sexta-feira, 20 de junho de 2008

Internet, Humanidade e Cidadania Mundial

«Que cada homem diga o que considera verdade, e deixe ao cuidado de Deus a verdade em si!» (Lessing)

A Internet «alenta a esperança de que, após muitas revoluções transformadoras, virá por fim a realizar-se o que a Natureza apresenta como propósito supremo: um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do género humano». (I. Kant)

O nosso planeta Terra é uma esfera, na superfície da qual permanecemos e nos movemos. Não temos outro lugar para ir e, por isso, enquanto seres mortais na/da Terra, estamos destinados a viver para sempre na vizinhança e na companhia dos outros. Em 1784, Kant observou que o nosso movimento em torno da superfície terrestre acabará por reduzir a distância que nos separa uns dos outros. Isto significa que a perfeita unificação da espécie humana por meio de uma cidadania comum é o destino que a Natureza nos reservou ao colocar-nos na superfície esférica do nosso planeta azul. A unidade da humanidade constitui o derradeiro horizonte da nossa história universal, um horizonte que devemos tentar alcançar plenamente e que, graças às novas tecnologias da comunicação, podemos realizar, levando em conta que a Natureza nos obriga a uma visão da hospitalidade.

Em tempos sombrios, como o tempo do Terceiro Reich ou mesmo o nosso tempo metabolicamente reduzido, a emigração interior é um fenómeno muito frequente, porque as pessoas, perante uma realidade intolerável e inumana, tendem a trocar o mundo e o seu espaço público por uma vida interior. Quando a emigração interior toma a forma radical de uma existência que ignora o mundo real em proveito de um mundo imaginário "como deveria ser" ou como "tinha sido" em tempos remotos perde necessariamente relevância política, isto é, autolimita-se em termos de capacidade de levar a cabo a tarefa política de transformar qualitativamente o mundo. As pessoas que fogem deste modo ao mundo em tempos sombrios tornam-se impotentes e incapazes de confrontar o poder estabelecido, fazendo-se "exiladas interiores". Deste modo, não se libertam do cativeiro do consumismo que reduz o mundo da vida a uma província da economia capitalista especulativa.

Porém, a emigração interior é potencialmente um fenómeno ambíguo: significa, por um lado, que as pessoas se comportam como se já não pertencessem a um país, onde se sentem como emigrantes ou estranhas, e, por outro lado, que essas pessoas, sem emigrar realmente, se refugiam num domínio interior, na invisibilidade do pensamento e do sentimento. Em qualquer um dos sentidos, a emigração interior constitui uma forma de exílio ou de existência à margem da ordem estabelecida, que, no caso em que ignora o mundo real, se converte numa
fuga ao mundo, portanto, em alheamento do mundo. Contudo, graças às novas tecnologias da comunicação, em especial à Internet, esta fuga ao mundo estabelecido pode deixar de ser privada e tornar-se pública: o mundo público dominante pode ser questionado e discutido neste novo mundo virtual, no qual germina possivelmente a verdadeira cidadania mundial num processo dinâmico, interactivo e participado de conversação constante e interminável. De certo modo, com a Internet emerge uma nova prática da filosofia: a Filosofia Mundial ou CyberFilosofia.

Esta reavaliação do fenómeno da emigração interior pode ser clarificada mediante a análise política da
blogosfera. Com efeito, a Internet, em especial a blogosfera, pode ser vista como a tecnologia que possibilita realizar plenamente a cidadania mundial exigida por Kant, dado ser potencialmente uma comunidade global, uma comunidade inclusiva, mas não exclusiva, que se ajusta à visão kantiana da perfeita unificação da humanidade. Com a Internet, e ao contrário do que sucede com os mass media tradicionais, torna-se possível tirar os actuais refugiados ou emigrantes interiores do vácuo sociopolítico a que foram relegados pelo poder estabelecido e pelo seu pensamento único, o economicismo. A Internet é, portanto, potencialmente uma tecnologia da libertação que convida todos os mortais a dialogar acerca do mundo que os oprime e os exclui. Com a criação de blogues, os emigrantes interiores transformam-se automaticamente em críticos do status quo e, num só e mesmo movimento, criam uma nova esfera pública liberta da tutela dos mass media tradicionais e dos poderes estabelecidos.

A magia desta nova tecnologia da comunicação electrónica consiste em dar visibilidade àquilo que era invisível, o pensamento independente, o "Selbstdenken" de Lessing, que, ao formar-se num diálogo contínuo com os outros acerca do mundo off-line, isto é, do espaço-entre os homens, tende a tornar-se um pensamento global sempre em marcha. E o que é ainda mais promissor é o facto da Internet possibilitar aproximar pessoas perdidas para o mundo, os animais metabolicamente reduzidos, e levá-las em conjunto e organizadas em "associações civis moralizadas" (comunidades virtuais do protesto político) a exorcizar e a lutar contra o alheamento do mundo imposto pela dinâmica irracional da economia capitalista desregulada. Como nova esfera pública virtual, a Internet pode contribuir para a formação de um pensamento colectivo que comprometa as pessoas em relação ao destino do mundo raptado, colonizado e refeudalizado pelos mass media e pelos poderes económicos estabelecidos.
A Internet, como vimos no post anterior, «alenta a esperança de que, após muitas revoluções transformadoras, virá por fim a realizar-se o que a Natureza apresenta como propósito supremo: um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do género humano» (I. Kant). Com base neste conceito kantiano, o objectivo deste novo desenvolvimento teórico é recuperar a noção grega de amizade e, tal como fez Lessing, fazer dela uma nova base política para a libertação, opondo-a à noção de fraternidade. Esta recuperação exige a ênfase que damos ao diálogo sobre o mundo e à humanidade da amizade, cujos membros activos estão envolvidos num constante diálogo virtual plural que visa, em última análise, eliminar o mundo inumano.
Trata-se, portanto, de uma proposta política que visa livrar-nos do metabolismo reduzido. Na sua ambiguidade essencial, a emigração interior que mais parece uma fuga ao mundo pode transformar num diálogo sobre o mundo: uma fuga para a frente fundada na hospitalidade e no pluralismo de opiniões, tendo como objectivo descobrir novas alternativas sociais.
A liberdade começa por ser liberdade de movimento e é esta liberdade que conduz à acção transformadora e humanizadora do mundo, na qual experimentamos verdadeiramente a liberdade no mundo. Se o estoicismo representa eventualmente uma fuga do mundo para o eu capaz de se sustentar a si próprio numa independência soberana em relação ao mundo exterior, Lessing abre-nos o mundo do pensamento independente. O Selbstdenken de Lessing que requer inteligência, profundidade e muita coragem não nasce do indivíduo e não é a manifestação do eu: o pensamento não é visto aqui como o diálogo platónico silencioso entre mim comigo próprio, mas como um diálogo antecipado com os outros. Este pensamento que espalha fermenta cognitionis pelo mundo virtual descobre no acto de pensar uma outra forma de se mover livremente no mundo e, em vez de pretender comunicar conclusões, procura incitar os outros ao pensamento independente, com o propósito de suscitar um debate entre cyberpensadores. Deste modo, no mundo virtual da Internet, pensamento e acção manifestam-se no movimento e, por isso, a liberdade é comum a ambos.
A comunidade virtual realiza assim a essência da amizade ("philia") dos gregos, que, segundo Aristóteles, consistia no diálogo: só o intercâmbio constante da conversação podia unir os cidadãos numa "polis". A Internet é precisamente uma longa conversação sobre o mundo e, nas redes mundiais da cidadania, revela-se a "philia", a cyberamizade que une os cidadãos do mundo que sonham um mesmo sonho: o sonho diurno de um mundo melhor.
Segundo Lessing, a essência da "poesia" é a acção, no decurso da qual se pode formar um grupo de fusão ou de militância política capaz de improvisar novas lutas contra a ordem estabelecida. Talvez a tarefa inicial dessas primeiras células seja começar por libertar os outros do seu self metabolicamente reduzido e reintroduzi-los no mundo comum, após se terem convertido e mudado de paradigmas. A concepção da emigração interior possibilita ver os emigrantes interiores ou os desencantados solitários como pessoas excluídas da sociedade metabolicamente reduzida ou, pelo menos, insatisfeitas com o mundo exterior: sentem-se estrangeiras na sua própria pátria. Ora, a Internet, em especial a blogosfera, pode aglutinar essa insatisfação em torno de uma conversação acerca do mundo. Nisso reside a potencialidade negativa da Internet: recusar o status quo e funcionar como palco virtual da cidadania mundial que exige a mudança social qualitativa.
A Internet é potencialmente uma tecnologia libertadora, porque foi criada como um meio para a liberdade, nos primeiros anos da sua existência global, pelos seus criadores/produtores, embora tenham surgido, após a sua comercialização, tecnologias de controlo ("cookies", "passwords" e processos de autenticação), tecnologias de vigilância e tecnologias de investigação, as quais usam encriptação, e com as quais lidamos constantemente. Porém, estas tecnologias de controle estão a ser contrariadas por novas tecnologias da liberdade que garantem a vitalidade do potencial negativo da Internet: o ciberespaço continua a ser uma ágora electrónica global onde a diversidade do descontentamento humano explode numa cacofonia de pronúncias, de idiomas e de estilos. Embora muitos utilizadores metabolicamente reduzidos e conformados com o seu miserável destino usem a Internet para fugir ao mundo ou mesmo para conquistar alguma visibilidade social efémera, sempre sujeita ao desligamento, a maioria dos seus utentes acaba por ser contactada e tocada pelas interpelações dos outros cibernautas, porque a rede é, na sua essência, um espaço social diferencial.
A "philia" como conversação que une os cidadãos da "polis", neste caso os cibernautas pertencentes a uma comunidade virtual, é o oposto da conversa íntima. Segundo Rousseau, a amizade era apenas um fenómeno da esfera da intimidade, em que os amigos abrem o coração uns aos outros, alheados do mundo e das suas exigências práticas. Ora, a Internet é conversação que, por muito impregnada que possa estar do prazer na presença do amigo, diz respeito ao mundo comum, que, se não for objecto constante do diálogo de seres humanos, se torna inumano. O mundo comum só é humano quando se torna objecto de diálogo. A conversação on-line ajuda a humanizar tudo aquilo que se passa no mundo e em nós próprios e, ao conversarmos sobre o mundo, aprendemos a ser humanos. Deste modo, a "cyberphilia" conduz à "philanthropia" que se manifesta na vontade de partilhar o mundo com os outros homens. A "cyberphilanthropia" opõe-se à misantropia dos homens metabolicamente reduzidos, nomeadamente dos membros das novas classes dirigentes, que, com o seu economicismo visto como uma fatalidade neoliberal, excluem os outros da partilha hospitaleira e alegre do mundo. Os misantropos metabolicamente reduzidos não encontram ninguém com quem desejem partilhar o mundo ou, o que é ainda pior, não consideram ninguém digno de gozar com eles o mundo, a natureza e o cosmos.
É evidente que esta concepção libertadora da Internet, em especial da blogosfera, é um projecto político de sedução on-line. Nem todos os utilizadores da Internet desejam ou são capazes de se libertar da condição metabolicamente reduzida: os utentes deambuladores, vagabundos, turistas e jogadores da Internet comportam-se como seres alienados em relação ao mundo. Os seus blogues são refúgios de um self perdido para o mundo e neles predomina algum tipo de conversa íntima, no decurso da qual revelam publicamente a sua intimidade e privacidade, numa atitude de completo alheamento do mundo e das suas exigências políticas. Estes bloguistas metabolicamente reduzidos esquecem que a nossa vida está cada vez mais ligada à Internet, porque já vivemos numa sociedade em rede, onde a economia, os negócios, as empresas, o trabalho, o lazer e a aprendizagem dependem cada vez mais desta nova tecnologia. A própria cultura começa a depender da Internet: a cyberfilosofia visa precisamente clarificar este novo fenómeno e combater as suas possíveis evasões ou alienações. A Internet traz uma mais-valia identitária (e não só) às nossas interacções face to face quotidianas.
Como vimos, Rousseau defendeu a concepção moderna de amizade como conversa íntima com os "amigos". Esta é uma prática frequente entre animais metabolicamente reduzidos, alheados do mundo comum, com a diferença de que agora se partilham mais facilmente infelicidades e desgraças em monólogos opostos uns aos outros, ditos em registo de gritaria, do que as alegrias. A falsa intimidade assim revelada está ligada à misantropia: o homem metabolicamente reduzido não partilha alegremente o mundo com os outros; fala de si mesmo como se fosse o centro de alguma coisa. Já não sabe conversar sobre o mundo: alheio ao mundo e à humanidade, o seu individualismo é falso, porque não há nele um self emancipado mas apenas um animal pegajosamente "devorador".
Quem diz que "o meu blog é a pura negação de quem já não espera nada do mundo e que já não tem força para condensá-la num grito", está, sem disso se aperceber, a dar um grito, até porque nas redes da cidadania estamos sempre a conversar uns com os outros. Quem não espera nada do mundo, refugia-se nalgum nicho ecológico da Internet e acaba por ser descoberto por outro fugitivo. Trava-se um diálogo entre fugitivos e esse diálogo exprime invariavelmente insatisfação com o mundo tal como o conhecemos: é protesto contra a ordem estabelecida e, acima de tudo, é sonhar acordado para a frente com um mundo melhor. A Internet favorece a política de oposição e, ao tomar consciência da sua negatividade, os Estados procuraram e continuam a procurar regulamentá-la.
O jornalismo manipulador e as notícias por ele produzidas são pura misantropia, porque fazem da infelicidade e do infortúnio dos outros o único tema de notícia. O mundo que criam é inumano e inóspito. Ora, aqui na blogosfera liberta, somos potencialmente criadores: não precisamos estar submetidos às práticas de agenda-setting dos mass media tradicionais; criamos a nossa própria agenda e conversamos sobre o mundo com os outros homens. Esta conversa humaniza o mundo e ajuda-nos a aprender a ser humanos. Com efeito, ao contrário dos mass media tradicionais, a Internet possibilita e galvaniza a "abertura aos outros", que é, como sabemos, a condição prévia da humanidade no sentido da "humanitas" romana, porque, no seu seio, qualquer indivíduo, independentemente da sua origem e da sua ascendência étnica, pode ser um cidadão respeitado, participar livremente no diálogo público e discutir com os outros o mundo e a vida. Na blogosfera, o diálogo afina-se pelo diapasão da alegria.
Lessing afirmou a pluralidade de opiniões em vez da busca compulsiva da Verdade que, tomada em si, deixa ao cuidado de Deus. A existência de um "anel verdadeiro" implicaria, como bem viu Lessing, o fim do diálogo, o fim da amizade e o fim da humanidade. Ora, a conversação que somos enquanto cibernautas e bloguistas não visa a Verdade e o discurso único e, por isso, evita utilizar a coerção lógica: mais importante do que a questão da verdade é humanizar o mundo através de um contínuo e incessante diálogo acerca dos seus assuntos e das coisas que o constituem. Enquanto "deuses limitados", navegando nas redes da cidadania mundial, estamos condenados a conversar livremente sobre o mundo. A crítica dirigida contra o sistema estabelecido consiste em tomar partido pelo ponto de vista do mundo, entendendo e julgando tudo em termos da necessidade de mudar qualitativamente o mundo capturado e colonizado pelo capitalismo neoliberal autodestrutivo. Os cyberamigos com os quais conversamos on-line são aqueles que conversam sobre o mundo e que evitam fazer meras revelações "psi". Aliás, um amigo é aquele com quem podemos partilhar as nossas alegrias e esperanças e não apenas as nossas desgraças e ambições pessoais, sabendo que ele não nos inveja.
Este blogue faz o seu primeiro aniversário no dia 27 de Junho, juntamente com o seu irmão gémeo "CyberCultura e Democracia Online
": Veja AQUI.)
J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este trabalho foi publicado numa versão mais completa, bem tantos outros posts deste blogue.