Edgar Morin tem razão, em termos conjunturais, quando afirmou que o desbloqueio da noção de vida torna possível o desbloqueio da noção de homem, o que significa, entre outras coisas, que a revelação biológica comanda a revolução científica que abre os domínios da antropologia às ciências biológicas, mas, estruturalmente falando, a sua análise peca por negligência da filosofia. Embora «louve» de modo ingénuo e apressado as tentativas de alguns filósofos, tais como Marx, Engels, Spencer ou mesmo Freud, para firmar a ciência do homem sobre uma base natural, Edgar Morin quando considera que a filosofia do homem sobrenatural foi uma das últimas resistências opostas à ciência do homem parece querer romper com toda e qualquer filosofia, como se esta tivesse os seus dias contados.
Este positivismo doentio de Morin não lhe permitiu ver e avaliar o enorme contributo da filosofia para o desbloqueio da noção de homem. Mais clarividente e muito mais inteligente do que Morin, o filósofo Plessner (1969), na sua obra Os Graus do Orgânico e o Homem, embora diga que a filosofia não deu nenhum contributo significativo para a antropologia, procura, sem sair da filosofia, indagar a partir de um ponto de vista biológico qual a estrutura fundamental de todo o ser orgânico. Segundo Plessner, o ser orgânico é uma crescente e gradual «centralização», bem como uma «posicionalidade própria». Chega-se assim a uma determinação do humano da qual a sua particularidade consiste numa potenciação muito específica dessas duas características do ser vivo.
A centralização e a posicionalidade atingem, no homem, a sua «peripécia», no sentido de que aquilo que em todos os sistemas puramente orgânicos é somente uma centralização imanente em correlação com um campo imediatamente circundante alcança no homem uma centralização que é, ao mesmo tempo, distância em relação às duas coisas. Assim, a «peripécia» adquire o carácter da reflexividade ou volta a si mesma, pela qual se tornam possíveis tanto a relação do homem consigo mesmo quanto a sua posse de um mundo objectivo. Culminando e aumentando continuamente o princípio da centralização, o homem caracteriza-se por uma centralização que se tornou uma concentração excêntrica. Esta faz do homem, no sentido objectivo, um ser «imperscrutável», o homo absconditus, o qual é para si mesmo «uma questão aberta». Sendo assim, o homem nunca se conhece nas suas últimas possibilidades mas somente nos actos e atitudes que se distinguem dele. Estes são, no entanto, determinados não só pela sua emancipação e liberdade fundamentais mas também pelas suas dependências em relação à natureza, à situação e aos vínculos históricos que o limitam exactamente na sua infinita soberania por eles simultaneamente pressuposta, traçando para a sua liberdade caminhos concretamente finitos.
A antropologia de Plessner, bem como a de A. Gehlen (1966) e de A. Portmann (1944, 1958), é uma teoria do homem a partir da apreensão da sua natureza («antropologia de baixo») e opõe-se, tal como a de Morin, à antropologia a partir da esfera espiritual do homem («antropologia de cima»). Mas, ao contrário da antropologia de Morin, a teoria do homem de Plessner não rompe com a filosofia, mas sim com algumas filosofias, mais precisamente as filosofias idealistas e espiritualistas do homem. Mais ainda: Plessner parece ter consciência de que não é possível uma ciência do homem que não seja simultaneamente filosófica e científica, o que abona a favor da nossa tese filosófica fundamental.
A breve referência que acabamos de fazer da antropologia filosófica de Plessner permite-nos trabalhar a diferença do nosso modelo antropológico sobre as teses defendidas por Edgar Morin, a partir de uma análise do seu modelo da organização. Descurada ingenuamente pelo filósofo Edgar Morin, a filosofia integrou, muito antes da biologia moderna, que é uma biologia não-cartesiana, o homem no universo. D. von Uslar (1977) verificou, num ensaio fulgurante e conciso, que, nos sistemas filosóficos modernos, o problema da natureza do homem está em relação com o problema do mundo e da natureza: quer dizer que os filósofos modernos pensam que o próprio ser do homem deve ser compreendido à luz do ser do mundo de que faz parte. Os três exemplos mais característicos em que o homem é visto como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo são os sistemas filosóficos de Spinoza, Leibniz e Schelling.
SPINOZA. O homem é compreendido por Espinosa como natureza. Desta imagem do homem resulta que, no sistema filosófico de Espinosa, a antropologia coincide com a teoria da natureza. Descartes designava por natureza uma parte ou um sector do ser que se podia contrapor ao espírito. Ora, para Espinosa a palavra natureza designa a realidade de tudo aquilo que existe. A totalidade do existente, pelo simples facto de existir, é vinculada à unidade infinita de tudo quanto existe. Esta unidade é a natureza. Se o homem é natureza, o seu ser é determinado pelo facto de constituir apenas uma parte infinitamente pequena da unidade natural. Mas a natureza não é somente totalidade e unidade de tudo quanto existe: ela é também a fonte do nascer para a própria realidade. Tudo o que existe, existe tão só em virtude da potência originante da natura naturans (natureza originante). Por conseguinte, a essência do homem é determinada pela sua participação nesta potência originante ou gerante. Como diz Espinosa (1960): «A potência do homem é‚ portanto, uma parte da potência infinita de Deus, ou seja, da Natureza» (IV, 4, p. 16). Assim, a potência com a qual um ser existente conserva a sua realidade é a potência infinita da natureza, enquanto esta se exprime neste ser individual. Consequentemente, o impulso do homem, no sentido de conservar-se no ser, constitui uma expressão da potência da Natureza. A essência do homem reside, por isso, num instinto que mais não é que a maneira pela qual se manifesta no homem a tendência de todo o ser para a realidade.
Espinosa concebeu como uma necessidade absoluta a força extraordinária com a qual a natureza gera para o ser tudo quanto existe. Ora, este factor originante ou gerante (a razão da realidade) é a própria natureza. A metafísica escolástica deu o nome Deus àquilo que é a razão de si mesmo e que possui a força de gerar a si mesmo. Ora, Espinosa deu o nome de Deus à natureza e fala mesmo da potência do ser contida na natureza divina (potentia divinae naturae). Deste modo, designa a natureza como aquilo que se gera a si mesmo. A distinção entre a natureza originante (natura naturans) e a natureza originada (natura naturata) corresponde à distinção entre o ser e o existente. Como o ser da natureza não tem uma razão fora de si mesmo, Espinosa diz que ele existe em virtude da sua própria força. Sendo assim, existe uma identidade entre a natura naturans e a natura naturata que, segundo Espinosa, exprime o próprio mistério do ser. Portanto, tudo o que existe, na medida em que existe, participa da necessidade com a qual a natura naturans implica a natura naturata.
A breve referência que acabamos de fazer da antropologia filosófica de Plessner permite-nos trabalhar a diferença do nosso modelo antropológico sobre as teses defendidas por Edgar Morin, a partir de uma análise do seu modelo da organização. Descurada ingenuamente pelo filósofo Edgar Morin, a filosofia integrou, muito antes da biologia moderna, que é uma biologia não-cartesiana, o homem no universo. D. von Uslar (1977) verificou, num ensaio fulgurante e conciso, que, nos sistemas filosóficos modernos, o problema da natureza do homem está em relação com o problema do mundo e da natureza: quer dizer que os filósofos modernos pensam que o próprio ser do homem deve ser compreendido à luz do ser do mundo de que faz parte. Os três exemplos mais característicos em que o homem é visto como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo são os sistemas filosóficos de Spinoza, Leibniz e Schelling.
SPINOZA. O homem é compreendido por Espinosa como natureza. Desta imagem do homem resulta que, no sistema filosófico de Espinosa, a antropologia coincide com a teoria da natureza. Descartes designava por natureza uma parte ou um sector do ser que se podia contrapor ao espírito. Ora, para Espinosa a palavra natureza designa a realidade de tudo aquilo que existe. A totalidade do existente, pelo simples facto de existir, é vinculada à unidade infinita de tudo quanto existe. Esta unidade é a natureza. Se o homem é natureza, o seu ser é determinado pelo facto de constituir apenas uma parte infinitamente pequena da unidade natural. Mas a natureza não é somente totalidade e unidade de tudo quanto existe: ela é também a fonte do nascer para a própria realidade. Tudo o que existe, existe tão só em virtude da potência originante da natura naturans (natureza originante). Por conseguinte, a essência do homem é determinada pela sua participação nesta potência originante ou gerante. Como diz Espinosa (1960): «A potência do homem é‚ portanto, uma parte da potência infinita de Deus, ou seja, da Natureza» (IV, 4, p. 16). Assim, a potência com a qual um ser existente conserva a sua realidade é a potência infinita da natureza, enquanto esta se exprime neste ser individual. Consequentemente, o impulso do homem, no sentido de conservar-se no ser, constitui uma expressão da potência da Natureza. A essência do homem reside, por isso, num instinto que mais não é que a maneira pela qual se manifesta no homem a tendência de todo o ser para a realidade.
Espinosa concebeu como uma necessidade absoluta a força extraordinária com a qual a natureza gera para o ser tudo quanto existe. Ora, este factor originante ou gerante (a razão da realidade) é a própria natureza. A metafísica escolástica deu o nome Deus àquilo que é a razão de si mesmo e que possui a força de gerar a si mesmo. Ora, Espinosa deu o nome de Deus à natureza e fala mesmo da potência do ser contida na natureza divina (potentia divinae naturae). Deste modo, designa a natureza como aquilo que se gera a si mesmo. A distinção entre a natureza originante (natura naturans) e a natureza originada (natura naturata) corresponde à distinção entre o ser e o existente. Como o ser da natureza não tem uma razão fora de si mesmo, Espinosa diz que ele existe em virtude da sua própria força. Sendo assim, existe uma identidade entre a natura naturans e a natura naturata que, segundo Espinosa, exprime o próprio mistério do ser. Portanto, tudo o que existe, na medida em que existe, participa da necessidade com a qual a natura naturans implica a natura naturata.
No homem esta participação manifesta-se evidentemente na força cogente do impulso ou instinto. Este dirige-se para tudo o que favorece o ser do homem e evita tudo o que o contraria e coíbe. Como a força e o poder dos afectos reside no choque entre a natureza que está no homem e a natureza que está fora dele, eles mais não são que os efeitos originários que as coisas produzem no homem, na medida em que favorecem ou obstam o seu esforço de «ser». A tomada de consciência do impulso faz o homem desejar aquilo que mantém e favorece a sua existência. Assim o afecto original é para Espinosa a cupiditas (cupidez), que dirige o instinto do homem para o mundo. Como instinto aliado à consciência do mesmo, a cupidez é, na medida em que é determinada por uma afeição para o agir, a própria essência do homem.
As coisas que promovem ou favorecem este desejo original do homem despertam nele laetitia (alegria), enquanto as que o cerceiam ou abstaculam produzem nele tristitia (tristeza). Outras variantes desta tendência ou instinto são o amor e o ódio. Como o homem ama aquilo que lhe causa alegria e odeia aquilo que contraria a sua possibilidade de ser, Espinosa define o amor como alegria acompanhada da ideia de uma causa externa e o ódio como tristeza acompanhada também da ideia de uma causa extrínseca. A tendência ou instinto do homem choca constantemente com o mundo. Deste choque resulta um movimento flutuante da alma (fluctuatio animi) entre a alegria e a tristeza.
Para Espinosa a plenitude e a pluriformidade da vida afectiva do homem derivam dos elementos básicos descritos. Os afectos não são algo de exclusivamente interno, como um sentimento violento, mas a relação que o homem tem com o mundo. Alegria e tristeza, amor e ódio são, antropologicamente falando, experiências do ser. Mediante estas experiências o homem tem acesso, dentro de si mesmo, à natureza. Mas, ao mesmo tempo, a alegria e o ódio constituem a vibração ou sintonização do homem com o todo, que sente como uma modificação da natureza.
As modificações da vida afectiva representam assim variações do amor e do ódio. Estes são causados no homem pela pluriformidade das coisas com as quais ele entra em contacto. Espinosa apresenta uma teoria da libido que poder servir de fundamentação ontológica à teoria dos instintos de Freud. Mas a sua concepção da libido não é psicológica, mas sim ontológica. Considerada como um tipo especial de afecto, a libido é definida como cupidez e amor com vista à união do corpo. Como constitui um modo da natureza se manifestar no homem, a libido só pode ser dominada através da compreensão interna do conjunto da natureza durante a qual o homem entra numa sintonia tal com a totalidade que se sente carregado por ela. O caminho da cura leva-o a um aumento de alegria até chegar à beatitude ou felicidade (beatitudo). O homem desfruta desta beatitude, não porque domina a sua libido, mas porque, sendo capaz de dominar a libido, desfruta da felicidade de contemplar a si mesmo como natureza e, deste modo, contemplar a natureza na sua totalidade.
LEIBNIZ. A teoria do homem de Leibniz pode ser caracterizada por uma «perspectividade» multi-relacionada. A sua tese fundamental é a de que o homem é um espelho do mundo. O homem relaciona-se no que faz, pensa, representa ou percebe com o mundo. Mas o mundo revela-se a cada homem numa perspectiva diferente. Esta perspectiva resulta do facto da totalidade do ser se revelar a cada pessoa em função do lugar que ocupa no mundo. Pelo simples facto da sua percepção, cada pessoa é o ponto central de perspectiva do seu mundo: o que ela percepciona, percepciona-o em função do seu lugar no seio da realidade. O mundo que se apresenta está orientado para cada pessoa. Deste modo, cada um é uma representação do todo e a sua individualidade é caracterizada pelo seu ângulo específico de visão da totalidade. Embora cada indivíduo veja o mundo em função do lugar que ocupa no mundo, sabe que não é só ele que é o ponto de referência do seu mundo, visto que cada um dos outros indivíduos com quem vive também é ponto central de perspectiva do seu mundo. Por conseguinte, cada um dos outros aparece na nossa consciência como um espelho do universo.
Na experiência da sua própria realidade, cada um pode não só aceitar como evidente a realidade do mundo e da sua própria existência como tais, mas também perguntar-se porque razão existe algo, porque motivo não existe nada, e porque existe exactamente este mundo e não qualquer outro completamente distinto. Na verdade, não é evidente que exista algo. Poderia muito bem não existir nada. Não será um milagre incompreensível a existência do mundo e o facto de existirmos? Igualmente é de admirar que existam na realidade precisamente estas coisas, na sua peculiaridade inteiramente individual, quais se nos apresentam. Tudo poderia ser completamente diferente. Seriam possíveis um número infinito de outros mundos, de outras constelações de coisas. É uma característica peculiar do homem poder fazer tais perguntas. Por isso, a inquietação constante de Leibniz pelo problema da razão suficiente constitui o fundo antropológico propriamente dito do sistema leibniziano.
Como o homem existe como um espelho do mundo, e o mundo se revela onde existir um ser no qual possa assemelhar-se, é evidente que, para Leibniz, os problemas da natureza do mundo e da natureza do homem estão vinculados entre si. O mundo é tudo aquilo que realmente existe, existiu e existirá. É, pois, a totalidade e a unidade de tudo o que existe. Ora, esta totalidade manifesta-se, segundo Leibniz, no homem, ou melhor, espelha-se num ser, ao qual pode revelar-se e em cuja concepção o todo está, pois, representado. Todo o ser em cuja percepção o mundo se espelha é ele mesmo uma parte do mundo. Por isso, o mundo revela-se-lhe apenas através da perspectiva determinada pelo lugar específico que lhe cabe no todo. A verdadeira imagem do mundo só apareceria se ele mostrasse, não somente uma perspectiva, mas uma plenitude de perspectivas diferentes, as quais se completam num todo. Ora, a complementaridade recíproca dos diversos pontos de vista da consciência, os quais somente em conjunto representam o mundo como tal, constitui, segundo Leibniz, como que a vista na qual se representa o mundo da divindade.
Para Leibniz o mundo e a consciência, o sujeito e o objecto não se apresentam como elementos isolados, um frente ao outro. A consciência é de antemão determinada a partir do seu lugar específico no conjunto das coisas e, especialmente, a partir da sua relação com as perspectivas inteiramente diversas das outras pessoas e dos outros seres viventes. Assim a consciência e o espírito são apenas as formas mais elevadas da representação. Todo o ser vivente reflecte no seu ser o mundo. Mas nem todos os reflexos são conscientes: existem também, em todo e qualquer ser vivo, reflexos inconscientes e obscuros.
Todo o ser individual tem uma relação com o todo. Isto significa que cada ser, na sua existência, é um reflexo desse todo. Leibniz entende, portanto, o ser como representação. E esta sua ideia está associada à ideia de harmonia universal. O mundo é uno (ou unitário). Esta unidade só é possível porque as coisas se harmonizam entre si formando um todo em que as coisas estão conjuntamente com outras. O ser espiritual é apenas uma articulação desta relacionalidade em todo o ser. O ser existente é determinado pelo facto de representar o todo no lugar que ocupa dentro deste todo. O conceito de harmonia universal exprime, portanto, a unidade do ser que existe no todo. A consciência reflecte esta unidade numa perspectiva determinada mas só participa da harmonia do todo na sua relacionalidade com os outros reflexos possíveis do universo.
Por outro lado, o conceito de harmonia universalis permite a Leibniz responder à questão da razão suficiente: Por que razão existe exactamente este mundo, e não um outro qualquer? Por que motivo existem precisamente estas coisas, embora haja uma infinidade de outras possibilidades que têm o mesmo direito de existir na realidade? Com efeito, existe um enorme leque de mundos possíveis e imagináveis. Mas, dentre essas possibilidades, o mundo real ser aquele de cuja constelação resultar o maior grau de concretização de possibilidades. Ora, o mundo harmónico é precisamente aquele que é capaz de harmonizar entre si o maior número de possibilidades. Deste modo, a razão suficiente do mundo real reside na capacidade máxima de compaginar ou harmonizar possibilidades. Estas podem tornar-se e tornaram-se efectivamente reais nesta constelação. Assim o nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis.
SCHELLING. Na filosofia de Schelling, a natureza do homem também é determinada à luz da unidade e da totalidade do ser, mas a fonte destas já não consiste, como acontecia com Espinosa ou Leibniz, em aprofundar-se na natureza ou em contemplar o jogo infinito de reflexos das mónadas, mas sim no próprio eu. Com efeito, é no seu próprio eu que o homem faz a experiência original do ser e experimenta a identidade do fundamento e do fundamentado. No eu o absoluto manifesta-se ao homem. Deste modo, Schelling coloca o homem no ponto focal do problema do ser.
A unidade e a totalidade infinita do ser é absolutamente independente em si mesma, não podendo ser condicionada ou determinada por nada. Experienciamos este algo incondicionado em nós mesmos quando verificamos que tudo o que existe aparece-nos na consciência. É, portanto, a consciência que encerra no seu bojo a unidade infinita. Na consciência o ser existente, que lhe aparece, funde-se num todo. Ora, o lugar da experiência desta unidade é, portanto, o próprio eu. Todo o existente, pelo simples facto de existir, funde-se à unidade infinita do ser. Dado que o eu é o lugar em que se revela esta unidade de tudo o que existe, é no eu que experienciamos esta fusão antes mesmo de conhecermos o que quer que seja. O eu é, segundo Schelling, um lugar no qual se revela e brilha o absoluto.
A verdadeira profundidade e insondabilidade da consciência encontra-se na natureza da autoconsciência que, designada pela palavra eu, constitui a fonte da unidade de tudo aquilo que se nos depara. A filosofia de Schelling parte do princípio Kantiano segundo o qual a unidade transcendental da consciência se manifesta no facto de que a representação «Eu penso» acompanha todas as minhas outras representações. A autoconsciência é o seu próprio objecto. Quando digo «eu», faço-me objecto de mim mesmo. Na autoconsciência o sujeito e o objecto são idênticos. A autoconsciência só pode existir quando se faz objecto de si mesma. O significado antropológico da filosofia transcendental de Schelling reside na descoberta de que não se pode explicar a autoconsciência reduzindo-a a outra coisa qualquer, nomeadamente a processos fisiológicos ou outros, uma vez que ela só existe no seu auto-exercício. A sua natureza é uma identidade absoluta, não sendo condicionada por nada. Esta identidade da autoconsciência pode ser expressa pela fórmula eu=eu. O sinal de igualdade exprime o verdadeiro ser da autoconsciência. Com efeito, só quando compreendo que este eu como sujeito é idêntico ao eu como objecto, é que estou consciente de mim mesmo.
Mas, na identidade da autoconsciência, existe ao mesmo tempo uma duplicação que estabelece a distinguibilidade entre sujeito e objecto. Quer dizer que é necessário distinguir quem conhece daquilo que é conhecido. Só fazendo esta distinção é que se pode pasmar ante a identidade do sujeito e do objecto. Esta identidade estabelece a partir de si mesma o pólo do subjectivo e do objectivo, produzindo-os ao concretizar-se. Cada um dos elementos da proposição «eu=eu» é determinado pelo facto de identificar-se com o segundo, e vice-versa. Isto significa que cada um dos dois é em si mesmo um «eu=eu». Assim o sujeito da autoconsciência é determinado pelo facto de identificar-se com o objecto, sendo como tal um sujeito-objecto. Por outro lado, o seu objecto já‚ em si mesmo determinado pelo facto de ser idêntico ao sujeito, sendo também um objecto-sujeito. Os pólos da identidade absoluta na autoconsciência potencializam-se numa diferenciação infinita. Mas a identidade da autoconsciência suprime sempre de novo a diferenciação do sujeito e do objecto, e imediatamente deve estabelecer de novo esta diferença. O objecto do autoconhecimento deve sempre já conter o facto de que sou eu quem o conhece e o sujeito da autoconsciência só é plenamente compreendido sempre que se compreende ao mesmo tempo que o reflexo objectivo faz parte do seu ser. Ora, a autoconsciência produz-se a si mesma através desta realização ou concretização. Como ela só existe lá onde se conhece a si mesma, o ser e o conhecer, o ser e a verdade são, na filosofia transcendental de Schelling, a mesma coisa. Por fim, se o eu deve produzir-se a si mesmo no acto, Schelling considera que o fundamento e o fundamentado são também idênticos. Esta identidade absoluta entre o fundamento e o fundamentado, entre o ser e o existente, só é acessível na verdade do eu, uma vez que se manifesta na identidade entre o cognoscente e o conhecido, entre o sujeito e o objecto.
Spinoza, Leibniz e Schelling vêem o homem como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo. Embora as suas filosofias possam ser consideradas, no plano antropológico, como modelos «insulares» do homem, elas não tratam, no entanto, o problema do homem isoladamente do problema da natureza. Nestes três grandes sistemas filosóficos, a questão da natureza humana, tão grata a Edgar Morin, está intimamente vinculada ao problema da realidade do mundo em geral. No entanto, a análise do problema geral da relação homem/natureza varia de autor para autor. De uma maneira muito geral, podemos dizer que, na resposta ao problema do portador da unidade e da totalidade do ser, a tónica se desloca da substância para o sujeito. Enquanto que para Spinoza esta unidade é inquestionavelmente a natureza, para Schelling ela coincide totalmente com a unidade do sujeito. Leibniz parece aqui representar um meio termo. Com efeito, para Leibniz a unidade do ser manifesta-se já na representação. Da representação à unidade do sujeito, a distância é «curta» e, na história da filosofia, ela foi ocupada pela filosofia transcendental de Kant. Depois disso, temos a filosofia do idealismo alemão: Fichte, Schelling e Hegel.
Leibniz e Spinoza pensam que o problema da natureza do homem está intimamente associado ao problema da unidade do mundo e da natureza. Pensam também que a experiência da alma constitui um acesso para compreender o ser da natureza. Mas o caminho trilhado por cada um é inteiramente diverso. A fórmula de Spinoza «Homo pars naturae» insere o homem na totalidade do mundo. Para Spinoza, o homem não é uma entidade puramente subjectiva e espiritual que se contraporia à natureza, mas uma parte da própria natureza. Assim, para Spinoza, o ser aparece a tal ponto como a potência geradora da natureza que o próprio Deus é, em última análise, natureza. A unidade do mundo explica-se, portanto, inteiramente a partir da potência geradora da natureza. O homem é apenas uma parte dela que experimenta a natureza em si mesma na dinâmica do instinto e dos afectos. Ora, para Leibniz, a experiência da realidade feita no ser do homem é a da representação, isto é, do reflexo da totalidade cósmica em cada ser individual dotado de alma. Se na filosofia de Spinoza a potência geradora da natureza era concebida como uma necessidade absoluta, na filosofia de Leibniz domina a ideia de que seriam possíveis outros mundos inteiramente distintos do universo que realmente existe, não sendo sequer evidente que existe um mundo. Leibniz concebe o ser e a realidade a tal ponto como representação, espelho ou reflexo que o próprio Deus mais não é que a plenitude da representação na totalidade das perspectivas. Sendo assim, a natureza do homem consiste na representação e na «perspectividade», uma vez que a unidade do todo consiste na compatibilidade e relacionalidade recíproca que existe em todo o ser individual. Esta compatibilidade e relacionalidade estão representadas em cada indivíduo num reflexo caracterizado por uma perspectiva.
As filosofias de Spinoza e de Leibniz são, portanto, dominadas por conceitos diferentes. Enquanto para Spinoza as palavras fundamentais para compreender a realidade são natura e potentia, para Leibniz são as palavras repraesentatio e harmonia. Em ambos os sistemas filosóficos, o homem é definido pela posição que ocupa no conjunto total dos seres existentes, orgânicos e não orgânicos, mas este conjunto é compreendido à luz desses conceitos básicos. Se o ser é o poder e a força da natureza, a natureza do homem consiste em participar da natureza e da sua dinâmica dentro de nós. Se o ser é harmonia e representação, a natureza do homem consiste em ser um espelho do mundo e em participar da perspectividade pluriforme do todo. Contudo, Spinoza e Leibniz (filósofos da segunda metade do século XVII) encontram na nossa própria existência uma porta de acesso para compreender a realidade, uma vez que o nosso ser está enquadrado e determinado pelo todo superior que é o mundo.
Schelling, Hegel e Hölderlin fizeram juntos, quando estudavam em Tubinga (1790-1793), a leitura de um escrito de Jacobi sobre Espinoza (1785), no qual reproduz o seu diálogo com Lessing. A primeira reacção de Schelling foi tornar-se spinozista, como nos dá conta uma carta datada de 4 de Fevereiro de 1795 dirigida a Hegel. Schelling diz que o que Spinoza procurou na sua reflexão sobre a natureza foi a unidade e a totalidade infinita do ser. Mas enquanto Spinoza tinha procurado na natureza o lugar da experiência desta unidade, Schelling procurou-a e efectivamente encontrou-a no próprio eu. Se Spinoza afirmava que a natureza é na verdade una e única e que, por conseguinte, só existe uma substância, Schelling encontra este absoluto no eu. O eu é, na filosofia de Schelling, não somente algo que deve realizar-se a si mesmo, mas é também o produto de um evento que denominamos ser. A natureza enigmática do ser foi investigada por Spinoza na sua reflexão sobre a natura naturans. A identidade entre a natura naturans e a natura naturata estabelecida por Spinoza foi descoberta por Schelling na autoconsciência. Esta identidade absoluta entre o sujeito e o objecto, o fundamento e o fundamentado, o ser e o existente torna-se-lhe manifesta no eu, uma vez que somente aqui somos nós mesmos o objecto do conhecimento. O princípio spinoziano da única substância, a ideia cartesiana da auto-certeza absoluta que só é acessível no cogito ergo sum, e a experiência leibniziana do ser como representação e jogo de espelhos, conjugam-se nesta concepção para dar origem a uma nova unidade na esteira da filosofia transcendental de Kant e de Fichte. Embora o homem se apresente no sistema filosófico de Schelling como o elemento procurado a partir do evento da unidade e da totalidade do ser, perdeu-se, no entanto, algo que era característico sobretudo na filosofia de Spinoza: a primazia absoluta da natureza na definição do ser. É, por isso, que podemos considerar o sistema filosófico de Spinoza como «superior» ao dos seus émulos. Qualquer tentativa de constituição de uma nova Filosofia da Natureza deverá, pois, partir da filosofia spinozista.
Heidegger denunciou a metafísica da subjectividade de Fichte, Schelling e Hegel, procurando, na sua obra Sein und Zeit, superar a identificação entre o ser e a consciência, sem abandonar, todavia, a unidade entre a existência (Dasein) e o mundo defendida por Spinoza, Leibniz e Schelling. Como pretendemos argumentar contra a negligência filosófica de Edgar Morin, vamos descrever, em traços largos, o modo como a filosofia de Heidegger, mas também a fenomenologia existencial, encara o problema da correlação existente entre o homem e o mundo.
HEIDEGGER. A existência humana é sempre considerada, em Sein und Zeit, em conexão com o problema da verdadeira natureza do ser. Se quisermos compreender o que significa o ser, devemos primeiramente começar por colocar o problema do ser sem pretender dar-lhe uma resposta definitiva. Que significa dizer que existimos ou somos? Que significa afirmar que existe um mundo? O homem confronta-se constantemente com o ser, quer na sua própria morte, quer no seu agir e no seu comportamento quotidiano. Na confrontação com a sua morte, o homem compreende o que significa o facto de existir. Esta inquietação ante a possibilidade do nosso próprio não-ser, causada pela realidade factual e pelo carácter finito da nossa existência, é a relação que temos com o nosso ser. Deste modo, o homem concebe-se como um ente confrontado directamente com o ser e com o nada. Todavia, não é somente o seu próprio ser que se coloca como questão que urge compreender na sua forma interrogativa, mas o ser de tudo quanto existe. A unidade do mundo, ou seja, de tudo quanto existe, que tanto preocupava os filósofos anteriores, é o próprio ser que já não pode ser considerado como um sujeito ou uma coisa. O ser é um «enigma». Sendo assim, o homem já não é também pensado como sujeito ou substância, mas como um ser que se relaciona com a sua própria existência.
O aspecto mais enigmático do homem reside na sua relação com o tempo, mais precisamente com o futuro e o passado. Em cada situação o homem age em direcção a um futuro que ainda não existe. O nosso agir é determinado através de decisões acerca daquilo que ainda não é na realidade. Como projectamos a nossa existência em direcção a um futuro que é infinitamente aberto, não podemos satisfazer todas as nossas possibilidades. A característica essencial da existência humana encontra-se na abertura e indeterminação do futuro. A nossa existência encerra tanto o ainda-não do futuro como o não-mais do passado. Por conseguinte, não podemos limitá-la ao presente e ao que está-aí diante de nós. O futuro aberto em função do qual nos determinamos e o que já passou (passado) que constantemente reassumimos fazem também parte dela. Na recordação relacionamo-nos não somente com uma representação ou imaginação subjectiva que mora em nós, mas também e sobretudo com o ser do próprio passado. Desta meditação sobre a temporalidade da existência humana resulta ao mesmo tempo que não se pode limitar o ser ao presente e ao que está diante de nós. O ser compreende, além do presente que é, o futuro que ainda não é, e o passado que já não é mais. O tempo não é apenas o horizonte da existência humana. Trata-se antes de uma dimensão do próprio ser. Assim não se pode reflectir sobre o que é o ser sem emaranhar-se no «enigma» do tempo. Por conseguinte, Heidegger considera, na sua concepção «antropológica», que a temporalidade da existência humana só pode ser, em última análise, compreendida a partir do carácter temporal inerente ao ser. Como o ser é, em última análise, tempo, o homem mais não é do que um ser temporal, não somente na história da sua vida, mas também pelo seu papel representativo na história e no tempo em geral. O homem é, portanto, um ser-no-tempo.
À temporalidade inerente à existência humana devemos acrescentar uma outra sua «determinação». O homem encontra-se sempre no meio de outras coisas, ou melhor, num espaço que partilha com essas coisas. Isto significa que a existência humana «compreende» igualmente o mundo como lugar da sua existência. Faz, pois, parte da nossa existência o facto de, juntamente com ela, existir um horizonte de mundo no qual enxergamos tudo quanto existe. O mundo é o palco ou cenário do nosso agir e o lugar no qual somos, e não apenas o horizonte da nossa consciência. A nossa existência é de antemão definida como um ser-no-mundo. O ser do homem é, portanto, ser-no-mundo.
Se, na obra Sein und Zeit (1980) a unidade infinita e a totalidade do mundo se manifestavam na existência do homem, na Carta sobre o Humanismo (1973) Heidegger mostra que a criação deste círculo de luz, no qual o existente pode estar presente como existente, mais não é que o próprio evento do ser. Como afirma Heidegger, a existência do homem consiste em ser testemunha deste evento. Contudo, o ser não se define somente pela comparação do círculo de luz. Define-se também pela obscuridade, pelo mistério ou pelo estar-retirado. Assim como na realidade-humana faz parte também o esquecimento do passado e a perda de muitas possibilidades do futuro, da mesma forma faz parte do ser a sua notável proximidade do nada. O ser só pode ser concebido quando se toca a possibilidade do nada. Da dificuldade de pensar o nada resulta a dificuldade de entender o ser. O homem é o ente que pode pensar o ser, e que na sua existência se relaciona com o ser. Assim, o ser está próximo do nada. Como não está presente em parte alguma, o nada precisa do homem para se revelar. É, por isso, que o homem é também um lugar no qual pode revelar-se o ser. O homem pode distinguir o ser do não-ser. Em parte alguma do mundo está presente o nada existente: no mundo só existe o existente. O próprio ser e a unidade do mundo não existem em parte alguma como coisas. Manifestam-se onde houver um ente que pergunta por eles. Eis por que a existência do homem deve ser determinada pela manifestação e pela evidência do próprio ser e pela automanifestação do mundo como todo. Pena é que Heidegger, com base na sua filosofia ontológica, não tenha repensado o conceito de natureza que domina o sistema de Spinoza, embora os seus escritos sobre o conceito grego de Physis se orientem nessa direcção. Não será porventura necessário — precisamente se tivermos compreendido que somos um evento do ser — compreender novamente que somos natureza? A naturalidade do homem manifesta-se claramente na sua corporalidade. O existir como tal é ser-corpo (Merleau-Ponty, 1975), da mesma forma como é ser-no-mundo e temporalidade.
Ora, este percurso pela história da filosofia visava mostrar que o desbloqueio da noção de homem, que exige uma nova antropologia, é muito anterior à revolução biológica moderna que viu nascer uma biologia não-cartesiana. Contudo, a revelação biológica impulsionou de forma directa e quase imediata o nascimento da nova antropologia. Os dados novos que as ciências biológicas e biomédicas trouxeram reformaram (no sentido de Bachelard) completamente a noção de Homem. Se a metafísica clássica, nomeadamente a de Spinoza e de Leibniz, prepararam de modo espectacular o terreno da nova antropologia, integrando o homem na unidade do cosmos, este movimento antecipatório da filosofia acabou por refluir com o surgimento do idealismo alemão que traçou uma linha divisória radical entre a filosofia e a ciência. A velha aliança tinha sido assim quebrada. Mas Marx e o marxismo trouxeram um novo impulso: a aliança entre filosofia e ciência foi parcialmente restabelecida no marxismo da maturidade. Apesar da ruptura epistemológica que atravessa o pensamento de Marx e que o divide em dois grandes períodos, as obras de juventude que ainda não são marxistas e as obras de maturidade propriamente científicas, o jovem-Marx (1975) estabeleceu de modo firme e seguro o projecto de uma scienza nuova: «A ciência natural acabar um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrar em si a ciência natural; haver apenas uma única ciência» (p. 169).
Embora preparado pela filosofia ao longo das suas intermináveis lutas contra a tirania do pensamento religioso dogmático (que possibilitaram a compreensão do homem na sua finitude, independentemente de qualquer «força» estranha e transcendente), a unificação das ciências naturais e das ciências do homem começou pelas ciências biológicas. Edgar Morin considera que o desbloqueio biológico operou-se fundamentalmente em três frentes, a saber: a biologia molecular, a ecologia e a etologia. É certo que foram estas ciências que fizeram surgir brechas no seio de cada paradigma isolado, mas, mesmo permanecendo no domínio da biologia, o movimento de aberturas para os outros domínios até então interditos e através dos quais se operam as primeiras conexões e emergências teóricas novas foi iniciado, de modo surpreendente, pela biologia da evolução. Além da biologia da evolução, da biologia molecular, da ecologia e da etologia, duas outras ciências biológicas, a sociobiologia e a neurobiologia trouxeram, nos últimos anos, um contributo de tal modo complexo e problemático que se torna necessário reformar todos os modelos antropológicos actuais, nomeadamente o de Edgar Morin, e fundá-los, mesmo que ainda provisoriamente, sobre novas bases biológicas, físicas e filosóficas.
Consequentemente, consideramos que o desbloqueio biológico ocorreu, não em três, mas em seis frentes: a biologia da evolução, a biologia molecular, a ecologia, a etologia, a sociobiologia e as neurociências. Cada uma dessas ciências biológicas desbloqueia uma determinada noção ou ideia, abrindo assim cada paradigma isolado para os domínios até então interditos. O desbloqueio de uma determinada noção compreende sempre simultaneamente uma ruptura e um acto epistemológico, no sentido preciso de Bachelard. A reforma de uma determinada noção implica sempre a ideia de que essa noção representa, na cultura científica, um obstáculo epistemológico que entrava o desenvolvimento científico. Assim as noções de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, que dominavam os anteriores paradigmas isolados, constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos. Foi preciso esperar pela revolução biológica para vermos essas noções a ser submetidas a uma crítica severa e radical que, na maior parte das vezes, nem sequer a designação nominal conservou. Todas essas noções ideológicas, funcionavam no interior de paradigmas ou modelos teóricos que teimavam manter-se isolados uns dos outros. Ora, Prigogine demonstrou que essa imagem do saber compartimentado em áreas e domínios isolados uns dos outros não conseguiu resistir aos efeitos de impacto da revolução científica do século XX. Se hoje o conceito de ciência é, na sua essência, um conceito filosófico no sentido de implicar uma aliança com toda a cultura e particularmente com a filosofia, o próprio conceito precisa de ser revisto e reformado a tal ponto que possa, sem perder a sua autonomia e especificidade, integrar no seu seio a actividade científica. Como o nosso conceito de Filosofia já compreende a actividade científica, não temos qualquer necessidade de reduzir o seu diálogo com as ciências ao domínio da epistemologia, da gnoseologia ou da lógica. Assim como a ciência contemporânea é filosofia, assim também a filosofia é ciência. Só a sua «unificação» dialéctica nos permite o empreendimento ousado de desbloquear as noções ideológicas de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, por modo a preparar um novo terreno do qual possa emergir um novo modelo teórico de Homem. Sem os métodos filosóficos seriamos incapazes de definir o homem como totalidade. Ora, é precisamente o conceito de totalidade em evolução, mais precisamente de sistema, que iremos opor a cada uma das noções, que entravavam o progresso científico. Dessa oposição da ideia de sistema a cada uma dessas noções surgirão ímpetos do génio científico que provocam impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico. Bachelard chamou-lhes actos epistemológicos mas Foucault, já numa outra perspectiva, optou pelo termo irrupções no saber, para os designar.
As coisas que promovem ou favorecem este desejo original do homem despertam nele laetitia (alegria), enquanto as que o cerceiam ou abstaculam produzem nele tristitia (tristeza). Outras variantes desta tendência ou instinto são o amor e o ódio. Como o homem ama aquilo que lhe causa alegria e odeia aquilo que contraria a sua possibilidade de ser, Espinosa define o amor como alegria acompanhada da ideia de uma causa externa e o ódio como tristeza acompanhada também da ideia de uma causa extrínseca. A tendência ou instinto do homem choca constantemente com o mundo. Deste choque resulta um movimento flutuante da alma (fluctuatio animi) entre a alegria e a tristeza.
Para Espinosa a plenitude e a pluriformidade da vida afectiva do homem derivam dos elementos básicos descritos. Os afectos não são algo de exclusivamente interno, como um sentimento violento, mas a relação que o homem tem com o mundo. Alegria e tristeza, amor e ódio são, antropologicamente falando, experiências do ser. Mediante estas experiências o homem tem acesso, dentro de si mesmo, à natureza. Mas, ao mesmo tempo, a alegria e o ódio constituem a vibração ou sintonização do homem com o todo, que sente como uma modificação da natureza.
As modificações da vida afectiva representam assim variações do amor e do ódio. Estes são causados no homem pela pluriformidade das coisas com as quais ele entra em contacto. Espinosa apresenta uma teoria da libido que poder servir de fundamentação ontológica à teoria dos instintos de Freud. Mas a sua concepção da libido não é psicológica, mas sim ontológica. Considerada como um tipo especial de afecto, a libido é definida como cupidez e amor com vista à união do corpo. Como constitui um modo da natureza se manifestar no homem, a libido só pode ser dominada através da compreensão interna do conjunto da natureza durante a qual o homem entra numa sintonia tal com a totalidade que se sente carregado por ela. O caminho da cura leva-o a um aumento de alegria até chegar à beatitude ou felicidade (beatitudo). O homem desfruta desta beatitude, não porque domina a sua libido, mas porque, sendo capaz de dominar a libido, desfruta da felicidade de contemplar a si mesmo como natureza e, deste modo, contemplar a natureza na sua totalidade.
LEIBNIZ. A teoria do homem de Leibniz pode ser caracterizada por uma «perspectividade» multi-relacionada. A sua tese fundamental é a de que o homem é um espelho do mundo. O homem relaciona-se no que faz, pensa, representa ou percebe com o mundo. Mas o mundo revela-se a cada homem numa perspectiva diferente. Esta perspectiva resulta do facto da totalidade do ser se revelar a cada pessoa em função do lugar que ocupa no mundo. Pelo simples facto da sua percepção, cada pessoa é o ponto central de perspectiva do seu mundo: o que ela percepciona, percepciona-o em função do seu lugar no seio da realidade. O mundo que se apresenta está orientado para cada pessoa. Deste modo, cada um é uma representação do todo e a sua individualidade é caracterizada pelo seu ângulo específico de visão da totalidade. Embora cada indivíduo veja o mundo em função do lugar que ocupa no mundo, sabe que não é só ele que é o ponto de referência do seu mundo, visto que cada um dos outros indivíduos com quem vive também é ponto central de perspectiva do seu mundo. Por conseguinte, cada um dos outros aparece na nossa consciência como um espelho do universo.
Na experiência da sua própria realidade, cada um pode não só aceitar como evidente a realidade do mundo e da sua própria existência como tais, mas também perguntar-se porque razão existe algo, porque motivo não existe nada, e porque existe exactamente este mundo e não qualquer outro completamente distinto. Na verdade, não é evidente que exista algo. Poderia muito bem não existir nada. Não será um milagre incompreensível a existência do mundo e o facto de existirmos? Igualmente é de admirar que existam na realidade precisamente estas coisas, na sua peculiaridade inteiramente individual, quais se nos apresentam. Tudo poderia ser completamente diferente. Seriam possíveis um número infinito de outros mundos, de outras constelações de coisas. É uma característica peculiar do homem poder fazer tais perguntas. Por isso, a inquietação constante de Leibniz pelo problema da razão suficiente constitui o fundo antropológico propriamente dito do sistema leibniziano.
Como o homem existe como um espelho do mundo, e o mundo se revela onde existir um ser no qual possa assemelhar-se, é evidente que, para Leibniz, os problemas da natureza do mundo e da natureza do homem estão vinculados entre si. O mundo é tudo aquilo que realmente existe, existiu e existirá. É, pois, a totalidade e a unidade de tudo o que existe. Ora, esta totalidade manifesta-se, segundo Leibniz, no homem, ou melhor, espelha-se num ser, ao qual pode revelar-se e em cuja concepção o todo está, pois, representado. Todo o ser em cuja percepção o mundo se espelha é ele mesmo uma parte do mundo. Por isso, o mundo revela-se-lhe apenas através da perspectiva determinada pelo lugar específico que lhe cabe no todo. A verdadeira imagem do mundo só apareceria se ele mostrasse, não somente uma perspectiva, mas uma plenitude de perspectivas diferentes, as quais se completam num todo. Ora, a complementaridade recíproca dos diversos pontos de vista da consciência, os quais somente em conjunto representam o mundo como tal, constitui, segundo Leibniz, como que a vista na qual se representa o mundo da divindade.
Para Leibniz o mundo e a consciência, o sujeito e o objecto não se apresentam como elementos isolados, um frente ao outro. A consciência é de antemão determinada a partir do seu lugar específico no conjunto das coisas e, especialmente, a partir da sua relação com as perspectivas inteiramente diversas das outras pessoas e dos outros seres viventes. Assim a consciência e o espírito são apenas as formas mais elevadas da representação. Todo o ser vivente reflecte no seu ser o mundo. Mas nem todos os reflexos são conscientes: existem também, em todo e qualquer ser vivo, reflexos inconscientes e obscuros.
Todo o ser individual tem uma relação com o todo. Isto significa que cada ser, na sua existência, é um reflexo desse todo. Leibniz entende, portanto, o ser como representação. E esta sua ideia está associada à ideia de harmonia universal. O mundo é uno (ou unitário). Esta unidade só é possível porque as coisas se harmonizam entre si formando um todo em que as coisas estão conjuntamente com outras. O ser espiritual é apenas uma articulação desta relacionalidade em todo o ser. O ser existente é determinado pelo facto de representar o todo no lugar que ocupa dentro deste todo. O conceito de harmonia universal exprime, portanto, a unidade do ser que existe no todo. A consciência reflecte esta unidade numa perspectiva determinada mas só participa da harmonia do todo na sua relacionalidade com os outros reflexos possíveis do universo.
Por outro lado, o conceito de harmonia universalis permite a Leibniz responder à questão da razão suficiente: Por que razão existe exactamente este mundo, e não um outro qualquer? Por que motivo existem precisamente estas coisas, embora haja uma infinidade de outras possibilidades que têm o mesmo direito de existir na realidade? Com efeito, existe um enorme leque de mundos possíveis e imagináveis. Mas, dentre essas possibilidades, o mundo real ser aquele de cuja constelação resultar o maior grau de concretização de possibilidades. Ora, o mundo harmónico é precisamente aquele que é capaz de harmonizar entre si o maior número de possibilidades. Deste modo, a razão suficiente do mundo real reside na capacidade máxima de compaginar ou harmonizar possibilidades. Estas podem tornar-se e tornaram-se efectivamente reais nesta constelação. Assim o nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis.
SCHELLING. Na filosofia de Schelling, a natureza do homem também é determinada à luz da unidade e da totalidade do ser, mas a fonte destas já não consiste, como acontecia com Espinosa ou Leibniz, em aprofundar-se na natureza ou em contemplar o jogo infinito de reflexos das mónadas, mas sim no próprio eu. Com efeito, é no seu próprio eu que o homem faz a experiência original do ser e experimenta a identidade do fundamento e do fundamentado. No eu o absoluto manifesta-se ao homem. Deste modo, Schelling coloca o homem no ponto focal do problema do ser.
A unidade e a totalidade infinita do ser é absolutamente independente em si mesma, não podendo ser condicionada ou determinada por nada. Experienciamos este algo incondicionado em nós mesmos quando verificamos que tudo o que existe aparece-nos na consciência. É, portanto, a consciência que encerra no seu bojo a unidade infinita. Na consciência o ser existente, que lhe aparece, funde-se num todo. Ora, o lugar da experiência desta unidade é, portanto, o próprio eu. Todo o existente, pelo simples facto de existir, funde-se à unidade infinita do ser. Dado que o eu é o lugar em que se revela esta unidade de tudo o que existe, é no eu que experienciamos esta fusão antes mesmo de conhecermos o que quer que seja. O eu é, segundo Schelling, um lugar no qual se revela e brilha o absoluto.
A verdadeira profundidade e insondabilidade da consciência encontra-se na natureza da autoconsciência que, designada pela palavra eu, constitui a fonte da unidade de tudo aquilo que se nos depara. A filosofia de Schelling parte do princípio Kantiano segundo o qual a unidade transcendental da consciência se manifesta no facto de que a representação «Eu penso» acompanha todas as minhas outras representações. A autoconsciência é o seu próprio objecto. Quando digo «eu», faço-me objecto de mim mesmo. Na autoconsciência o sujeito e o objecto são idênticos. A autoconsciência só pode existir quando se faz objecto de si mesma. O significado antropológico da filosofia transcendental de Schelling reside na descoberta de que não se pode explicar a autoconsciência reduzindo-a a outra coisa qualquer, nomeadamente a processos fisiológicos ou outros, uma vez que ela só existe no seu auto-exercício. A sua natureza é uma identidade absoluta, não sendo condicionada por nada. Esta identidade da autoconsciência pode ser expressa pela fórmula eu=eu. O sinal de igualdade exprime o verdadeiro ser da autoconsciência. Com efeito, só quando compreendo que este eu como sujeito é idêntico ao eu como objecto, é que estou consciente de mim mesmo.
Mas, na identidade da autoconsciência, existe ao mesmo tempo uma duplicação que estabelece a distinguibilidade entre sujeito e objecto. Quer dizer que é necessário distinguir quem conhece daquilo que é conhecido. Só fazendo esta distinção é que se pode pasmar ante a identidade do sujeito e do objecto. Esta identidade estabelece a partir de si mesma o pólo do subjectivo e do objectivo, produzindo-os ao concretizar-se. Cada um dos elementos da proposição «eu=eu» é determinado pelo facto de identificar-se com o segundo, e vice-versa. Isto significa que cada um dos dois é em si mesmo um «eu=eu». Assim o sujeito da autoconsciência é determinado pelo facto de identificar-se com o objecto, sendo como tal um sujeito-objecto. Por outro lado, o seu objecto já‚ em si mesmo determinado pelo facto de ser idêntico ao sujeito, sendo também um objecto-sujeito. Os pólos da identidade absoluta na autoconsciência potencializam-se numa diferenciação infinita. Mas a identidade da autoconsciência suprime sempre de novo a diferenciação do sujeito e do objecto, e imediatamente deve estabelecer de novo esta diferença. O objecto do autoconhecimento deve sempre já conter o facto de que sou eu quem o conhece e o sujeito da autoconsciência só é plenamente compreendido sempre que se compreende ao mesmo tempo que o reflexo objectivo faz parte do seu ser. Ora, a autoconsciência produz-se a si mesma através desta realização ou concretização. Como ela só existe lá onde se conhece a si mesma, o ser e o conhecer, o ser e a verdade são, na filosofia transcendental de Schelling, a mesma coisa. Por fim, se o eu deve produzir-se a si mesmo no acto, Schelling considera que o fundamento e o fundamentado são também idênticos. Esta identidade absoluta entre o fundamento e o fundamentado, entre o ser e o existente, só é acessível na verdade do eu, uma vez que se manifesta na identidade entre o cognoscente e o conhecido, entre o sujeito e o objecto.
Spinoza, Leibniz e Schelling vêem o homem como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo. Embora as suas filosofias possam ser consideradas, no plano antropológico, como modelos «insulares» do homem, elas não tratam, no entanto, o problema do homem isoladamente do problema da natureza. Nestes três grandes sistemas filosóficos, a questão da natureza humana, tão grata a Edgar Morin, está intimamente vinculada ao problema da realidade do mundo em geral. No entanto, a análise do problema geral da relação homem/natureza varia de autor para autor. De uma maneira muito geral, podemos dizer que, na resposta ao problema do portador da unidade e da totalidade do ser, a tónica se desloca da substância para o sujeito. Enquanto que para Spinoza esta unidade é inquestionavelmente a natureza, para Schelling ela coincide totalmente com a unidade do sujeito. Leibniz parece aqui representar um meio termo. Com efeito, para Leibniz a unidade do ser manifesta-se já na representação. Da representação à unidade do sujeito, a distância é «curta» e, na história da filosofia, ela foi ocupada pela filosofia transcendental de Kant. Depois disso, temos a filosofia do idealismo alemão: Fichte, Schelling e Hegel.
Leibniz e Spinoza pensam que o problema da natureza do homem está intimamente associado ao problema da unidade do mundo e da natureza. Pensam também que a experiência da alma constitui um acesso para compreender o ser da natureza. Mas o caminho trilhado por cada um é inteiramente diverso. A fórmula de Spinoza «Homo pars naturae» insere o homem na totalidade do mundo. Para Spinoza, o homem não é uma entidade puramente subjectiva e espiritual que se contraporia à natureza, mas uma parte da própria natureza. Assim, para Spinoza, o ser aparece a tal ponto como a potência geradora da natureza que o próprio Deus é, em última análise, natureza. A unidade do mundo explica-se, portanto, inteiramente a partir da potência geradora da natureza. O homem é apenas uma parte dela que experimenta a natureza em si mesma na dinâmica do instinto e dos afectos. Ora, para Leibniz, a experiência da realidade feita no ser do homem é a da representação, isto é, do reflexo da totalidade cósmica em cada ser individual dotado de alma. Se na filosofia de Spinoza a potência geradora da natureza era concebida como uma necessidade absoluta, na filosofia de Leibniz domina a ideia de que seriam possíveis outros mundos inteiramente distintos do universo que realmente existe, não sendo sequer evidente que existe um mundo. Leibniz concebe o ser e a realidade a tal ponto como representação, espelho ou reflexo que o próprio Deus mais não é que a plenitude da representação na totalidade das perspectivas. Sendo assim, a natureza do homem consiste na representação e na «perspectividade», uma vez que a unidade do todo consiste na compatibilidade e relacionalidade recíproca que existe em todo o ser individual. Esta compatibilidade e relacionalidade estão representadas em cada indivíduo num reflexo caracterizado por uma perspectiva.
As filosofias de Spinoza e de Leibniz são, portanto, dominadas por conceitos diferentes. Enquanto para Spinoza as palavras fundamentais para compreender a realidade são natura e potentia, para Leibniz são as palavras repraesentatio e harmonia. Em ambos os sistemas filosóficos, o homem é definido pela posição que ocupa no conjunto total dos seres existentes, orgânicos e não orgânicos, mas este conjunto é compreendido à luz desses conceitos básicos. Se o ser é o poder e a força da natureza, a natureza do homem consiste em participar da natureza e da sua dinâmica dentro de nós. Se o ser é harmonia e representação, a natureza do homem consiste em ser um espelho do mundo e em participar da perspectividade pluriforme do todo. Contudo, Spinoza e Leibniz (filósofos da segunda metade do século XVII) encontram na nossa própria existência uma porta de acesso para compreender a realidade, uma vez que o nosso ser está enquadrado e determinado pelo todo superior que é o mundo.
Schelling, Hegel e Hölderlin fizeram juntos, quando estudavam em Tubinga (1790-1793), a leitura de um escrito de Jacobi sobre Espinoza (1785), no qual reproduz o seu diálogo com Lessing. A primeira reacção de Schelling foi tornar-se spinozista, como nos dá conta uma carta datada de 4 de Fevereiro de 1795 dirigida a Hegel. Schelling diz que o que Spinoza procurou na sua reflexão sobre a natureza foi a unidade e a totalidade infinita do ser. Mas enquanto Spinoza tinha procurado na natureza o lugar da experiência desta unidade, Schelling procurou-a e efectivamente encontrou-a no próprio eu. Se Spinoza afirmava que a natureza é na verdade una e única e que, por conseguinte, só existe uma substância, Schelling encontra este absoluto no eu. O eu é, na filosofia de Schelling, não somente algo que deve realizar-se a si mesmo, mas é também o produto de um evento que denominamos ser. A natureza enigmática do ser foi investigada por Spinoza na sua reflexão sobre a natura naturans. A identidade entre a natura naturans e a natura naturata estabelecida por Spinoza foi descoberta por Schelling na autoconsciência. Esta identidade absoluta entre o sujeito e o objecto, o fundamento e o fundamentado, o ser e o existente torna-se-lhe manifesta no eu, uma vez que somente aqui somos nós mesmos o objecto do conhecimento. O princípio spinoziano da única substância, a ideia cartesiana da auto-certeza absoluta que só é acessível no cogito ergo sum, e a experiência leibniziana do ser como representação e jogo de espelhos, conjugam-se nesta concepção para dar origem a uma nova unidade na esteira da filosofia transcendental de Kant e de Fichte. Embora o homem se apresente no sistema filosófico de Schelling como o elemento procurado a partir do evento da unidade e da totalidade do ser, perdeu-se, no entanto, algo que era característico sobretudo na filosofia de Spinoza: a primazia absoluta da natureza na definição do ser. É, por isso, que podemos considerar o sistema filosófico de Spinoza como «superior» ao dos seus émulos. Qualquer tentativa de constituição de uma nova Filosofia da Natureza deverá, pois, partir da filosofia spinozista.
Heidegger denunciou a metafísica da subjectividade de Fichte, Schelling e Hegel, procurando, na sua obra Sein und Zeit, superar a identificação entre o ser e a consciência, sem abandonar, todavia, a unidade entre a existência (Dasein) e o mundo defendida por Spinoza, Leibniz e Schelling. Como pretendemos argumentar contra a negligência filosófica de Edgar Morin, vamos descrever, em traços largos, o modo como a filosofia de Heidegger, mas também a fenomenologia existencial, encara o problema da correlação existente entre o homem e o mundo.
HEIDEGGER. A existência humana é sempre considerada, em Sein und Zeit, em conexão com o problema da verdadeira natureza do ser. Se quisermos compreender o que significa o ser, devemos primeiramente começar por colocar o problema do ser sem pretender dar-lhe uma resposta definitiva. Que significa dizer que existimos ou somos? Que significa afirmar que existe um mundo? O homem confronta-se constantemente com o ser, quer na sua própria morte, quer no seu agir e no seu comportamento quotidiano. Na confrontação com a sua morte, o homem compreende o que significa o facto de existir. Esta inquietação ante a possibilidade do nosso próprio não-ser, causada pela realidade factual e pelo carácter finito da nossa existência, é a relação que temos com o nosso ser. Deste modo, o homem concebe-se como um ente confrontado directamente com o ser e com o nada. Todavia, não é somente o seu próprio ser que se coloca como questão que urge compreender na sua forma interrogativa, mas o ser de tudo quanto existe. A unidade do mundo, ou seja, de tudo quanto existe, que tanto preocupava os filósofos anteriores, é o próprio ser que já não pode ser considerado como um sujeito ou uma coisa. O ser é um «enigma». Sendo assim, o homem já não é também pensado como sujeito ou substância, mas como um ser que se relaciona com a sua própria existência.
O aspecto mais enigmático do homem reside na sua relação com o tempo, mais precisamente com o futuro e o passado. Em cada situação o homem age em direcção a um futuro que ainda não existe. O nosso agir é determinado através de decisões acerca daquilo que ainda não é na realidade. Como projectamos a nossa existência em direcção a um futuro que é infinitamente aberto, não podemos satisfazer todas as nossas possibilidades. A característica essencial da existência humana encontra-se na abertura e indeterminação do futuro. A nossa existência encerra tanto o ainda-não do futuro como o não-mais do passado. Por conseguinte, não podemos limitá-la ao presente e ao que está-aí diante de nós. O futuro aberto em função do qual nos determinamos e o que já passou (passado) que constantemente reassumimos fazem também parte dela. Na recordação relacionamo-nos não somente com uma representação ou imaginação subjectiva que mora em nós, mas também e sobretudo com o ser do próprio passado. Desta meditação sobre a temporalidade da existência humana resulta ao mesmo tempo que não se pode limitar o ser ao presente e ao que está diante de nós. O ser compreende, além do presente que é, o futuro que ainda não é, e o passado que já não é mais. O tempo não é apenas o horizonte da existência humana. Trata-se antes de uma dimensão do próprio ser. Assim não se pode reflectir sobre o que é o ser sem emaranhar-se no «enigma» do tempo. Por conseguinte, Heidegger considera, na sua concepção «antropológica», que a temporalidade da existência humana só pode ser, em última análise, compreendida a partir do carácter temporal inerente ao ser. Como o ser é, em última análise, tempo, o homem mais não é do que um ser temporal, não somente na história da sua vida, mas também pelo seu papel representativo na história e no tempo em geral. O homem é, portanto, um ser-no-tempo.
À temporalidade inerente à existência humana devemos acrescentar uma outra sua «determinação». O homem encontra-se sempre no meio de outras coisas, ou melhor, num espaço que partilha com essas coisas. Isto significa que a existência humana «compreende» igualmente o mundo como lugar da sua existência. Faz, pois, parte da nossa existência o facto de, juntamente com ela, existir um horizonte de mundo no qual enxergamos tudo quanto existe. O mundo é o palco ou cenário do nosso agir e o lugar no qual somos, e não apenas o horizonte da nossa consciência. A nossa existência é de antemão definida como um ser-no-mundo. O ser do homem é, portanto, ser-no-mundo.
Se, na obra Sein und Zeit (1980) a unidade infinita e a totalidade do mundo se manifestavam na existência do homem, na Carta sobre o Humanismo (1973) Heidegger mostra que a criação deste círculo de luz, no qual o existente pode estar presente como existente, mais não é que o próprio evento do ser. Como afirma Heidegger, a existência do homem consiste em ser testemunha deste evento. Contudo, o ser não se define somente pela comparação do círculo de luz. Define-se também pela obscuridade, pelo mistério ou pelo estar-retirado. Assim como na realidade-humana faz parte também o esquecimento do passado e a perda de muitas possibilidades do futuro, da mesma forma faz parte do ser a sua notável proximidade do nada. O ser só pode ser concebido quando se toca a possibilidade do nada. Da dificuldade de pensar o nada resulta a dificuldade de entender o ser. O homem é o ente que pode pensar o ser, e que na sua existência se relaciona com o ser. Assim, o ser está próximo do nada. Como não está presente em parte alguma, o nada precisa do homem para se revelar. É, por isso, que o homem é também um lugar no qual pode revelar-se o ser. O homem pode distinguir o ser do não-ser. Em parte alguma do mundo está presente o nada existente: no mundo só existe o existente. O próprio ser e a unidade do mundo não existem em parte alguma como coisas. Manifestam-se onde houver um ente que pergunta por eles. Eis por que a existência do homem deve ser determinada pela manifestação e pela evidência do próprio ser e pela automanifestação do mundo como todo. Pena é que Heidegger, com base na sua filosofia ontológica, não tenha repensado o conceito de natureza que domina o sistema de Spinoza, embora os seus escritos sobre o conceito grego de Physis se orientem nessa direcção. Não será porventura necessário — precisamente se tivermos compreendido que somos um evento do ser — compreender novamente que somos natureza? A naturalidade do homem manifesta-se claramente na sua corporalidade. O existir como tal é ser-corpo (Merleau-Ponty, 1975), da mesma forma como é ser-no-mundo e temporalidade.
Ora, este percurso pela história da filosofia visava mostrar que o desbloqueio da noção de homem, que exige uma nova antropologia, é muito anterior à revolução biológica moderna que viu nascer uma biologia não-cartesiana. Contudo, a revelação biológica impulsionou de forma directa e quase imediata o nascimento da nova antropologia. Os dados novos que as ciências biológicas e biomédicas trouxeram reformaram (no sentido de Bachelard) completamente a noção de Homem. Se a metafísica clássica, nomeadamente a de Spinoza e de Leibniz, prepararam de modo espectacular o terreno da nova antropologia, integrando o homem na unidade do cosmos, este movimento antecipatório da filosofia acabou por refluir com o surgimento do idealismo alemão que traçou uma linha divisória radical entre a filosofia e a ciência. A velha aliança tinha sido assim quebrada. Mas Marx e o marxismo trouxeram um novo impulso: a aliança entre filosofia e ciência foi parcialmente restabelecida no marxismo da maturidade. Apesar da ruptura epistemológica que atravessa o pensamento de Marx e que o divide em dois grandes períodos, as obras de juventude que ainda não são marxistas e as obras de maturidade propriamente científicas, o jovem-Marx (1975) estabeleceu de modo firme e seguro o projecto de uma scienza nuova: «A ciência natural acabar um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrar em si a ciência natural; haver apenas uma única ciência» (p. 169).
Embora preparado pela filosofia ao longo das suas intermináveis lutas contra a tirania do pensamento religioso dogmático (que possibilitaram a compreensão do homem na sua finitude, independentemente de qualquer «força» estranha e transcendente), a unificação das ciências naturais e das ciências do homem começou pelas ciências biológicas. Edgar Morin considera que o desbloqueio biológico operou-se fundamentalmente em três frentes, a saber: a biologia molecular, a ecologia e a etologia. É certo que foram estas ciências que fizeram surgir brechas no seio de cada paradigma isolado, mas, mesmo permanecendo no domínio da biologia, o movimento de aberturas para os outros domínios até então interditos e através dos quais se operam as primeiras conexões e emergências teóricas novas foi iniciado, de modo surpreendente, pela biologia da evolução. Além da biologia da evolução, da biologia molecular, da ecologia e da etologia, duas outras ciências biológicas, a sociobiologia e a neurobiologia trouxeram, nos últimos anos, um contributo de tal modo complexo e problemático que se torna necessário reformar todos os modelos antropológicos actuais, nomeadamente o de Edgar Morin, e fundá-los, mesmo que ainda provisoriamente, sobre novas bases biológicas, físicas e filosóficas.
Consequentemente, consideramos que o desbloqueio biológico ocorreu, não em três, mas em seis frentes: a biologia da evolução, a biologia molecular, a ecologia, a etologia, a sociobiologia e as neurociências. Cada uma dessas ciências biológicas desbloqueia uma determinada noção ou ideia, abrindo assim cada paradigma isolado para os domínios até então interditos. O desbloqueio de uma determinada noção compreende sempre simultaneamente uma ruptura e um acto epistemológico, no sentido preciso de Bachelard. A reforma de uma determinada noção implica sempre a ideia de que essa noção representa, na cultura científica, um obstáculo epistemológico que entrava o desenvolvimento científico. Assim as noções de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, que dominavam os anteriores paradigmas isolados, constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos. Foi preciso esperar pela revolução biológica para vermos essas noções a ser submetidas a uma crítica severa e radical que, na maior parte das vezes, nem sequer a designação nominal conservou. Todas essas noções ideológicas, funcionavam no interior de paradigmas ou modelos teóricos que teimavam manter-se isolados uns dos outros. Ora, Prigogine demonstrou que essa imagem do saber compartimentado em áreas e domínios isolados uns dos outros não conseguiu resistir aos efeitos de impacto da revolução científica do século XX. Se hoje o conceito de ciência é, na sua essência, um conceito filosófico no sentido de implicar uma aliança com toda a cultura e particularmente com a filosofia, o próprio conceito precisa de ser revisto e reformado a tal ponto que possa, sem perder a sua autonomia e especificidade, integrar no seu seio a actividade científica. Como o nosso conceito de Filosofia já compreende a actividade científica, não temos qualquer necessidade de reduzir o seu diálogo com as ciências ao domínio da epistemologia, da gnoseologia ou da lógica. Assim como a ciência contemporânea é filosofia, assim também a filosofia é ciência. Só a sua «unificação» dialéctica nos permite o empreendimento ousado de desbloquear as noções ideológicas de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, por modo a preparar um novo terreno do qual possa emergir um novo modelo teórico de Homem. Sem os métodos filosóficos seriamos incapazes de definir o homem como totalidade. Ora, é precisamente o conceito de totalidade em evolução, mais precisamente de sistema, que iremos opor a cada uma das noções, que entravavam o progresso científico. Dessa oposição da ideia de sistema a cada uma dessas noções surgirão ímpetos do génio científico que provocam impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico. Bachelard chamou-lhes actos epistemológicos mas Foucault, já numa outra perspectiva, optou pelo termo irrupções no saber, para os designar.
(Esta é uma secção da nossa tese de mestrado, Homo Fossilis: Ensaio neuro-antropológico. Embora este texto precise ser revisto e clarificado, editamo-lo por pensarmos que ela possa incentivar a pesquisa filosófica. O título aqui escolhido pode parecer um pouco desfasado ou mesmo inadqueado, dado não clarificar a natureza do cibernauta, mas a cyberciência também compreende tudo quanto possa ser e é efectivamente divulgado pela Internet.)
J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
A cyberantropologia deve saber conquistar o seu campo de estudo em diálogo com a tradição filosófica.
As extensões do corpo em espaço virtual é um dos temas da antropologia virtual que pode ser analisado em confronto com a filosofia do corpo e a antropologia filosófica.
Sem esses estudos torna-se difícil avançar com um conceito profundo da cyberantropologia, a não ser defini-la como o estudo dos comportamentos online.
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