À memoria do meu orientador de doutoramento, Professor Doutor Custódio Rodrigues
A cada um dos tipos de homossexualidades corresponde um determinado estilo de vida e, ao analisarmos esse estilo de vida a partir dos campos cognitivos da moderna ideologia gay, tal como se revela na linguagem erótica gay portuguesa, somos reconduzidos ao modo como cada uma deles se relaciona com a sociedade e a cultura dominantes e com a própria homossexualidade e a comunidade gay estabelecida. Entramos assim no campo da luta ideológica, onde se confrontam duas ideologias: a ideologia heterosexista dominante e a moderna ideologia gay. Seguindo Thompson (1995), conceptualizamos a ideologia «em termos das maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar activamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e de recepção de formas simbólicas» (p.79).
Se a relação com a sociedade instituída for de rejeição da sua ideologia sexual dominante, o heterosexismo, a sua relação com a própria homossexualidade só pode ser encarada em termos de imaginário instituinte (Castoriadis, 1975, Durand, 1998, Bachelard, 1989, 1990a, 1990b, 1996a, 1996b, Althusser, 1974, Sartre, 1940): os homossexuais instituem o seu próprio mundo e apresentam-no como uma alternativa social e cultural ao mundo heterossexual predominante. É a isso que chamamos um estilo de vida autónomo. Mas, se a relação com a sociedade instituída for de aceitação plena ou de compromisso explícito ou tácito com a sua ideologia heterosexista dominante, a sua relação com a própria homossexualidade é necessariamente deformada e distorcida precisamente pelo facto de permanecer uma província da cultura do duplo-padrão dominante: os homossexuais, em vez de instituírem o seu próprio mundo através de um imaginário instituinte, deixam-se colonizar pelo imaginário instituído dominante. É a isso que chamamos um estilo de vida heterónomo.
Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto complexo de maneiras de agir, de pensar e de sentir, inscritas materialmente em determinados espaços sociais, que tipificam e caracterizam as práticas quotidianas de um determinado grupo ao longo da sua existência no tempo e no mundo em que habitam. Ou, como prefere Giddens (1994), é «um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adopta, não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade» (p.73). Estilo de vida autónomo e estilo de vida heterónomo são, portanto, duas construções ideais, sem as quais não poderíamos expor os dados empíricos e determinar as diferenciações que ocorrem no seu seio.
Em geral, as homossexualidades emersas que abrangem as homossexualidades femininas emancipadas e as homossexualidades masculinas masculinizadas têm um estilo de vida autónomo, enquanto as homossexualidades imersas que integram as homossexualidades masculinas efeminadas e as homossexualidades femininas masculinizadas e muitíssimo efeminadas têm um estilo de vida heterónomo. Este agrupamento das homossexualidades masculinas e femininas em torno de dois estilos de vida ideais pode ser diferenciado, quer em função do sexo, quer em função das relações que estabelecem entre si. Assim, obtemos quatro estilos de vida homossexuais:
Estilo de vida autónomo dos homossexuais masculinos emersos. Dizemos que os quatro subtipos de homens homossexuais masculinizados são emersos, não para significar com tal termo a sua «visibilidade social», mas antes para acentuar o modo criativo e liberto de preconceitos como aceitam e «assumem» a sua homossexualidade. À definição social do maricas opõem uma nova construção instituinte da homossexualidade: o Gay é o homossexual que, rejeitando o estereótipo social, afirma, nesse acto, a sua autonomia. O seu estilo de vida é autónomo, na medida em que recusa o imaginário instituído na e pela sociedade dominante a favor de um novo imaginário: um imaginário radical que cria uma nova imagem de homossexual ou novas maneiras de ser gay.
Estilo de vida heterónomo dos homossexuais masculinos imersos. Dizemos que os quatro subtipos de homens homossexuais efeminados, mas sobretudo os hiperefeminados, são imersos, não para significar com tal termo a sua «invisibilidade social», porquanto são os mais visíveis, mas antes para mostrar que vivem a sua homossexualidade nos termos impostos pela ideologia sexual dominante. A sua experiência da homossexualidade é aquela que lhes é imposta, durante a socialização, pela ideologia sexual dominante. Os homossexuais masculinos imersos vivem subjugados, sujeitados e submetidos aos padrões sexuais da ideologia dominante: a sua homossexualidade é extremamente visível em termos sociais, uma vez que todas as pessoas conhecem a definição social do maricas e, por conseguinte, sabem reconhecer os que agem em conformidade com esse estereótipo social. Constituem aquilo a que os homossexuais masculinos emersos chamam «o lado publicitário do movimento gay». São, pois, indivíduos, simultaneamente, integrados e «marginalizados» na e pela sociedade estabelecida. O seu estilo de vida decorre nos espaços que a sociedade lhes reserva e, como tal, é fortemente condicionado pela mesma (Nicolas, 1982). A heteronomia é a estrutura caracterizadora do seu estilo de vida.
Estilo de vida autónomo das lésbicas emersas. Dizemos que as lésbicas emancipadas são emersas, não para significar com tal termo a sua «visibilidade social», mas antes para acentuar o modo criativo e liberto de preconceitos como aceitam e «assumem» a sua homossexualidade. O seu estilo de vida é autónomo, na medida em que, recusando a colonização da sua homossexualidade, inventaram novas formas de ser homossexual, com as quais se identificam e em conformidade com as quais agem, pensam e sentem.
Estilo de vida heterónomo das lésbicas imersas. Dizemos que as lésbicas masculinizadas e demasiado efeminizadas são imersas, não para significar com tal termo a sua «invisibilidade social», mas antes para mostrar que vivem a sua homossexualidade nos termos impostos pela ideologia sexual dominante. Deste grupo de lésbicas aquelas que são mais facilmente reconhecidas socialmente são, sem dúvida, as homossexuais masculinizadas caricaturais; as restantes passam despercebidas, pelo menos ao olhar pouco instruído. Dado a sua vivência da homossexualidade decorrer em conformidade com o imaginário sexual instituído, o seu estilo de vida é claramente heterónomo. Objectiva e subjectivamente, são homossexuais colonizados, destituídos de uma identidade própria.
As relações que os quatro grupos homossexuais estabelecem entre si são de dois tipos — de proximidade e de distância. As homossexuais femininas imersas e os homossexuais masculinos imersos aproximam-se entre si e as homossexuais femininas emersas e os homossexuais masculinos emersos tendem a distanciar-se entre si, embora partilhem um imaginário instituinte semelhante (Estudo em preparação). Estas relações intra e inter-homossexuais reflectem as relações que cada um dos grupos estabelece com a ideologia sexual dominante. As homossexualidades emersas são aquelas que emergem de modo criativo por oposição à ideologia sexual dominante: o seu imaginário é radical e autónomo. As homossexualidades imersas são aquelas que se deixaram colonizar pela ideologia sexual dominante.
Ora, a moderna ideologia gay é o imaginário radical das homossexualidades emersas: o seu alvo de ataque é a colonização das homossexualidades por parte da ideologia sexual dominante que não lhes reconhece o direito à existência e à diferença.
Contudo, apesar desta diferenciação sócio-ideológica, existe um conjunto de variáveis que tende a criar uma certa uniformidade entre os diversos estilos de vida homossexuais: trata-se evidentemente da promiscuidade sexual. Os homossexuais que têm consciência disso tendem a distinguir dois tipos de promiscuidade sexual: as formas “boa” e “má” da promiscuidade sexual, a primeira atribuída aos homossexuais que vivem a sua homossexualidade “sem preconceitos” e a segunda atribuída aos que a vivem “com preconceitos de diversas ordens”. Escusado será dizer que esta distinção tende a coincidir respectivamente com as oposições entre “sexo grátis” e “sexo não grátis” e “homossexuais normais” e “ralé gay”. Embora se reconheça uma certa diferenciação da promiscuidade sexual, ela é encarada de um ponto de vista demasiado «elitista». Contudo, das pressões que o atractor da inércia exerce sobre os diversos estilos de vida homossexuais resulta uma diferenciação interna da própria promiscuidade sexual e, consequentemente, a emergência de diversos estilos de vida sexualmente promíscuos, que serão examinados no estudo seguinte.
A comparação dos léxicos eróticos heterossexual e homossexual evidencia imediatamente que ambos são criações masculinas, o que abona a favor da tese de Dale Spender (1980), segundo a qual a linguagem tanto evidencia a história da dominação masculina, como constitui um instrumento de «opressão», uma vez que restringe a maneira pela qual os homens classificam e conceptualizam as mulheres e até mesmo a maneira pela qual as mulheres pensam sobre si mesmas e sobre o mundo. De facto, a preocupação homossexual masculina pela linguagem não se verifica entre as lésbicas. Se a opressão feminina, passada e actual, é não somente reflectida na linguagem, mas também o seu resultado, dado ter um vocabulário derrogatório bem desenvolvido em relação à mulher, as lésbicas são duplamente derrogadas enquanto mulheres e enquanto lésbicas. As lésbicas observadas não exibiram capacidade de produção de significados. Daí que não tenhamos conseguido elaborar um léxico erótico lésbico. A sua linguagem parasita claramente a linguagem gay, como se pode verificar consultando o Dicionário Gay/Lésbico Ilustrado do site PortugalGay.PT.
Além de serem criações masculinas, as linguagens eróticas analisadas desvalorizam as mulheres. O domínio masculino, heterossexual ou homossexual, da linguagem manifesta-se em três marcas: (1) os homens produzem significados; (2) os homens desvalorizam as mulheres e (3) os homens sobrevalorizam a masculinidade. As linguagens eróticas são claramente «linguagens falocráticas» (Preti, 1984). E, curiosamente, os homossexuais efeminados, apesar de serem extremamente fluentes na fala e no discurso, tal como as mulheres heterossexuais (Kucian et al., 2005; Crucian & Berenbaum, 1998; Newman, Sellers & Josephs, 2005; Cohen-Kettenis et al., 1998), mostram-se pouco capazes de gerar significados de grupo: a sua atitude é a defensiva. Os homossexuais hiperefeminados encaram-se voluntariamente como «mulheres»: eles querem ser «elas» e é, como se fossem «elas», que se tratam entre si. A sua visão da homossexualidade é a da passividade «malcriada». Sujeitam-se, sem resistência, ao discurso heterosexista, deixando-se interpelar como «maricas» (Althusser, 1974, Berger, 1986). Eles/elas não precisam gerar novos significados, dado estarem satisfeitos com a rotulagem dominante.
Destas considerações resultam três conclusões gerais a tirar e, neste aspecto, não podemos ser politicamente correctos: (1) o poder é masculino, (2) a sexualidade é predominantemente masculina, como diria o Professor Custódio Rodrigues, e (3), se a linguagem é «história sedimentada», a conclusão de Spender, que alargamos às lésbicas e aos homossexuais efeminados, sobretudo os hiperefeminados, é correcta: as mulheres e seus associados masculinos estão aprisionados linguisticamente e «sem saída». Carecem, portanto, de um jogo de linguagem autónomo. Este aprisionamento reflecte a infra-estrutura biológica que partilhamos com os restantes mamíferos: o domínio do macho. Encarar o problema das mulheres e seus associados masculinos como um problema de inacessibilidade ao poder, como faz Cameronn (1985), não é um caminho adequado. A história é a história dos homens e, como diz Walter Benjamin (1992), dos homens «vencedores»: a origem da dominação masculina perde-se, como diz Spender, no passado, ou melhor, na genética das sociedades de caçadores. Deborah Smith (1979) faz a este propósito uma observação curiosa: A tradição intelectual ocidental e a história das publicações impressas são certamente a história dos empreendimentos masculinos ou, como as feministas poeticamente preferem dizer, "his-story". Em inglês, history (história) torna-se, para as feministas, "his" (dele, a sua), mais "story" (história), não havendo a forma "her-story" (a história dela).
Os resultados deste estudo da linguagem erótica gay estão em conformidade com aqueles apresentados por Joel W. Wells (1987, 1990). Com efeito, verifica-se que o uso da linguagem erótica em diferentes contextos das relações interpessoais varia em função do género e da orientação sexual, sendo sexualmente mais excitante para os homens do que para as mulheres. Em média, os homens tendem a usar mais essa linguagem do que as mulheres, e os homens e mulheres homossexuais usam mais frequentemente um vocabulário erótico ou excitante, sobretudo em conversas em chat, do que os homens e as mulheres heterossexuais, pelo menos nas suas relações amorosas. Aliás, alguns homens heterossexuais que, auto-classificando-se no topo da hierarquia social e educacional, julgam ser «feio dizer palavrões em público» e gostar de «jogos masculinos rudes», de resto um tipo heterossexual masculino que exibe traços sexualmente atípicos e afectados, quase do tipo enfastiado de efeminamento (Tripp, 1978). No entanto, os homens homossexuais, quando interagem real ou virtualmente com os companheiros ou potenciais parceiros sexuais, usam quase exclusivamente uma linguagem sexualmente provocadora e excitante. Entre os homens homossexuais, verifica-se que os activos e mais masculinizados usam espontânea e abundantemente essa linguagem, enquanto os passivos e efeminados se limitam a oferecer os seus serviços sexuais, como por exemplo: «Queres que te faça um broche?». Esta mensagem apareceu frequentemente no meu telemóvel no decurso da pesquisa interactiva. Os seus emissores têm essa mensagem e outras similares guardadas nos seus telemóveis, porquanto a enviam regularmente e, por vezes, mais de uma vez por dia para os nomes que constam nas suas «listas íntimas», na expectativa de marcarem um encontro sexual.
Mas a linguagem erótica gay é mais do que um depósito de palavras eróticas usadas para aumentar a excitação sexual: ela estrutura uma visão do mundo, a que chamámos moderna ideologia gay, cujo objectivo é combater a concepção social do maricas e acentuar a condição masculina dos homossexuais, mediante a valorização de traços masculinos e hipermasculinos e a desvalorização da feminilidade, de modo a cimentar uma comunidade gay autónoma e liberta dos estereótipos sociais. Assim, este estudo da linguagem erótica gay portuguesa foi realizado afim de testar, ao nível do vocabulário, a hipótese de Sapir-Wolff, que Clyde Kluckhohn (1972) sintetizou nestes termos: «A língua é, em certo sentido, uma filosofia» (p.165), levando em conta que, numa língua, é o léxico que «reflecte mais directamente as realidades não linguísticas» (Martinet, 1974, p.36). Schutz (1974) acentuou que as tipificações se encontram elaboradas no vocabulário da linguagem ordinária e, no nosso caso, no uso que os próprios homossexuais fazem dela em contextos práticos da vida quotidiana. A visão do mundo que está implícita na linguagem erótica gay foi estruturada, seguindo indicações contextuais de uso, em onze dimensões cognitivas, que, em termos quantitativos, se ordenam seguindo esta sequência decrescente: actividades homossexuais (1), sexualidades alternativas (2), desencadeadores sexuais corporais (3), classificações emic das homossexualidades (4), vida conjugal gay e adultério (5), elementos do comportamento sexual (6), estilo de vida predominante e ambientes (7), iniciação homossexual (8), ligações homossexuais e parceiros sexuais (9), sociedade e conflito ideológico (10) e orientações sexuais (11). Verifica-se claramente um predomínio do sexo sobre qualquer outro assunto, mesmo aquele que interessa a todos e que deveria estar no cerne da ideologia gay: o da sociedade e conflito ideológico. E, conforme mostraram Witter et al. (2005), os homens homossexuais incluem mais referências sexuais em relação a eles próprios nos seus anúncios íntimos do que os homens heterossexuais.
1. Dimensão das actividades homossexuais. Das actividades homossexuais a mais preferida é claramente o sexo anal (1º), seguida pela conquista sexual (2º), sexo oral (3º), preliminares sexuais (4º), masturbação (5º), comportamentos pós-coitais (6º), papel desempenhado na corte e coito entre-pernas e entre-nádegas (ambos em 7º), cunnilingus (8º) e, finalmente, cópula por fricção (9º). Os homens que fazem sexo com homens preferem claramente praticar o coito anal e o sexo oral como preparação para o primeiro, com parceiros sexuais ocasionais seduzidos nos lugares públicos reservados a essa função. O campo lexical da conquista sexual configura um estilo de vida centrado na procura compulsiva de parceiros sexuais.
2. Dimensão das sexualidades alternativas. Das sexualidades alternativas a mais referida é a prostituição masculina (1º), claramente um estilo de vida de determinados tipos de homossexuais, a que se segue o sadomasoquismo (2º), o exibicionismo, voyeurismo e fetichismo (3º), a homossexualidade feminina (4º), a pederastia e pedofilia (5º), o travestismo e transexualismo (6º), o sexo em grupo (7º), o oportunismo (8º), a urologia e escatologia (9º), a heterossexualidade (10º), a pornografia gay (11º), a bissexualidade (12º), a zoofilia (13º) e, finalmente, o sexo com velhos (14º).
3. Dimensão dos desencadeadores sexuais corporais. O pénis (1º), o ânus (3º), os testículos (4º) e as nádegas (5º) são, por esta ordem, os desencadeadores sexuais corporais mais apreciados. Seguem-se depois a pilosidade (6º), os órgãos genitais masculinos (7º), a glande (8º), o prepúcio e os odores (ambos em 9º), a vagina (10º) e, finalmente, o escroto (11º). As outras partes do corpo foram classificadas conjuntamente (2º). O pénis e o ânus são, sem dúvida, os desencadeadores corporais sexuais mais atractivos para todos os homens gay e, com excepção da vagina, todos os outros desencadeadores sexuais são traços e estruturas masculinas. Embora não tenham sido tratadas separadamente, a boca, os olhos, as mãos, o pescoço ou a língua são estruturas muito valorizadas eroticamente.
Em termos estritamente homossexuais, é compreensível o destaque dos órgãos genitais masculinos e do ânus/nádegas, porquanto estas são as estruturas eroticamente mais atractivas e mais usadas nas relações gay, mas o mesmo não pode ser dito em relação aos homens heterossexuais. No entanto, os léxicos eróticos heterossexuais destacam os órgãos genitais masculinos em detrimento dos órgãos genitais femininos. Além disso, a vagina não é alvo de discriminações mais subtis, como se fosse uma mera «bainha» ou como se os homens fizessem sexo com mulheres para exibir a sua masculinidade para os outros homens.
4. Dimensão das classificações emic das homossexualidades. Os homens homossexuais são classificados em função de três critérios gerais: visibilidade (50,58%), preferências sexuais (31,66%) e atributos hipermasculinos (17,76%), donde resulta uma classificação dicotómica que decalca o duplo-padrão. Esta classificação emic das homossexualidades está bem patente nos anúncios íntimos, impressos e electrónicos, e na correspondência de corte, e nas comunicações mediadas por computador e é fundamentalmente congruente com as nossas tipologias das homossexualidades masculinas e femininas.
Segundo a visibilidade, os homossexuais são classificados em função da aparência e atractividade física (1º), em muito atraentes e pouco atraentes, em função do duplo-padrão (2º), em masculinos e efeminados, em função da compleição física (3º), em musculosos e em «amulherados», e em função das exibições (4º), em discretos e em escandalosos.
Nas preferências sexuais, destacam-se as actividades sexuais (1º), os papéis sexuais (2º) e a idade (3º). Os homossexuais mais velhos são vistos como pouco atraentes.
Evidencia-se nos atributos hipermasculinos uma clara preferência por parceiros sexuais «bem dotados» (2º) e sexualmente potentes (1º). (A experiência heterossexual é referida uma única vez, embora seja usada como indicador de masculinidade e virilidade). Tanto quanto sabemos nenhum estudo sobre os atributos dos parceiros preferidos captou este padrão: os homens homossexuais preferem parceiros dotados de pénis com grandes dimensões e com fortes erecções. O contacto visual olhos-no-pénis visa avaliar as dimensões do pénis do potencial parceiro sexual, o denominado «papo», além de indicar disponibilidade e interesse sexuais. É, por isso, que os homossexuais, em particular os masculinizados e activos, fazem nudismo e exibições fálicas nos lugares que propiciam as actividades sexuais, nomeadamente nas praias periféricas e estações de serviço.
5. Dimensão da vida conjugal gay e adultério. Os sete campos lexicais que constituem esta dimensão seguem a seguinte ordem decrescente: compromisso e tipos de uniões estáveis (1º), membros do casal gay (2º), cometer adultério (3º), parceiro traído (4º), particularidades da vida conjugal (5º), divórcio (6º) e ligações extraconjugais (7º). Paradoxalmente, na dimensão da vida conjugal e adultério, o campo lexical predominante é o do compromisso e tipos de uniões estáveis, intimamente associado ao campo dos membros do casal gay. Este facto revela uma discrepância entre o tipo «ideal» de ligação a longo prazo almejada pelos homossexuais e as ligações a curto prazo observadas, a qual reflecte uma insatisfação gay com o seu estilo de vida sexualmente promíscuo predominante. As uniões estáveis são enfaticamente caracterizadas como ligações afectivas.
No adultério, observa-se o mesmo preconceito heterosexista: o indivíduo traído é muito estigmatizado e maltratado e o parceiro infiel acaba por ser até certo ponto admirado.
6. Dimensão dos elementos do comportamento sexual. A erecção (1º) e a ejaculação/orgasmo (2º) são os elementos do comportamento sexual mais mencionados. Seguem-se a excitação sexual (3º) e o sémen (4º). Todos estes elementos são traços especificamente masculinos, tidos como características dos homossexuais com «aspecto masculino e jovem» e preferencialmente activos e dominantes. No entanto, o campo da excitação sexual também refere a excitação anal, atribuída aos homossexuais passivos. O predomínio da erecção, isto é, do pénis erecto, coaduna-se, como seria de esperar, com a noção do pénis como o desencadeador corporal sexual mais erótico, em torno do qual gira a atracção homossexual.
7. Dimensão do estilo de vida predominante e «ambientes». Na dimensão do estilo de vida predominante, a promiscuidade sexual e seus dependentes (1º) e os «ambientes» (2º) predominam sobre os riscos do comportamento sexualmente promíscuo (4º) e a Sida e sexo seguro (3º), mais outra indicação de que os homens homossexuais portugueses praticam sexo sem preservativo. Os «ambientes» mais referidos são aqueles que propiciam a actividade sexual, os chamados oásis eróticos.
8. Dimensão da iniciação homossexual. A iniciação homossexual é dominada claramente pela iniciação sexual propriamente dita (1º) e pela identidade gay (2º), entendida como «discrição», seguindo-se a classificação dos participantes (3º) e a homosocialização (4º). A ausência de preocupação real pela formação de uma identidade gay saudável deve-se ao facto da maior parte dos homossexuais portugueses, sobretudo os masculinizados, preferirem viver a sua homossexualidade na clandestinidade, evitando assim conflitos com a família e entidades patronais. Contudo, a clandestinidade tem os seus preços, quer ao nível da saúde, quer ao nível da coesão da comunidade gay, porquanto o processo de «coming out» é não apenas um acto pessoal, mas também um acto ideológico (De Cecco, 1984; Grierson & Smith, 2005).
9. Dimensão da sociedade e conflito ideológico. A homofobia e seus efeitos (1º) destacam-se na dimensão da sociedade e conflito ideológico, seguindo-se o conflito entre a sociedade heterosexista e comunidade gay (2º) e as lutas do movimento gay (3º). Compreende-se facilmente o papel de destaque desempenhado pela homofobia e pelos preconceitos sexuais manifestados contra os homossexuais desde a infância (Corliss, Cochran & Mays, 2000; Parrott & Zeichner, 2006), mas o último lugar atribuído aos movimentos gay mostra que os homossexuais portugueses são pouco reivindicativos e empenhados politicamente, preferindo viver na clandestinidade.
10. Dimensão das ligações homossexuais e parceiros sexuais. Com excepção das uniões estáveis, os homossexuais distinguem três tipos de ligações: encontros ocasionais (1º), semanticamente relacionados com o estilo de vida sexualmente promíscuo dos homossexuais, ligações breves (2º) e ligações prolongadas (4º), às quais correspondem o parceiro ocasional ou estranho, o parceiro amante e o parceiro companheiro, respectivamente (3º). A amizade e o sexo não se diferenciam no mundo gay: um grupo de amigos constitui também uma «lista» de potenciais parceiros sexuais. À partida parece haver uma contradição entre o destaque das ligações a curto prazo e o papel de relevo dado às uniões estáveis na dimensão cognitiva da vida conjugal gay e do adultério. No entanto, independentemente da insatisfação, podemos afirmar que, tal como os homens heterossexuais, os homens gay adoptaram uma estratégia sexual de acasalamento mista: conjugam uma ligação a longo prazo com relações extraconjugais ocasionais, muitas das quais acontecem nos lugares de trabalho (Traeen, Holmen & Stigum, 2007; Buss, 1989). A própria classificação dos parceiros sexuais mostra que os homens gay distinguem entre dois tipos de fidelidade ou de infidelidade: sexual e emocional, e, ao contrário dos homens heterossexuais e de modo semelhante às mulheres, consideram que a infidelidade emocional é mais ameaçadora que a infidelidade sexual, podendo levar ao divórcio (Buunk & Dijkstra, 2001; Sagarin et al., 2003; Shackelford et al., 2004; Buss et al., 1999; Buss & Shackelford, 1997; Wood & Eagly, 2002; Geary, Vigil & Byrd-Craven, 2004; Schmitt, Shackelford & Buss, 2001; Harris, 2000).
11. Dimensão das orientações sexuais. Finalmente, a orientação sexual que mais preocupa os homossexuais masculinos é a própria homossexualidade (1º), a que se seguem a heterossexualidade masculina (2º), a homossexualidade feminina (3º), a bissexualidade (4º) e a heterossexualidade feminina (5º). A homossexualidade masculina é enfaticamente definida como «gostar curtir com o mesmo instrumento». Contudo, ao contrário do imaginário heterossexual radical, os homens homossexuais não estigmatizam a heterossexualidade masculina ou mesmo feminina, porquanto os homens heterossexuais constituem, de certo modo, os seus alvos sexuais preferidos ou exemplares, pelo menos em fantasia e a figura da mulher está associada no seu imaginário à figura da mãe.
(Este texto é um resumo de um estudo estatístico do léxico erótico gay português que faz parte da minha Tese de Doutoramento. Algums dados e considerações foram omitidos, bem como a comparação dos léxicos gay e heterossexual. As classificações emic das homossexualidades masculinas confirmam cabalmente a nossa tipologia das homossexualidades, mostrando que os próprios machos homossexuais seguem uma classificação dicotómica, atribuindo e diferenciando cada um dos tipos básicos de machos homossexuais em função de determinados traços ou características, muitas das quais são levadas em conta pelos estudos científicos disponíveis, mas sem diferenciar internamente a amostra.)
Se a relação com a sociedade instituída for de rejeição da sua ideologia sexual dominante, o heterosexismo, a sua relação com a própria homossexualidade só pode ser encarada em termos de imaginário instituinte (Castoriadis, 1975, Durand, 1998, Bachelard, 1989, 1990a, 1990b, 1996a, 1996b, Althusser, 1974, Sartre, 1940): os homossexuais instituem o seu próprio mundo e apresentam-no como uma alternativa social e cultural ao mundo heterossexual predominante. É a isso que chamamos um estilo de vida autónomo. Mas, se a relação com a sociedade instituída for de aceitação plena ou de compromisso explícito ou tácito com a sua ideologia heterosexista dominante, a sua relação com a própria homossexualidade é necessariamente deformada e distorcida precisamente pelo facto de permanecer uma província da cultura do duplo-padrão dominante: os homossexuais, em vez de instituírem o seu próprio mundo através de um imaginário instituinte, deixam-se colonizar pelo imaginário instituído dominante. É a isso que chamamos um estilo de vida heterónomo.
Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto complexo de maneiras de agir, de pensar e de sentir, inscritas materialmente em determinados espaços sociais, que tipificam e caracterizam as práticas quotidianas de um determinado grupo ao longo da sua existência no tempo e no mundo em que habitam. Ou, como prefere Giddens (1994), é «um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo adopta, não só porque essas práticas satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade» (p.73). Estilo de vida autónomo e estilo de vida heterónomo são, portanto, duas construções ideais, sem as quais não poderíamos expor os dados empíricos e determinar as diferenciações que ocorrem no seu seio.
Em geral, as homossexualidades emersas que abrangem as homossexualidades femininas emancipadas e as homossexualidades masculinas masculinizadas têm um estilo de vida autónomo, enquanto as homossexualidades imersas que integram as homossexualidades masculinas efeminadas e as homossexualidades femininas masculinizadas e muitíssimo efeminadas têm um estilo de vida heterónomo. Este agrupamento das homossexualidades masculinas e femininas em torno de dois estilos de vida ideais pode ser diferenciado, quer em função do sexo, quer em função das relações que estabelecem entre si. Assim, obtemos quatro estilos de vida homossexuais:
Estilo de vida autónomo dos homossexuais masculinos emersos. Dizemos que os quatro subtipos de homens homossexuais masculinizados são emersos, não para significar com tal termo a sua «visibilidade social», mas antes para acentuar o modo criativo e liberto de preconceitos como aceitam e «assumem» a sua homossexualidade. À definição social do maricas opõem uma nova construção instituinte da homossexualidade: o Gay é o homossexual que, rejeitando o estereótipo social, afirma, nesse acto, a sua autonomia. O seu estilo de vida é autónomo, na medida em que recusa o imaginário instituído na e pela sociedade dominante a favor de um novo imaginário: um imaginário radical que cria uma nova imagem de homossexual ou novas maneiras de ser gay.
Estilo de vida heterónomo dos homossexuais masculinos imersos. Dizemos que os quatro subtipos de homens homossexuais efeminados, mas sobretudo os hiperefeminados, são imersos, não para significar com tal termo a sua «invisibilidade social», porquanto são os mais visíveis, mas antes para mostrar que vivem a sua homossexualidade nos termos impostos pela ideologia sexual dominante. A sua experiência da homossexualidade é aquela que lhes é imposta, durante a socialização, pela ideologia sexual dominante. Os homossexuais masculinos imersos vivem subjugados, sujeitados e submetidos aos padrões sexuais da ideologia dominante: a sua homossexualidade é extremamente visível em termos sociais, uma vez que todas as pessoas conhecem a definição social do maricas e, por conseguinte, sabem reconhecer os que agem em conformidade com esse estereótipo social. Constituem aquilo a que os homossexuais masculinos emersos chamam «o lado publicitário do movimento gay». São, pois, indivíduos, simultaneamente, integrados e «marginalizados» na e pela sociedade estabelecida. O seu estilo de vida decorre nos espaços que a sociedade lhes reserva e, como tal, é fortemente condicionado pela mesma (Nicolas, 1982). A heteronomia é a estrutura caracterizadora do seu estilo de vida.
Estilo de vida autónomo das lésbicas emersas. Dizemos que as lésbicas emancipadas são emersas, não para significar com tal termo a sua «visibilidade social», mas antes para acentuar o modo criativo e liberto de preconceitos como aceitam e «assumem» a sua homossexualidade. O seu estilo de vida é autónomo, na medida em que, recusando a colonização da sua homossexualidade, inventaram novas formas de ser homossexual, com as quais se identificam e em conformidade com as quais agem, pensam e sentem.
Estilo de vida heterónomo das lésbicas imersas. Dizemos que as lésbicas masculinizadas e demasiado efeminizadas são imersas, não para significar com tal termo a sua «invisibilidade social», mas antes para mostrar que vivem a sua homossexualidade nos termos impostos pela ideologia sexual dominante. Deste grupo de lésbicas aquelas que são mais facilmente reconhecidas socialmente são, sem dúvida, as homossexuais masculinizadas caricaturais; as restantes passam despercebidas, pelo menos ao olhar pouco instruído. Dado a sua vivência da homossexualidade decorrer em conformidade com o imaginário sexual instituído, o seu estilo de vida é claramente heterónomo. Objectiva e subjectivamente, são homossexuais colonizados, destituídos de uma identidade própria.
As relações que os quatro grupos homossexuais estabelecem entre si são de dois tipos — de proximidade e de distância. As homossexuais femininas imersas e os homossexuais masculinos imersos aproximam-se entre si e as homossexuais femininas emersas e os homossexuais masculinos emersos tendem a distanciar-se entre si, embora partilhem um imaginário instituinte semelhante (Estudo em preparação). Estas relações intra e inter-homossexuais reflectem as relações que cada um dos grupos estabelece com a ideologia sexual dominante. As homossexualidades emersas são aquelas que emergem de modo criativo por oposição à ideologia sexual dominante: o seu imaginário é radical e autónomo. As homossexualidades imersas são aquelas que se deixaram colonizar pela ideologia sexual dominante.
Ora, a moderna ideologia gay é o imaginário radical das homossexualidades emersas: o seu alvo de ataque é a colonização das homossexualidades por parte da ideologia sexual dominante que não lhes reconhece o direito à existência e à diferença.
Contudo, apesar desta diferenciação sócio-ideológica, existe um conjunto de variáveis que tende a criar uma certa uniformidade entre os diversos estilos de vida homossexuais: trata-se evidentemente da promiscuidade sexual. Os homossexuais que têm consciência disso tendem a distinguir dois tipos de promiscuidade sexual: as formas “boa” e “má” da promiscuidade sexual, a primeira atribuída aos homossexuais que vivem a sua homossexualidade “sem preconceitos” e a segunda atribuída aos que a vivem “com preconceitos de diversas ordens”. Escusado será dizer que esta distinção tende a coincidir respectivamente com as oposições entre “sexo grátis” e “sexo não grátis” e “homossexuais normais” e “ralé gay”. Embora se reconheça uma certa diferenciação da promiscuidade sexual, ela é encarada de um ponto de vista demasiado «elitista». Contudo, das pressões que o atractor da inércia exerce sobre os diversos estilos de vida homossexuais resulta uma diferenciação interna da própria promiscuidade sexual e, consequentemente, a emergência de diversos estilos de vida sexualmente promíscuos, que serão examinados no estudo seguinte.
A comparação dos léxicos eróticos heterossexual e homossexual evidencia imediatamente que ambos são criações masculinas, o que abona a favor da tese de Dale Spender (1980), segundo a qual a linguagem tanto evidencia a história da dominação masculina, como constitui um instrumento de «opressão», uma vez que restringe a maneira pela qual os homens classificam e conceptualizam as mulheres e até mesmo a maneira pela qual as mulheres pensam sobre si mesmas e sobre o mundo. De facto, a preocupação homossexual masculina pela linguagem não se verifica entre as lésbicas. Se a opressão feminina, passada e actual, é não somente reflectida na linguagem, mas também o seu resultado, dado ter um vocabulário derrogatório bem desenvolvido em relação à mulher, as lésbicas são duplamente derrogadas enquanto mulheres e enquanto lésbicas. As lésbicas observadas não exibiram capacidade de produção de significados. Daí que não tenhamos conseguido elaborar um léxico erótico lésbico. A sua linguagem parasita claramente a linguagem gay, como se pode verificar consultando o Dicionário Gay/Lésbico Ilustrado do site PortugalGay.PT.
Além de serem criações masculinas, as linguagens eróticas analisadas desvalorizam as mulheres. O domínio masculino, heterossexual ou homossexual, da linguagem manifesta-se em três marcas: (1) os homens produzem significados; (2) os homens desvalorizam as mulheres e (3) os homens sobrevalorizam a masculinidade. As linguagens eróticas são claramente «linguagens falocráticas» (Preti, 1984). E, curiosamente, os homossexuais efeminados, apesar de serem extremamente fluentes na fala e no discurso, tal como as mulheres heterossexuais (Kucian et al., 2005; Crucian & Berenbaum, 1998; Newman, Sellers & Josephs, 2005; Cohen-Kettenis et al., 1998), mostram-se pouco capazes de gerar significados de grupo: a sua atitude é a defensiva. Os homossexuais hiperefeminados encaram-se voluntariamente como «mulheres»: eles querem ser «elas» e é, como se fossem «elas», que se tratam entre si. A sua visão da homossexualidade é a da passividade «malcriada». Sujeitam-se, sem resistência, ao discurso heterosexista, deixando-se interpelar como «maricas» (Althusser, 1974, Berger, 1986). Eles/elas não precisam gerar novos significados, dado estarem satisfeitos com a rotulagem dominante.
Destas considerações resultam três conclusões gerais a tirar e, neste aspecto, não podemos ser politicamente correctos: (1) o poder é masculino, (2) a sexualidade é predominantemente masculina, como diria o Professor Custódio Rodrigues, e (3), se a linguagem é «história sedimentada», a conclusão de Spender, que alargamos às lésbicas e aos homossexuais efeminados, sobretudo os hiperefeminados, é correcta: as mulheres e seus associados masculinos estão aprisionados linguisticamente e «sem saída». Carecem, portanto, de um jogo de linguagem autónomo. Este aprisionamento reflecte a infra-estrutura biológica que partilhamos com os restantes mamíferos: o domínio do macho. Encarar o problema das mulheres e seus associados masculinos como um problema de inacessibilidade ao poder, como faz Cameronn (1985), não é um caminho adequado. A história é a história dos homens e, como diz Walter Benjamin (1992), dos homens «vencedores»: a origem da dominação masculina perde-se, como diz Spender, no passado, ou melhor, na genética das sociedades de caçadores. Deborah Smith (1979) faz a este propósito uma observação curiosa: A tradição intelectual ocidental e a história das publicações impressas são certamente a história dos empreendimentos masculinos ou, como as feministas poeticamente preferem dizer, "his-story". Em inglês, history (história) torna-se, para as feministas, "his" (dele, a sua), mais "story" (história), não havendo a forma "her-story" (a história dela).
Os resultados deste estudo da linguagem erótica gay estão em conformidade com aqueles apresentados por Joel W. Wells (1987, 1990). Com efeito, verifica-se que o uso da linguagem erótica em diferentes contextos das relações interpessoais varia em função do género e da orientação sexual, sendo sexualmente mais excitante para os homens do que para as mulheres. Em média, os homens tendem a usar mais essa linguagem do que as mulheres, e os homens e mulheres homossexuais usam mais frequentemente um vocabulário erótico ou excitante, sobretudo em conversas em chat, do que os homens e as mulheres heterossexuais, pelo menos nas suas relações amorosas. Aliás, alguns homens heterossexuais que, auto-classificando-se no topo da hierarquia social e educacional, julgam ser «feio dizer palavrões em público» e gostar de «jogos masculinos rudes», de resto um tipo heterossexual masculino que exibe traços sexualmente atípicos e afectados, quase do tipo enfastiado de efeminamento (Tripp, 1978). No entanto, os homens homossexuais, quando interagem real ou virtualmente com os companheiros ou potenciais parceiros sexuais, usam quase exclusivamente uma linguagem sexualmente provocadora e excitante. Entre os homens homossexuais, verifica-se que os activos e mais masculinizados usam espontânea e abundantemente essa linguagem, enquanto os passivos e efeminados se limitam a oferecer os seus serviços sexuais, como por exemplo: «Queres que te faça um broche?». Esta mensagem apareceu frequentemente no meu telemóvel no decurso da pesquisa interactiva. Os seus emissores têm essa mensagem e outras similares guardadas nos seus telemóveis, porquanto a enviam regularmente e, por vezes, mais de uma vez por dia para os nomes que constam nas suas «listas íntimas», na expectativa de marcarem um encontro sexual.
Mas a linguagem erótica gay é mais do que um depósito de palavras eróticas usadas para aumentar a excitação sexual: ela estrutura uma visão do mundo, a que chamámos moderna ideologia gay, cujo objectivo é combater a concepção social do maricas e acentuar a condição masculina dos homossexuais, mediante a valorização de traços masculinos e hipermasculinos e a desvalorização da feminilidade, de modo a cimentar uma comunidade gay autónoma e liberta dos estereótipos sociais. Assim, este estudo da linguagem erótica gay portuguesa foi realizado afim de testar, ao nível do vocabulário, a hipótese de Sapir-Wolff, que Clyde Kluckhohn (1972) sintetizou nestes termos: «A língua é, em certo sentido, uma filosofia» (p.165), levando em conta que, numa língua, é o léxico que «reflecte mais directamente as realidades não linguísticas» (Martinet, 1974, p.36). Schutz (1974) acentuou que as tipificações se encontram elaboradas no vocabulário da linguagem ordinária e, no nosso caso, no uso que os próprios homossexuais fazem dela em contextos práticos da vida quotidiana. A visão do mundo que está implícita na linguagem erótica gay foi estruturada, seguindo indicações contextuais de uso, em onze dimensões cognitivas, que, em termos quantitativos, se ordenam seguindo esta sequência decrescente: actividades homossexuais (1), sexualidades alternativas (2), desencadeadores sexuais corporais (3), classificações emic das homossexualidades (4), vida conjugal gay e adultério (5), elementos do comportamento sexual (6), estilo de vida predominante e ambientes (7), iniciação homossexual (8), ligações homossexuais e parceiros sexuais (9), sociedade e conflito ideológico (10) e orientações sexuais (11). Verifica-se claramente um predomínio do sexo sobre qualquer outro assunto, mesmo aquele que interessa a todos e que deveria estar no cerne da ideologia gay: o da sociedade e conflito ideológico. E, conforme mostraram Witter et al. (2005), os homens homossexuais incluem mais referências sexuais em relação a eles próprios nos seus anúncios íntimos do que os homens heterossexuais.
1. Dimensão das actividades homossexuais. Das actividades homossexuais a mais preferida é claramente o sexo anal (1º), seguida pela conquista sexual (2º), sexo oral (3º), preliminares sexuais (4º), masturbação (5º), comportamentos pós-coitais (6º), papel desempenhado na corte e coito entre-pernas e entre-nádegas (ambos em 7º), cunnilingus (8º) e, finalmente, cópula por fricção (9º). Os homens que fazem sexo com homens preferem claramente praticar o coito anal e o sexo oral como preparação para o primeiro, com parceiros sexuais ocasionais seduzidos nos lugares públicos reservados a essa função. O campo lexical da conquista sexual configura um estilo de vida centrado na procura compulsiva de parceiros sexuais.
2. Dimensão das sexualidades alternativas. Das sexualidades alternativas a mais referida é a prostituição masculina (1º), claramente um estilo de vida de determinados tipos de homossexuais, a que se segue o sadomasoquismo (2º), o exibicionismo, voyeurismo e fetichismo (3º), a homossexualidade feminina (4º), a pederastia e pedofilia (5º), o travestismo e transexualismo (6º), o sexo em grupo (7º), o oportunismo (8º), a urologia e escatologia (9º), a heterossexualidade (10º), a pornografia gay (11º), a bissexualidade (12º), a zoofilia (13º) e, finalmente, o sexo com velhos (14º).
3. Dimensão dos desencadeadores sexuais corporais. O pénis (1º), o ânus (3º), os testículos (4º) e as nádegas (5º) são, por esta ordem, os desencadeadores sexuais corporais mais apreciados. Seguem-se depois a pilosidade (6º), os órgãos genitais masculinos (7º), a glande (8º), o prepúcio e os odores (ambos em 9º), a vagina (10º) e, finalmente, o escroto (11º). As outras partes do corpo foram classificadas conjuntamente (2º). O pénis e o ânus são, sem dúvida, os desencadeadores corporais sexuais mais atractivos para todos os homens gay e, com excepção da vagina, todos os outros desencadeadores sexuais são traços e estruturas masculinas. Embora não tenham sido tratadas separadamente, a boca, os olhos, as mãos, o pescoço ou a língua são estruturas muito valorizadas eroticamente.
Em termos estritamente homossexuais, é compreensível o destaque dos órgãos genitais masculinos e do ânus/nádegas, porquanto estas são as estruturas eroticamente mais atractivas e mais usadas nas relações gay, mas o mesmo não pode ser dito em relação aos homens heterossexuais. No entanto, os léxicos eróticos heterossexuais destacam os órgãos genitais masculinos em detrimento dos órgãos genitais femininos. Além disso, a vagina não é alvo de discriminações mais subtis, como se fosse uma mera «bainha» ou como se os homens fizessem sexo com mulheres para exibir a sua masculinidade para os outros homens.
4. Dimensão das classificações emic das homossexualidades. Os homens homossexuais são classificados em função de três critérios gerais: visibilidade (50,58%), preferências sexuais (31,66%) e atributos hipermasculinos (17,76%), donde resulta uma classificação dicotómica que decalca o duplo-padrão. Esta classificação emic das homossexualidades está bem patente nos anúncios íntimos, impressos e electrónicos, e na correspondência de corte, e nas comunicações mediadas por computador e é fundamentalmente congruente com as nossas tipologias das homossexualidades masculinas e femininas.
Segundo a visibilidade, os homossexuais são classificados em função da aparência e atractividade física (1º), em muito atraentes e pouco atraentes, em função do duplo-padrão (2º), em masculinos e efeminados, em função da compleição física (3º), em musculosos e em «amulherados», e em função das exibições (4º), em discretos e em escandalosos.
Nas preferências sexuais, destacam-se as actividades sexuais (1º), os papéis sexuais (2º) e a idade (3º). Os homossexuais mais velhos são vistos como pouco atraentes.
Evidencia-se nos atributos hipermasculinos uma clara preferência por parceiros sexuais «bem dotados» (2º) e sexualmente potentes (1º). (A experiência heterossexual é referida uma única vez, embora seja usada como indicador de masculinidade e virilidade). Tanto quanto sabemos nenhum estudo sobre os atributos dos parceiros preferidos captou este padrão: os homens homossexuais preferem parceiros dotados de pénis com grandes dimensões e com fortes erecções. O contacto visual olhos-no-pénis visa avaliar as dimensões do pénis do potencial parceiro sexual, o denominado «papo», além de indicar disponibilidade e interesse sexuais. É, por isso, que os homossexuais, em particular os masculinizados e activos, fazem nudismo e exibições fálicas nos lugares que propiciam as actividades sexuais, nomeadamente nas praias periféricas e estações de serviço.
5. Dimensão da vida conjugal gay e adultério. Os sete campos lexicais que constituem esta dimensão seguem a seguinte ordem decrescente: compromisso e tipos de uniões estáveis (1º), membros do casal gay (2º), cometer adultério (3º), parceiro traído (4º), particularidades da vida conjugal (5º), divórcio (6º) e ligações extraconjugais (7º). Paradoxalmente, na dimensão da vida conjugal e adultério, o campo lexical predominante é o do compromisso e tipos de uniões estáveis, intimamente associado ao campo dos membros do casal gay. Este facto revela uma discrepância entre o tipo «ideal» de ligação a longo prazo almejada pelos homossexuais e as ligações a curto prazo observadas, a qual reflecte uma insatisfação gay com o seu estilo de vida sexualmente promíscuo predominante. As uniões estáveis são enfaticamente caracterizadas como ligações afectivas.
No adultério, observa-se o mesmo preconceito heterosexista: o indivíduo traído é muito estigmatizado e maltratado e o parceiro infiel acaba por ser até certo ponto admirado.
6. Dimensão dos elementos do comportamento sexual. A erecção (1º) e a ejaculação/orgasmo (2º) são os elementos do comportamento sexual mais mencionados. Seguem-se a excitação sexual (3º) e o sémen (4º). Todos estes elementos são traços especificamente masculinos, tidos como características dos homossexuais com «aspecto masculino e jovem» e preferencialmente activos e dominantes. No entanto, o campo da excitação sexual também refere a excitação anal, atribuída aos homossexuais passivos. O predomínio da erecção, isto é, do pénis erecto, coaduna-se, como seria de esperar, com a noção do pénis como o desencadeador corporal sexual mais erótico, em torno do qual gira a atracção homossexual.
7. Dimensão do estilo de vida predominante e «ambientes». Na dimensão do estilo de vida predominante, a promiscuidade sexual e seus dependentes (1º) e os «ambientes» (2º) predominam sobre os riscos do comportamento sexualmente promíscuo (4º) e a Sida e sexo seguro (3º), mais outra indicação de que os homens homossexuais portugueses praticam sexo sem preservativo. Os «ambientes» mais referidos são aqueles que propiciam a actividade sexual, os chamados oásis eróticos.
8. Dimensão da iniciação homossexual. A iniciação homossexual é dominada claramente pela iniciação sexual propriamente dita (1º) e pela identidade gay (2º), entendida como «discrição», seguindo-se a classificação dos participantes (3º) e a homosocialização (4º). A ausência de preocupação real pela formação de uma identidade gay saudável deve-se ao facto da maior parte dos homossexuais portugueses, sobretudo os masculinizados, preferirem viver a sua homossexualidade na clandestinidade, evitando assim conflitos com a família e entidades patronais. Contudo, a clandestinidade tem os seus preços, quer ao nível da saúde, quer ao nível da coesão da comunidade gay, porquanto o processo de «coming out» é não apenas um acto pessoal, mas também um acto ideológico (De Cecco, 1984; Grierson & Smith, 2005).
9. Dimensão da sociedade e conflito ideológico. A homofobia e seus efeitos (1º) destacam-se na dimensão da sociedade e conflito ideológico, seguindo-se o conflito entre a sociedade heterosexista e comunidade gay (2º) e as lutas do movimento gay (3º). Compreende-se facilmente o papel de destaque desempenhado pela homofobia e pelos preconceitos sexuais manifestados contra os homossexuais desde a infância (Corliss, Cochran & Mays, 2000; Parrott & Zeichner, 2006), mas o último lugar atribuído aos movimentos gay mostra que os homossexuais portugueses são pouco reivindicativos e empenhados politicamente, preferindo viver na clandestinidade.
10. Dimensão das ligações homossexuais e parceiros sexuais. Com excepção das uniões estáveis, os homossexuais distinguem três tipos de ligações: encontros ocasionais (1º), semanticamente relacionados com o estilo de vida sexualmente promíscuo dos homossexuais, ligações breves (2º) e ligações prolongadas (4º), às quais correspondem o parceiro ocasional ou estranho, o parceiro amante e o parceiro companheiro, respectivamente (3º). A amizade e o sexo não se diferenciam no mundo gay: um grupo de amigos constitui também uma «lista» de potenciais parceiros sexuais. À partida parece haver uma contradição entre o destaque das ligações a curto prazo e o papel de relevo dado às uniões estáveis na dimensão cognitiva da vida conjugal gay e do adultério. No entanto, independentemente da insatisfação, podemos afirmar que, tal como os homens heterossexuais, os homens gay adoptaram uma estratégia sexual de acasalamento mista: conjugam uma ligação a longo prazo com relações extraconjugais ocasionais, muitas das quais acontecem nos lugares de trabalho (Traeen, Holmen & Stigum, 2007; Buss, 1989). A própria classificação dos parceiros sexuais mostra que os homens gay distinguem entre dois tipos de fidelidade ou de infidelidade: sexual e emocional, e, ao contrário dos homens heterossexuais e de modo semelhante às mulheres, consideram que a infidelidade emocional é mais ameaçadora que a infidelidade sexual, podendo levar ao divórcio (Buunk & Dijkstra, 2001; Sagarin et al., 2003; Shackelford et al., 2004; Buss et al., 1999; Buss & Shackelford, 1997; Wood & Eagly, 2002; Geary, Vigil & Byrd-Craven, 2004; Schmitt, Shackelford & Buss, 2001; Harris, 2000).
11. Dimensão das orientações sexuais. Finalmente, a orientação sexual que mais preocupa os homossexuais masculinos é a própria homossexualidade (1º), a que se seguem a heterossexualidade masculina (2º), a homossexualidade feminina (3º), a bissexualidade (4º) e a heterossexualidade feminina (5º). A homossexualidade masculina é enfaticamente definida como «gostar curtir com o mesmo instrumento». Contudo, ao contrário do imaginário heterossexual radical, os homens homossexuais não estigmatizam a heterossexualidade masculina ou mesmo feminina, porquanto os homens heterossexuais constituem, de certo modo, os seus alvos sexuais preferidos ou exemplares, pelo menos em fantasia e a figura da mulher está associada no seu imaginário à figura da mãe.
(Este texto é um resumo de um estudo estatístico do léxico erótico gay português que faz parte da minha Tese de Doutoramento. Algums dados e considerações foram omitidos, bem como a comparação dos léxicos gay e heterossexual. As classificações emic das homossexualidades masculinas confirmam cabalmente a nossa tipologia das homossexualidades, mostrando que os próprios machos homossexuais seguem uma classificação dicotómica, atribuindo e diferenciando cada um dos tipos básicos de machos homossexuais em função de determinados traços ou características, muitas das quais são levadas em conta pelos estudos científicos disponíveis, mas sem diferenciar internamente a amostra.)
J Francisco Saraiva de Sousa
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