segunda-feira, 27 de abril de 2009

Teoria da Publicidade (2)

«O espectáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espectáculo é, materialmente, "a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem". O "novo poderio do embuste" que se concentrou aí tem a sua base nesta produção pela qual "com a massa de objectos cresce... o novo domínio dos seres estranhos aos quais o homem está submetido". É o estádio supremo duma expansão que virou a necessidade contra a vida. "A necessidade de dinheiro é, portanto, a verdadeira necessidade produzida pela economia política e a única necessidade que ela produz" (Karl Marx). O espectáculo alarga a toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe como o do dinheiro: é "a vida do que está morto movendo-se em si próprio"». (Guy Debord)
Pretendo expor agora uma teoria científica da publicidade em geral, de modo a explicitar o mecanismo publicitário, isto é, o seu modo de funcionamento na sociedade de consumo, a sociedade que reforça mediante o expediente de tranquilizar a consciência e de dissipar a polissemia angustiante do mundo, a partir da tentativa de dar uma resposta a esta questão: Como consegue a publicidade usufruir da credibilidade suficiente para exercer tanta influência sobre as pessoas? Tal como Thorstein Veblen, John K. Galbraith, Stuart Ewen, Herbert Marcuse, Raymond Williams, Paul Baran, Paul Sweezy, Ernst Mandel, Vance Packard, John Berger, Roland Barthes, Jean Baudrillard, Jerry Mander, Guy Debord, Terry Eagleton, Fredric Jameson e Sut Jhally, vejo a publicidade como a cultura, ou melhor, a ideologia materializada, a ideologia total (Karl Mannheim) finalmente realizada, da sociedade de consumo: a publicidade integra as pessoas "interpeladas" (Althusser) na sua derradeira condição de espectadores-consumidores numa teia complexa fabricada de estatuto social e de significado simbólico, a visão totalitária realizada naquilo que Guy Debord chama o "espectáculo imobilizado da não-história".
Jean Baudrillard elaborou uma teoria da sociedade de consumo, na qual pretende superar a obra de Marx, alegando que, no capitalismo avançado, tudo ou quase tudo cabe dentro da esfera do valor de troca, isto é, no domínio do mercado. Isto significa que ocorreu uma ruptura radical no desenvolvimento do capitalismo que Baudrillard tematiza como a passagem de um fase em que a forma-mercadoria era predominante para uma outra fase não prevista por Marx em que prevalece a forma-signo. Segundo Baudrillard, o consumo, que constitui o traço mais importante do capitalismo avançado, opera através da "manipulação sistemática dos signos" dentro do funcionamento de um código simbólico que mantém sob seu controle, não as contradições da produção, mas a procura e o simbolismo no âmbito do mercado: os objectos perderam toda a ligação com a base da sua utilidade prática e passaram a ser um mero correlato material, o significante, de um número crescente de qualidades abstractas em constante mutação. Esta lógica da significação constitui a verdadeira essência do capitalismo avançado: o código simbólico atribui às mercadorias qualquer significado, independentemente do fim para que são usadas, através da manipulação da sua relação com os outros signos, de modo que as pessoas socializadas pelo monopólio do código publicitário são «forçadas» a "entrar no jogo". O resultado é este: "O signo deixa de designar o que quer que seja. Aproxima-se do seu verdadeiro limite estrutural, que reside em referir-se apenas a outros signos. Toda a realidade se torna, então, lugar de uma manipulação semiúrgica, de uma simulação estruturada". Daqui decorre que nenhuma relação humana se encontra inscrita nas coisas, porque "tudo é signo e signo puro", sem presença ou história: o universo do consumo é, pois, uma "prática idealista total, sistemática, (absolutamente alheia à satisfação das necessidades e ao princípio de realidade), que ultrapassa de longe a relação com os objectos e a relação interindividual para se alargar a todos os registos da história, da comunicação e da cultura".
Contudo, apesar do seu brilhante contributo para a compreensão do capitalismo avançado, Baudrillard errou quando recusou ver na teoria do feiticismo da mercadoria de Marx a base para uma nova análise do consumo e da publicidade como manipulação dos signos, portanto, como feiticismo. Com base no conceito de publicidade como feiticismo, isto é, como mistificação, derivado de uma releitura de Marx que não vou expor neste momento, podemos criticar uma noção neoliberal de publicidade: aquela que a apresenta como um meio de competição ou de concorrência que, em última análise, beneficia o público, o conjunto dos consumidores, e os fabricantes mais competentes, e, deste modo, toda a economia. Este conceito de publicidade defendido pelos economistas do sistema reinante está organicamente ligado à ideia de liberdade de escolha do comprador e de liberdade de iniciativa do fabricante, portanto, à ideia de um mercado livre, como se a publicidade oferecesse a liberdade de opção. Embora seja verdade que, na publicidade, uma marca ou um produto concorram com outras marcas ou produtos, a publicidade é mais do que o conjunto de mensagens concorrentes: a publicidade é, em si própria, uma linguagem constantemente usada para fazer uma única proposta, a proposta para que cada um de nós se transforme a si mesmo e modifique a sua vida pela compra de mais qualquer coisa que nos tornará mais ricos, apesar de termos menos dinheiro por tê-lo gasto a comprá-la.
A questão colocada inicialmente, a saber, "Como consegue a publicidade usufruir da credibilidade suficiente para exercer tanta influência sobre as pessoas?", pode, neste momento, ser reformulada e adoptar esta forma: Como consegue a publicidade convencer-nos desta transformação? Os publicitários de sucesso sabem que o êxito das novas promoções dirigidas aos consumidores depende sempre da componente emotiva do público em conexão com a estratégia de comunicação da empresa. Isto significa que o publicitário deve ser capaz de propor mecanismos que actuem sobre o universo dos desejos, racionais ou irracionais, conscientes ou inconscientes, do público. A lógica da publicidade é, portanto, uma lógica das emoções, e, enquanto tal, inscreve-se no sistema límbico ou no cérebro emocional. Alguns publicitários vão mais longe quando falam da conversão do produto em personagem, aquilo a que chamam personality promotion, um conjunto de operações que, afectando emotivamente o público, personificam o produto e o relacionam com personagens da moda, personagens bombásticas e ocas, ou com testemunhos fascinantes e credíveis, ao mesmo tempo que criam expectativas. Podemos agora responder à pergunta reformulada e afirmar que a publicidade nos convence dessa transformação de nós mesmos e da nossa vida mostrando-nos pessoas que aparentemente se modificaram e são, portanto, invejáveis. A publicidade estimula, ainda que por instantes, constantemente renovados e actualizados, a nossa imaginação, através da memória ou da esperança. Apesar de pertencerem ao momento que passa, as imagens publicitárias que invadem todo o nosso quotidiano nunca se referem ao presente, mas referem-se frequentemente ao passado e falam sempre do futuro. Ora, o facto das imagens publicitárias pertencerem ao momento presente e falarem do futuro produz um efeito estranho que nos passa despercebido: a publicidade não trata de objectos e muito menos de relações entre objectos e pessoas, mas de relações sociais e humanas, precisamente daquilo que encobre.
Para explicitar o modelo do mecanismo publicitário proposto, vou recorrer à terminologia de John Berger, levando em conta a teoria da classe ociosa de Thorstein Veblen e a análise do capitalismo de Marx. Berger captou explicitamente este mecanismo quando afirma que "o estado de ser invejado é o que constitui a fascinação, e a publicidade é o processo de fabricar fascínio". O fascínio é uma invenção moderna que não pode existir sem a inveja social, o sentimento vulgar e generalizado gerado pela sociedade de consumo. A linguagem da publicidade é a linguagem da
inveja social: fabricar fascínio é produzir o estado de ser invejado ou invejável e, portanto, feliz, isto é, de ser a criatura ou o alvo do desejo dos outros, um sentimento não-recíproco profundamente estranho às figuras de poder das sociedades pré-modernas. Ao contrário do que sugere Baudrillard, a publicidade não perde o contacto com a realidade: vestuário, comida, bebida, automóveis, cosméticos, banhos, moradias, telemóveis, electrodomésticos, viagens ou calor do sol constituem coisas muito apreciáveis que a publicidade trabalha a partir de um apetite natural de prazer. Porém, a publicidade não é a celebração de um prazer em si próprio, porque trata sempre do futuro comprador, oferecendo-lhe uma imagem de si próprio tornada fascinante pelo produto ou pela oportunidade que tenta vender. As imagens que a publicidade oferece visam fazer com que o consumidor se torne invejoso daquilo que pode vir a ser. A publicidade convida o consumidor a transformar-se numa criatura invejosa, mais precisamente a ser alvo da inveja que provocará nos outros. Em vez de ser uma promessa de prazer, a publicidade é uma promessa de felicidade, mas da felicidade tal como é vista de fora, pelos outros que passam a olhá-lo com inveja. O fascínio é precisamente a felicidade de se ser desejado pelos outros. Porém, esta felicidade é uma forma solitária de afirmação, porque, não sendo recíproca, não possibilta partilhar a nossa experiência com aqueles que nos invejam. As pessoas fascinantes que dão rosto aos anúncios publicitários anseiam por ser vistas com interesse, sem no entanto observarem os outros com o mesmo interesse: o seu poder, isto é, a sua suposta felicidade afirmada na solidão é puramente ilusória.
A publicidade mina a dialéctica do reconhecimento (Hegel), ao mesmo tempo que escava o fosso entre o que uma pessoa é e aquilo que gostaria de ser, perpetuando indefinidamente a consciência infeliz (Marcuse, Hegel). As imagens publicitárias procuram retirar ao espectador-comprador o amor e a estima que sente por si, tal como é, e devolver-lho pelo preço do produto, partindo do pressuposto de que se inveja a si próprio tal como se imagina depois de comprar o produto, isto é, de que se imagina transformado pelo produto num objecto da inveja dos outros que fortificará a sua auto-estima. A publicidade torna o espectador-consumidor insatisfeito com a vida que tem, sugerindo-lhe que, se comprar o que lhe é proposto, a sua vida poderá melhorar. A publicidade desvaloriza sempre o presente em nome do futuro: em vez do presente insatisfatório do consumidor, aquilo que é e a sua vida tal como é, oferece-lhe uma alternativa melhorada. A compra do produto permite-lhe ser desejável, ou seja, quem compra torna-se desejável, quem não compra é muito menos desejável ou mesmo indesejável. Porém, a realização do futuro prometido pela publicidade é continuamente adiada: a consciência infeliz do consumidor é constantemente frustrada e lançada no mundo da fantasia alienante. A publicidade não se aplica à realidade mas à fantasia, ao jogo de correspondências entre as suas próprias fantasias e as do espectador-consumidor. O fosso entre o que o espectador-comprador sente que é e aquilo que gostaria de ser corresponde ao fosso entre o que a publicidade realmente oferece e o futuro que promete: ambos os fossos são um só e mesmo fosso preenchido por sonhos fascinantes.
O princípio de que cada um é aquilo que tem domina o universo publicitário. Isto significa que a publicidade age sobre a
ansiedade: o medo de que, não tendo nada, não se é ninguém. O dinheiro-feitiço é a vida, no sentido de ser a garantia e a chave de todas as capacidades humanas, porque possuir o poder de gastar dinheiro é deter o poder de viver: os indivíduos que podem gastar dinheiro são dignos de ser amados, enquanto os que não o possuem se tornam homens sem rosto. De facto, como já tinha sido observado por Adam Smith, só os ricos são alvo da admiração dos homens: os pobres simplesmente não existem, porque não podem ser invejados. Ora, se tudo é dinheiro, a idolatria do dinheiro ou, como dizia Spengler, a ditadura do dinheiro, então ter dinheiro e muitos cartões de crédito é poder vencer a ansiedade. Veblen mostrou que os indivíduos que vivem acima da linha da mera subsistência não sabem aproveitar os tempos livres que a sociedade lhes proporciona: em vez de procurar alargar as suas próprias vidas e viver com mais sabedoria, mais inteligência e mais compreensão, entregam-se exclusivamente ao jogo de impressionar (Goffman) as outras pessoas pelo facto de serem possuidoras do excesso de produtos colocados no mercado: o consumo conspícuo, isto é, o dispêndio de dinheiro, tempo e esforço, quase de todo inútil, para levar a cabo a agradável tarefa de inflar o próprio self, essa frágil e fragmentada imagem de si condenada ao metabolismo. O caso do automóvel exemplifica bem o consumo conspícuo: os automóveis particulares são escolhidos não pelo seu uso, conforto ou transporte, mas fundamentalmente para mostrar a posição e status dos seus proprietários no seio da comunidade, especialmente na comunidade vizinha. O que importa é o fabrico, a marca, o modelo, os dispositivos electrónicos ou os estofos, e muitas famílias privam as suas crianças do leite para comprar gasolina para o automóvel. Apesar do véu ideológico que a cobre, a sociedade de consumo continua a ser uma totalidade antagónica, dilacerada por conflitos silenciados, desigualdades sociais e assimetrias de poder. Estas diferenças abismais de rendimento levam as pessoas a privilegiar o consumo visível e, portanto, a encobrir a sua vida doméstica, de resto deveras mesquinha quando comparada com a parte ostensiva da sua existência que se desenrola perante o olhar dos outros que pretendem impressionar com a imagem de felicidade. Veblen já tinha verificado que as pessoas escondem da observação pública a sua vida privada: aquela parte do consumo que pode ser efectuada em segredo (Simmel) é mantida fora do contacto com os vizinhos. Segundo Veblen, "a baixa taxa de natalidade das classes mais premidas pelas exigências dos gastos de reputação é da mesma forma atribuível às demandas do padrão de vida, baseado no desperdício conspícuo. O consumo conspícuo e o consequente aumento das despesas, exigido pela manutenção respeitável de uma criança, é bastante considerável e age como um freio potente. É provavelmente o mais eficaz dos freios malthusianos de prudência". Em Portugal, fala-se frequentemente da existência da pobreza envergonhada: as pessoas são levadas a viver uma vida de miséria encoberta para não perderem o seu lugar ao sol (Pascal). As pessoas sujeitadas no e pelo código publicitário têm vergonha de serem pobres, isto é, criaturas não-invejáveis, portanto, meras coisas sem rosto. A publicidade responsabiliza-as individualmente pelo seu insucesso, fracasso e frustração, como se elas tivessem efectivamente liberdade de opção.
O sistema publicitário tem efeitos profundamente nefastos. Além de tornar todas as faculdades e necessidades humanas subsidiárias do poder de compra, o único poder reconhecido, e de neutralizar a oposição e a crítica através da atrofia da imaginação (Adorno), a publicidade tira significado ao trabalho produtivo, fazendo com que o trabalhador tenha inveja do consumidor ocioso e improdutivo, e transforma o consumo num substituto da democracia, ajudando a compensar e a encobrir tudo o que seja antidemocrático na sociedade. Como ideologia da sociedade de consumo, a publicidade promove e propaga, através das suas imagens, a confiança da sociedade capitalista em si própria, ao mesmo tempo que torna o espectador permanentemente insatisfeito consigo mesmo e com o seu estilo de vida. A comida tornou-se mais significativa do que a opção política e a violência gratuita mais estimulante do que a coexistência pacífica. A publicidade rouba-nos a vida, alienando-nos de nós mesmos e do mundo e submetendo-nos/mantendo-nos na condição de animais metabolicamente reduzidos com um sorriso publicitário, portanto, idiota, no rosto. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

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