sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Mestre Eckhart: Política e Ateísmo Místico

«A alma conhece todas as outras coisas, só não conhece a si mesma». (Mestre Eckhart)

Mestre Eckhart (1260-1327) é o mestre da mística alemã, a quem se deve não só a origem da língua filosófica como também a origem da especulação filosófica alemãs.

A sua doutrina mística, sobretudo as 120 proposições elencadas pelo arcebispo franciscano de Colónia, Henrique II de Virneburg, posteriormente reduzidas a 28 proposições retiradas do seu livro Da Divina Consolação, foi considerada herética pela Igreja e, por isso, Mestre Eckhart foi condenado pelo Papa João XXII, embora tenha morrido antes da publicação da bula papal de excomunhão (27 de Março de 1329). A Igreja tinha as "suas razões" para desconfiar deste "dominicano" que pregava ao povo, em língua alemã, para transmitir e divulgar a sua «mensagem».

Mestre Eckhart era dominicano e, por isso, o tomismo aparece como pano de fundo dos seus escritos em latim. Por isso, ao contrário de São Boaventura (um místico franciscano), não reconheceu a primazia da vontade, isto é, da vida em relação ao “pensamento”. Em vez disso, Erckhart defende a primazia do entendimento (intelecto) e, portanto, aposta na razão, embora numa razão intuitiva. Mestre Eckhart é peremptório a este respeito:

«Nada faz mais verdadeiro o homem do que a renúncia de sua própria vontade. Verdadeiramente, sem a renúncia da própria vontade em todas as coisas, não conseguiremos nada diante de Deus. Mais ainda se conseguirmos realmente renunciar à própria vontade e se ousarmos despojar-nos interior e exteriormente de todas as coisas, então sim fizemos tudo, antes disto não fizemos nada. (…) (Só depois é que) deves entregar-te totalmente a Deus em todas as coisas e então não te preocupes com o que Ele fará por Ele mesmo. (…) Andar totalmente à luz da vontade de Deus, sem vontade própria, somente isso seria a perfeita e verdadeira vontade».

Toda a mística cristã deriva, em última análise, de Plotino e a de Mestre Eckhart não foge à regra: «(…) Deus é, em sentido próprio, um só, e Ele é intelecto ou pensar, e é só e simplesmente pensar, sem acréscimo de outro ser. Por isso, só Deus, pelo intelecto, produz as coisas no ser, porque só nele o ser e o pensar são idênticos». E mais adiante acrescenta: «“aquele que se une a Deus constitui, com Ele, um só espírito” (1 Cor 6, 17). Pois o intelecto é, propriamente, de Deus; Deus, porém, é um. Logo, o quanto cada qual tem de intelecto ou de capacidade intelectual, tanto tem de Deus, tanto do um e tanto do ser-um com Deus. Pois o Deus uno é intelecto, e o intelecto é o Deus uno. Por isso, Deus nunca e nenhures é Deus, salvo no intelecto».

Cada criatura carrega dentro de si a Ideia de Deus, a que Mestre Eckhart chama “centelha”. Esta chama, este fogo interior, não se perde nem pode ser completamente destruída. Com diz Mestre Eckhart: «A chamazinha é tão aparentada com Deus que se constitui um Uno só, sem distinção». Isto significa que «entre homem e Deus não existe só nenhuma diferença, como também nenhuma pluralidade, não existe senão a unidade». Desta concepção deriva o famoso tema da «geração de Deus na alma».

A compreensão deste conceito é fundamental para a leitura que fazemos do pensamento de Mestre Eckhart. A sua tese, segundo a qual «a razão é a cabeça da alma», embora possa soar a tomismo ou mesmo a aristotelismo, significa simplesmente que a razão se concentra na suprema interioridade, como uma força que já não está junto das outras forças, mas que constitui a cabeça de toda a “tonalidade afectiva”, incluindo a vontade, o instinto, o movimento, o entusiasmo, a desgraça e a felicidade. Toda a “afectividade” está resumida na razão e é carregada pela razão. Não se trata evidentemente de uma razão abstracta, mas da cabeça da alma, ou melhor, da totalidade da alma. Eckhart dá muitos nomes a esta totalidade: scintilla (centelha), “pequeno castelo dentro da alma”, enfim synteresis da plena disponibilidade e do total desprendimento, portanto, da perfeita liberdade.

A palavra “synteresis” significa consciência, não consciência moral, tal como a conhecemos, mas sim consciência mística. Desprender-se ou despojar-se é o ponto de acreditação do homem com Deus que «habita» dentro de si, com o espírito da humanidade liberta e voltada sobre si mesma, enfim com o espírito da essencialidade humana.

Este conceito está intimamente ligado com a “pobreza na alma” enquanto despojada de tudo aquilo que não é necessário para a essencialidade, nem para chegar a ser essencial. Thomas Münzer chama “desprovimento” ou “desprendimento” a este desprender-se do supérfluo, da intranquilidade vã, do ruído das preocupações e dos prazeres inessenciais. Tudo aquilo que dissipa ou que distrai, o múltiplo, inclusivamente toda a falsa riqueza proveniente da falta de rectidão, tem de desaparecer, caso o homem procure alcançar uma grande pureza. Mestre Eckhart diz:

O verdadeiro desprendimento ou a completa disponibilidade nada mais é senão «que o espírito permaneça tão insensível em face de todas as vicissitudes da alegria e da dor, das honrarias, dos ultrajes e dos insultos, como uma montanha de chumbo é insensível a um sopro de vento. Tal desprendimento inabalável conduz o homem à máxima semelhança com Deus. Pois o ser Deus, Deus o deve ao seu desprendimento imutável; e do desprendimento Lhe vem a pureza e a simplicidade e a imutabilidade. Assim sendo, se o homem deve assemelhar-se a Deus, isso se fará pelo desprendimento. Pois este conduz o homem à pureza, e da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Donde resulta uma semelhança entre Deus e o homem, mas tal semelhança deve nascer da graça, pois é a graça que desprende o homem de todas as coisas temporais e o purifica de todas as coisas passageiras. E sabe que estar vazio de toda a criatura é estar cheio de Deus, e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus».

Deus comunica connosco no castelo, na centelha, na sua própria pureza como pureza da nossa essência alcançada e realizada nessa união. Ora, esta comunicação directa de Deus com o homem adquire claramente uma significação política: Deus comunica-se sem vinculações mediadas pela Igreja, sem sacramentos. O Igreja, os sacramentos, os senhores, tudo isso é desnecessário, porque há um caminho directo para o Altíssimo, acessível a todos os cristãos. A missão da Igreja como mediadora dos sacramentos e da administração dos mistérios torna-se, de certo modo, ilegítima, até porque se converte numa barreira que impede a divinização dos homens. Todos estes mistérios podem ser penetrados e perscrutados pela razão, não pela razão comum, mas pela razão do homem que volta a si mesmo, do homem que habita na centelha (o “homem interior” por oposição ao “homem exterior”), porque esta razão é a mesma que é designada nos mistérios. Os homens foram feitos à imagem de Deus e, desde que se desprendam e se despojam de tudo, com a ajuda da graça divina, podem não somente compreendê-la em si mesmos, mas também realizá-la em si mesmos.

Uma das teses defendidas por Mestre Eckhart condenada pela bula papal diz precisamente isso: «Há algo na alma que é incriado e incriável; se toda a alma fosse assim, seria incriada e incriável; e isto é o entendimento».

No seu sermão “O Silêncio da Criação”, Mestre Eckhart comenta esta tese: «A este respeito, um mestre pagão disse uma bela palavra para outro mestre: “Percebo em mim uma coisa que brilha na minha razão; sinto que é algo mas não posso compreender o que seja; só me parece que, se conseguisse apreendê-lo, conheceria toda a verdade”. Respondeu o outro mestre: “Então procura. Pois, se puderes apreendê-lo, terás o conjunto de toda a bondade e a vida eterna”».

Isto significa que a divindade deve desprender-se e rebaixar-se, isto é, "descer ao mundo", purificando-se de tudo o que os senhores e os ideólogos da dominação fizeram em seu nome, e, ao sair de si mesmo, o divino converte-se em nada. Ora, deparamo-nos aqui com a teologia negativa, com interessantes contactos com o ateísmo, mas com um ateísmo místico. Deus converte-se em luz, que habita nas trevas. Deus converte-se em deserto puro, o pleno vazio, o despojado de tudo o que é instituição existente, que, para ser compreendido na sua pureza, precisa do homem tornado puro, pobre, para lhe dar ou restituir a plenitude, sem saciedade, mentira ou alienação.

Irrompe-se nesse instante um abismo vazio, no qual o homem despojado e Deus despojado se encontram. A afirmação herética é a de que Deus deve ser verdadeira vida para o homem e não ao contrário, como defende a ortodoxia cristã. Com esta afirmação, o acto da criação é invertido: não é Deus que fez o homem à sua imagem, mas o homem é que cria incessantemente Deus à sua imagem, não só a falsa representação de Deus, o Deus da Igreja que não é verdadeiramente Deus, mas o conteúdo válido da fé das próprias representações puras. Como disse Ernst Bloch, «Deus nasce como homem na synteresis». Ou como diz Mestre Eckhart: «Por isso, peço a Deus que me torne livre de Deus. (…) Neste impulso recebo tamanha riqueza, que Deus com tudo aquilo que é como “Deus” e com toda a sua obra divina, não me pode ser suficiente; pois me é dado nesse irromper, que eu e Deus sejamos Uno. Aí eu sou o que era. E aí nem acrescento nem diminuo. Pois sou aí uma causa imóvel, que move todas as coisas».

Gottfried Keller observou correctamente o parentesco entre a mística e o ateísmo, porque a mística reclama como riqueza humana a riqueza divina e como riqueza divina a riqueza humana. Assim, L. Feuerbach e Angelus Silesius estão próximos, até porque o primeiro compreendeu que o Cur Deus homo, porque Deus se fez homem, a encarnação de Deus, está intimamente ligada à sua crítica antropológica da religião. Deus na sua pureza e o homem na sua pureza trocam os seus rostos (faces) e tornam-se indistinguíveis. Este encontro tem lugar na synteresis e, em concreto, no instante.

O instante significa “agora”, aliás um agora muito breve, instantâneo, milésimos de segundo. Este nunc stans é, como já sabia Santo Agostinho, o momento que preenche tudo, o momento em que tudo se realiza e, ao mesmo tempo, que traz no seu bojo a realização, o cumprimento. Este momento converte-se em instante místico, em que sucede o grande encontro. No instante está contida toda a eternidade, de modo que o instante é o abismo em que o próprio Deus da graça deve desaparecer como ilusão e em que se produz a divinização do homem. Isto sucede na vivência da unio mystica, da fusão do homem com Deus, que abarca tudo e que tem uma duração sem limites, na qual se esfumam todas as categorias temporais.

Ora, Mestre Eckhart une a ideia de "agora" como ponto central do mundo, que está em todas as partes, com uma concepção cosmológica da geometria medieval. Muito antes de Copérnico ou de Giordano Bruno, Alanus ab Insulis ou Alain de Lille, descreveu o universo como uma esfera infinita. Se o cosmos é infinito, então o centro, como num círculo infinito, reside em todas as partes, não está "aqui" ou "ali", mas em qualquer ponto do ser. Esta concepção desloca o homem e o seu mundo para fora do centro, ao mesmo tempo que lhes concede a centralidade, porque qualquer lugar pode agora ser o centro do mundo e não somente Deus que habita para além do mundo finito. A concepção de omnia ubique de Nicolau de Cusa está aqui antecipada: tudo está concentrado em todas as partes, em cada ponto do cosmos. Na mística de Mestre Eckhart, esta ideia ajuda a reforçar o valor infinito da alma humana, porque implica uma transformação da sublimidade: o sublime já não é sublime ou misterioso porque esteja longe, mas porque está muito próximo deste pequeno homem, o microcosmos.

Este instante pontual, visto como centro espacial do mundo, é alcançado e conquistado de modo mais visível e despojado do supérfluo precisamente na synteresis, na chama, na centelha, no castelo, no ponto profundo do espírito, onde habita Deus como o mais íntimo, o mais próximo, o mais cosmicamente central do homem e do mundo. Aqui reside provavelmente a "maior heresia" da mística de Mestre Eckhart: o homem é a verdade de Deus, tema posteriormente pensado de modo radical por L. Feuerbach. Esta proposição deve ser lida como um retorno do mundo a Deus e, ao mesmo tempo, como um retorno de Deus ao mundo e, sobretudo, ao homem. Isto significa que Deus pensado como transcendente ou mesmo como existente se dissolve no instante místico que brilha no homem. Contudo, Deus não brilha no homem existente, mas sim num homem oculto. Ao antigo conceito místico do Deus absconditus corresponde aqui o contraconceito de um homo absconditus, de um homem oculto, para o qual se deseja avançar e que se comporta negativamente em relação a tudo aquilo que foi e tem sido. Deste modo, o homem converte-se em objecto do mais elevado respeito e da mais elevada dignidade. A mística de Mestre Eckhart retoma novamente aqui a teologia negativa e afirma que o homem é Deus e Deus é homem no ponto mais profundo da centelha.

De facto, Mestre Eckhart defende a primazia do conhecimento, isto é, da vita contemplativa sobre a vida activa, a qual está plasmada na representação do mundo. Para Mestre Eckhart, o mundo total despojado daquilo que não é essencial é um processo de conhecimento, no qual o Deus implícito, imanente, se conhece a si mesmo no mundo. Essência e conhecimento são uma só e mesma coisa. Como disse Ernst Bloch: «Em Eckhart a essência do mundo, Deus, abre os seus olhos numa Ilíada do devir e numa Odisseia do des-vir, ou do retorno ao seu centro». Ou como diz Mestre Eckhart: «Todo o grão refere-se ao trigo, todo o metal refere-se ao ouro, todo o nascimento refere-se ao homem». Entenda-se: não ao homem como algo já existente, mas ao homem como um possível megantropo. (Este post compreende dois textos, Mestre Eckhart: Mística e Política e Mestre Eckhart: Cur Deus Homo e Ateísmo Místico, publicados no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online".)

J Francisco Saraiva de Sousa

9 comentários:

Renato Martins disse...

ola francisco!

fizeste bem em falar em Plotino: ele tambem reflecte sobre a interioridade de Deus em nós. Mestre Eckhart é de certa forma fundador de uma mistica que podiamos chamar de norte-europeia, que é mais ontológica e inclui a razão nas suas "doutrinas".

tambem é interessante reflectir sobre o oposto que é o misticismo sul-europeu - santa teresa de avila, sao joao da cruz e mesmo santo antonio de lisboa, onde a razão encontra pouco espaço.

penso que aqui veriamos ja ecos, nesta epoca da diferença entre estas duas europas: uma racional, e outra emotiva.

abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Uma racional e outra emotiva: excelente caracterização! Por isso, devemos rumar na direcção norte! :))

Renato Martins disse...

Caro Francisco:

Deixas uma questão da qual nunca sairíamos: emoção ou razão?

Não quero entrar muito em detalhes (pois quero sair daqui:-)), mas qual o papel das emoções se se exige uma racionalização excessiva do mundo?

Os extases misticos de Joao da Cruz continham a contemplação da natureza e a exigencia de um espaço parado e sem pensamento - francamente é uma ideia por vezes apetecivel.

Um prof (Croce Rivera) uma vez perguntava num teste: «É a lógica "a-mística"?» e isto deixa muito que pensar. Será a racionalidade uma forma de ceifar um misticismo/uma emotividade? - Cada vez mais a emoção se torna a palavra de ordem do dia, teremos medo das emoções por não as compreendermos e escondemos tudo num veu racionalista?

abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Caro Renato

O discurso actual das emoções tem a ver também com a sociedade de risco em que vivemos. As comunidades emocionais (Weber) não são boas a tomar decisões. Mas a razão não está contra a emoção: exige apenas o autodomínio. E é aqui que se revela um eu forte e autodeterminado. Lógica e mística? Interessante! :)

Valter Boita disse...

Bom texto! Parabéns

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado, Zenão! :)

Renato Martins disse...

Como vês os nossos profs apresentavam temas pertinentes!! :-))) (estou a pensar na discussao do cafe).

abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Renato

Espero que continuem juntos aí no Café! Não duvido da competência de vários professores! Ainda bem que existem para salvar o sistema! :)))

Anónimo disse...

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