Mostrar mensagens com a etiqueta CyberAntropologia e Filosofia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CyberAntropologia e Filosofia. Mostrar todas as mensagens

domingo, 1 de junho de 2008

Pornografia na Internet

A pornografia é geralmente definida como a descrição ou a imagem de corpos nus ou quase nus em contacto sexual, usada para entretenimento, excitação e estimulação sexuais e também como fonte de informação sobre a sexualidade, particularmente para as pessoas mais jovens (Trostle, 2003; Zillmann & Bryant, 1982).

A acessibilidade da pornografia nos mass media (jornais, revistas, filmes, televisão ou Internet) aumentou ao mesmo ritmo que o desenvolvimento tecnológico favorecia a sua produção e distribuição (Lewin, 1997). Os livros e as revistas foram o meio mais popular usado pelos indivíduos antes de 1970 e os filmes de 8-mm foram o meio preferencial dos anos 70 do século passado. Os filmes pornográficos tornaram-se mais acessíveis nos anos 80 do século XX e o VCR tornou-se frequente nas casas particulares. A TV a cabo e via satélite levaram a pornografia até às salas das pessoas. A Internet já era o meio dos anos 90 do século XX e continua a ser (Lewin, 1997).

Traeen & Nilsen (2006) estudaram recentemente o uso da pornografia na Noruega e os resultados mostraram que a maioria dos noruegueses, com idades compreendidas entre os 18 e os 49 anos, foi exposta à pornografia: 82% dizem ter lido revistas pornográficas, 84% viram filmes pornográficos, e 34% examinaram pornografia na Internet, dos quais 14% tinham participado em chatting eróticos no último ano.

Neste estudo, o género foi a variável mais significativa para predizer o uso da pornografia: os homens relataram maior uso da pornografia que as mulheres. O uso da pornografia por parte das mulheres parece estar muito conectada ao uso que os seus parceiros fazem da pornografia. Isto significa que as mulheres tendem a partilhar o uso da pornografia com os seus parceiros, talvez devido ao desejo manifestado por estes últimos. Comparadas com os homens, a maioria das mulheres que tinha visto pornografia na Internet durante os últimos 12 meses participou também em chatting eróticos.

Além disso, o uso da pornografia varia muito em função da orientação sexual: os homens gay/bissexuais e as mulheres lésbicas/bissexuais disseram ter feito um maior uso da pornografia do que os homens e as mulheres heterossexuais. O nível de educação predizia a exposição à pornografia na Internet, nas revistas e nos filmes. E os indivíduos mais jovens eram mais propensos a utilizar a Internet para ver materiais pornográficos e para a prática de chatting erótico. Finalmente, o número de parceiros sexuais estava associado com o uso da pornografia em todos os mass media e a idade em que começaram a fazer sexo estava associada com o uso da pornografia em revistas e em filmes.

Estes resultados são muito similares com outros resultados obtidos por estudos da pornografia por parte de suecos (Lewin, 1997), finlandeses (Haavio-Mannila & Kontula, 2003) e noruegueses (Traeen et al., 2004). Todos estes estudos mostraram que o uso da pornografia decresce com o aumento da idade e que uma elevada percentagem de utilizadores da Internet parece ver regularmente pornografia. Além disso, a Internet é o medium dos segmentos mais jovens da população, que a utilizam como um meio ou arena sexual.

Segundo Cooper (1998), os factores que facilitam este maior uso da Internet são a acessibilidade, a disponibilidade e o anonimato, geralmente referidos como the triple A-engine, aos quais King (1999) acrescentou a aceitabilidade. Contudo, quanto às diferenças, verifica-se que os homens e as mulheres fazem um uso diferente da Internet como arena sexual: as mulheres parecem preferir as actividades interactivas (chatting e e-mail), enquanto os homens parecem preferir as actividades individuais (Cooper et al., 2000; Podlas, 2000). O facto dos homens gay fazerem um maior uso da pornografia da Internet pode ser explicada pelo facto desta garantir maior anonimato (Benotsch et al., 2002; Rhodes et al., 2002; Tikkanen & Ross, 2003). Para estes indivíduos marginalizados, a Internet constitui um meio seguro que lhes permite revelar o seu "self verdadeiro" (Rogers), sem temerem represálias.

Num outro estudo norueguês, Träeen et al., (2002) tinham mostrado que 90% dos noruegueses dizem ter sido expostos a materiais pornográficos, embora muitos poucos usassem a pornografia muito frequentemente. Quanto à escolha do meio, os homens e as mulheres exibiam padrões diferenciados: os homens e os indivíduos mais jovens expressaram atitudes mais positivas em relação à pornografia do que as mulheres e as pessoas mais idosas. Os homens solteiros usavam solitariamente mais a pornografia, talvez para se excitarem e se estimularem sexualmente, e as mulheres usavam-na na companhia dos seus parceiros. Os homens novos usavam mais a Internet, tanto para observar sites pornográficos como para participarem em chatting eróticos. Apesar da especificidade e da permissividade da cultura sexual nórdica, existem algumas diferenças de género quanto às atitudes e ao uso da pornografia: os homens eram mais porno-orientados do que as mulheres, o que parece sugerir que a sua sex drive é mais elevada do que a das mulheres.

Os nossos resultados obtidos do estudo de campo, reforçado por uma ciberpesquisa do uso da pornografia em Portugal, cujo delineamento experimental se assemelha muito ao de Allen (2005), embora mais ousado em termos de procedimentos e de estratagemas, mostraram resultados semelhantes aqueles apresentados pelos estudos referidos, embora se suponha (erroneamente) que a nossa cultura seja menos permissiva que a cultura nórdica. Entre os homens gay e bissexuais observados, aqueles que fazem um uso compulsivo da Internet, com a finalidade de procurar parceiros sexuais, investem muito mais tempo, dinheiro e energia a perseguir experiências de cibersexo, com consequências negativas em termos de depressão, ansiedade e problemas relacionados com os parceiros reais (ciúmes, divórcios/separações, violência doméstica), além de serem mais propensos em desenvolver uma adição às ciber-relações sexuais online, sobretudo quando fazem uso diário ou quase diário, via Web-cam, da Internet, com uma multiplicidade de "amigos online".

Além disso, detectámos um outro comportamento: os indivíduos auto-intitulados bissexuais do sexo masculino, muitos dos quais casados heterossexualmente e com filhos, frequentam muitíssimo os chatting eróticos, em busca de parceiros sexuais, com os quais preferem fazer sexo ao fim da tarde, após saírem dos empregos, ou no período do almoço. E, quando não são bem sucedidos por meio da Internet, fazem as suas rondas em certas zonas de "frequência gay" ou dirigem-se às Estações de Serviços, onde facilmente têm encontros sexuais, antes de regressarem a casa, para junto da família. Por conseguinte, os homens gay e bissexuais possuem o seu lovemap preferido: um esquema cognitivo e emotivo que lhes fornece as trajectórias para as suas ideações e acções sexuais predilectas (Money, 1986).

Finalmente, devemos referir dois outros resultados: os adolescentes ou mesmo alguns pré-adolescentes participam muito regularmente na prática de chatting erótico, procurando seduzir indivíduos mais velhos, com os quais desejam fazer sexo. Isto sugere que estes indivíduos muito jovens, que já descobriram a sua verdadeira orientação sexual, desejam ser iniciados nas práticas homossexuais por indivíduos mais velhos, pelos quais sentem uma forte preferência sexual, pelo menos durante a adolescência, independentemente do seu papel sexual preferido. Alguns homens heterossexuais, após contactarem regularmente com outros utentes homossexuais, revelam um forte desejo de experimentar relações sexuais: umas de cibersexo, com ou sem recurso à Web-cam, outras telefónicas e outras ainda offline. Curiosamente, a fluxo de contactos privilegiados observados saturadamente na pesquisa de terreno dos comportamentos homossexuais em lugares públicos foi observada igualmente na ciberpesquisa: os contactos gay entre indivíduos das cidades de Lisboa e do Porto são claramente preferidos, em detrimento dos contactos com indivíduos de outras cidades ou distritos portugueses, e, tal como se verifica nos estudos estrangeiros referidos, os homens usam muito mais a Internet com fins sexuais e uso da pornografia do que as mulheres, incluindo as lésbicas. (Post publicado originariamente Aqui.)
Este blogue "CyberPhilosophy" vai festejar o seu 1º Aniversário no dia 27 de Junho, juntamente com o blogue "CyberCultura e Democracia Online". Por isso, vamos dedicar-lhe mais atenção ao longo deste mês, reeditando posts clássicos.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Modernidade, Mass Media e Tradição (Um)

«O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia» (Horkheimer & Adorno)
1. A filosofia social clássica legou-nos a ideia de que o desenvolvimento das sociedades modernas implicou necessariamente a perda de importância da tradição na vida quotidiana. Se a tradição é «coisa do passado», então as sociedades modernas contrastam com as «sociedades tradicionais». Esta ideia foi incorporada pelas teorias da modernização vista como um processo de desenraizamento das tradições, e assenta em dois pressupostos fundamentais:
1. A teoria social clássica foi herdeira do Iluminismo, que encarava a tradição uma fonte de mistificação e, como tal, uma inimiga da Razão e um obstáculo ao Progresso Humano.
2. A teoria social clássica via, portanto, a emergência e o desenvolvimento das sociedades modernas como um processo dinâmico intrinsecamente destruidor da tradição. Como herança do passado, a tradição devia ser criticada e dissipada em nome da Razão e, mesmo que isso não fosse possível, a própria dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia da sua destruição.
Karl Marx. A convergência destas duas considerações é evidente tanto na obra de Marx como na obra de Max Weber. Sob a influência do Iluminismo, Karl Marx via a tradição como a principal fonte de mistificação que encobria e ocultava a verdadeira natureza das relações sociais. A dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia, ela própria, de quebrar e dissolver as relações sociais e as tradições das sociedades pré-modernas. Pelo menos, é assim que a modernização é apresentada no "Manifesto do Partido Comunista". Isto significa que a desmistificação das relações sociais é um processo latente ao desenvolvimento e à expansão do modo de produção capitalista: «O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a alteração incessante da produção, o derrubamento contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais imobilizadas na tradição, com o seu cortejo de concepções e de ideias, fixas e veneráveis, se dissolvem; aquelas que as substituem caducam antes mesmo de cristalizarem. Tudo o que tinha solidez e perdurbalidade esvai-se em fumo, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são forçados, finalmente, a encarar com olhos desiludidos as suas condições de existência e as suas relações mútuas» (Marx & Engels). Quando as forças de produção atingirem um determinado nível de desenvolvimento, entrarão em contradição com a manutenção das relações de produção estabelecidas, levando o proletariado a vê-las como relações de exploração do homem pelo homem e a lutar pela sua transformação revolucionária, em direcção a uma sociedade mais livre e justa, portanto, mais transparente: «Antes de tudo, a burguesia produz os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis» (Marx & Engels).
Max Weber. Embora não fosse optimista como Marx, Max Weber acreditava que o desenvolvimento do capitalismo industrial seria acompanhado pelo desaparecimento das cosmovisões tradicionais. É certo que a ética protestante desempenhou um papel fundamental na emergência do capitalismo ocidental, mas, uma vez estabelecido como forma predominante de actividade económica, o capitalismo adquiriu uma tal força que acabou por dispensar as ideias e as práticas religiosas que tinham sido necessárias ao seu surgimento. Além de ter promovido o aparecimento do Estado burocrático nacional, o desenvolvimento do capitalismo racionalizou progressivamente a acção social e adaptou-a aos critérios da eficiência técnica. O puramente pessoal e individual, o elemento espontâneo e emotivo da acção tradicional, foi esmagado pelas exigências de objectivos racionalmente calculados. Este processo de racionalização e, portanto, de desencantamento do mundo, foi o preço pago pela racionalização ocidental, de resto vista como «a fatalidade dos tempos modernos» (Weber).
As teorias da modernização elaboradas posteriormente aceitaram a existência da oposição entre sociedades tradicionais e sociedades modernas e encararam a passagem das primeiras para as segundas como um processo irreversível e de sentido único. Estas teorias podem ser enquadradas sob uma mesma designação: a grande narrativa da transformação cultural, para retomar um conceito de Lyotard, que Horkheimer & Adorno apresentaram numa perspectiva filosófica na sua obra "Dialéctica do Esclarecimento", onde, associando as ideias de Marx e de Weber, com recurso a Nietzsche e a Freud, conceberam a dialéctica do progresso como regressão. Esta grande narrativa da modernização pode ser reconduzida a três elementos-chave:
1. O surgimento do capitalismo industrial na Europa e noutros lugares do mundo foi acompanhado pelo declínio das crenças e das práticas religiosas e mágicas que prevaleciam nas sociedade pré-industriais. Isto significa que o desenvolvimento económico capitalista foi seguido, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e das práticas religiosas e pela racionalização progressiva da vida social. Peter Berger definiu a secularização como um processo de «progressiva "perda de realidade" por parte das interpretações religiosas tradicionais do mundo». Ao racionalizar sectores cada vez mais amplos da vida social, a modernização privou o indivíduo da segurança que lhe proporcionavam as instituições tradicionais. Esta insegurança implicou «a ameaça constante de isolamento e de falta de sentido».
2. O declínio da religião e da magia prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças seculares ou ideologias, que servem para mobilizar a acção política, sem referência a valores ou a seres de outro mundo (seres sobrenaturais). A consciência religiosa e mística da sociedade pré-industrial foi substituída pela consciência prática enraizada nas colectividades sociais e animadas pelos sistemas seculares de crenças.
3. Estes desenvolvimentos deram lugar à "Era da Ideologia" que culminou em movimentos revolucionários radicais no final do século XIX e inícios do século XX. Estes movimentos foram as últimas manifestações da era da ideologia. Actualmente, a política é cada vez mais um problema de reforma gradual e de acomodação pragmática de interesses em conflito. A acção social e política é cada vez menos animada por sistemas seculares de crenças que exigem a mudança social radical. Por isso, estamos a assistir não só ao fim da era das ideologias, mas também ao fim da ideologia como tal, como defenderam Daniel Bell, Raymond Aron, Jean-François Lyotard e Vattimo.
Lyotard vai mais longe quando afirma que o projecto moderno da realização da universalidade não foi abandonado ou esquecido, mas destruído e liquidado, e, em seu lugar, surge aquilo a que chamou pós-modernidade. Porém, A. Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash reagiram contra a esta teoria do fim da modernidade, opondo-lhe uma nova teoria da modernidade, a modernização reflexiva, já previamente desenvolvida por Giddens. Esta nova teoria defende que, nas primeiras fases da modernização, muitas instituições dependiam das tradições das sociedades pré-industriais. Contudo, à medida que a modernização entra na sua fase mais avançada (a modernização reflexiva de Beck), as tradições começaram a perder a sua força, de modo que as sociedades modernas se tornaram "destradicionalizadas". Embora não tenham ainda desaparecido completamente, as tradições gozam de um estatuto que mudou significativamente. As práticas tradicionais perderam o monopólio da verdade e tornaram-se menos seguras quando são expostas ao escrutínio e à discussão públicos. Ao serem chamadas a defender-se, estas práticas perdem o status de verdades inquestionáveis. Um modo de sobrevivência é a sua transformação num tipo de fundamentalismo, como o islâmico, que rejeita o apelo da justificação discursiva e procura, num clima de dúvida generalizada, reafirmar o seu carácter inviolável.
Podemos alegar dois argumentos contra a tese do declínio da tradição que teria acompanhado o desenvolvimento das sociedades modernas:
1. Determinadas tradições e sistemas de crenças tradicionais continuam a estar presentes nas sociedades dos séculos XX e XXI, tais como as igrejas católicas ou protestantes, às quais vieram associar-se os novos movimentos religiosos ou mágicos, tomados geralmente como o regresso do sagrado.
2. A tese do declínio da tradição não leva em conta o papel dos mass media.
J. Thompson foi dos poucos teóricos sociais que compreendeu a verdadeiro impacto dos mass media na transformação das sociedades modernas. A sua teoria da modernização assenta na ideia crucial de que a mediatização da tradição a dotou de nova vida, liberando-a das limitações da interacção face a face e revestindo-a de novas características. A tradição desritualizou-se e perdeu parcialmente a sua fundação nos contextos práticos da vida quotidiana. Os mass media electrónicos tanto os da primeira geração como os da segunda geração são actualmente a nova fundação da tradição.
«Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso». (Walter Benjamin)
2. Mas afinal o que é a tradição? No seu sentido mais geral, a tradição é, como diz Thompsom, «um traditum, isto é, qualquer coisa que é transmitida e trazida do passado». Thompson distingue quatro aspectos diferentes da tradição, frequentemente confundidos, mas interligados entre si: o hermenêutico, o normativo, o legitimador e o identificador.
1º. Aspecto hermenêutico. A hermenêutica de Heidegger a Gadamer encara a tradição como um conjunto de pré-compreensões ou de preconceitos de fundo que são aceites pelos indivíduos quando se orientam na vida quotidiana e que são transmitidos de geração em geração. Para a hermenêutica, a tradição não constitui um guia normativo usado para orientar a acção, mas um esquema interpretativo, uma estrutura mental prévia, usada para ajudar os indivíduos a entender e a compreender o mundo em que foram e estão lançados. Toda a compreensão funda-se em pré-compreensões ou, como prefere dizer Gadamer, em preconceitos, portanto, num conjunto de conceitos que tomamos como certos e evidentes e que fazem parte integrante da tradição a que pertencemos. Nenhuma compreensão pode ser completa e inteiramente isenta destes preconceitos fácticos ou contrafácticos.
Como já vimos noutro post, Gadamer leva a cabo a requalificação da crítica iluminista da tradição. Ao opor as noções de razão, de conhecimento científico e de emancipação às noções de tradição, de autoridade e de mito, o Iluminismo não descartou a tradição como tal, mas articulou um conjunto de novos preconceitos e de novos métodos que formavam o núcleo duro de outra tradição: a tradição do próprio Iluminismo. Por conseguinte, o Iluminismo não constitui a antítese da tradição, mas é, ele próprio, uma tradição entre outras tradições: um conjunto de suposições ou preconceitos aceites como verdadeiros, sem exame prévio, que articulam uma estrutura cognitiva que ilumina o conhecimento do mundo. Quando Habermas lhe lembra que a tradição pode ser criticada, Gadamer responde que esta é sempre uma tradição aberta e em constante mudança.
2º. Aspecto normativo. As tradições também são conjuntos de suposições, crenças e padrões de comportamento, trazidos do passado, que servem como princípios orientadores para as acções e as crenças do presente. Este aspecto normativo da tradição manifesta-se de duas maneiras: a) as tradições do passado podem funcionar como princípio normativo no sentido de rotinizarem determinadas práticas (práticas rotineiras), desse modo realizadas com pouca reflexão, dado que sempre foram realizadas da mesma maneira ao longo dos tempos. A vida quotidiana desenrola-se normalmente sob o signo da rotina. b) As tradições do passado também podem funcionar como princípio normativo no sentido de fundamentarem tradicionalmente determinadas práticas (práticas tradicionalmente fundamentadas), isto é, de justificá-las pela referência à tradição.
3º. Aspecto Legitimador. A tradição pode, em determinadas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade. Max Weber distinguiu três modos de estabelecer a legitimidade de um sistema de dominação: a) a autoridade legal, cujas reivindicações de legitimidade se fundam em fundamentos racionais que envolvem a crença na legalidade das normas promulgadas; b) a autoridade carismática, cuja legitimidade se baseia em fundamentos carismáticos que implicam a devoção à santidade ou ao carácter excepcional de um indivíduo; e c) a autoridade tradicional, cuja legitimidade fundada na tradição envolve a crença no carácter sagrado de tradições imemoriais.
No caso da autoridade legal, os indivíduos obedecem a um sistema impessoal de normas, porque a burocracia é o regime de ninguém e onde ninguém pode ser responsabilizado, excepto os chamados "criminosos" criados pelas próprias leis. No caso da autoridade tradicional, as pessoas obedecem à pessoa que ocupa a posição de autoridade tradicionalmente sancionada: as suas acções tornam-se obrigatórias por tradição. Nalgumas circunstâncias, a tradição pode ter um carácter político, funcionando não só como princípio normativo de acção, mas também como base para o exercício do poder exercido sobre outros, de modo a garantir a sua obediência. Neste sentido, as tradições tornam-se ideológicas, sendo usadas para sustentar relações desiguais e assimétricas de poder.
4º. Aspecto Identificador. Este aspecto da tradição diz respeito ao papel desempenhado pela tradição na formação da identidade: identidade pessoal e identidade colectiva. A auto-identidade refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo, como sendo um indivíduo dotado de determinadas características ou traços pessoais e situado numa determinada trajectória de vida. A identidade colectiva refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo como sendo membro de um grupo social ou colectividade mais vasta. Trata-se, portanto, do sentido de pertença: a noção de fazer parte integrante de um grupo social que tem uma história própria e um destino colectivo comum.
O processo de formação de identidade não começa do nada; pelo contrário, como já vimos noutro post, constrói-se sempre a partir de um conjunto de material simbólico pré-existente que constitui a fonte da identidade. Ora, as tradições são precisamente reservatórios de suposições, preconceitos, crenças e padrões de comportamento que, trazidos do passado, fornecem os materiais simbólicos necessários para a auto-formação da identidade individual e colectiva. Assim, o sentido que cada um tem de si mesmo e de pertencer a um grupo social é moldado e condicionado pela tradição a que pertence. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Hans Jonas: Pensar Deus depois de Auschwitz

Excurso provisório sobre a teologia especulativa de Hans Jonas
Auschwitz foi um acontecimento real e Deus permitiu que esse acontecimento horroroso acontecesse. Poder-se-ia dizer que depois de Auschwitz já não se pode pensar mais em Deus, mas uma tal atitude não nos ilibaria da nossa responsabilidade.
Hans Jonas coloca a questão nestes termos: «Que tipo de Deus poderia permitir isso?»
. A questão colocada nestes termos não visa romper com qualquer tipo de compreensão de Deus e muito menos negar Deus: não é Deus que é posto em questão, mas uma determinada concepção teológica de Deus — aquilo a que Moltmann chamou o «Deus de Parménides»:
«O Deus de Parménides é “pensável” porque é o ser eterno, uno e pleno. Pelo contrário, o que não é, o passado e o futuro, não são “pensáveis” Na contemplação da presente eternidade deste Deus, tornam-se impensáveis — pois não “são” — o que não é, o movimento e a mudança, a história e o futuro. A contemplação deste Deus não permite uma experiência inteligente da história, mas só a sua negação. O logos deste ser liberta e exonera, para o presente eterno, do poder da história»
.
Hans Jonas pensa, talvez demasiado precipitadamente, que, diante desta pergunta, o judeu «está teologicamente numa posição mais difícil que o cristão»
. Dado que espera a verdadeira salvação no mais-além, o cristão encara este mundo como sendo, em grande medida, diabolizado e, por isso, objecto de desconfiança. O pecado original tornou o mundo humano objecto de desconfiança permanente. O judeu, pelo contrário, vê neste mundo o lugar da criação divina, da justiça e da redenção. Daqui resulta que Deus é, em primeiro lugar, o Senhor da História.
Ora, Auschwitz «põe em causa todo o conceito tradicional de Deus»
, na medida em que «acrescenta à história judia algo nunca visto, algo que não se pode abordar com as antigas categorias teológicas». Poder-se-ia abandonar definitivamente o conceito de Deus e, desse modo, por termo à questão, mas Hans Jonas considera mais adequado «pensá-lo novamente para não ter que prescindir dele e buscar uma nova resposta ao velho problema de Job. Por isso, procura «oferecer um fragmento de teologia abertamente especulativa», elaborada a partir da experiência judia. Tal teologia despede-se do conceito de Deus como Senhor da História, aproximando-se, quer queira ou não Jonas, do espírito de toda a teologia cristã.
1. A TEOLOGIA FENOMENOLÓGICA DE JONAS. Para expor o seu novo conceito de Deus, Hans Jonas recorre a um mito elaborado por ele e que pode ser designado o mito do ser-no-mundo de Deus. Trata-se de uma conjectura figurada mas verosímil, de resto admitida por Platão para a esfera mais elevada do conhecimento. Eis o teor do mito:
«No princípio, por uma escolha não conhecível, o fundo divino do ser decidiu entregar-se à aventura e à infinita diversidade do devir. E fez isso totalmente. Ao integrar-se na aventura do espaço e do tempo, a divindade não reteve nada dela mesma; não permaneceu nenhuma parte inacessível e imune de si para dirigir, corrigir e finalmente garantir desde fora a sinuosa formação do seu destino no mundo do criado. O espírito moderno defende esta imanência incondicional. O seu valor ou o seu desespero, e em todo o caso a sua radical sinceridade, levam-no a tomar a sério o nosso ser-no-mundo, isto é, a entender o mundo como abandonado a si mesmo, as suas leis como fechadas a qualquer intromissão e o rigor da nossa pertença a ele como não atenuado por uma providência extramundana. Isto mesmo afirma o nosso mito do ser-no-mundo de Deus. Mas não no sentido de uma imanência panteísta, porque se Deus e o mundo são simplesmente idênticos, o mundo representa em todo o momento e em qualquer estado a sua plenitude, e Deus não pode nem perder nem ganhar. Ou melhor, para que possa existir o mundo, Deus renuncia ao seu próprio ser; despoja-se da sua divindade para voltar a recebê-la da odisseia do tempo, carregada com a colheita ocasional de experiências temporais imprevisíveis, sublimada ou talvez também desfigurada por elas. Neste abandono de si mesmo da integridade divina a favor do devir incondicional não se pode supor nenhum outro saber prévio salvo o que se refere às possibilidades que o ser cósmico oferece devido às suas próprias condições: Precisamente a estas condições entregou Deus a sua causa quando se alienou a favor do mundo«Durante eões o mundo esteve seguro nas mãos lentas do acaso cósmico e das probabilidades do seu jogo quantitativo, enquanto, simultaneamente, pela circulação da matéria — assim podemos conjecturá-lo — se foi acumulando uma memória paciente. Com o seu aumento cresceu uma esperança intuitiva, com a qual o eterno acompanhou cada vez mais de perto as obras do tempo. Assim se produziu um tardio emergir da transcendência desde a opacidade da imanência.
«E então surgiu a primeira moção de vida, que introduz uma nova linguagem no mundo. Com esta linguagem intensificou-se extremamente o interesse por parte do eterno e produziu-se um súbito salto no crescimento para a recuperação da sua plenitude. Este momento, que estava à espera a divindade em devir, era o acaso universal, e nele, pela primeira vez, a sua pródiga participação mostrou sinais da sua redenção final. Começou uma incessante acumulação de sensações, percepções, aspirações e actuações, que se ia erguendo em formas mais e mais diversas e intensas sobre os mudos redemoinhos da matéria, e desta acumulação a eternidade cobrou força, encheu-se de conteúdos e mais conteúdos de auto-afirmação, até que, no seu despertar, Deus pode dizer pela primeira vez que a Criação era boa.
«Mas é necessário ter presente que a vida trouxe consigo a morte e que a mortalidade era o preço que a nova possibilidade de ser teve de pagar por si mesma. Se a meta tivesse sido a permanência constante, a vida nem sequer deveria ter começado, porque em nenhuma das suas formas possíveis a sua persistência pode medir-se com a dos corpos inorgânicos. Trata-se de um ser essencialmente revogável e destrutível, de uma aventura da mortalidade, que obteve em préstimo as trajectórias finitas dos si-mesmos individuais por parte da matéria duradoura, sob as suas condições e para o curto prazo do organismo metabolizante. Esse breve sentir-se a si mesmo, actuar e sofrer de indivíduos finitos, aos quais só a pressão da finitude outorga toda a intensidade e o frescor do seu sentir, é precisamente o âmbito onde se desenrola a paisagem divina com todo o jogo das suas cores e onde a divindade se experiencia a si mesma...
«É necessário observar também que, na inocência da vida antes da aparição do saber, a causa de Deus não podia falhar. Cada diferenciação de espécies, que a evolução produziu, acrescentou uma nova às possibilidades de sentir e actuar, enriquecendo assim a auto-experiência do fundo divino. Cada dimensão da resposta do mundo, que se abriu no seu transcurso, significou para Deus uma nova modalidade para provar o seu ser encoberto e para se descobrir a si mesmo nas surpresas da aventura universal. E toda a colheita do seu apremiado esforço por devir, seja clara ou obscura, incrementa no mais além o tesouro da eternidade vivida no tempo. Se isso já é certo para o espectro em desenvolvimento da própria diversidade, quanto mais ainda para a crescente alerta e paixão da vida que vai a par com o crescimento da percepção e o movimento no mundo animal. A constante intensificação dos impulsos e do medo, do prazer e da dor, triunfo e miséria, amor e inclusive crueldade — o penetrante da sua própria intensidade e de toda a experiência em geral — é um ganho para o sujeito divino»
.
Deus alienou-se a favor do mundo: desta tese decorre o carácter estrutural da teologia de Hans Jonas. A sua teologia mais não é que uma fenomenologia de Deus e da sua experiência, elaborada em analogia com a Fenomenologia do Espírito de Hegel
.
Deste mito decorrem implicações teológicas sérias, algumas das quais são tratadas por Hans Jonas.
1. A concepção de um Deus sofredor opõe-se directamente à ideia bíblica da majestade divina.
O cristianismo usa constantemente a expressão deus sofredor, mas num sentido diferente daquele em que a emprega Jonas. A sua teologia não fala de um «acto único por meio do qual a divindade pôs uma parte de si mesma numa situação de sofrimento (a encarnação e a crucificação), com a finalidade especial de redimir os seres humanos»
. Deus sofredor tem um sentido mais radical na teologia de Jonas que no cristianismo: «a relação de Deus com o mundo inclui um sofrimento de Deus desde o momento da Criação, e certamente desde o da criação dos seres humanos». O sofrimento das criaturas é evidenciado por qualquer teologia e, como tal está incluído na ideia radical de Jonas de que «Deus sofre com o criado». Embora esta ideia choque com a noção de majestade divina, ela não é completamente alheia à bíblia hebraica. Basta recordar o profeta Oseias e a emotiva queixa amorosa de Deus sobre a sua infiel esposa Israel.
2. A teologia especulativa de Jonas esboça a imagem de um Deus que devém: «É um Deus que surge no tempo em vez de possuir um ser perfeito que permanece eternamente idêntico a si mesmo»
.
Tal ideia de um devir divino contradiz a tradição grega platónico-aristotélica, a qual declara como atributos de Deus a transtemporalidade, a impassibilidade e a imutabilidade. Ao sustentar a contraposição ontológica entre ser e devir, donde o devir é inferior ao ser e característico do mundo corpóreo mais baixo, o pensamento clássico exclui logo à partida a ideia de um devir do ser puro e absoluto da divindade. Ora, segundo Jonas ou mesmo Moltmann, o conceito grego de divindade nunca se coadunou verdadeiramente com o espírito e a linguagem da bíblia. O conceito de um devir divino combina-se talvez melhor com, esse mesmo espírito bíblico.
Mas o que quer dizer que Deus devém? A teologia fenomenológica de Jonas concede a Deus, pelo menos, «tanto “devir” como o que fica patente no mero facto de que fica afectado pelo que acontece no mundo, e “afectado” significa “alterado”, mudado no seu estado»
. Quando decidiu alienar-se no mundo, Deus aceitou submeter-se aos efeitos do devir. Com efeito, «a própria Criação, enquanto acto e existência do seu resultado, significa uma mudança decisiva no estado de Deus, porque com ela deixa de estar só». Além desta mudança, a relação contínua de Deus com o criado, uma vez que existe e se move no fluir do devir, significa precisamente que Ele «experiencia algo com o mundo e que, portanto, o que sucede neste influi no seu próprio ser». Ora, se Deus está em alguma relação com o mundo, como afirma qualquer religião, então «só é assim como o Eterno se tem “temporalizado” e, por meio das realizações do processo universal, se vai modificando progressivamente». Isto aplica-se tanto à simples relação com o saber que o acompanha, como ao interesse.
Deste conceito de Deus em devir deriva uma consequência marginal, que possibilita destruir a ideia do eterno retorno do mesmo. Esta ideia elaborada por Nietzsche opunha-se à metafísica judaico-cristã.
«A ideia de Nietzsche é com efeito, o símbolo mais extremo da viragem para a temporalidade e a imanência incondicional, longe de qualquer transcendência que pudesse conservar uma memória eterna do que perece no tempo. A sua ideia é que, pelo simples esgotamento das permutações possíveis na repartição de elementos materiais, deve voltar a estabelecer-se uma configuração «originária» do cosmos, com a qual tudo volta a começar de idêntica maneira; e se uma vez, então também incontáveis vezes, como Nietzsche o exprime na metáfora do “anel dos anéis, o anel do eterno retorno”»
.
Ora, se a eternidade não é imune ao que acontece no tempo, não pode haver um retorno do mesmo, uma vez que «Deus não é o mesmo depois de ter atravessado a experiência de um processo universal. Cada mundo novo terá incluído na sua própria herança a recordação do precedente ou, por outras palavras: não haverá uma eternidade indiferente e morta, mas uma eternidade que cresce com a colheita temporal que se vai acumulando»
.
3. Os conceitos de um Deus sofredor e em devir estão intimamente relacionados com o conceito de um Deus que está preocupado.
A preocupação — o cuidado — não é uma estrutura característica exclusivamente do Dasein, como queria fazer crer Heidegger. Também Deus está preocupado, embora não seja ontologicamente um ser-para-a-morte
. Um Deus preocupado «não está distante, separado e fechado em si mesmo, mas envolvido naquilo pelo qual se preocupa».
Independentemente daquilo que tenha sido o seu estado «originário», Deus deixou de ser fechado em si mesmo «no momento em que entrou em relação com a existência do mundo, criando este mundo ou permitindo o seu aparecimento»
.
É certo que o judaísmo sempre esteve familiarizado com este facto de que Deus se preocupa pelas suas criaturas, mas a teologia de Jonas acentua o aspecto menos familiar da preocupação divina: «Deus cuidador não é nenhum mago que no acto mesmo de se preocupar já resolva o que é motivo da sua preocupação»
. Ao alienar-se no mundo, Deus deixou algo a fazer pelos outros actores e, ao proceder assim, permitiu que aquilo que O preocupa esteja nas mãos dos outros.
4. Daqui decorre que Deus é também um «Deus ameaçado, um Deus com um risco próprio»
. Este conceito de Deus ameaçado merece ser destacado. Desde Gehlen e outros antropólogos de orientação bio-filosófica, sabemos que o homem, devido à ausência de adaptações filogenéticas que lhe doem um mundo, é um ser em risco. A teologia de Jonas «humaniza» de tal modo a divindade que até mesmo Deus é encarado como um ser em risco permanente. Ao alienar-se no mundo, Deus entregou-se completamente ao devir mundano, correndo um risco próprio. Deus entregou-se, num acto de dádiva pura, ao destino da história universal.
Deus é um Deus ameaçado, «porque de outro modo o mundo se acharia num estado de permanente perfeição»
. Ora, basta abrir os olhos para ver que o mundo está longe da perfeição. O mundo actual é miséria. Tal facto «só pode significar uma de duas coisas: ou bem que não existe Um Deus (ainda que talvez mais de um), ou que este Um (uno) deixou algo distinto de si mesmo, algo criado por ele, um espaço de acção e um direito de co-decisão para o que é motivo da sua preocupação». O mundo humano, mais do que qualquer outro aspecto da criação, é verdadeiramente o motivo da preocupação de Deus: o homem ameaça directamente Deus com a sua crueldade manifestada ao longo da história. Ora, se existe Um Deus, este é um Deus cuidador e, por conseguinte, não é «um mago», isto é, um Deus que intervenha milagrosamente na história sempre que o homem se afasta do seu caminho. «De qualquer maneira, por um acto de sabedoria insondável ou de amor ou qualquer outro motivo divino, [Deus] renunciou a garantir a satisfação de si mesmo pelo seu próprio poder, e fê-lo depois de já ter renunciado por meio da Criação mesma a ser o todo do todo».
A renúncia de Deus só pode ser um acto de amor pleno, como de resto acentua o cristianismo.
5. Daqui decorre aquilo a que Jonas chama o «ponto mais crítico [da sua] aventura teológica especulativa: Não é um Deus omnipotente!»
. Ao criar o mundo, Deus abdicou da sua omnipotência, entregando-se ao devir. Jonas é peremptório: «Sustento, com efeito, que, em virtude da nossa imagem de Deus e de toda a nossa relação com o divino, não podemos manter já a doutrina tradicional (medieval) de um poder divino absoluto e ilimitado». Esta é, sem dúvida, a tese fundamental desenvolvida pela teologia especulativa de Hans Jonas: Deus não é omnipotente, como afirmava de forma enfática Santo Agostinho.
Jonas justifica esta tese a dois níveis: ao nível lógico e ontológico e ao nível religioso.
Ao nível lógico, Jonas articula «o paradoxo que se encontra no próprio conceito de poder absoluto»
. De acordo com Jonas, do simples conceito de poder decorre que «a omnipotência é um conceito contraditório em si [mesmo], que se anula a si mesmo e que resulta absurdo». Tal oxímero é explicitado através da comparação do poder absoluto com a liberdade absoluto humana:
«[A liberdade não] começa onde acaba a necessidade, [tal como defenderam tanto Hegel como Marx], a liberdade consiste e vive no medir-se com a necessidade. O mesmo vale também para o poder, que seria vazio se fosse absoluto e único. Poder absoluto e total significa um poder que não está limitado por nada, nem sequer pela existência de algo outro em geral, algo fora dele mesmo e distinto dele. Porque a mera existência de algo outro representaria já uma limitação, e o poder único deveria aniquilá-lo para conservar o seu carácter absoluto. Então o poder absoluto, na sua solidão, não teria nenhum objecto sobre o que pudesse exercer o seu efeito, mas como poder sem objecto, um poder é impotente e anula-se a si mesmo. «Omni» equivale aqui a «zero». Para que possa actuar, tem que haver algo outro e tão pronto como aparece, o uno já não é omnipotente, embora o seu poder pudesse ser indefinidamente superior em qualquer comparação. A existência tolerada de outro objecto limita por si mesma o poder da mais poderosa força eficiente enquanto condição da sua possibilidade de actuar, isto é, pelo facto de lhe permitir assim que seja uma força eficiente. Em suma, «poder» é um conceito relacional que requer uma relação pluripolar. Mas inclusivamente então um poder, que não encontra nenhuma resistência no outro da sua relação, é igual que nenhum poder em absoluto. Um poder só pode entrar em acção em relação com algo que também tem poder. Se não quer ser ocioso, o poder consiste na capacidade de superar algo, e a coexistência com algo é como tal suficiente para que se cumpra esta condição. A existência significa resistência e, portanto, é uma força que actua contra algo. O mesmo que na física uma força sem resistência, isto é, sem uma força contrária, permanece vazia, também o será na metafísica um poder sem contrapoder, por desigual que este pudesse ser. Aquilo sobre o que o poder actua deve Ter por si mesmo um poder, ainda que este viesse do primeiro e originariamente lhe tivesse sido concedido juntamente com a sua existência por meio de uma renúncia a si mesmo do poder ilimitado, ou seja, por meio do acto da Criação. Em resumo, não é possível que todo o poder esteja só do lado de um sujeito efectuante único. O poder deve estar compartilhado para que possa existir poder em geral»
.
Depois de ter apresentado a objecção lógico-ontológica à noção de poder absoluto, Jonas apresenta uma outra objecção, desta vez teológica e autenticamente religiosa:«A omnipotência divina só pode coexistir com a bondade divina ao preço da absoluta insondabilidade de Deus, isto é, do seu carácter enigmático. Ante a existência do mal ou inclusivamente só da miséria no mundo, deveríamos sacrificar a compreensibilidade de Deus à relação dos outros dois atributos. Só de um Deus de todo incompreensível se pode dizer que, ao mesmo tempo, é absolutamente bom e omnipotente e que tolera, sem dúvida, o mundo tal como é. Dito de maneira mais geral, os três atributos em questão — bondade absoluta, omnipotência e compreensibilidade — estão numa relação tal que qualquer conexão de dois deles exclui o terceiro»
.
Na economia geral dos três atributos geralmente atribuídos a Deus, só se podem ligar os atributos dois a dois, com a exclusão de um terceiro. Se ligarmos a omnipotência com a bondade divina, teremos de encarar Deus como um ser insondável, isto é, incompreensível. É preciso ceder um desses atributos para conservar uma concepção integral de Deus.
«A bondade, isto é, o querer o bem, é certamente inseparável do nosso conceito de Deus e não pode ser restringida. A compreensibilidade ou cognoscibilidade está duplamente condicionada: pela essência de Deus e pelas limitações do ser humano, e, em última instância, está sujeita à limitação, mas sob nenhuma condição pode ser totalmente negada»
.
A concepção de Deus elaborada por Jonas abdica da omnipotência divina a favor da ideia de Deus como um ser Bom e, de certo modo, cognoscível. Negar a compreensibilidade de Deus, além de atentar contra a revelação, equivale a defender um Deus oculto. Ora, «o Deus abconditus, o Deus oculto (para não falar do Deus absurdo) é uma ideia profundamente alheia à fé judia»
. Segundo Jonas, a Tora baseia-se e insiste em que «podemos entender a Deus, naturalmente não do todo, mas algo dele, da sua vontade, das suas intenções e inclusivamente da sua essência, porque se nos deu a conhecer. A revelação teve lugar, possuímos os seus mandamentos e leis e a alguns — os seus profetas — comunicou-se directamente, usando-os como a sua boca para todos, que fala na língua dos seres humanos e do tempo, isto é, balbuciando pelas limitações dos meios, mas sem se manter num secreto obscuro. Um Deus completamente oculto e incompreensível é um conceito inaceitável segundo a norma judia».
Se associarmos à bondade divina à sua pertença omnipotência, obtemos igualmente um Deus oculto, mais precisamente um Deus obscuro. Ora, é precisamente essa concepção de Deus que é problematizada pela experiência de Auschwitz:
«Depois de Auschwitz podemos dizer, mais decididamente do que nunca, que uma divindade omnipotente ou não seria infinitamente boa ou então totalmente incompreensível (no seu domínio sobre o mundo, que é donde só podemos compreendê-la). Mas, se Deus tem de ser compreensível de certo modo e até certo grau (e devemos sustentar isso), então o seu ser-bom deve ser compatível com a existência do mal e só pode sê-lo se não é omni-potente. Só desta maneira podemos continuar a sustentar que é compreensível e bom e que, sem dúvida, existe o mal no mundo. E, dado que já vimos que o conceito da omnipotência é em si mesmo duvidoso, é este o atributo de que temos de prescindir»
.
O argumento de Jonas em torno da omnipotência permite-lhe estabelecer o princípio, «para qualquer teologia que esteja em continuidade com a herança judia, de que há que considerar o poder de Deus como limitado por algo cuja existência por direito próprio e cujo poder de actuar por autoridade própria são reconhecidos por Deus mesmo»
.
A limitação do poder de Deus poderia ser interpretada como uma mera concessão por parte de Deus, «a que ele pode revogar quando o deseja, isto é, como a retenção de um poder irrestrito que possui, mas que, em virtude do direito próprio do criado, só usa de maneira limitada. Mas isto não seria suficiente, porque ante os tormentos realmente e absolutamente monstruosos que uns seres humanos infringem a outros inocentes de maneira unilateral — tratando-se sempre da espécie criada segundo a imagem de Deus —, se deveris poder esperar que o bom Deus rompesse de vez a própria regra da extrema discrição do seu poder e que interviesse com um milagre de salvação. Mas não ocorreu nenhum milagre de salvação. Durante os anos das atrocidades de Auschwitz, Deus permaneceu em silêncio. Os milagres que se produziram só eram obra de seres humanos (...)»
.
Enquanto alguns homens justos, cuja memória não deve ser abandonada ao esquecimento dos arquivos, não se recusavam a sacrificar a sua vida para salvar os inocentes, «Deus permaneceu em silêncio». Mas este silêncio não pode ser compreendido como desinteresse e muito menos como cumplicidade: Deus não interveio, não porque não quis, «mas porque não pôde»
intervir.
É, por isso, que Jonas propõe «a ideia de um Deus, que durante um tempo — o tempo do processo universal em progresso — renunciou a todo o seu poder de imiscuir-se no curso das coisas do mundo; que não contestou o choque do acontecer terreno contra o seu próprio ser com «a mão forte e o braço estendido», como recitam os judeus cada ano comemorando o êxodo do Egipto, mas com a intensidade da sua muda solicitação a favor da sua meta incumprida»
.
Jonas reconhece que a sua teologia especulativa se distancia substancialmente da mais antiga doutrina judia. Algumas das treze doutrinas de fé formuladas por Maimónides, nomeadamente os enunciados sobre o poder supremo de Deus sobre a Criação, os enunciados que afirmam que Deus recompensa os bons e castiga os maus ou mesmo os enunciados que insistem na chegada futura do Messias prometido, que se cantam no serviço religioso judeu, tornam-se caducos a partir do momento em que não se pode falar já da «mão forte» de Deus. Contudo, dado que «a impotência de Deus só se refere ao físico»
, os enunciados que falam do chamamento das almas, da inspiração dos profetas e da Tora, a ideia de eleição, a ideia de um único Deus e o chamamento «escuta Israel!», continuam a ser válidos na perspectiva teológica de Jonas.
A teologia de Jonas abdica do dualismo maniqueísta para explicar o Mal. Este «só surge nos corações humanos e ganha poder no mundo. Na mera admissão da liberdade humana encontra-se implícita uma renúncia ao poder divino»
. A negação da omnipotência divina deixa teoricamente aberta a escolha entre um dualismo originário — teológico ou ontológico — e a autolimitação do Deus único por meio da sua Criação desde o nada. De acordo com Jonas, o dualismo pode adoptar duas formas: a maniqueísta e a platónica.
O dualismo maniqueísta defende a existência de uma força do mal activa que, desde o princípio, actua em todas as coisas contra o propósito divino. Desta posição resulta uma teologia de dois deuses, a qual é inaceitável não só para o judaísmo, como afirma Jonas, mas sobretudo para o cristianismo. A ideia de um único Deus está acima de qualquer problematização.
O dualismo platónico afirma a existência de um meio passivo que, de uma maneira igualmente universal, permite somente a materialização imperfeita do ideal no mundo. Daqui decorre uma ontologia da forma e da matéria. Mas uma tal ontologia só pode responder, no melhor dos casos, ao problema da imperfeição e da necessidade na natureza, deixando sem resposta o problema do mal activo que implica uma liberdade com autoridade própria, inclusivamente frente ao seu Criador.
Ora, a questão teológica actualmente pertinente é precisamente «o facto e o êxito do mal por vontade, muito mais que as pragas da cega causalidade natural: Auschwitz e não o terramoto de Lisboa», que tanto preocupou Leibnitz ou Voltaire. Como escreve Jonas: «Só com a Criação desde o nada temos a unidade do princípio divino juntamente com a sua autolimitação, que deixa espaço à existência e à autonomia do mundo. A Criação foi o acto da soberania absoluta, com o qual esta manifestou a sua vontade de deixar de ser absoluta em função da existência de uma finitude que se pode autodeterminar. Trata-se, portanto, de um acto de auto-alienação divina»
.
Jonas recorda a corrente subterrânea da cabala judaica, estudada por Gershom Scholem, para mostrar que a tradição judia é menos ortodoxa em questões de soberania divina do que pretende a doutrina oficial. Com efeito, a cabala conhece um destino de Deus, ao qual este se submeteu aquando do devir do mundo. Daí que Jonas diga que o seu mito só radicaliza «a ideia do zimzum, este conceito central da cabala luriana. Zimzum significa contracção, retirada, autolimitação. Para dar espaço ao mundo, o En-Ssof do começo, o Infinito, teve de recolher-se em si mesmo para fazer surgir o vazio no e do qual pôde criar o mundo. Sem este recolher-se em si mesmo não poderia existir nada mais ao lado de Deus, e só o seu continuado limitar-se preservou as coisas finitas de perder o seu ser próprio novamente no «todo dentro do todo» divino»
. Jonas vai ainda mais longe quando sublinha que «a contracção é total, o infinito na sua totalidade e poder alienou-se no finito, entregando-se [inteiramente] a ele».
Coloca-se agora a questão de saber se uma tal concepção da auto-alienação de Deus no mundo finito deixa algum lugar para uma relação com Deus. Em termos mais radicais, devemos colocar a questão: Um Deus autolimitado pode ser objecto de adoração? A resposta de Jonas é longa, mas compacta:
«Renunciando à sua própria invulnerabilidade, o eterno fundo do mundo permitiu a este que existisse. Todas as criaturas devem a sua existência a esta autonegação e receberam graças a ela tudo o que havia a receber do mais além. Uma vez que se entregou por completo ao mundo e a seu devir, Deus já não tem nada a dar. Agora cabe ao ser humano dar o seu a Deus. E pode fazê-lo procurando, nos caminhos da sua vida, que não se converta em motivo para que Deus se arrependa de haver permitido o devir do mundo. Isto poderia ser talvez o segredo dos desconhecidos «trinta e seis justos», que, segundo o ensinamento judeu, não devem faltar nunca para que o mundo possa continuar a existir; a eles podem ter pertencido no nosso tempo alguns dos mencionados «justos entre os povos». O segredo seria, pois, que graças à superioridade do bem sobre o mal, que podemos supor para a lógica não causal das coisas do mais além, a sua santidade oculta é capaz de redimir uma culpa infinita, de saldar a conta de uma geração e de salvar a paz do reino invisível»
.
No fundo, a teologia especulativa de Jonas procura dar uma resposta ao problema de Job, mas a resposta que dá é contrária à do Livro de Job. Enquanto Job apela à plenitude do poder do Deus criador, Jonas apela à sua renúncia ao poder. Apesar dessa diferença, as duas respostas são elogiosas, «porque a renúncia ocorreu para que possamos existir»
e até mesmo na resposta de Job Deus sofre.Ao alienar-se completa e inteiramente no mundo e no seu devir, Deus colocou o homem diante da responsabilidade de zelar pelo seu destino certo. Somos responsáveis quer diante Deus, quer diante dos outros e de todas as coisas criadas. Cabe ao homem a responsabilidade de redimir e de salvar o mundo, vencendo o mal. Na memória infinita de Deus tudo é conservado, tanto o que já não existe quanto o que ainda não existiu. A memória de Deus aguarda que o homem cumpra o prometido. A teologia de Jonas exige uma ética da responsabilidade. Aliás, fundamenta uma tal ética.
2. DEUS: MEMÓRIA E SOFRIMENTO. Deus como infinita memória que guarda cada detalhe da vida das suas criaturas é uma concepção que pode ser comparada com o mito das punições eternas de Platão e, em ambos os casos, os seres vivos serão confrontados com essa memória infinita que os julgará para sempre. Em Platão, encontra-se aqui um fundamento da vida política da Polis. Aos justos resta-lhes a benaventurança eterna. Numa civilização dada ao prazer imediato e embrutecedor, o pragmatismo recomenda a recuperação da dor, porquanto esta ensina a viver a vida de modo disciplinado e responsável. O hedonismo é inimigo da democracia.
3. IMPLICAÇÕES PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ. É certo que Jonas tende a elaborar uma teologia no âmbito da tradição judaica, mas um tal empreendimento neglicencia uma outra tradição mais vasta, da qual o judaísmo faz parte, a menos que os judeus pretendam ser um povo privilegiado e, nesse caso, devem ser abandonados à sua sorte: referimo-nos ao Ocidente como civilização. A Filosofia como guardiã dessa grande tradição greco-romana mantém a sua pretensão à universalidade, reforçada pela mensagem cristã. O Deus de Moisés, de Abraão e de Jacob é o mesmo Deus de Cristo e de todos os seres humanos. O judaísmo só faz sentido quando dissolvido no cristianismo: fora desta matriz universal o judaísmo corre o risco de ser encarado como uma seita sectária cujo destino é governado pelas leis do conflito religioso.
Daqui resulta que a Trindade de Deus só pode ser pensada em devir: Deus Pai no seu estado originário decide arriscar-se e cria o Filho. Aqui começa a odisseia de Deus alienado no mundo, do qual só se pode libertar quando o homem vencer o próprio mal: o Espírito Santo é a comunidade santa de Deus com a sua criação recuperada. Mas Deus é o ser em risco e, a menos que tenha eleito alguma assembleia, como supõe a mística judaica, pode correr o risco derradeira de perder o mundo para Si e perder-se a Si mesmo. Não há Igreja que possa recuperar Deus: somente os homens o podem fazer. Mas o Deus que queremos salvar já não é objecto da teologia, porque Deus não é epistemologicamente objecto. Este facto é escamoteado por muitas teologias que reificam «deus», tal como os judeus adoraram o bezerro de ouro no deserto.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

CyberAntropologia Filosófica

Edgar Morin tem razão, em termos conjunturais, quando afirmou que o desbloqueio da noção de vida torna possível o desbloqueio da noção de homem, o que significa, entre outras coisas, que a revelação biológica comanda a revolução científica que abre os domínios da antropologia às ciências biológicas, mas, estruturalmente falando, a sua análise peca por negligência da filosofia. Embora «louve» de modo ingénuo e apressado as tentativas de alguns filósofos, tais como Marx, Engels, Spencer ou mesmo Freud, para firmar a ciência do homem sobre uma base natural, Edgar Morin quando considera que a filosofia do homem sobrenatural foi uma das últimas resistências opostas à ciência do homem parece querer romper com toda e qualquer filosofia, como se esta tivesse os seus dias contados.
Este positivismo doentio de Morin não lhe permitiu ver e avaliar o enorme contributo da filosofia para o desbloqueio da noção de homem. Mais clarividente e muito mais inteligente do que Morin, o filósofo Plessner (1969), na sua obra Os Graus do Orgânico e o Homem, embora diga que a filosofia não deu nenhum contributo significativo para a antropologia, procura, sem sair da filosofia, indagar a partir de um ponto de vista biológico qual a estrutura fundamental de todo o ser orgânico. Segundo Plessner, o ser orgânico é uma crescente e gradual «centralização», bem como uma «posicionalidade própria». Chega-se assim a uma determinação do humano da qual a sua particularidade consiste numa potenciação muito específica dessas duas características do ser vivo.
A centralização e a posicionalidade atingem, no homem, a sua «peripécia», no sentido de que aquilo que em todos os sistemas puramente orgânicos é somente uma centralização imanente em correlação com um campo imediatamente circundante alcança no homem uma centralização que é, ao mesmo tempo, distância em relação às duas coisas. Assim, a «peripécia» adquire o carácter da reflexividade ou volta a si mesma, pela qual se tornam possíveis tanto a relação do homem consigo mesmo quanto a sua posse de um mundo objectivo. Culminando e aumentando continuamente o princípio da centralização, o homem caracteriza-se por uma centralização que se tornou uma concentração excêntrica. Esta faz do homem, no sentido objectivo, um ser «imperscrutável», o homo absconditus, o qual é para si mesmo «uma questão aberta». Sendo assim, o homem nunca se conhece nas suas últimas possibilidades mas somente nos actos e atitudes que se distinguem dele. Estes são, no entanto, determinados não só pela sua emancipação e liberdade fundamentais mas também pelas suas dependências em relação à natureza, à situação e aos vínculos históricos que o limitam exactamente na sua infinita soberania por eles simultaneamente pressuposta, traçando para a sua liberdade caminhos concretamente finitos.
A antropologia de Plessner, bem como a de A. Gehlen (1966) e de A. Portmann (1944, 1958), é uma teoria do homem a partir da apreensão da sua natureza («antropologia de baixo») e opõe-se, tal como a de Morin, à antropologia a partir da esfera espiritual do homem («antropologia de cima»). Mas, ao contrário da antropologia de Morin, a teoria do homem de Plessner não rompe com a filosofia, mas sim com algumas filosofias, mais precisamente as filosofias idealistas e espiritualistas do homem. Mais ainda: Plessner parece ter consciência de que não é possível uma ciência do homem que não seja simultaneamente filosófica e científica, o que abona a favor da nossa tese filosófica fundamental.
A breve referência que acabamos de fazer da antropologia filosófica de Plessner permite-nos trabalhar a diferença do nosso modelo antropológico sobre as teses defendidas por Edgar Morin, a partir de uma análise do seu modelo da organização. Descurada ingenuamente pelo filósofo Edgar Morin, a filosofia integrou, muito antes da biologia moderna, que é uma biologia não-cartesiana, o homem no universo. D. von Uslar (1977) verificou, num ensaio fulgurante e conciso, que, nos sistemas filosóficos modernos, o problema da natureza do homem está em relação com o problema do mundo e da natureza: quer dizer que os filósofos modernos pensam que o próprio ser do homem deve ser compreendido à luz do ser do mundo de que faz parte. Os três exemplos mais característicos em que o homem é visto como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo são os sistemas filosóficos de Spinoza, Leibniz e Schelling.

SPINOZA. O homem é compreendido por Espinosa como natureza. Desta imagem do homem resulta que, no sistema filosófico de Espinosa, a antropologia coincide com a teoria da natureza. Descartes designava por natureza uma parte ou um sector do ser que se podia contrapor ao espírito. Ora, para Espinosa a palavra natureza designa a realidade de tudo aquilo que existe. A totalidade do existente, pelo simples facto de existir, é vinculada à unidade infinita de tudo quanto existe. Esta unidade é a natureza. Se o homem é natureza, o seu ser é determinado pelo facto de constituir apenas uma parte infinitamente pequena da unidade natural. Mas a natureza não é somente totalidade e unidade de tudo quanto existe: ela é também a fonte do nascer para a própria realidade. Tudo o que existe, existe tão só em virtude da potência originante da natura naturans (natureza originante). Por conseguinte, a essência do homem é determinada pela sua participação nesta potência originante ou gerante. Como diz Espinosa (1960): «A potência do homem é‚ portanto, uma parte da potência infinita de Deus, ou seja, da Natureza» (IV, 4, p. 16). Assim, a potência com a qual um ser existente conserva a sua realidade é a potência infinita da natureza, enquanto esta se exprime neste ser individual. Consequentemente, o impulso do homem, no sentido de conservar-se no ser, constitui uma expressão da potência da Natureza. A essência do homem reside, por isso, num instinto que mais não é que a maneira pela qual se manifesta no homem a tendência de todo o ser para a realidade.
Espinosa concebeu como uma necessidade absoluta a força extraordinária com a qual a natureza gera para o ser tudo quanto existe. Ora, este factor originante ou gerante (a razão da realidade) é a própria natureza. A metafísica escolástica deu o nome Deus àquilo que é a razão de si mesmo e que possui a força de gerar a si mesmo. Ora, Espinosa deu o nome de Deus à natureza e fala mesmo da potência do ser contida na natureza divina (potentia divinae naturae). Deste modo, designa a natureza como aquilo que se gera a si mesmo. A distinção entre a natureza originante (natura naturans) e a natureza originada (natura naturata) corresponde à distinção entre o ser e o existente. Como o ser da natureza não tem uma razão fora de si mesmo, Espinosa diz que ele existe em virtude da sua própria força. Sendo assim, existe uma identidade entre a natura naturans e a natura naturata que, segundo Espinosa, exprime o próprio mistério do ser. Portanto, tudo o que existe, na medida em que existe, participa da necessidade com a qual a natura naturans implica a natura naturata.
No homem esta participação manifesta-se evidentemente na força cogente do impulso ou instinto. Este dirige-se para tudo o que favorece o ser do homem e evita tudo o que o contraria e coíbe. Como a força e o poder dos afectos reside no choque entre a natureza que está no homem e a natureza que está fora dele, eles mais não são que os efeitos originários que as coisas produzem no homem, na medida em que favorecem ou obstam o seu esforço de «ser». A tomada de consciência do impulso faz o homem desejar aquilo que mantém e favorece a sua existência. Assim o afecto original é para Espinosa a cupiditas (cupidez), que dirige o instinto do homem para o mundo. Como instinto aliado à consciência do mesmo, a cupidez é, na medida em que é determinada por uma afeição para o agir, a própria essência do homem.
As coisas que promovem ou favorecem este desejo original do homem despertam nele laetitia (alegria), enquanto as que o cerceiam ou abstaculam produzem nele tristitia (tristeza). Outras variantes desta tendência ou instinto são o amor e o ódio. Como o homem ama aquilo que lhe causa alegria e odeia aquilo que contraria a sua possibilidade de ser, Espinosa define o amor como alegria acompanhada da ideia de uma causa externa e o ódio como tristeza acompanhada também da ideia de uma causa extrínseca. A tendência ou instinto do homem choca constantemente com o mundo. Deste choque resulta um movimento flutuante da alma (fluctuatio animi) entre a alegria e a tristeza.
Para Espinosa a plenitude e a pluriformidade da vida afectiva do homem derivam dos elementos básicos descritos. Os afectos não são algo de exclusivamente interno, como um sentimento violento, mas a relação que o homem tem com o mundo. Alegria e tristeza, amor e ódio são, antropologicamente falando, experiências do ser. Mediante estas experiências o homem tem acesso, dentro de si mesmo, à natureza. Mas, ao mesmo tempo, a alegria e o ódio constituem a vibração ou sintonização do homem com o todo, que sente como uma modificação da natureza.
As modificações da vida afectiva representam assim variações do amor e do ódio. Estes são causados no homem pela pluriformidade das coisas com as quais ele entra em contacto. Espinosa apresenta uma teoria da libido que poder servir de fundamentação ontológica à teoria dos instintos de Freud. Mas a sua concepção da libido não é psicológica, mas sim ontológica. Considerada como um tipo especial de afecto, a libido é definida como cupidez e amor com vista à união do corpo. Como constitui um modo da natureza se manifestar no homem, a libido só pode ser dominada através da compreensão interna do conjunto da natureza durante a qual o homem entra numa sintonia tal com a totalidade que se sente carregado por ela. O caminho da cura leva-o a um aumento de alegria até chegar à beatitude ou felicidade (beatitudo). O homem desfruta desta beatitude, não porque domina a sua libido, mas porque, sendo capaz de dominar a libido, desfruta da felicidade de contemplar a si mesmo como natureza e, deste modo, contemplar a natureza na sua totalidade.

LEIBNIZ. A teoria do homem de Leibniz pode ser caracterizada por uma «perspectividade» multi-relacionada. A sua tese fundamental é a de que o homem é um espelho do mundo. O homem relaciona-se no que faz, pensa, representa ou percebe com o mundo. Mas o mundo revela-se a cada homem numa perspectiva diferente. Esta perspectiva resulta do facto da totalidade do ser se revelar a cada pessoa em função do lugar que ocupa no mundo. Pelo simples facto da sua percepção, cada pessoa é o ponto central de perspectiva do seu mundo: o que ela percepciona, percepciona-o em função do seu lugar no seio da realidade. O mundo que se apresenta está orientado para cada pessoa. Deste modo, cada um é uma representação do todo e a sua individualidade é caracterizada pelo seu ângulo específico de visão da totalidade. Embora cada indivíduo veja o mundo em função do lugar que ocupa no mundo, sabe que não é só ele que é o ponto de referência do seu mundo, visto que cada um dos outros indivíduos com quem vive também é ponto central de perspectiva do seu mundo. Por conseguinte, cada um dos outros aparece na nossa consciência como um espelho do universo.
Na experiência da sua própria realidade, cada um pode não só aceitar como evidente a realidade do mundo e da sua própria existência como tais, mas também perguntar-se porque razão existe algo, porque motivo não existe nada, e porque existe exactamente este mundo e não qualquer outro completamente distinto. Na verdade, não é evidente que exista algo. Poderia muito bem não existir nada. Não será um milagre incompreensível a existência do mundo e o facto de existirmos? Igualmente é de admirar que existam na realidade precisamente estas coisas, na sua peculiaridade inteiramente individual, quais se nos apresentam. Tudo poderia ser completamente diferente. Seriam possíveis um número infinito de outros mundos, de outras constelações de coisas. É uma característica peculiar do homem poder fazer tais perguntas. Por isso, a inquietação constante de Leibniz pelo problema da razão suficiente constitui o fundo antropológico propriamente dito do sistema leibniziano.
Como o homem existe como um espelho do mundo, e o mundo se revela onde existir um ser no qual possa assemelhar-se, é evidente que, para Leibniz, os problemas da natureza do mundo e da natureza do homem estão vinculados entre si. O mundo é tudo aquilo que realmente existe, existiu e existirá. É, pois, a totalidade e a unidade de tudo o que existe. Ora, esta totalidade manifesta-se, segundo Leibniz, no homem, ou melhor, espelha-se num ser, ao qual pode revelar-se e em cuja concepção o todo está, pois, representado. Todo o ser em cuja percepção o mundo se espelha é ele mesmo uma parte do mundo. Por isso, o mundo revela-se-lhe apenas através da perspectiva determinada pelo lugar específico que lhe cabe no todo. A verdadeira imagem do mundo só apareceria se ele mostrasse, não somente uma perspectiva, mas uma plenitude de perspectivas diferentes, as quais se completam num todo. Ora, a complementaridade recíproca dos diversos pontos de vista da consciência, os quais somente em conjunto representam o mundo como tal, constitui, segundo Leibniz, como que a vista na qual se representa o mundo da divindade.
Para Leibniz o mundo e a consciência, o sujeito e o objecto não se apresentam como elementos isolados, um frente ao outro. A consciência é de antemão determinada a partir do seu lugar específico no conjunto das coisas e, especialmente, a partir da sua relação com as perspectivas inteiramente diversas das outras pessoas e dos outros seres viventes. Assim a consciência e o espírito são apenas as formas mais elevadas da representação. Todo o ser vivente reflecte no seu ser o mundo. Mas nem todos os reflexos são conscientes: existem também, em todo e qualquer ser vivo, reflexos inconscientes e obscuros.
Todo o ser individual tem uma relação com o todo. Isto significa que cada ser, na sua existência, é um reflexo desse todo. Leibniz entende, portanto, o ser como representação. E esta sua ideia está associada à ideia de harmonia universal. O mundo é uno (ou unitário). Esta unidade só é possível porque as coisas se harmonizam entre si formando um todo em que as coisas estão conjuntamente com outras. O ser espiritual é apenas uma articulação desta relacionalidade em todo o ser. O ser existente é determinado pelo facto de representar o todo no lugar que ocupa dentro deste todo. O conceito de harmonia universal exprime, portanto, a unidade do ser que existe no todo. A consciência reflecte esta unidade numa perspectiva determinada mas só participa da harmonia do todo na sua relacionalidade com os outros reflexos possíveis do universo.
Por outro lado, o conceito de harmonia universalis permite a Leibniz responder à questão da razão suficiente: Por que razão existe exactamente este mundo, e não um outro qualquer? Por que motivo existem precisamente estas coisas, embora haja uma infinidade de outras possibilidades que têm o mesmo direito de existir na realidade? Com efeito, existe um enorme leque de mundos possíveis e imagináveis. Mas, dentre essas possibilidades, o mundo real ser aquele de cuja constelação resultar o maior grau de concretização de possibilidades. Ora, o mundo harmónico é precisamente aquele que é capaz de harmonizar entre si o maior número de possibilidades. Deste modo, a razão suficiente do mundo real reside na capacidade máxima de compaginar ou harmonizar possibilidades. Estas podem tornar-se e tornaram-se efectivamente reais nesta constelação. Assim o nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis.

SCHELLING. Na filosofia de Schelling, a natureza do homem também é determinada à luz da unidade e da totalidade do ser, mas a fonte destas já não consiste, como acontecia com Espinosa ou Leibniz, em aprofundar-se na natureza ou em contemplar o jogo infinito de reflexos das mónadas, mas sim no próprio eu. Com efeito, é no seu próprio eu que o homem faz a experiência original do ser e experimenta a identidade do fundamento e do fundamentado. No eu o absoluto manifesta-se ao homem. Deste modo, Schelling coloca o homem no ponto focal do problema do ser.
A unidade e a totalidade infinita do ser é absolutamente independente em si mesma, não podendo ser condicionada ou determinada por nada. Experienciamos este algo incondicionado em nós mesmos quando verificamos que tudo o que existe aparece-nos na consciência. É, portanto, a consciência que encerra no seu bojo a unidade infinita. Na consciência o ser existente, que lhe aparece, funde-se num todo. Ora, o lugar da experiência desta unidade é, portanto, o próprio eu. Todo o existente, pelo simples facto de existir, funde-se à unidade infinita do ser. Dado que o eu é o lugar em que se revela esta unidade de tudo o que existe, é no eu que experienciamos esta fusão antes mesmo de conhecermos o que quer que seja. O eu é, segundo Schelling, um lugar no qual se revela e brilha o absoluto.
A verdadeira profundidade e insondabilidade da consciência encontra-se na natureza da autoconsciência que, designada pela palavra eu, constitui a fonte da unidade de tudo aquilo que se nos depara. A filosofia de Schelling parte do princípio Kantiano segundo o qual a unidade transcendental da consciência se manifesta no facto de que a representação «Eu penso» acompanha todas as minhas outras representações. A autoconsciência é o seu próprio objecto. Quando digo «eu», faço-me objecto de mim mesmo. Na autoconsciência o sujeito e o objecto são idênticos. A autoconsciência só pode existir quando se faz objecto de si mesma. O significado antropológico da filosofia transcendental de Schelling reside na descoberta de que não se pode explicar a autoconsciência reduzindo-a a outra coisa qualquer, nomeadamente a processos fisiológicos ou outros, uma vez que ela só existe no seu auto-exercício. A sua natureza é uma identidade absoluta, não sendo condicionada por nada. Esta identidade da autoconsciência pode ser expressa pela fórmula eu=eu. O sinal de igualdade exprime o verdadeiro ser da autoconsciência. Com efeito, só quando compreendo que este eu como sujeito é idêntico ao eu como objecto, é que estou consciente de mim mesmo.
Mas, na identidade da autoconsciência, existe ao mesmo tempo uma duplicação que estabelece a distinguibilidade entre sujeito e objecto. Quer dizer que é necessário distinguir quem conhece daquilo que é conhecido. Só fazendo esta distinção é que se pode pasmar ante a identidade do sujeito e do objecto. Esta identidade estabelece a partir de si mesma o pólo do subjectivo e do objectivo, produzindo-os ao concretizar-se. Cada um dos elementos da proposição «eu=eu» é determinado pelo facto de identificar-se com o segundo, e vice-versa. Isto significa que cada um dos dois é em si mesmo um «eu=eu». Assim o sujeito da autoconsciência é determinado pelo facto de identificar-se com o objecto, sendo como tal um sujeito-objecto. Por outro lado, o seu objecto já‚ em si mesmo determinado pelo facto de ser idêntico ao sujeito, sendo também um objecto-sujeito. Os pólos da identidade absoluta na autoconsciência potencializam-se numa diferenciação infinita. Mas a identidade da autoconsciência suprime sempre de novo a diferenciação do sujeito e do objecto, e imediatamente deve estabelecer de novo esta diferença. O objecto do autoconhecimento deve sempre já conter o facto de que sou eu quem o conhece e o sujeito da autoconsciência só é plenamente compreendido sempre que se compreende ao mesmo tempo que o reflexo objectivo faz parte do seu ser. Ora, a autoconsciência produz-se a si mesma através desta realização ou concretização. Como ela só existe lá onde se conhece a si mesma, o ser e o conhecer, o ser e a verdade são, na filosofia transcendental de Schelling, a mesma coisa. Por fim, se o eu deve produzir-se a si mesmo no acto, Schelling considera que o fundamento e o fundamentado são também idênticos. Esta identidade absoluta entre o fundamento e o fundamentado, entre o ser e o existente, só é acessível na verdade do eu, uma vez que se manifesta na identidade entre o cognoscente e o conhecido, entre o sujeito e o objecto.

Spinoza, Leibniz e Schelling vêem o homem como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo. Embora as suas filosofias possam ser consideradas, no plano antropológico, como modelos «insulares» do homem, elas não tratam, no entanto, o problema do homem isoladamente do problema da natureza. Nestes três grandes sistemas filosóficos, a questão da natureza humana, tão grata a Edgar Morin, está intimamente vinculada ao problema da realidade do mundo em geral. No entanto, a análise do problema geral da relação homem/natureza varia de autor para autor. De uma maneira muito geral, podemos dizer que, na resposta ao problema do portador da unidade e da totalidade do ser, a tónica se desloca da substância para o sujeito. Enquanto que para Spinoza esta unidade é inquestionavelmente a natureza, para Schelling ela coincide totalmente com a unidade do sujeito. Leibniz parece aqui representar um meio termo. Com efeito, para Leibniz a unidade do ser manifesta-se já na representação. Da representação à unidade do sujeito, a distância é «curta» e, na história da filosofia, ela foi ocupada pela filosofia transcendental de Kant. Depois disso, temos a filosofia do idealismo alemão: Fichte, Schelling e Hegel.
Leibniz e Spinoza pensam que o problema da natureza do homem está intimamente associado ao problema da unidade do mundo e da natureza. Pensam também que a experiência da alma constitui um acesso para compreender o ser da natureza. Mas o caminho trilhado por cada um é inteiramente diverso. A fórmula de Spinoza «Homo pars naturae» insere o homem na totalidade do mundo. Para Spinoza, o homem não é uma entidade puramente subjectiva e espiritual que se contraporia à natureza, mas uma parte da própria natureza. Assim, para Spinoza, o ser aparece a tal ponto como a potência geradora da natureza que o próprio Deus é, em última análise, natureza. A unidade do mundo explica-se, portanto, inteiramente a partir da potência geradora da natureza. O homem é apenas uma parte dela que experimenta a natureza em si mesma na dinâmica do instinto e dos afectos. Ora, para Leibniz, a experiência da realidade feita no ser do homem é a da representação, isto é, do reflexo da totalidade cósmica em cada ser individual dotado de alma. Se na filosofia de Spinoza a potência geradora da natureza era concebida como uma necessidade absoluta, na filosofia de Leibniz domina a ideia de que seriam possíveis outros mundos inteiramente distintos do universo que realmente existe, não sendo sequer evidente que existe um mundo. Leibniz concebe o ser e a realidade a tal ponto como representação, espelho ou reflexo que o próprio Deus mais não é que a plenitude da representação na totalidade das perspectivas. Sendo assim, a natureza do homem consiste na representação e na «perspectividade», uma vez que a unidade do todo consiste na compatibilidade e relacionalidade recíproca que existe em todo o ser individual. Esta compatibilidade e relacionalidade estão representadas em cada indivíduo num reflexo caracterizado por uma perspectiva.
As filosofias de Spinoza e de Leibniz são, portanto, dominadas por conceitos diferentes. Enquanto para Spinoza as palavras fundamentais para compreender a realidade são natura e potentia, para Leibniz são as palavras repraesentatio e harmonia. Em ambos os sistemas filosóficos, o homem é definido pela posição que ocupa no conjunto total dos seres existentes, orgânicos e não orgânicos, mas este conjunto é compreendido à luz desses conceitos básicos. Se o ser é o poder e a força da natureza, a natureza do homem consiste em participar da natureza e da sua dinâmica dentro de nós. Se o ser é harmonia e representação, a natureza do homem consiste em ser um espelho do mundo e em participar da perspectividade pluriforme do todo. Contudo, Spinoza e Leibniz (filósofos da segunda metade do século XVII) encontram na nossa própria existência uma porta de acesso para compreender a realidade, uma vez que o nosso ser está enquadrado e determinado pelo todo superior que é o mundo.
Schelling, Hegel e Hölderlin fizeram juntos, quando estudavam em Tubinga (1790-1793), a leitura de um escrito de Jacobi sobre Espinoza (1785), no qual reproduz o seu diálogo com Lessing. A primeira reacção de Schelling foi tornar-se spinozista, como nos dá conta uma carta datada de 4 de Fevereiro de 1795 dirigida a Hegel. Schelling diz que o que Spinoza procurou na sua reflexão sobre a natureza foi a unidade e a totalidade infinita do ser. Mas enquanto Spinoza tinha procurado na natureza o lugar da experiência desta unidade, Schelling procurou-a e efectivamente encontrou-a no próprio eu. Se Spinoza afirmava que a natureza é na verdade una e única e que, por conseguinte, só existe uma substância, Schelling encontra este absoluto no eu. O eu é, na filosofia de Schelling, não somente algo que deve realizar-se a si mesmo, mas é também o produto de um evento que denominamos ser. A natureza enigmática do ser foi investigada por Spinoza na sua reflexão sobre a natura naturans. A identidade entre a natura naturans e a natura naturata estabelecida por Spinoza foi descoberta por Schelling na autoconsciência. Esta identidade absoluta entre o sujeito e o objecto, o fundamento e o fundamentado, o ser e o existente torna-se-lhe manifesta no eu, uma vez que somente aqui somos nós mesmos o objecto do conhecimento. O princípio spinoziano da única substância, a ideia cartesiana da auto-certeza absoluta que só é acessível no cogito ergo sum, e a experiência leibniziana do ser como representação e jogo de espelhos, conjugam-se nesta concepção para dar origem a uma nova unidade na esteira da filosofia transcendental de Kant e de Fichte. Embora o homem se apresente no sistema filosófico de Schelling como o elemento procurado a partir do evento da unidade e da totalidade do ser, perdeu-se, no entanto, algo que era característico sobretudo na filosofia de Spinoza: a primazia absoluta da natureza na definição do ser. É, por isso, que podemos considerar o sistema filosófico de Spinoza como «superior» ao dos seus émulos. Qualquer tentativa de constituição de uma nova Filosofia da Natureza deverá, pois, partir da filosofia spinozista.
Heidegger denunciou a metafísica da subjectividade de Fichte, Schelling e Hegel, procurando, na sua obra Sein und Zeit, superar a identificação entre o ser e a consciência, sem abandonar, todavia, a unidade entre a existência (Dasein) e o mundo defendida por Spinoza, Leibniz e Schelling. Como pretendemos argumentar contra a negligência filosófica de Edgar Morin, vamos descrever, em traços largos, o modo como a filosofia de Heidegger, mas também a fenomenologia existencial, encara o problema da correlação existente entre o homem e o mundo.

HEIDEGGER. A existência humana é sempre considerada, em Sein und Zeit, em conexão com o problema da verdadeira natureza do ser. Se quisermos compreender o que significa o ser, devemos primeiramente começar por colocar o problema do ser sem pretender dar-lhe uma resposta definitiva. Que significa dizer que existimos ou somos? Que significa afirmar que existe um mundo? O homem confronta-se constantemente com o ser, quer na sua própria morte, quer no seu agir e no seu comportamento quotidiano. Na confrontação com a sua morte, o homem compreende o que significa o facto de existir. Esta inquietação ante a possibilidade do nosso próprio não-ser, causada pela realidade factual e pelo carácter finito da nossa existência, é a relação que temos com o nosso ser. Deste modo, o homem concebe-se como um ente confrontado directamente com o ser e com o nada. Todavia, não é somente o seu próprio ser que se coloca como questão que urge compreender na sua forma interrogativa, mas o ser de tudo quanto existe. A unidade do mundo, ou seja, de tudo quanto existe, que tanto preocupava os filósofos anteriores, é o próprio ser que já não pode ser considerado como um sujeito ou uma coisa. O ser é um «enigma». Sendo assim, o homem já não é também pensado como sujeito ou substância, mas como um ser que se relaciona com a sua própria existência.
O aspecto mais enigmático do homem reside na sua relação com o tempo, mais precisamente com o futuro e o passado. Em cada situação o homem age em direcção a um futuro que ainda não existe. O nosso agir é determinado através de decisões acerca daquilo que ainda não é na realidade. Como projectamos a nossa existência em direcção a um futuro que é infinitamente aberto, não podemos satisfazer todas as nossas possibilidades. A característica essencial da existência humana encontra-se na abertura e indeterminação do futuro. A nossa existência encerra tanto o ainda-não do futuro como o não-mais do passado. Por conseguinte, não podemos limitá-la ao presente e ao que está-aí diante de nós. O futuro aberto em função do qual nos determinamos e o que já passou (passado) que constantemente reassumimos fazem também parte dela. Na recordação relacionamo-nos não somente com uma representação ou imaginação subjectiva que mora em nós, mas também e sobretudo com o ser do próprio passado. Desta meditação sobre a temporalidade da existência humana resulta ao mesmo tempo que não se pode limitar o ser ao presente e ao que está diante de nós. O ser compreende, além do presente que é, o futuro que ainda não é, e o passado que já não é mais. O tempo não é apenas o horizonte da existência humana. Trata-se antes de uma dimensão do próprio ser. Assim não se pode reflectir sobre o que é o ser sem emaranhar-se no «enigma» do tempo. Por conseguinte, Heidegger considera, na sua concepção «antropológica», que a temporalidade da existência humana só pode ser, em última análise, compreendida a partir do carácter temporal inerente ao ser. Como o ser é, em última análise, tempo, o homem mais não é do que um ser temporal, não somente na história da sua vida, mas também pelo seu papel representativo na história e no tempo em geral. O homem é, portanto, um ser-no-tempo.
À temporalidade inerente à existência humana devemos acrescentar uma outra sua «determinação». O homem encontra-se sempre no meio de outras coisas, ou melhor, num espaço que partilha com essas coisas. Isto significa que a existência humana «compreende» igualmente o mundo como lugar da sua existência. Faz, pois, parte da nossa existência o facto de, juntamente com ela, existir um horizonte de mundo no qual enxergamos tudo quanto existe. O mundo é o palco ou cenário do nosso agir e o lugar no qual somos, e não apenas o horizonte da nossa consciência. A nossa existência é de antemão definida como um ser-no-mundo. O ser do homem é, portanto, ser-no-mundo.
Se, na obra Sein und Zeit (1980) a unidade infinita e a totalidade do mundo se manifestavam na existência do homem, na Carta sobre o Humanismo (1973) Heidegger mostra que a criação deste círculo de luz, no qual o existente pode estar presente como existente, mais não é que o próprio evento do ser. Como afirma Heidegger, a existência do homem consiste em ser testemunha deste evento. Contudo, o ser não se define somente pela comparação do círculo de luz. Define-se também pela obscuridade, pelo mistério ou pelo estar-retirado. Assim como na realidade-humana faz parte também o esquecimento do passado e a perda de muitas possibilidades do futuro, da mesma forma faz parte do ser a sua notável proximidade do nada. O ser só pode ser concebido quando se toca a possibilidade do nada. Da dificuldade de pensar o nada resulta a dificuldade de entender o ser. O homem é o ente que pode pensar o ser, e que na sua existência se relaciona com o ser. Assim, o ser está próximo do nada. Como não está presente em parte alguma, o nada precisa do homem para se revelar. É, por isso, que o homem é também um lugar no qual pode revelar-se o ser. O homem pode distinguir o ser do não-ser. Em parte alguma do mundo está presente o nada existente: no mundo só existe o existente. O próprio ser e a unidade do mundo não existem em parte alguma como coisas. Manifestam-se onde houver um ente que pergunta por eles. Eis por que a existência do homem deve ser determinada pela manifestação e pela evidência do próprio ser e pela automanifestação do mundo como todo. Pena é que Heidegger, com base na sua filosofia ontológica, não tenha repensado o conceito de natureza que domina o sistema de Spinoza, embora os seus escritos sobre o conceito grego de Physis se orientem nessa direcção. Não será porventura necessário — precisamente se tivermos compreendido que somos um evento do ser — compreender novamente que somos natureza? A naturalidade do homem manifesta-se claramente na sua corporalidade. O existir como tal é ser-corpo (Merleau-Ponty, 1975), da mesma forma como é ser-no-mundo e temporalidade.

Ora, este percurso pela história da filosofia visava mostrar que o desbloqueio da noção de homem, que exige uma nova antropologia, é muito anterior à revolução biológica moderna que viu nascer uma biologia não-cartesiana. Contudo, a revelação biológica impulsionou de forma directa e quase imediata o nascimento da nova antropologia. Os dados novos que as ciências biológicas e biomédicas trouxeram reformaram (no sentido de Bachelard) completamente a noção de Homem. Se a metafísica clássica, nomeadamente a de Spinoza e de Leibniz, prepararam de modo espectacular o terreno da nova antropologia, integrando o homem na unidade do cosmos, este movimento antecipatório da filosofia acabou por refluir com o surgimento do idealismo alemão que traçou uma linha divisória radical entre a filosofia e a ciência. A velha aliança tinha sido assim quebrada. Mas Marx e o marxismo trouxeram um novo impulso: a aliança entre filosofia e ciência foi parcialmente restabelecida no marxismo da maturidade. Apesar da ruptura epistemológica que atravessa o pensamento de Marx e que o divide em dois grandes períodos, as obras de juventude que ainda não são marxistas e as obras de maturidade propriamente científicas, o jovem-Marx (1975) estabeleceu de modo firme e seguro o projecto de uma scienza nuova: «A ciência natural acabar um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrar em si a ciência natural; haver apenas uma única ciência» (p. 169).
Embora preparado pela filosofia ao longo das suas intermináveis lutas contra a tirania do pensamento religioso dogmático (que possibilitaram a compreensão do homem na sua finitude, independentemente de qualquer «força» estranha e transcendente), a unificação das ciências naturais e das ciências do homem começou pelas ciências biológicas. Edgar Morin considera que o desbloqueio biológico operou-se fundamentalmente em três frentes, a saber: a biologia molecular, a ecologia e a etologia. É certo que foram estas ciências que fizeram surgir brechas no seio de cada paradigma isolado, mas, mesmo permanecendo no domínio da biologia, o movimento de aberturas para os outros domínios até então interditos e através dos quais se operam as primeiras conexões e emergências teóricas novas foi iniciado, de modo surpreendente, pela biologia da evolução. Além da biologia da evolução, da biologia molecular, da ecologia e da etologia, duas outras ciências biológicas, a sociobiologia e a neurobiologia trouxeram, nos últimos anos, um contributo de tal modo complexo e problemático que se torna necessário reformar todos os modelos antropológicos actuais, nomeadamente o de Edgar Morin, e fundá-los, mesmo que ainda provisoriamente, sobre novas bases biológicas, físicas e filosóficas.
Consequentemente, consideramos que o desbloqueio biológico ocorreu, não em três, mas em seis frentes: a biologia da evolução, a biologia molecular, a ecologia, a etologia, a sociobiologia e as neurociências. Cada uma dessas ciências biológicas desbloqueia uma determinada noção ou ideia, abrindo assim cada paradigma isolado para os domínios até então interditos. O desbloqueio de uma determinada noção compreende sempre simultaneamente uma ruptura e um acto epistemológico, no sentido preciso de Bachelard. A reforma de uma determinada noção implica sempre a ideia de que essa noção representa, na cultura científica, um obstáculo epistemológico que entrava o desenvolvimento científico. Assim as noções de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, que dominavam os anteriores paradigmas isolados, constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos. Foi preciso esperar pela revolução biológica para vermos essas noções a ser submetidas a uma crítica severa e radical que, na maior parte das vezes, nem sequer a designação nominal conservou. Todas essas noções ideológicas, funcionavam no interior de paradigmas ou modelos teóricos que teimavam manter-se isolados uns dos outros. Ora, Prigogine demonstrou que essa imagem do saber compartimentado em áreas e domínios isolados uns dos outros não conseguiu resistir aos efeitos de impacto da revolução científica do século XX. Se hoje o conceito de ciência é, na sua essência, um conceito filosófico no sentido de implicar uma aliança com toda a cultura e particularmente com a filosofia, o próprio conceito precisa de ser revisto e reformado a tal ponto que possa, sem perder a sua autonomia e especificidade, integrar no seu seio a actividade científica. Como o nosso conceito de Filosofia já compreende a actividade científica, não temos qualquer necessidade de reduzir o seu diálogo com as ciências ao domínio da epistemologia, da gnoseologia ou da lógica. Assim como a ciência contemporânea é filosofia, assim também a filosofia é ciência. Só a sua «unificação» dialéctica nos permite o empreendimento ousado de desbloquear as noções ideológicas de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, por modo a preparar um novo terreno do qual possa emergir um novo modelo teórico de Homem. Sem os métodos filosóficos seriamos incapazes de definir o homem como totalidade. Ora, é precisamente o conceito de totalidade em evolução, mais precisamente de sistema, que iremos opor a cada uma das noções, que entravavam o progresso científico. Dessa oposição da ideia de sistema a cada uma dessas noções surgirão ímpetos do génio científico que provocam impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico. Bachelard chamou-lhes actos epistemológicos mas Foucault, já numa outra perspectiva, optou pelo termo irrupções no saber, para os designar.
(Esta é uma secção da nossa tese de mestrado, Homo Fossilis: Ensaio neuro-antropológico. Embora este texto precise ser revisto e clarificado, editamo-lo por pensarmos que ela possa incentivar a pesquisa filosófica. O título aqui escolhido pode parecer um pouco desfasado ou mesmo inadqueado, dado não clarificar a natureza do cibernauta, mas a cyberciência também compreende tudo quanto possa ser e é efectivamente divulgado pela Internet.)
J Francisco Saraiva de Sousa