sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Filosofia Médica

Tenho criticado muito a ausência da disciplina de Filosofia Médica nos currículos nacionais dos cursos de medicina, mas, de facto, reconheço que a elaboração de um programa de Filosofia Médica não é nada fácil, dada a extensão da bibliografia e a complexidade da medicina actual. Contudo, pretendo aqui afirmar duas teses básicas:
1. A Filosofia Médica não pode ser reduzida a um ramo da epistemologia que se ocupa do exame dos pressupostos filosóficos das ideias e práticas médicas e da investigação dos problemas filosóficos surgidos da pesquisa e da prática médicas. Com esta tese não pretendemos excluir a teoria do conhecimento científico do âmbito da filosofia médica, também denominada iatrofilosofia.
2. A Filosofia Médica não pode ser reduzida a um ramo da ética, chamado bioética, embora trate necessariamente de problemas éticos colocados pela pesquisa e prática médicas.
Com estas duas teses simples, pretendemos fixar e demarcar um novo campo de estudos para a filosofia médica e pensar radicalmente a especificidade da medicina actual, altamente tecnológica e farmacológica.
Se tivéssemos de elaborar um plano de estudos de Filosofia Médica, seguiríamos quatro pistas selvagens e a nossa reflexão iria girar em torno das seguintes temáticas:
A) Filosofia da Biologia ou Biofilosofia: Apesar de já existirem revistas de biofilosofia, a literatura é ainda muito escassa neste domínio da investigação filosófica, apesar de filósofos importantes, tais como Aristóteles ou mesmo Kant, terem dedicado muita atenção aos fenómenos biológicos.
B) Filosofia da Tecnologia ou Biotecnologia: Com excepção dos trabalhos de Hans Jonas, a biotecnologia não tem sido bem estudada pelos filósofos profissionais, apesar de constituir o maior desafio da sociedade contemporânea. Também deveríamos incluir aqui a telemedicina e a cibermedicina.
C) O Normal e o Patológico: Os conceitos de doença e de saúde têm sido estudados, mas num perspectiva demasiado construtivista social, da qual resulta necessariamente a desconstrução do modelo médico. Torna-se necessário repensar filosoficamente o modelo médico e protegê-lo das ondas relativistas que invadem o pensamento contemporâneo.
D) Meditatio mortis. Este tema seria tomado como fio condutor de toda a elaboração do plano de estudos da filosofia da medicina e seria pensado de modo a não privilegiar a abordagem bioética ou bioepistemológica.
Outros temas que poderiam ser articulados com estas quatro temáticas básicas são a iatrologia (estudo dos problemas lógicos da medicina), iatrossemântica (estudo dos problemas semânticos da medicina), iatrognosiologia (estudo dos problemas do conhecimento médico), iatrometodologia (estudo dos problemas metodológicos da pesquisa e da prática médicas), iatro-ontologia (estudo dos conceitos ou hipóteses ontológicos subjacentes às doutrinas e práticas médicas), iatro-axiologia (estudo dos valores médicos), iatro-ética (estudo dos problemas morais suscitados pela pesquisa e prática médicas) e iatropraxeologia (estudo dos problemas gerais colocados pela prática médica individual e pela concepção da saúde pública). É evidente que um plano de estudos iatrofilosóficos que gira em torno de uma meditatio mortis está fortemente assente na teoria social e não abdica da perspectiva política: aquela que deseja transformar o mundo, de modo a torná-lo habitável e mais acolhedor.
A Filosofia Médica não é uma mera espectadora da actividade médica, porquanto pode exercer efectivamente um papel activo sobre a actividade médica e sua organização. Este papel nem sempre tem sido benéfico, sobretudo em Portugal, porque neste país as pessoas não estudam seriamente filosofia da medicina, preferindo reproduzir noções moralistas conservadoras sobre a actividade e pesquisa médicas. O objectivo da Filosofia Médica é precisamente afastar de cena esses luso-ignorantes maléficos, mais servidores do Diabo do que de Deus, e incentivar os estudos de iatrofilosofia, propiciando desta maneira a formação de médicos com competência filosófica e de filósofos com competência médica. Seguindo o exemplo de Abel Salazar, podemos avançar com um projecto ousado de Filosofia Médica.
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

Carlos Serra disse...

Excelente blogue.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado. Também aprecio os seus blogs.