sujeito e objecto. Esta fractura obriga-nos a estar sempre em frente do mundo, embora nascidos do ventre materno, e, não como sucede com os animais, no seio do mundo. Temos consciência de sermos mortais. A morte pertence-nos: a nossa própria morte. Estamos de tal modo familiarizados com esta atitude de estar em frente que tememos deixar estar em frente: tememos a nossa perda no seio do mundo. Como mortal, eu temo-a e muito, mas sou ser lançado em frente, sempre em frente, e erguido: observo o que me rodeia, com os olhos voltados para o futuro, ao mesmo tempo que algo atrás nos retém no passado, mas num passado despedido, constantemente despedido.
Heidegger não apreciava essa atitude humana de estar em frente: viu nela o espírito da ciência e da técnica, o domínio da natureza. Porém, a leitura de Heidegger é simplesmente uma leitura de Rilke. Talvez a leitura de Heidegger seja a mais adequada para dar sentido ao mundo dos povos selvagens, embora Rilke pareça não fazer uma distinção entre dois modos de ser humano. Como ser em risco, o homem não tem abrigo e, se o deseja ter, tem de o criar. Criar um abrigo, mesmo que passageiro, implica estar de frente e agir. O abrigo conquista-se nessa luta em que o homem se arrisca, consciente de poder perder a vida a qualquer momento. A consciência da nossa mortalidade é consciência do Tempo. O Tempo é o Grande Risco e, no "pedaço" que nos pertence, "nesta triste duração" (Rilke), estamos sempre a arriscar, arriscando a nossa própria vida. De certo modo, o Aberto de Rilke não significa somente poder viver a plenitude do presente, que é a plenitude da eternidade em que vive o animal. O Aberto menciona negativamente, no plano do homem, a "ausência" de "destino" ou, pelo menos, a impossibilidade de viver, num eterno presente, dentro do mundo e em fusão com o mundo. Uma vez saídos do ventre materno, tudo nos pode acontecer e estamos sempre em risco: a nossa acção e os seus efeitos escapam-nos ao controle. Devemos estar erguidos, de pé, com olhar circunspecto, vigilante e voltado para o futuro, porque a morte é sempre certa: somos seres "efémeros" (Rilke).
Se a dor é fenda, fractura, dilaceramento, então o homem é ser dorido/sofrido/fracturado: os homens são "os perdulários de dores" (Rilke). Esta é a nossa condição de mortais. Estar de frente é ser ao modo de ser da fractura originária e esta não é somente a fractura interior/exterior, sujeito/objecto, mas também a fractura que atravessa a nossa própria espessura interior. Corremos o risco de fractura total em diversas frentes. Somos seres fracturantes: a vida efémera é a luta em que o homem se arrisca sem garantia fundamental a não ser a da morte certa. O seio em que o animal vive mergulhado na "imediatez" do presente é vivido fugazmente pelos homens durante os momentos de paixão, mas estes momentos são milésimos de segundo numa vida consagrada à fractura e, portanto, em risco permanente e sempre condenada à morte.
Donde vem a Relação ao homem? O universo poético de Rilke começa a estremecer: a fissão é apenas uma modalidade de ser fracturado. Há outra modalidade de ser fracturado: a fusão, mas ambas se banham e se fundam na fractura originária, a que funda o humano mortal. Nessa fractura que somos, podemos tomar uma decisão/resolução: adiar constantemente a morte em atitude circunspectiva e ex(s)pectante ou antecipar a morte que nos acompanha: fugimos do "destino certo" ou ansiamos por ele, sabendo que a vida não tem sentido e que é absurda (Rilke). Nessa pequena mas dolorosa decisão/resolução reside toda a nossa liberdade. Somos seres que adiam a morte autêntica: aquela morte "heróica" (Rilke) que resulta da nossa própria decisão. Somos mortos adiados: "os infinitamente mortos" (Rilke). Por isso, como mortal, fora, completamente fora... de mim, eu estou. Afinal, sou um ser fracturante! O poema de Rilke diz:
"Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar."
O poema revela no seu último verso donde vem a Relação: "Gostava de rezar" "debaixo do céu imenso". Como os poetas são seres tão simples! Também Guerra Junqueiro o sabia. Anoitece a carne, amanhece o espírito! O espírito azul... E, com este anoitecer azul do espírito, despeço-me dos laços virtuais fracturantes. Visto-me de noite e noite profunda eu sou, o fundo da meia-noite onde o azul aparece na sua azulidade, aquela que anseia pelo ainda não-nascido. Aliás, abriga o não-nascido. Isso mesmo: a-briga o não-nascido. Nada está destinado ao ser fracturante, de resto o ser "solitário" (Rilke) que passa pela vida "em despedida sempre". Como diz o poeta:
"Sem sabermos o nosso lugar certo,
nós agimos em real relação.
As antenas sentem as antenas,
e a lonjura vazia aguentou".
Ou o poema de Georg Trakl:
«Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.
«Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.
«Somos os viandantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte,
À espera que venham cortá-las».
J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tal como fiz em "CyberCultura e Democracia Online", dedico este post aos cyberamigos nocturnos e diurnos. :)