sábado, 8 de setembro de 2007

NeuroFilosofia: Uma Abordagem Histórica

A REVELAÇÃO NEUROBIOLÓGICA


Charles Lumsden & Edward Wilson (1987) afirmam que a filosofia consiste maioritariamente em teorias falhadas sobre o cérebro. Embora aceite, com algumas reservas, esta definição de filosofia, duvido, no entanto, que as teorias filosóficas sobre o cérebro, em particular a filosofia de Marx mencionada pelos autores, sejam quase todas teorias falhadas. Embora determinadas teses filosóficas defendidas por Marx, em particular o papel determinante desempenhado pelas estruturas social, económica, política e ideológica na sobredeterminação da «personalidade» e do carácter social, possam ser confirmadas pelas neurociências, nomeadamente pela teoria epigenética da estabilização selectiva das sinapses, prefiro analisar o modelo cerebral proposto por Descartes, uma vez que ele marca de forma decisiva a história da filosofia e das neurociências. Resulta daqui que a história das neurociências é inseparável da história da filosofia, talvez pelo facto da filosofia ser, em última análise, uma teoria do sistema nervoso, isto é, a neurociência por excelência. Mas há uma outra razão para destacar Descartes: o seu conceito «pragmático» de Filosofia. Algumas noções gerais sobre física, às quais podemos acrescentar as noções sobre medicina, fisiologia, biologia, embriologia e «neurobiologia», como escreve Descartes (1981), «mostraram-me que é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida e que em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas se pode encontrar uma outra prática (da filosofia) que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artífices, os poderíamos utilizar de igual modo em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que senhores e possuidores da natureza» (p.49).
Dois problemas tradicionais para as investigações experimentais e teóricas no domínio do cérebro dominam a história conjunta da filosofia e das neurociências: a hipótese do cérebro, a ideia de que o cérebro é a fonte do comportamento, e a hipótese do neurónio, a ideia de que a unidade da estrutura e da função do cérebro é o neurónio. Cada uma destas hipóteses comporta grosso modo uma hipótese contrária: tese cefalocentrista versus tese cardiocentrista, e tese neuronista versus tese reticulista.

HIPÓTESE DO CÉREBRO. O termo cérebro aparece individualizado, pela primeira vez, num papiro egípcio que data do século XVII antes da nossa era, mas trata-se provavelmente da cópia de um texto anterior, do Antigo Império, escrito por volta dos anos 3000. Desde os primeiros tempos o homem acreditou que o seu comportamento era controlado por uma alma, um espírito ou um sistema racional (Breasted, 1930; Elsberg, 1945). A filosofia pré-socrática não é unânime quanto ao problema das relações entre o cérebro e o comportamento: Alcméon de Crotona e Demócrito de Abdera localizam os processos mentais no cérebro, enquanto Empédocles de Agrigento localiza-os no coração. Surgiram assim duas teses, a cefalocentrista e a cardiocentrista, que serão defendidas, em novas bases, pelos precursores de Sócrates. Platão desenvolve o conceito de alma tripartida e situa a sua parte racional no cérebro porque esta era a parte do corpo mais próxima dos céus. Mas Aristóteles, embora tenha um bom conhecimento da estrutura do cérebro, observando mesmo que de todos os animais o homem é aquele que tem o cérebro maior em função ao seu tamanho corporal, retoma a hipótese cardíaca e situa os processos mentais no coração, o que ir baralhar os espíritos durante séculos até ao século XVIII. Hipócrates e Galeno adoptam a hipótese do cérebro, o primeiro a partir da observação clínica e o segundo, que não se contenta com a descrição anatómica dos órgãos nervosos realizada por Herófilo e Erasístrato, a partir da fisiologia cerebral. Nemésio e Santo Agostinho localizam as três funções da alma racional, a imaginação, a razão e a memória, respectivamente nos ventrículos anterior, médio e posterior. Deste modo, os Padres da Igreja primitiva assinalavam em regiões delimitadas do cérebro funções especializadas e «propunham» o primeiro modelo de localização cerebral. A Renascença retoma a dissecação de animais e principalmente de cadáveres: Leonardo da Vinci, Vesalius, Varólio e Fresnel elaboram descrições cada vez mais desenvolvidas da morfologia cerebral, cuja complexidade se reconhece. O esquema simplista de Nemésio é substituído por quadros anatómicos. Resulta daí que progressivamente os ventrículos, demasiado simples, são abandonados como sede das funções psíquicas em favor das partes sólidas, da própria substância do cérebro.
Mas o conhecimento de que o cérebro controla o comportamento não é suficiente, uma vez que a formulação de uma hipótese completa e sistemática requer o conhecimento de como ele controla o comportamento. Os modelos da localização da função dirigem-se nesse sentido. O conceito de localização da função expressa que determinados comportamentos são controlados por determinadas áreas do cérebro. Actualmente, o conceito foi alargado e é utilizado geralmente para dar a entender que as funções estão distribuídas entre distintos segmentos do neocórtex. O desenvolvimento desta ideia dependia da resolução de dois outros problemas: saber se os processos mentais eram o produto do cérebro ou da mente, e localizar o controlo dos distintos aspectos do comportamento no interior do cérebro. Ora, um dos primeiros filósofos a procurar solucionar estes dois problemas foi René Descartes. O conceito platónico da alma tripartida foi substituído por o de uma mente unitária que é raciocínio ou alma racional. A mente não é um ser material nem sequer possui grandeza espacial. Por conseguinte, ela é fundamentalmente distinta do corpo. Este é uma máquina material que possui grandeza espacial: ele responde reflexivamente a mudanças sensoriais mediante a acção do cérebro. Os animais são distintos do homem, uma vez que só possuem corpos e mentes não racionais. Daí que o seu comportamento possa ser explicado como uma acção puramente mecânica. Mas o homem é muito mais «complexo» do que o animal: tem corpo e alma racional. O seu comportamento exige uma explicação mais «complexa», uma vez que requer que se considerem conjuntamente as funções da mente e do corpo. A mente e o corpo estão separados, mas podem interactuar entre si. Descartes coloca assim, pela primeira vez, o problema da mente e do corpo, a saber: Qual é a relação entre a mente e o corpo?, ou, mais simplesmente, como interactuam? Este problema recebeu soluções diferentes: as mais conhecidas opõem os dualistas aos monistas. Embora defendam que a mente e o corpo estão separados, os dualistas dividem-se quanto à solução a dar ao problema: uns afirmam que os dois interactuam de modo causal, mas, como não conseguiram de forma convincente explicar como interactuam, apareceram outros dualistas que evitaram a dificuldade ao mostrar que os dois «elementos» funcionam em paralelo sem interactuar ou que o corpo pode afectar a mente mas esta não pode afectar o corpo. Mas ambas as tendências permitem teorizar acerca do comportamento sem levar em conta a mente. Os monistas afirmam que a mente e o corpo são a mesma coisa, sendo ambos simultaneamente materiais e imateriais. Deste modo, evitam o problema da mente e do corpo, mas a sua posição é desconcertante para um neurocientista. Contra os monistas, Descartes estabelece a indivisibilidade substancial da mente. Esta sua tese acarreta duas «consequências»: se a mente é indivisível, então as teorias que subdividem a função podem não ser correctas, e, se a mente existe separada do corpo, então as suas funções devem ser estudadas separadamente das funções corporais. Estas conclusões marcaram a história da filosofia e das neurociências: muitos neurocientistas estudam apenas a parte corporal da polaridade mente-corpo, ignorando ou recusando a mente que não pode ser estudada através de eléctrodos de registro ou estimuladores, enquanto outros ou identificam a mente com o cérebro e suas actividades, ou consideram que o problema não pode ser resolvido, mesmo que se conheça tudo acerca do sistema nervoso. Vimos que antes de Descartes se pensava que a mente estava localizada no líquido dos ventrículos, mais precisamente no liquor ventricular. Descartes defende, na peugada de Andreas Vesalius, a localização dos processos mentais precisamente no tecido do cérebro. Com efeito, localiza a mente no corpo pineal. E apresenta dois argumentos fundamentais para apoiar a sua tese: primeiro, o corpo pineal é a única estrutura do sistema nervoso que não é formada por duas metades simétricas bilateralmente, e, segundo, está localizado próximo dos ventrículos. O segundo argumento é muito importante: Descartes acreditava que o fluxo de sangue enviado pelo coração para o cérebro leva à produção de «espíritos animais». Estes escoam-se pelos ventrículos e daí penetram nos nervos por orifícios, a fim de actuarem no corpo. Para Descartes, o corpo é uma máquina onde os espíritos animais actuam como «o ar nos tubos de um órgão». Pelo corpo, o homem é semelhante aos animais, uma vez que o seu corpo, tal como o dos animais, pode ser considerado «como sendo uma máquina de tal modo construída e constituída por ossos, nervos, músculos, veias, sangue e pele». Mas distingue-se dos animais por possuir uma alma que não pode ser confundida com os espíritos animais. Com efeito, a alma (ou mente) é única, imaterial e imortal. A glândula pineal ocupa um «lugar» ímpar e único no sistema nervoso: a sua «unidade tecidual» distingue-se das outras partes do nosso cérebro que «são duplas e nós só temos um pensamento de uma mesma coisa de cada vez». Quer dizer que a alma única só se pode localizar na glândula pineal, e é aí que ela se junta ao corpo e que, pela sua proximidade dos ventrículos por onde escoa o líquido ventricular, regula a circulação dos espíritos animais. Reciprocamente, estes actuam sobre ela «quando certas partes do corpo se movem ou são excitadas por objectos sensíveis». Willis insere também a alma num ponto preciso do cérebro, mas, em vez de a situar no corpo pineal como Descartes, situa-a nos corpos estriados, nomeadamente os núcleos do tálamo e o corpo caloso que liga os dois hemisférios cerebrais. Desta forma, Descartes, bem como Willis, postulando que a mente estava unificada e localizada numa só estrutura nervosa, iniciou simultaneamente o debate acerca da localização da função cerebral e enunciou a posição negativa, ao mesmo tempo que esboçava, de forma radical e convincente, extremamente inteligente e elegante, uma neuro-filosofia que, pela complexidade do seu objecto, bem pode ser considerada como uma via privilegiada da unificação dos saberes e das ciências. Estas investigações neurobiológicas e neurofilosóficas, realizadas por Descartes, assim como as suas investigações embriológicas, têm sido negligenciadas mais pelos filósofos do que pelos cientistas. Mas nenhum deles compreendeu a novidade radical da filosofia cartesiana: filosofia e ciência não podem existir separadas uma da outra. Nem mesmo Edgar Morin soube «traduzir» a novidade neurológica cartesiana em termos antropológicos; aliás, o seu modelo antropológico nem sequer leva em conta a abertura operada pelas neurociências.
Embora localizacionista, Descartes conservava ainda um elemento mitológico, mais precisamente ideológico, no seu pensamento neurobiológico: a ideia de uma alma única, imaterial e imortal. As críticas severas e sagazes de Espinosa abrem algumas brechas no sistema cartesiano. Gassendi, Guillaume Lamy, Vaucanson, La Mettrie e Cabanis continuam o trabalho de demolição dos elementos ideológicos que persistem na teoria cartesiana do cérebro. Gassendi ensina, no Collége de France, que os animais devem igualmente possuir uma alma, uma vez que dão provas de possuir memória, raciocínio e outros caracteres psicológicos comuns ao homem. Os animais partilham com o homem uma alma, mas, ao contrário do que se possa pensar, esta partilha não humaniza certamente os animais, antes animaliza o Homem, o que não deixa de ser surpreendente se pensarmos que a biologia evolutiva, a etologia e a sociobiologia retomam precisamente, nos nossos dias, essa mesma ideia, é certo que em bases radicalmente novas. Desta forma, a ideia de uma «alma dos animais» constituía já uma desvalorização histórica da alma. Guillaume Lamy usa indiferentemente as palavras «alma» e «espíritos animais»; Vaucanson constrói um pato que batia as asas, comia sementes e digeria-as, chegando mesmo a imaginar um «homem artificial»; La Mettrie vai mais longe quando afirma que se pode retirar a alma do sistema cartesiano sem grande dano e que o próprio homem entra na categoria dos animais-máquinas; e, finalmente, Cabanis pensa que o «cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis». Em suma, qualquer um destes autores procura banir a tese da imaterialidade da alma das obras filosóficas e científicas consagradas às ciências do cérebro.
Franz Josef Gall e Johan Casper Spurzheim retomam a teoria da localização da função e analisam as funções do cérebro, a partir da psicologia inglesa ou escocesa, procurando localizá-las sem o recurso à via introspectiva. Demarcando-se das teses propostas por Platão ou Galeno, do dualismo de Descartes e da tese sensualista de Locke e Condillac, Gall pensa que existe no homem um elevado número de «faculdades morais e intelectuais» congénitas, essenciais e irredutíveis. Elabora uma lista provisória com vinte e sete entradas, sete das quais são específicas do homem. A cada uma dessas entradas corresponde uma determinada faculdade. E a cada uma destas faculdades é atribuída uma determinada localização cerebral. Com efeito, Gall e Spurzheim pensavam que cada categoria de comportamento tem o seu «órgão» próprio que se situa num local preciso da parte do cérebro: o córtex cerebral. Para elaborar o mapa (ou carta) Gall, reconhecendo a dificuldade de acesso ao próprio cérebro, postula que o crânio reproduz fielmente a superfície do córtex. Spurzheim chamou frenologia ao estudo da relação entre as características da superfície do crânio e as faculdades do indivíduo. A cranioscopia consiste, portanto, em palpar o crânio para estabelecer uma correlação entre certas proeminências deste e faculdades particularmente desenvolvidas em certos indivíduos. Depois de ter reunido crânios de criminosos ou de doentes mentais e bustos de homens célebres, Gall observa-os cuidadosamente e, a partir desta observação, elabora um mapa das localizações ósseas correspondentes às tendências e faculdades particularmente exacerbadas neste ou naquele indivíduo. É certo que Gall, por acaso ou profunda intuição, consegue localizar a memória das palavras e o sentido da fala nas regiões frontais próximas da localização que hoje se lhes atribui, mas o restante da sua topografia é extremamente fantasista. Apontam-se geralmente quatro razões que explicam o fracasso da frenologia. Em primeiro lugar, a psicologia das faculdades possuía uma relação muito pequena com o comportamento real. Algumas faculdades propostas por Gall, como por exemplo o instinto de propagação (ou sexual), amor da progénie (ou comportamento maternal), gosto por brigas e combates (ou agressividade), memória verbal, sentido das palavras, sentido dos lugares e das relações no espaço, são comportamentos reais cuja individualidade investigações recentes demonstraram claramente. Mas orgulho e gosto pela autoridade, amor da glória, espírito metafísico, talento poético, fé e devoção, auto-estima ou veneração, motivam perplexidade, uma vez que são «comportamentos» que não podem ser definidos e quantificados objectivamente. A localização exige, pelo contrário, a escolha de comportamentos objectivos, como a fala ou a agressividade, que possam ser relacionados com diversas áreas do cérebro. Em segundo lugar, o postulado de que as características superficiais do crânio podiam ser utilizadas para «avaliar» o tamanho e a forma do cérebro desviou-a do estudo do tamanho das circunvoluções, apressadamente consideradas como rugas ao acaso e, por conseguinte, sem qualquer importância funcional. Deste modo, Gall e Spurzheim não se aperceberam que o crânio externo não reflecte o crânio interno ou as características da superfície do neocórtex, ficando impossibilitados de descobrir as assimetrias, como o plano temporal do córtex posterior esquerdo que reflecte a lateralização da linguagem no hemisfério esquerdo. Em terceiro lugar, a frenologia convidava à especulação e, desta forma, indirectamente ao ridículo por associação. Finalmente e em quarto lugar, Gall e Spurzheim, defendendo que o cérebro é o órgão da mente, que as características da personalidade são inatas e que o cérebro (ou mente) é formado por unidades que funcionam independentemente, iam contra a posição dominante representada por Descartes, segundo a qual a mente não é material e funciona como um todo. Basicamente, a frenologia retoma e desenvolve a via seguida por Nemésio e pelos Padres da Igreja, mas distingue-se do modelo ventricular por uma promoção do córtex em relação aos ventrículos. Deste modo, Gall e Spurzheim iniciam uma laicização do cérebro, já bastante avançada com La Mettrie e Cabanis. A teoria localizacionista parece representar, na história das neurociências, a vitória do «materialismo» sobre a teoria da imaterialidade da alma. Isto não quer dizer que o «espiritualismo» e o idealismo não tenham contribuído para o desenvolvimento das neurociências; penso mesmo que estas duas tendências filosóficas, em especial o idealismo alemão e a fenomenologia, darão, num futuro mais ou menos próximo, um contributo decisivo para o desenvolvimento de um dos sectores mais precário das neurociências: a teoria neuronal da consciência e do conhecimento.
Pierre Flourens procurou, durante toda a sua vida, demolir a frenologia. Ele era um cartesiano estrito, inclusive até‚ ao ponto de dedicar o seu livro a Descartes. Aceitando o conceito de uma mente unificada, ele forja argumentos filosóficos contra Gall e Spurzheim com a experimentação. No seu trabalho experimental, Flourens efectua ablações de áreas ou de centros anatomicamente definidos, observando depois o comportamento do animal assim operado. Conclui que a ablação do cerebelo provoca uma deficiência na coordenação dos movimentos e que uma lesão da região da medula oblonga interfere na regulação de funções necessárias à vida, como é o caso da respiração. Estas observações demonstram efectivamente a tese localizacionista, mas Flourens, cartesiano como era, vai longe demais, e em sentido oposto ao localizacionismo, quando procura demonstrar que não existe uma localização da função no cérebro. Como todas as faculdades intelectuais residem no cérebro de uma forma coextensiva, a perda da função relaciona-se com a extensão da extirpação do tecido cortical: se todo o tecido for extraído, todas as funções intelectuais desaparecerão, mas, se permanecer intacto tecido suficiente, produzir-se-ia uma recuperação de toda a função. Quer dizer que com Flourens o córtex se torna o último refúgio da alma ou do espírito. Embora tenham sido persuasivas na sua época, a maior parte das conclusões de Flourens são hoje insustentáveis. As suas experiências foram realizadas com aves ou invertebrados inferiores, que, como se sabe, são animais praticamente sem neocórtex. O seu método de ablação é por vezes irreflectido, uma vez que, julgando retirar apenas o córtex, Flourens destrói simultaneamente estruturas subcorticais. E a sua análise do comportamento dos animais assim operados é demasiado rudimentar: valorizando actividades tais como comer e bater as asas, Flourens viu-se impossibilitado de apreciar verdadeiramente uma ou outra das faculdades dilucidadas por Gall e Spurzheim. Por estas razões, Gall e Spurzheim encontravam-se em boas condições para o criticar, salvaguardando o seu modelo localizacionista.
Contudo, o modelo de Gall permanece esquecido durante muito tempo. É certo que Leuret e Gratiolet realizam, entretanto, minuciosas descrições, quase fotográficas, das circunvoluções e cisuras do córtex cerebral, e estabelecem que os lobos frontal, temporal, parietal, occipital e insular são delimitados pelas cisuras de Sylvius e de Rolando, mas ainda assim continuou a dominar o conceito de Flourens da função holística. Só muito mais tarde é que Jean-Baptiste Bouillaud ir apoiar, a partir da experimentação animal, o modelo de Gall, em particular a sua ideia de que a função da linguagem se localiza no lóbulo frontal, dando assim início à anátomo-patologia da linguagem, que se ir converter na neuropsicologia. Apresenta, na Real Academia de Medicina de França, um estudo que, a partir de estudos clínicos, demonstra que a função da linguagem está localizada no neocórtex e que a fala está localizada nos lóbulos frontais tal como tinha sugerido Gall. E vai ainda mais longe: observando que os actos como escrever, desenhar, pintar e manejar a espada eram realizados com a mão direita, Bouillaud sugere que a parte do cérebro que os controla podia ser provavelmente o hemisfério esquerdo. Marc Dax observa que uma série de casos clínicos demonstram que os distúrbios da fala estavam associados constantemente com lesões no hemisfério esquerdo. Mas nem o trabalho de Bouillaud nem o de Dax tiveram impacto quando foram apresentados pela primeira vez. Esse impacto veio mais tarde quando Ernest Auburtin (genro de Bouillaud) apresenta em 1861, num congresso da Sociedade Antropológica de Paris, o caso de um paciente que cessou de falar quando se aplicou uma pressão nos seus lóbulos anteriores descobertos. Paul Broca, fundador da sociedade, que assistiu ao congresso, escutou-o atentamente.
Em 18 de Abril de 1861, Broca apresenta à Sociedade de Antropologia o caso de um paciente, Leborgne, a quem autopsiara na véspera. O doente tinha perdido a fala e só era capaz de dizer tan-tan (o que lhe valeu a alcunha) e de proferir uma blasfémia. Tinha uma paralisia do lado direito do seu corpo e exprimia-se por gestos, mas parecia conservar, noutros aspectos, integralmente a inteligência. Broca e Auburtin (que também examinou Tan a convite do primeiro) estavam de acordo de que Leborgne devia ter uma lesão frontal. Efectivamente o exame post mortem do seu cérebro revelou uma lesão cujo centro principal estava situado na parte média do lobo frontal do hemisfério esquerdo. Mais outros oito casos similares foram recolhidos por Broca e todos eles comprovam, sem contestação possível, que a lesão do lobo frontal esquerdo era a causa da perda do uso da palavra (afasia). Desta forma, Broca apresentava quatro contribuições fundamentais para o desenvolvimento das neurociências: 1) a descrição de um síndroma do comportamento que consiste numa incapacidade para falar, apesar da presença de mecanismos vocais intactos e de compreensão normal; 2) a «criação» da palavra afemia para descrever este síndroma; 3) a relação da afemia com um lugar anatómico conhecido agora como área de Broca; e 4) a elaboração do conceito de dominância cerebral da linguagem no hemisfério esquerdo. É certo que, como já vimos, nenhuma destas contribuições é verdadeiramente original, mas coube a Broca sintetizar a teoria da localização da função, as descrições clínicas dos efeitos das lesões no cérebro e a neuroanatomia com tal clareza que, entusiasmando os neurocientistas, acabou por alterar a direcção que iria tomar a análise do neurocomportamento. Além disso, Broca recorda que os frenólogos, com a cranioscopia, tinham negligenciado demasiado o exame anatómico do doente. Muito mais importante que o exame dos acidentes do crânio ósseo externo que nada dizem da configuração interna do cérebro, é, como diz Broca, a indicação exacta do nome e da posição das circunvoluções afectadas por determinadas lesões. Ao estabelecer uma correlação rigorosa entre casos anatómicos e exemplos de comportamento, Broca demonstra pela primeira vez a localização cortical descontínua de uma faculdade bem definida e, simultaneamente, a existência de assimetria entre os dois hemisférios, que passara despercebida a Gall. Deste modo, o postulado fundamental da «organologia» de Gall era comprovado cientificamente. Mas persiste ainda um elemento ideológico, herdado de Descartes, no pensamento científico de Broca: a articulação da alma com o corpo num ponto único e ímpar do cérebro que respeite a integridade do «eu».
Tudo parecia indicar que Broca, a partir da afasia provocada por lesões frontais esquerdas, tinha estabelecido dois princípios fundamentais para a localização: 1) um comportamento é controlado por uma área específica do cérebro; e 2) destruindo-se essa área, destrói selectivamente o comportamento. Mas nem todos os autores foram localizacionistas estritos: Hughlings-Jackson, Bastian e Wernicke não estavam de acordo com estes princípios lógicos e clínicos. Carl Wernicke realizou duas descobertas devastadoras para a localização estrita: primeira, existe mais de uma área da linguagem, o que sugere que os comportamentos tais como a linguagem estão programados sequencialmente, e, segunda, uma lesão que suprimisse uma área podia produzir deficiências indistinguíveis das que se seguem a uma lesão da área per se, donde resulta o conceito de desconexão. Theodore Meynert tinha já sugerido que o córtex por detrás da cisura central desempenhava uma função sensitiva, chegando mesmo a descobrir a projecção do nervo auditivo no córtex da cisura de Sylvius do córtex temporal. Além disso, suspeitando de uma relação entre a audição e a fala, descreveu dois casos de doentes afásicos com lesões nesta área de projecção auditiva. Mas foi Wernicke que descreveu posteriormente os detalhes desta afasia do lobo temporal, situando-a dentro de um quadro teórico. De modo distinto de Broca, ele estabelece quatro características principais da afasia: 1) havia uma lesão na primeira circunvolução temporal, na área agora conhecida como área de Wernicke; 2) não havia hemiplegia contralateral ou paralisia; 3) os doentes podiam falar fluidamente, mas o que diziam era confuso e carecia de sentido (parafasia); e 4) embora fossem capazes de ouvir, não podiam compreender ou repetir o que se lhes tinha dito. Esta descrição de um novo tipo de afasia é acompanhada de um modelo para explicar como a linguagem está organizada no hemisfério esquerdo. Este modelo implica uma programação sequencial da actividade nas duas áreas da linguagem (Fig.1): as imagens de som de objectos s„o armazenadas na primeira circunvolução temporal e daí são enviadas através de uma via (o fascículo arqueado) para a área de Broca, donde se retiram as representações dos movimentos da fala. Vimos que uma lesão na área de Broca reproduzia a perda dos movimentos da fala sem perda das imagens do som. Quer dizer que a afasia não era acompanhada por uma perda de compreensão. Mas numa lesão do lobo temporal ocorre sempre perda da compreensão. Embora os movimentos da fala possam ter lugar, a fala não tem qualquer sentido, uma vez que o indivíduo não é capaz de controlar o que diz. Contudo, o modelo de Wernicke vai ainda mais longe: a lesão das fibras que conectam as duas áreas da linguagem acarreta uma deficiência da fala, denominada afasia de condução. Nesta afasia, os movimentos da fala e os sons, bem como a compreensão, podem ser conservados, mas, dado que o indivíduo é incapaz de julgar a incongruência do que disse, a fala continua a ser parafásica.
O conceito de desconexão foi retomado por Déjérine, que, em 1892, descobre um caso em que a dislexia (perda da capacidade de ler) era produzida quando se desconectava a área visual da área de Wernicke. Na mesma sequência, Liepmann demonstra que a apraxia (incapacidade de realizar movimentos como resposta a ordens) era devido a uma desconexão das áreas motoras a partir das áreas sensoriais. Deste modo, o conceito de desconexão de Wernicke proporcionou uma metodologia que unia anatomia e comportamento. Esta união permitia predizer novos síndromas cerebrais e as hipóteses assim formuladas podiam ser submetidas a prova.
A hipótese de que o comportamento estava localizado de algum modo no neocórtex, proposta por Broca, Wernicke e outros neurólogos clínicos, foi reforçada pelo desenvolvimento da técnica para estimular electricamente o cérebro. Antes da publicação do trabalho de Gustav Theodor Fritsch e de Eduard Hitzig (1870), intitulado «Acerca da excitabilidade eléctrica do cérebro», pensava-se que o neocórtex não era excitável mediante estimulação eléctrica. Contra esta opinião dominante, Fritsch e Hitzig não só demonstraram que o neocórtex é excitável, mas também que é excitável selectivamente. Com efeito, a aplicação directa da corrente galvânica às partes do neocórtex anterior produzia movimentos no lado oposto do corpo, enquanto a estimulação do neocórtex posterior não produzia nenhum movimento. Mais importante ainda que a descoberta da excitabilidade selectiva do cérebro foi a descoberta de que a estimulação de partes restritas do neocórtex anterior produzia o movimento de partes específicas do corpo. Esta última descoberta sugere que existem no neocórtex centros ou representações topográficas das distintas partes do sistema motor. Deste modo, Fritsch e Hitzig derrubaram os ditames defendidos por Flourens, demonstrando que o córtex é excitável e desempenha um papel na produção do movimento, e que a função está localizada. David Ferrier, desenvolvendo a técnica da estimulação, confirma os resultados de Fritsch e Hitzig em diversos animais, enquanto R. Bartholow demonstra que a técnica da estimulação eléctrica podia ser utilizada em pessoas conscientes, que descrevessem as sensações subjectivas produzidas pela estimulação. Mais tarde o método da estimulação eléctrica foi utilizado noutras situações experimentais, convertendo-se numa parte normal de muitos dos procedimentos da cirurgia cerebral ou neurocirurgia.


(Este texto constitui uma secção do primeiro capítulo da minha tese de mestrado, Homo Fossilis: Ensaio neuro-antropológico (1989), onde desenvolvo um modelo neurobiológico e lanço o conceito de neurofilosofia. A tese fundamental é a de que toda a teoria do conhecimento pode ser vista como uma teoria do cérebro/mente. Este conceito de neurofilosofia distancia-se ligeiramente daquele proposto por Patricia Churchland e, antecipando-se a D. Dennett, integra-o na biologia da evolução, a nova síntese. Além disso, leva em conta o contribuito de outras ciências biológicas que ajudaram a mudar a imagem que hoje temos do Homem.)


J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

As teorias do conhecimento elaboradas ao longo da extensa história da filosofia são, em última análise, teorias da mente e do cérebro, portanto neuroteorias. Este aspecto das teorias do conhecimento passou despercebido, devido ao impacto negativo dessa filosofia chamada positivismo. As chamadas obras científicas dos filósofos foram ignoradas e colocadas na prateleira das velharias científicas e as leituras filosóficas das chamadas obras filosóficas fecharam-se e evitaram o diálogo com as ciências.
Deste modo, condenaram a filosofia a um monólogo interminável e, frequentemente, estéril.
A neurofilosofia deve ter o cuidado de recuperar a sua tradição e projectá-la na pesquisa filosófica corrente, recuperando no seu seio a problemática das diferenças sexuais. Esta releitura do seu próprio passado possibilita a elaboração de uma metafilosofia e, sobretudo, a libertação do pensamento contemporâneo da onda relativista e multicultural.

smithoyno disse...

Sr. J Francisco Saraiva
Eu gostaria de ter acesso as suas obras e textos é que tentarei desenvolver o meu tcc em neurofilosofia. Seus textos demonstram-se indispensaveis a minha pesquisa.
Peço também, se possível, uma bibliografia intrdutoria em neurociência e neurofilosofia.
Muito obrigado por nos presentear com esse belo conhecimento.

Isa Freitas disse...

Sr. Francisco

Gostei muito de seus textos sobre neurofilosofia o problema é que não achei nenhum conceito(s), ainda que díspares, sobre ela, digo, para um leigo que busca saber o que é neurofilosofia seus textos não respondem.
Busquei a palavra no google e este é o quinto link que olho e confesso que ainda não consegui saber o que é.
Ainda que seja uma área extremamente reflexiva, zetética há que se ter alguma dogmática, pelo menos para que possamos ter noçao sobre o quê o outro fala.

Anónimo disse...

Gostaria de ter acesso a tese de mestrado "Homo Fossilis: Ensaio neuro-antropológico". Onde consigo???