quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Antropologia e Psicanálise

Géza Róheim (1891-1953) foi efectivamente o primeiro antropólogo psicanalista e estou a lembrá-lo para condenar novamente o marasmo intelectual português, que, como sempre, deixa a cultura passar-lhe ao lado, sem reconhecer a sua mediocridade falaciosa e a sua incapacidade cognitiva congénita. Até mesmo os mestres da Escola de Frankfurt, com excepção de Herbert Marcuse, ignoraram a sua obra extensa e profunda.
Marcuse cita uma das suas obras, «The Origin and Function of Culture» (1945), onde Róheim, influenciado pelas ideias de Melanie Klein e divergindo claramente de Freud, atribui uma importância fundamental, traumatizante, à separação da criança da mãe, mais do que à fantasia do assassínio do pai, desenvolvendo o seu conceito de sublimação e destacando a importância das fantasias arcaicas referentes ao corpo materno no desenvolvimento da agricultura ou do comércio.
Contudo, é na sua obra «Psychoanalysis and Anthropology» (1953) que Róheim desenvolve a sua noção de cultura, trabalhada na sua diferença quer contra a noção filogenética de cultura proposta por Freud em «Totem e Tabu», quer contra a noção de cultura proposta pela antropologia culturalista. Em termos simples, podemos dizer que, para Róheim, a cultura humana é a consequência da infância prolongada da espécie humana, e que as áreas culturais decorrem da situação infantil típica que reina em cada uma das culturas humanas.
Róheim afirma constantemente a unidade do género humano ou, como prefere dizer, «a unidade fundamental da humanidade», a qual só pode ser clarificada à luz deste enunciado simples que transcende as teses defendidas escola culturalista e as hipóteses biológicas da hereditariedade dos caracteres adquiridos (indefensável à luz dos actuais conhecimentos da genética) e a lei da recapitulação de Haeckel (não válida para o género humano) propostas por Freud para explicar essa unidade humana: Para Róheim, o traço indiscutivelmente comum da humanidade «é a sua infância prolongada e o carácter globalmente juvenil do Homo sapiens em relação às outras espécies animais». Eis o «resumo do resumo» apresentado pelo próprio Róheim:
1. A evolução está baseada sobre uma combinação de factores autogéneos e ectogéneos.
2. Os factores autogéneos são principalmente a fetalização e o conflito endopsíquico (super-eu e ideal do eu).
3. Em relação ao prolongamento da nossa duração de vida, e particularmente da nossa infância, nós conservámos a taxa de crescimento fetal do nosso cérebro. O cérebro continua a desenvolver-se na situação mãe-infante protegida, isto é, libidinal.
4. Por outro lado, em relação ao ritmo de crescimento do nosso corpo, a nossa sexualidade é relativamente precoce. Associando este facto ao crescimento fetal do nosso cérebro, obtemos a explicação da natureza libidinal do fantasma.
5. Os mecanismos de defesa desenvolvem-se para proteger o eu contra a libido prematura.
6. Os seres humanos são permanentemente juvenis, pelo menos em parte. A fragilidade da nossa infância relativamente prolongada é compensada pela identificação da criança com o adulto, isto é, pelo condicionamento ou pela educação.
7. A existência do simbolismo e de certos traços humanos universais é devida a esta neotenia universal do género humano: eles são endógenos e não são condicionados pela cultura. Para Róheim, a interpretação psicanalítica não releva, portanto, da cultura: os seus métodos têm uma validade universal. Podem existir diversos tipos de personalidade, mas existe somente um inconsciente. Daí que Róheim tenha afirmado contra as teses de B. Malinowsky a existência de uma estrutura edipiana universal.
8. O conceito de personalidade de base, isto é, de uma personalidade fundada sobre uma situação infantil comum, é válido apenas quando aplicado a pequenos grupos, mas a sua validade é duvidosa quando aplicado às nações modernas, como fez Ruth Benedict. Daí que a antropologia cultural moderna só tome em consideração as nações, negando tacitamente a unidade fundamental do género humano e o carácter único do indivíduo.
Estas breves observações são suficientes para mostrar a actualidade de uma obra ignorada pelos luso-intelectuais, talvez por má-fé ou, como penso, pela sua imbecilidade congénita e muito invejosa, pouco dada ao exercício do pensamento conceptual e ao esforço intelectual.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

Paulo Pedro disse...

Fiz uma citação de seu artigo no verbete Antropologia e Psicanálise que criei na Wikipedia

[http://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_e_psican%C3%A1lise]

se quiser modificar ou acrescentar algo, é bem vindo

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Paulo Pedro

Este post foi publicado inicialmente aqui:

http://cyberdemocracia.blogspot.com/2007/12/gza-rheim-antropologia-psicanaltica.html

Estive a reler e acho que vou dedicar algum tempo a Géza Róheim, com o título "Géza Róheim revisitado", tal como já fiz com outras autores da antropologia.

Logo que tenha esse post, comunico.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Apreciei o seu texto: a obra de Róheim é extensa e de facto merece mais atenção por parte dos portugueses. Um aspecto que aprecio em Róheim é o facto dele ter mostrado que a natureza humana tem uma base biológica: o tal prolongamento da infância devido a um parto prematuro, uma versão da teoria de Bolk. Porém, Róheim é um pouco redutor, na medida em que explica a cultura em termos meramente psicológicos: a relação mãe-criança. E não é só a cultura: é também a história, como se verifica nos seus estudos empíricos sobre sociedades arcaicas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"Géza Róheim Revisitado" - a actualização deste post pode ser lido aqui:

http://cyberdemocracia.blogspot.com/2009/10/geza-roheim-revisitado.html