Robert Mapplethorpe adoeceu com Sida em 1986 e morreu em 1989: a brevidade da sua passagem pela vida confirma a figura romântica do artista que vive depressa e morre jovem. A sua demora na Terra coincide com a Idade de Ouro da comida rápida, do diálogo breve e superficial, do consumo de drogas excitantes, dos amigos efémeros e do sexo de urgência ou casual. A Idade de Ouro foi a idade da libertação das mulheres e das minorias eróticas e étnicas e da realização, mas foi também a Era da Negatividade e do Engano. Com o seu cinismo, Mapplethorpe conseguiu atravessar três décadas americanas de negatividade e de engano: a década dos filhos das flores e da contracultura nova-iorquina clandestina liderada por Andy Warhol (anos 60), a década da Mentira - as mentiras sobre a Guerra do Vietnam e Watergate (anos 70), durante a qual se tornou fotógrafo, e, finalmente, a década da desilusão (anos 80), com a Sida a devolver a homossexualidade ao ghetto e o colapso do comunismo a ser aproveitado para promover a globalização financeira e o neoliberalismo selvagem. Os anos 90 e esta primeira década do século XXI podem ser classificados como as décadas da Corrupção, que mergulharam o mundo na actual crise financeira e económica. As forças reaccionárias da direita conservadora, aliadas à Igreja Católica - Mapplethorpe era de formação católica! - e às seitas protestantes, tentam novamente impedir o reconhecimento legal dos direitos dos homossexuais, como se estivéssemos a entrar numa nova Idade Média. O imaginário fotográfico de Mapplethorpe inscreve-se e insiste na ambiguidade da condição humana. A sua fotografia é a captura do instante sugestivo em que algo se torna ambíguo e se transforma em outra coisa: as flores são órgãos sexuais, a sexualidade é teologia, o rosto é máscara, o espelho é janela, a vida é morte, a cruz é coroa e a luz é treva. Mapplethorpe é o fotógrafo da metáfora: aquilo que fotografava era sempre a sombra ambígua de outra coisa. Porém, esta transformação metafórica de uma coisa em outra coisa deve ser operada pelo olhar do espectador, porque é neste olhar que reside o poder configurador da imaginação e a ambiguidade: o olhar dirigido pela fantasia conhece a imagem da coisa no espelho da sua alma e esta actividade originária da imaginação mostra que a coisa fotografada pode ser transformada noutra coisa. A ambiguidade sugere que o observador que lê apenas a superfície das coisas não apreende a sua verdadeira essência: a transformação ou a sua possibilidade. Aqueles que censuraram as fotografias de Mapplethorpe reconduziram o tema da ambiguidade à sua ambiguidade sexual, sem no entanto referir a androginia na sua essência quase junguiana, como acto ritual - típico da cultura pop (Mick Jagger, David Bowie) - mediante o qual se declara que um indivíduo não é macho nem fêmea, mas carne, não é homem nem mulher, mas humano. Antes de serem machos ou fêmeas (sexo), homens ou mulheres (género), os indivíduos são carne humana, isto é, corpos mortais. Esta concepção da androginia demarca Mapplethorpe da cultura dominante gay, tanto a efeminada como a culturista, que tende a vê-lo como um travesti ou um transformista de espectáculo: Mapplethorpe condena a vaidade inútil dos culturistas gay e não suporta o peso da massa muscular que esmaga as suas personalidades, comparando-os a "pavões reais extraterrestres": as únicas excepções parecem ser Arnold Schwarzenegger que enche os seus músculos com personalidade e Lisa Lyon que sabe vender de modo provocante os estereótipos andróginos. Baudelaire reagiu energicamente contra a fotografia, não só porque esta punha em causa o emprego dos pintores-retratistas, mas sobretudo porque tinha uma aversão em relação à corrente realista e naturalista e à ideologia cientista em ascensão que impregnavam as produções fotográficas da sua época. Para Baudelaire, uma obra de arte não pode ser ao mesmo tempo artística e documental. A fotografia não é arte, porque o seu papel não é escapar ao real, mas sim conservar o vestígio do passado ou ajudar as ciências no seu esforço de apreensão aprofundada da realidade do mundo. Baudelaire denunciou as confusões entre fotografia e pintura, de modo a distinguir e a clarificar os seus respectivos domínios: a pintura é pura criação imaginária (arte), enquanto a fotografia é mero instrumento de uma memória documental do real (indústria). Embora fosse justificado pelo realismo predominante nas produções fotográficas do seu tempo, o temor de Baudelaire desvanece-se na fotografia artística contemporânea, em especial nas fotografias de Nadar, Stieglitz, Atget, Paul Strand, Edward Weston, August Sander, Walker Evans, Cartier-Bresson, Robert Frank, Richard Avedon, Diane Arbus e Robert Mapplethorpe, que expressam claramente uma revolta contra a realidade estabelecida, em prol de um outro princípio de realidade. Mapplethorpe abraçou intelectualmente a fotografia como arte no seu estado puro, isto é, como ars gratia artis: a fotografia como arte autónoma transcende a moralidade e a imoralidade, ao mesmo tempo que oferece às pessoas verdades subliminares sobre a condição humana que apontam para além das condições de vida e das experiências mutiladas que negam essas verdades originárias. A observação atenta das suas fotografias inquieta e choca os espectadores, porque os confronta com os seus medos, as suas crenças aceites como evidentes e as suas negações, em especial a negação da morte. A formação artística de metáforas não dá tréguas ao mundo das crenças oficiais: o confronto de duas percepções do mundo mina a confiança e a coerência do mundo de mentiras em que vivem os homens, e a transformação operada pelo olhar exige não só a mudança de percepções, como também a mudança de mundos. Mapplethorpe perseguiu o esteticismo puro: a sua arte e a sua vida foram praticamente a mesma coisa. Os retratos, os nus e os auto-retratos de Mapplethorpe (1996) estabelecem uma gramática estrutural das representações do corpo. O segredo das fotografias de Mapplethorpe não reside nas suas flores, nas suas figuras, nos seus rostos ou mesmo no fetichismo do couro, na escatologia sexual e no sexo-couro (S & M), embora estas últimas fotografias tenham um carácter cortante que intranquiliza o espectador, mas na transcendência do corpo mortal. O segredo de Mapplethorpe revela-se nas suas fotografias de sexo-couro, com as quais mostra uma combinação da beleza com o terror. Desta combinação resulta a revelação de alternativas humanas, o desnudamento das negações da existência humana e a exposição daquilo que os seres humanos são capazes de fazer quando se libertam das hipocrisias institucionalizadas e alcançam níveis intensos de misticismo e de divindade. Tal como um fotógrafo de incidências que procura captar o aspecto do rosto daqueles que são assassinados ou supliciados, Mapplethorpe soube capturar os momentos gráficos perfeitos em que a carne se transcende a si mesma nas ginásticas e nos rituais sexuais muitas vezes terríveis do sexo sadomasoquista, utilizando as excrescências corporais como meios para atingir um estado místico. Para Mapplethorpe, o corpo constitui a via privilegiada do êxtase físico, emocional, filosófico e teológico. Nos auto-retratos de Mapplethorpe, os modos de representação do corpo podem ser agrupados em quatro categorias: a erotização (1), os emblemas ou insígnias (2), o travestismo de disfarce (3) e as vanitas (vaidades) do corpo (4). Na erotização, o corpo é celebrado na sua integridade compacta, de modo a ser desejado, cobiçado, admirado, louvado, sedutor e triunfal: a totalidade do corpo é a imagem corporal do prazer e do "narcisismo" e a sua exaltação expressa a sexualidade. Nas insígnias corporais, o corpo é cortado aos bocadinhos, desfeito, desmembrado ou simplesmente exposto com minúcia, sendo percebido como um objecto de estudo, de escrutínio e de desejo. O corpo é fragmentado e separado em partes para que o desejo sexual possa determinar a atractividade de determinadas zonas corporais. No travestismo carnavalesco, o corpo é pintado, maquilhado, adornado e afectado, para que possa aspirar a ser identificado com um papel sexual ou social: o corpo disfarçado produz um efeito de dissimulação que, multiplicando os signos sexuais e as insígnias corporais, invalida os estereótipos sexuais normalizados pelo mundo das mentiras, ao mesmo tempo que denuncia a farsa da sua própria imagética sexual. A multiplicação das insígnias (ou atributos) de virilidade - em especial do tipo "leather" - produz uma invencível feminização do macho, enquanto a multiplicação das insígnias (ou atributos) femininas produz a impressão de uma "drag queen", tanto nos homens como nas mulheres. Finalmente, na vanidade corporal, o corpo enfraquece à beira da sepultura, anula-se a si próprio, desvanece-se, dissipa-se e desaparece na desintegração da imagem, a qual expressa dramaticamente a confusão, a turbulência e a precariedade que sustêm a existência humana. Na estética, as vanitas (vaidades) são as formas ou expressões artísticas que traduzem a relação conflituosa dos humanos com a morte e a angústia que resulta da consciência aguda da mortalidade. Os últimos auto-retratos de Mapplethorpe (1988) exprimem a vanidade do corpo e a Via Dolorosa da condição humana. No "Self-Portrait, 1975" (a segunda fotografia), o jovem Mapplethorpe estende o braço cruzando todo o campo da fotografia, como se o oferecesse à crucificação (crucifixão), cujo ícone atravessa toda a sua obra fotográfica, encontrando a sua apoteose mais religiosa e mística nas fotografias de couros. Mapplethorpe resgatou diversos tabus da clandestinidade, o último dos quais foi o do sexo-couro. A cultura gay dominante, representada pelos homossexuais efeminados de Advocate, não tinha estima pelos fetichistas do couro e do sexo sadomasoquista, glorificados por "Drummer" - a revista internacional do couro S & M com sede em San Francisco, porque confundia os chicotes, os açoites, as correntes e as cordas do psicodrama ritual com a violência real. Mapplethorpe luta corajosamente contra a cultura dominante, tanto a heterossexual como a gay: a percepção de perigosidade - atribuída pela cultura dominante ao sadomasoquismo - ajuda-o a conferir prestígio aos fetichismos do couro. A sua obra fotográfica sensibilizou e sexualizou a afeição masculina pelas coisas masculinas. Graças à sua visão do universo masculino, os homens heterossexuais aprenderam a olhar de outra maneira para os homens, e os homens homossexuais aprenderam a estimar e a evidenciar mais a sua própria masculinidade. As fotografias de Mapplethorpe foram severamente censuradas, inclusivamente pela confraria gay efeminada, mas todas estas criaturas viscosas deviam ajoelhar-se e dar graças aos homossexuais e às lésbicas por não procriarem, por terem inventado uma sexualidade recreativa e por embelezarem o mundo com todas as coisas poéticas pelas quais "nos diferenciamos dos animais" (Tennessee Williams). Os homossexuais sempre foram os proscritos da sociedade heterosexista e, ao mesmo tempo, a vanguarda artística e intelectual do mundo. Mapplethorpe morto produziu uma sensação mais mediática e universal do que Mapplethorpe vivo: a pessoa que foi converteu-se em símbolo da libertação e do combate contra a homofobia e a heterofobia. Os heterosexistas homofóbicos acabaram por render-se à grandeza da sua obra, alegando que, se tivesse vivido mais tempo, Mapplethorpe teria abandonado esse "equívoco" que foi a sua homossexualidade e casado com Patti Smith, aliás o seu alterego. No túmulo, Mapplethorpe estremece de horror e recita estes versos de um heterónimo de Fernando Pessoa: «Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
«Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!» (Álvaro de Campos) J Francisco Saraiva de Sousa
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
«Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!» (Álvaro de Campos) J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
Boas férias para os leitores deste blogue. :)
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